terça-feira, 27 de novembro de 2007

Procuração Irrevogável ( revogação ) e património autónomo do casal

Inquérito n.º …
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Declaro encerrado o inquérito (artigo 276º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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Os presentes autos tiveram origem na participação criminal apresentada por Maria … contra António …, constante de fls. 1, denunciando factos que, na sua perspectiva, seriam susceptíveis de integrar a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 218.º do Código Penal.
Alegou, em síntese, que sendo casada em comunhão geral de bens com o denunciado, era este que administrava o património comum do casal, comprando e vendendo, em virtude de aquela lhe ter outorgado procurações para o efeito. Em 6 de Março de 2001, a denunciante revogou a procuração que havia outorgado em 7 de Abril de 1981, tendo levado esse facto ao conhecimento do denunciado através de requerimento de notificação judicial avulsa, pela qual foi notificado em 14 de Março de 2001, requerendo ainda a denunciante que fosse notificado que, dessa forma, revogava todas e quaisquer procurações que houvesse outorgado a favor do mesmo.
Acontece que, no dia 7 de Março de 2006, o denunciado vendeu, em nome próprio e em representação da denunciante, à Sociedade …, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial …a favor do denunciado e da denunciante sob o n.º … do Livro …, fls. …, pelo preço de 2.800.000 €, tendo sido representado no acto por Jorge …, a quem havia outorgado procuração, substabelecendo no mesmo documento os poderes conferidos pela denunciante por procuração datada de 23 de Abril de 1981.
Mais alegou que o denunciado não lhe deu conhecimento do negócio, fazendo seu o valor da venda.
Juntou aos autos certidão de casamento, fotocópia certificada do instrumento de revogação, certidão de notificação judicial avulsa, fotocópia certificada da escritura de compra e venda do terreno referido e ainda a procuração e substabelecimento outorgada a Jorge ...

Procedeu-se a inquérito, nos termos do artigo 262º do Código de Processo Penal.

Foi junto aos autos, a fls. 44 a 57, certidão da escritura supra-referida, acompanhada de procuração e certidão que instruíam a escritura, junto a fls. 62 a 65, certidão de teor matricial relativamente ao prédio em causa e a fls. 68 a 70, certidão de casamento respeitante ao casal.
António … foi constituído arguido e interrogado como tal, não tendo prestado declarações, mas protestando juntar prova documental relativamente aos factos.

Inquirido Jorge …, referiu que se deslocou ao Brasil, na qualidade de mediador, para se encontrar com o denunciado para outorgarem a procuração com substabelecimento, não lhe tendo sido exibida a procuração outorgada em 23 de Abril de 1981. Mencionou que, tendo-lhe sido apresentada uma proposta pelo terreno pelo Sr. Paulo …, no mês de Fevereiro de 2006, procurou entrar em contacto telefónico com o arguido, mas quem atendeu o telefonema foi a denunciante, a quem deu conhecimento da existência de um interessado na aquisição do terreno, tendo-lhe esta dado o número de telefone de um Sr. Fernando …, no Brasil, que o poria em contacto com o marido. Não conseguindo entrar em contacto com esse senhor, por mais duas vezes comunicou com a denunciante, que lhe forneceu dois números de telefone, tendo após o último contacto logrado falar com o denunciado. Esclarece ainda que 2-3 dias antes de falar com a denunciante ao telefone, falou com ela pessoalmente à porta da residência a respeito do terreno, tendo-lhe a mesma dito que o assunto da venda do terreno deveria ser tratado com o marido. Afirmou desconhecer se a procuração em causa chegou alguma vez a ser revogada.

Foi inquirido Paulo … que esclareceu que esteve presente na escritura de compra e venda do terreno, desconhecendo se foi apresentada a procuração da denunciante ao denunciado. Referindo ainda que nunca teve contacto com a denunciante e que não teve conhecimento de algum conflito subjacente ao negócio entre o casal. Juntou quatro cópias relativas ao pagamento, acrescentando que 56.000€ foram entregues em dinheiro.

A fls. 90 a 103, veio a testemunha Jorge … juntar documentos relativos ao negócio em causa e cópia do contrato de mediação mobiliária.
A fls. 104 a 330, veio o arguido aos autos, ao abrigo do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal, requerer o arquivamento dos autos, expondo os seus argumentos e apresentando 16 documentos, entre os quais consta a notificação judicial avulsa e certidões relativas a bens imóveis, património comum do casal.

