quarta-feira, 30 de maio de 2007

Decisão por mera remissão em processo de contra-ordenação


Pode a decisão de um processo de contra-ordenação ser elaborada por simples remissão para parecer prévio ?
Dispondo o art. 58º do RGCO que a decisão deve conter um conjunto de requisitos, pode a referida decisão ser formulada por mera remissão ?
A mera concordância a projectos de decisão foi o que se quis evitar com o disposto no art. 58º daquele regime, ou seja, que, na prática, seja outrem a decidir que não quem deve formular a decisão. Ora, se o legislador, de quem se presume que consagrou as soluções mais adequadas ( art. 9º do Cód. Civil ), disciplinou em moldes semelhantes ao Direito Processual Penal o conteúdo formal da decisão é porque se quis afastar deliberadamente neste tocante das regras do procedimento administrativo maxime das que regem a fundamentação dos actos administrativos, que consequentemente não podem aqui ser aplicáveis. No direito contra-ordenacional o legislador pretendeu que a ponderação da prova, dos factos, do direito e da sanção propriamente dita, fosse feita pelo órgão com competência para proferir a decisão condenatória. Daí, repita-se, a redacção do art. 58º do RGCO.
A decisão por mera adesão a parecer prévio implica que o juízo de facto e de direito em causa seja proferido por um agente administrativo incompetente para proferir a decisão.
E foi exactamente para evitar tal situação que o legislador estabeleceu os requisitos mínimos da decisão condenatória que têm por finalidade “obrigar” o órgão decisor à ponderação dos aspectos fundamentais da decisão.
Em direito contra-ordenacional a decisão “concordo” é, em absoluto, inadmissível.
Não só o legislador elencou requisitos mínimos da decisão condenatória – imperativamente referidos no art. 58º do RGCO – como a remessa do direito contra-ordenacional para o penal – art. 41º do RGCO – torna impossível a decisão final por remissão para seja o que for ( parecer, informação, jurisprudência, decisão semelhante anterior, etc. ).
Por outro lado, a decisão condenatória consubstancia-se num acto, a responsabilidade da autoridade administrativa não pode nem deve ser repartida. Trata-se de um acto eminentemente jurisdicional, inscrito no âmbito da competência própria de um órgão decisor que não pode ( excepto em casos legalmente previstos como é o caso da delegação de poderes ) dissipar tal poder por agentes e órgãos da administração em termos da decisão final. O arguido terá, assim, direito ao princípio do “decisor” natural – proibindo-se o desaforamento da competência ou a criação de “decisores” ad hoc para certas matérias, casos ou arguidos.
Tal é tanto mais verdade que não são admissíveis nem sequer cogitáveis, sentenças proferidas por órgãos jurisdicionais por “concordo”.
A decisão por mera remissão é até, para certa doutrina, classificada de inexistente – cfr. António Beça Pereira, in “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Edição de 1997, pág. 105, em anotação ao art. 58º citado.
O entendimento perfilhado por quem divide o processo contra-ordenacional em duas fases, sendo uma administrativa e outra jurisdicional, é absurdo e perigoso, pois tem em si subjacente o risco de eliminar no processo de contra-ordenação a proibição de aplicação analógica in malem partem e a exigência da tipicidade e consequente determinabilidade dos tipos. Só que, como refere Figueiredo Dias ( Jornadas de Direito Criminal, p. 330 ), “...No que toca concretamente ao âmbito da vigência da lei das contra-ordenações, deverá sublinhar-se – dado que em alguns lados, v. g. numa parte da doutrina italiana, se acusa a substituição da categoria penal das contravenções pela categoria extra-penal das contra-ordenações, de representar um inconveniente encurtamento dos direitos e garantias dos cidadãos -, deverá sublinhar-se que se transportam para o direito das contra-ordenações as garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal, nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável. Daqui decorre que – contra o que em certos sectores doutrinais se chegou a pensar e preconizar – também no direito da contra-ordenações vale a proibição de aplicação analógica in malem partem e a exigência da tipicidade e consequente determinabilidade dos tipos”.
