quarta-feira, 30 de maio de 2007

Dados de Base/Dados de Tráfego

A obtenção da identificação dos cartões de acesso ao serviço telefónico móvel que funcionaram por referência a certo IMEI de telefone furtado ( furto simples: art. 203º, n.º 1, do Cód. Penal ) pode ser considerada obtenção de informação sobre dados de base ?

A obtenção de informação sobre os períodos temporais em que tais cartões estiveram associados a tal IMEI é ainda obtenção de informação sobre dados de base ?

Note-se que não se refere aqui qualquer facturação detalhada.

Poder-se-á considerar que estamos ainda em sede de dados relativos a uma fase prévia à comunicação ( dados de base ), uma vez que não se solicita informação sobre as comunicações estabelecidas, mas apenas sobre quem utilizou e utiliza o aparelho furtado, estando, pois, salvaguardada a confidencialidade das comunicações e a esfera privada íntima do utilizador, posto que nunca se saberá que chamadas foram realizadas, para quem, por quanto tempo, de onde e para onde ?

Uma interpretação que considere que tal informação respeita a dados de base viola ou não a Directiva n.º 5/2000, da Procuradoria-Geral da República, publicada no DR n.º 198, II Série, de 28.08.2000, na página 14 145 e seguintes ?

Para nós, o simples pedido de informação sobre que cartões funcionaram associados a certo IMEI e em que períodos temporais não faculta o acesso a qualquer informação sobre qualquer comunicação estabelecida.
Assim, não se está perante um pedido de dados de tráfego, no sentido de dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e dados gerados pela utilização da rede, pois que não conseguirá saber nem a direcção, nem o destino nem a via ou trajecto, ou seja, a informação em causa não permite saber qual o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização do chamador e do chamado em dada comunicação, a frequência de tais chamadas, a data, a hora e a duração da comunicação.
Assim, a obtenção de tal informação pode ser solicitada directamente pelo Ministério Público, sem prejuízo depois de recorrer à Relação, nos termos do art. 135º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, via juiz de instrução, para afastar o sigilo bancário que possa ser invocado, no que respeita a saber em que contas foram realizados os carregamentos nos cartões associados ao IMEI .
Tal informação, a ser solicitada e obtida, não viola a Directiva da PGR, até porque a mesma não foca a situação que se discute, remetendo para conceitos abstractos ( dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo ). A preocupação da Directiva relaciona-se com a obtenção de informações que violem a intimidade e reserva da vida privada.
A informação a respeito de que cartões funcionaram por referência a certo IMEI de telemóvel furtado e em que período de tempo foram usados tais cartões em tal IMEI é fundamental para a investigação e não contende de forma intolerável com qualquer interesse digno de protecção, pese embora as consequências possam vir a ser o ter de se inquirir alguém para que esclareça em que circunstâncias utilizou o telemóvel furtado. Mas isto não é um "dano ", pois que, afinal, existe utilização de um aparelho furtado...E fica sempre salvaguardada a confidencialidade das comunicações que essa pessoa estabeleceu.
Parece-nos também importante o facto de o art. 190º do Cód. Proc. Penal se referir apenas e tão-só "...às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone... ", no que não se inclui a situação dos autos.
Pensamos que haverá que fazer aqui intervir os princípios relativos à interpretação da lei, que impõem que se atenda à ratio legis.
Por outro lado, num exercício de concordância prática de direitos, não vejo que a interpretação que fazemos não seja adequada, pois que a mesma salvaguarda devidamente o princípio da proporcionalidade em sentido amplo ( adequação, necessidade e proibição do excesso ) do art. 18º da CRP.
A concluir em sentido contrário, as operadoras de telemóveis não poderiam prestar o serviço que prestam, pois que têm acesso aos dados de tráfego e até de conteúdo.
O que importa para efeitos da Directiva da PGR é que no inquérito se não exibam e não se aceda a dados de tráfego ou de conteúdo.
Não vejo que o simples facto de dar a informação sobre que cartões estiveram associados a certo IMEI e em que período de tempo, ainda que com consulta a dados de tráfego por parte da operadora, mas que não são revelados no inquérito pela mesma, viole a Constituição.
O art. 190º do Cód. Proc. Penal passa por cima da distinção entre dados de base, de tráfego e de conteúdo, visando apenas impedir que a pretexto de uma investigação criminal se devassem de forma intolerável aspectos da reserva da vida privada.
Os critérios nesta matéria, por outro lado, conforme refere José Mouraz Lopes, em "Escutas telefónicas: seis teses e uma conclusão ", in RMP 104, página 144, têm de ter em consideração que deve imperar uma menor rigidez.
E o certo é que o art. 190º do Cód. Proc. Penal se refere a "conversações " ou "comunicações " e não a dados de base, dados de tráfego ou dados de conteúdo.
Ora, não vemos que a informação sobre que cartões funcionaram por referência a certo IMEI (de telefone furtado ) e em que período de tempo, sem mais, note-se, isto é, sem que tal informação se faça acompanhar de facturação detalhada, se possa enquadrar nos conceitos plasmados no art. 190º do Cód. Proc. Penal.
Note-se que não se defende aqui que o Ministério Público devesse ter acesso a dados de tráfego ou de conteúdo na investigação de um crime de furto simples.
Não se contesta e decorre expressamente da lei que às operadoras incumbe providenciar, no que for necessário e estiver ao seu alcance, no sentido de assegurar e fazer respeitar, nos termos da legislação em vigor, o sigilo das telecomunicações do serviço prestado, bem como o disposto na legislação de protecção de dados pessoais e da vida privada
Aquilo que mais uma vez deixo sublinhado é que não há qualquer ingerência nas conversações ou comunicações ( conceitos operativos estes que são os enunciados no art. 190º do Cód. Proc. Penal, e não outros ) quando o Ministério Público solicita a uma operadora que informe que cartões de acesso ao serviço telefónico móvel funcionaram por referência a determinado IMEI e em que período temporal – note-se que não se pede aqui senão dados de base, ou seja, não se solicita qualquer facturação detalhada, nem tal seria possível e se tal ocorresse a mesma deveria ser destruída nos autos, como aconteceu neste inquérito.
O conceito de ingerência que se subscreve é, pois, distinto do que se encontra subentendido no despacho recorrido, que adopta um conceito que levaria, em último termo, à criminalização dos empregados das próprias operadoras.
O conceito de ingerência deve ser enquadrado na norma do art. 190º do Cód. Proc. Penal, a qual estabeleceu uma verdadeira concordância de direitos, mais uma vez se demonstrando como o processo penal é direito constitucional aplicado. Ora, não se vislumbra que ingerência exista nas conversações ou comunicações quando se fornece ao Ministério Público a informação referida, essencial para a investigação do crime de furto do telemóvel.
Com tal informação o Ministério Público nunca conseguirá saber nem a direcção, nem o destino nem a via ou trajecto, ou seja, a informação em causa não permite saber qual o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização do chamador e do chamado em dada comunicação, a frequência de tais chamadas, a data, a hora e a duração da comunicação.

No sentido supra-exposto decidiu o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.12.2006, processo 1001/05.8PBFIG-A.C1, cujo relator foi o Desembargador Orlando Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.

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