Inquirida M …, notária no Cartório Notarial em que foi realizada a escritura de compra e venda, esta esclareceu que não lhe foi exibida a procuração outorgada no dia 23 de Abril de 1981, referida na procuração e substabelecimento de fl. 52, dado que este documento tinha sido lavrado no Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, pelo que obrigatoriamente tal documento teria sido exibido perante o chanceler que o lavrou, estando assim dispensada a sua apresentação.

Foi inquirida a denunciante Maria … que confirmou a denúncia apresentada, esclarecendo que não se recorda de ter passado alguma procuração com data de 23 de Abril de 1981. Mencionou que recebeu vários contactos telefónicos de pessoas a solicitar o contacto do seu marido, mas que nunca lhe deram conhecimento da existência de interessados na compra do terreno.
Refere que desconhece quem seja Jorge …, e que nunca teria falado pessoalmente com este sobre o terreno, nem com ninguém sobre o mesmo assunto. Acrescenta que o marido nunca lhe deu conhecimento dessa venda, nem o destino dado ao dinheiro da mesma, e que tinha revogado todas as procurações que havia outorgado ao seu marido, através de notificação judicial avulsa, na qual alegou que aquele vinha celebrando negócios que entendia serem prejudiciais.
Mencionou que após a revogação das procurações, todos os negócios celebrados tiveram a sua intervenção pessoal.
Esclarece ainda que não foi proposta qualquer acção judicial para revogação da procuração, mas que existe a notificação judicial avulsa que juntou nesse momento aos autos a respectiva certidão.

Foi ainda inquirido Américo … o qual referiu que nunca contactou directamente com o arguido a respeito da compra e venda do terreno, nem com a denunciante, visto que o negócio se realizou com a mediação da Imobiliária …. Acrescentou que o terreno foi pago com um cheque, a cujo valor acresceram 56.000 €.

Apreciando:

I – A denunciante Maria … participou criminalmente de António … imputando-lhe a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 218º do Código Penal.
Da análise deste tipo legal resulta que são três os requisitos deste tipo legal de crime, a saber:
a) a intenção do agente de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo;
b) que o mesmo, com tal objectivo, astuciosamente induza em erro ou engano o ofendido sobre os factos;
c) assim o determinando à prática de actos que causem prejuízo patrimonial a si, ou a outra pessoa.
No crime de burla exige-se, desta forma, um triplo nexo de causalidade, nomeadamente, que a astúcia seja a causa do erro ou engano; que o erro ou engano sejam a causa da prática de actos pela vítima e que da prática dos actos resulte um prejuízo patrimonial para a vítima ou para terceiro.
No que à dimensão subjectiva concerne, exige-se que o agente tenha actuado com dolo, ou seja, que conheça estar a actuar fraudulentamente, sabendo que os meios engenhosos que utiliza são adequados a induzir o burlado em erro ou engano e idóneos a que o burlado consinta, consequentemente, na espoliação do seu património ou de terceiro, resultado este pretendido pelo agente.
Além do dolo genérico o tipo subjectivo do crime de burla é ainda constituído pela intenção de enriquecimento ilegítimo à custa do património alheio, devendo o agente ter consciência da ilegitimidade desse enriquecimento.
Nos termos do artigo 218º, nº 1 e 2 do Código Penal, a burla é qualificada se o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado. No caso em apreço, a verificar-se a prática do ilícito, tendo em conta que a venda realizada teve o preço declarado de 2.800.000 €, o crime será punível pela alínea a), do nº 2 do referido artigo, dado o valor exceder 200 unidades de conta (artigo 202º, alínea b) do Código Penal).
O crime de burla qualificada é um crime público, e como tal, independente de queixa ou acusação particular.

Feitas estas considerações, e sopesando os elementos probatórios constantes dos autos, verifica-se, com efeito, que os factos denunciados não configuram a prática de um crime de burla qualificada, nomeadamente não preenchem um dos elementos típicos do ilícito – o processo astucioso empreendido pelo agente, isto é, a utilização pelo mesmo de meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano na vítima.