O processo de contra-ordenação constitui uma realidade “sui generis” que representa um meio termo entre o tradicional processo administrativo sancionador e o tradicional processo criminal. Embora a competência para a instauração, a instrução e a decisão caiba às autoridades administrativas ( arts. 33º e segs do RGCO ), a fase contenciosa de impugnação tem regime análogo ao do processo penal e corre pelos tribunais judiciais. É o direito processual penal que funciona como direito subsidiário da disciplina do processo contra-ordenacional ( art. 41º do RGCO ). É o direito processual penal que em princípio regula os deveres das autoridades administrativas ( cfr. art. 41º, n.º 1, do RGCO ), da polícia e dos agentes fiscalizadores ( art. 48º, n.º 2, do RGCO ). É o direito processual penal que regula praticamente toda a matéria respeitante à recolha e apreciação das provas, visto que na lei-quadro, para além de normas específicas contidas nos arts 42º, 44º e 48º - que nem sequer se revelavam indispensáveis por serem a reprodução de normas já consagradas no direito processual penal, aplicáveis por força do art. 41º, n.º 1 – nada mais foi expressamente disciplinado ( cfr. neste sentido, Mário Gomes Dias, Breves Reflexões Sobre o Processo de Contra-Ordenação, in Contra-Ordenações, Escola Superior de Polícia, págs. 123º e segs ).
Com isto se vê que se torna insustentável a qualquer título a busca no Código de Procedimento Administrativo de soluções para o regime geral das contra-ordenações, ainda que tal pudesse representar soluções mais cómodas para quem decide. Neste sentido, M. Simas Santos e J. Lopes de Sousa, “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, Vislis, 2001, p. 260 ( nota 5 do art. 41º ) e p. 322 ( nota 3 ao art. 58º ), António Beça Pereira, no “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina 2001, p. 88, Teresa Beleza, no “Direito Penal”, AAFDL, vol. 1, 2ª Edição, p. 131, José P. F. Cardoso da Costa, “O Recurso para os Tribunais Judiciais da Aplicação das Coimas pelas Autoridades Administrativas”, 1991, p. 57 e segs, e José Gonçalves da Costa, “Contra-Ordenações”, CEJ, Set. 1995, p. 46 e segs, s/ a “estrutura e conteúdo da decisão”.
O art. 58º do RGCO é expresso e de fácil interpretação para o jurista. O cumprimento de um dever de aplicação de sanção, porque contende com direitos fundamentais do arguido deve ser ponderado e fundamentado.
Para mais desenvolvimentos, cfr. “Contra-ordenações – DL 433/82: as normas de direito material e sobre a estrutura e conteúdo da decisão – considerando as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95 -, precedido de algumas noções gerais de direitos – Formação para médicos de saúde pública -, Centro de Estudos Judiciários, Setembro 1995, por Juiz Conselheiro, Dr. José Gonçalves da Costa.
Quanto a tratar-se de nulidade ou antes de inexistência, não nos parece que tal seja aqui relevante, pois em ambos os casos estamos perante vícios a evitar, como aliás será de evitar qualquer irregularidade. De qualquer forma, só não nos inclinamos, embora com dúvidas, para o vício da inexistência, quando for entregue ao arguido cópia do parecer. Mas sempre entendemos que se trata de nulidade da decisão, por força do disposto no art. 58º, n.º 1, al. c), do Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10, na redacção actual, e 374º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, pelo que devem os autos, quando tal ocorra, ser devolvidos à autoridade administrativa pelo Ministério Público, decretando-se a nulidade do processado subsequente ao referido parecer, salvo instrução ou ordem escrita da hierarquia do Ministério Público em sentido contrário.




Sem comentários:

Enviar um comentário