Desde logo, importa ter presente que o arguido e a denunciante são casados em comunhão geral de bens e que o bem imóvel em causa é um bem comum do casal.
Neste regime de bens, de acordo com o artigo 1732º do Código Civil, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei (sobre os bens incomunicáveis – cfr. artigo 1733º do Código Civil).
Os bens comuns do casal constituem um património autónomo especialmente afecto aos encargos da sociedade conjugal, nos termos do artigo 1724º do Código Civil.
Não se trata de um regime de compropriedade, este envolvido pelo interesse individual dos comproprietários, que podem requerer a divisão da coisa comum, dado aí existirem vários direitos que incidem sobre toda a coisa, mas trata-se de uma propriedade colectiva, afecta aos encargos da sociedade conjugal, insusceptível de divisão enquanto durar o casamento.
É, com efeito, a contitularidade de duas pessoas num mesmo direito que, além de único, é uno, o que se consubstancia em comunhão una, indivisível e sem quotas.
Para que um dos cônjuges possa alienar, de forma eficaz, um bem integrante deste património autónomo do casal, necessário se torna o consentimento do outro cônjuge, nos termos do artigo 1682º-A, nº 1, alínea a) do Código Civil, consentimento cuja forma exigida é a mesma que para a procuração, ou seja, a forma exigida para o negócio a realizar (artigos 1684º, nº 2 e 262º, nº 2 do Código Civil).

No caso em análise, o arguido detinha várias procurações que tinham sido outorgadas pela sua mulher, a denunciante, que lhe autorizavam a alienar os bens comuns do casal, nomeadamente os bens imóveis.
Acontece que a denunciante, em 6 de Março de 2001, fez menção de revogar uma procuração outorgada em 7 de Abril de 1981, dando conhecimento do facto ao arguido em 14 de Março de 2001, através de notificação judicial avulsa, na qual dá conhecimento que, por aquele acto, igualmente revogava todas e quaisquer procurações outorgadas em favor do arguido.
Nos termos do artigo 265º, nº 2 do Código Civil, a procuração é livremente revogável pelo representando, independentemente de convenção em contrário. No entanto, o nº 3 do referido artigo, dispõe que, se a procuração tiver sido outorgada também no interesse do procurador, a revogação carece de consentimento deste, salvo em caso de justa causa.
A lei não define o “interesse do mandatário ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão do princípio geral da irrevogabilidade da procuração, sendo de atender, normalmente, à “relação jurídica em que a procuração se baseia”[1]. Desta forma, o interesse do procurador deve aferir-se pela sua integração numa “relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário tenha direito”[2], auferindo uma vantagem de ordem económica ou jurídica.
No caso em apreço, a procuração em causa foi outorgada também no interesse do arguido, pois os bens imóveis abrangidos no objecto da procuração, visando a sua compra e venda, são bens comuns do casal, pelo que o arguido passou a desempenhar uma actividade que se repercutiu directamente na sua esfera patrimonial, visto que é directamente interessado no produto da venda dos aludidos bens imóveis.

Ora, a denunciante ao revogar a procuração outorgada em 7 de Abril de 1981, não beneficiou do consentimento do arguido, consentimento esse exigido para tal revogação, tendo em conta que a procuração havia sido outorgada igualmente no interesse do arguido, seu cônjuge.
A tal acresce o facto de a notificação judicial avulsa não ser o meio adequado para revogar as procurações mencionadas no artigo 265º, nº 3 do Código Civil, posto que não admite qualquer oposição, de acordo com o disposto no artigo 262º, nº 1 do Código de Processo Civil, só podendo fazer-se valer os direitos respectivos nas acções competentes, no caso numa acção revogatória.

Alega a denunciante justa causa para retirar os poderes conferidos ao arguido, dizendo que o arguido vinha celebrando negócios que entendia serem prejudiciais para seu interesse, contudo não cabe aqui apreciar dessa justificação, mas sim numa acção judicial especialmente intentada para o efeito, isto é, numa acção revogatória. Acção essa que a denunciante refere não ter intentado. Ao que acresce o facto dos efeitos produzidos por essa acção não serem retroactivos, operando apenas para o futuro, visto se tratarem de efeitos “ex nunc”.

Destarte, a procuração outorgada em 23 de Abril de 1981, utilizada no negócio aqui em causa, há-de ser tida como ainda válida e eficaz à data do substabelecimento dos poderes por ela conferidos, bem à data da celebração da escritura de compra e venda do terreno.
Deste modo, o arguido ao substabelecer em Jorge … os poderes conferidos pela procuração outorgada pela sua esposa em 23 de Abril de 1981, que lhe conferia poderes especiais para venda de imóveis, agiu em conformidade com a posição que a referida procuração lhe concedia, ao momento ainda válida e eficaz.
Por outro lado, a existência e conformidade legal da procuração datada de 23 de Abril de 1981 não se põe em causa, em virtude de ter sido exibida e controlada pelo chanceler do Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, aquando do substabelecimento dos poderes por ela conferidos.

Nada nos autos permite inferir que o arguido tenha descrito, perante quem quer que seja, uma falsa representação da realidade, arrogando-se de poderes de procurador da sua esposa Maria …, tentando, assim, fazer cair a denunciante ou outrem em erro ou engano, ardilosamente provocado, pois o arguido detinha, efectivamente, esses poderes e agiu tendo em vista o que esses mesmos poderes lhe possibilitavam.

A tudo isto acresce, embora sem grande relevância para a questão, o conhecimento prévio do negócio pela denunciante, que além disso, reencaminhava para o arguido todos aqueles que a contactavam para discutir a venda do terreno em causa, como foi mencionado pela testemunha Jorge …, cujas declarações se afiguraram verosímeis, não obstante a denunciante ter negado que alguma vez tivesse sido contactada por aquele.

Conclui-se assim que, no caso em apreço, não existem factos que consubstanciem a prática de um crime de burla qualificada pelo arguido António …, designadamente por não estarem preenchidos os elementos objectivos do tipo de burla.

Pelo exposto, determino o arquivamento dos autos, nesta parte, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 1 do Código do Processo Penal.

II – Importa ainda averiguar, pelo facto de a denunciante ter referido que não foi dado “destino a dinheiro” proveniente da venda, se a conduta do arguido consubstancia a prática de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punível pelo artigo 205º, nº 1 e nº 4, alínea b) do Código Penal, dado que o valor da venda foi de 2.800.000 €.

O crime de abuso de confiança consiste na apropriação ilegítima de qualquer coisa móvel, que ao agente tenha sido entregue, de forma lícita e voluntária, com um fim que o obrigaria a restituir essa coisa ou um valor equivalente.
Exige-se que o agente actue com dolo, consistindo o mesmo no facto de ter consciência de que deve restituir, apresentar ou aplicar a coisa a um determinado fim, e que queira apropriar-se dela, integrando-a no seu património ou dissipando-a.
O crime de abuso de confiança qualificado é um crime de natureza pública, pelo que não depende de queixa.

Desde logo há que ter em conta o que supra se referiu acerca do património autónomo do casal, visto este se tratar de uma propriedade colectiva, insusceptível de divisão enquanto durar o casamento, pelo que o produto da venda do terreno veio a integrar-se nesse património.
Por esta via, tratando-se de um bem em que incide um único direito em contitularidade pelo arguido e pela denunciante, enquanto a relação matrimonial subsistir, o bem comum mantém essa qualidade, pelo que a quantia fica sujeita à regra da administração conjunta, de acordo com o preceituado no artigo 1678º, nº 2 do Código Civil.
Em regra, nos termos do artigo 1681º, nº1 do Código Civil, o cônjuge administrador não é obrigado a prestar contas da sua administração, em virtude da recíproca confiança e pela própria estrutura da relação patrimonial, só respondendo pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.
No entanto, quando a administração dos bens comuns por um dos cônjuges se fundar em mandato ou quando praticar actos de administração de bens comuns que lhe não caiba, sem mandato escrito, mas com o conhecimento e sem oposição expressa do outro cônjuge, a dispensa de prestação de contas não se verifica e o cônjuge administrador tem de prestar contas e entregar o respectivo saldo, caso o haja, somente em relação aos actos praticados durante os últimos cinco anos (artigos 1681º, nº 2 e 3 do Código Civil)[3].
A acção de prestação de contas, nos termos do disposto o artigo 1014º do Código de Processo Civil, pode ser proposta por que tenha o direito de exigi-las e por quem tenha o dever de prestá-las, tendo por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que se venha a apurar. Por via do disposto no artigo 1681º, nº 2 e 3 do Código Civil a prestação de contas pode abranger igualmente os bens de que o obrigado a prestar contas também seja titular, como é o caso dos bens comuns do casal, nos casos aí referidos[4].
Caso venha a ser pedida responsabilidade ao cônjuge administrador relativamente a um bem comum, e em caso de apuramento de saldo, surge aí um direito de crédito em favor do cônjuge não administrador. Contudo, tal crédito só passa a ser exigível no momento da partilha, conforme interpretação sistemática do artigo 1697º do Código Civil (neste sentido, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família, Volume I, p. 382 e seguintes).

Ora, consultada a Acção de Separação Litigiosa n.º …, que corre termos no … Juízo do Tribunal Judicial de …, constata-se que o arguido e a denunciante encontram-se em processo de separação judicial de pessoas e bens, ao qual se encontra apenso procedimento cautelar de arrolamento dos bens comuns do casal.
A referida acção foi proposta em 12 de Outubro de 2006, sete meses após a realização do negócio e da entrada da quantia no património comum.
No entanto, a pendência da acção de separação de pessoas e bens não habilita um dos cônjuges a pedir ao outro prestação de contas a respeito de um bem comum, fora dos casos mencionados supra[5].
De acordo com o preceituado no artigo 1795º – A do Código Civil, a separação produz os mesmos efeitos que produziria a dissolução do casamento, nos termos do artigo 1789º, nº 1 do Código Civil. Deste modo, é desde a data da propositura da acção de separação de pessoas e bens que se produzem os consequentes efeitos patrimoniais, pelo que apenas é exigível qualquer crédito, a proceder a acção, no momento da partilha como já referido.

Sucede, porém, que a denunciante não propôs sequer qualquer acção de prestação de contas de forma a apurar tal direito de crédito, apesar de ainda o poder fazer relativamente a actos praticados nos cinco anos antecedentes à data da eventual propositura da acção de prestação de contas.
Por outro lado, não logrou ainda obter a procedência da acção de separação de pessoas e bens.
Ainda assim se frisa que caso se verificasse a propositura da acção de prestação de contas e subsequente procedência, o direito a surgir seria meramente um direito de crédito, pelo que só após a separação e subsequente partilha, tal direito seria exigível, como já mencionado.
Só a partir da divisão e partilha, os bens deixariam de ter a sua estrutura inicial de bens comuns, posto que, desde a separação até à respectiva partilha, o património de mão comum passa à situação de indivisão, não se transmutando, nem confundindo com a figura da compropriedade[6].

Em face deste regime actual de responsabilidade pela administração, que deixa de fora situações de lesão ou perigo para o património do outro cônjuge, o cônjuge não administrador fica, de certa forma, desprotegido num conjunto de situações que carecem de tutela legal.
O direito francês já prevê uma norma de aplicação nestes casos, em que os tribunais emitem interdições ou injunções positivas de praticar certos actos, com o intuito de evitar a produção de um dano e por um período limitado.
No entanto, o direito português ainda não prevê essa situação, pautando-se por uma posição de comedimento relativamente a estas implicações da sociedade conjugal.

Sempre se dirá que o processo penal, com a sua estrutura diferenciada e veiculada por princípios diversos, não é o indicado para fazer valer esses direitos, designadamente, a prestação de contas, nem pode servir para se conseguirem efeitos patrimoniais que não se lograriam obter numa acção cível, substituindo-se ou até mesmo sobrepondo-se ao processo civil.
Tratar-se-ia de uma forma transversal de contornar uma eventual improcedência de uma acção de prestação de contas e o uso do processo-crime não tem, nem deverá ter essa finalidade.

Atendendo à presente factualidade apurada e às considerações expendidas, verifica-se que inexiste qualquer apropriação ilegítima ou qualquer dolo por parte do arguido, não se preenchendo o elemento objectivo ou subjectivo do tipo legal do crime de abuso de confiança qualificado.

Pelo exposto, determina-se o arquivamento dos presentes autos, ao abrigo do preceituado no artigo 277.º, n.º 1 do Código Processo Penal.
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Cumpra o disposto no artigo 277, nº 3, do C. P. Processo Penal.
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Comunique superiormente o presente despacho, nos termos, ponto V, nº 4, da Circular 6/2002.
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(processei, imprimi, revi e assinei o texto, seguindo os versos em branco – artigo 94º, nº2 do Código de Processo Penal)

Local/Data

O Procurador-Adjunto

[1] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.01.1990, B.M.J 393-588.
[2] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.06.1997, BMJ 469-361.
[3] Vide Acórdão da Relação de Lisboa de 31.10.1996, BMJ J 460-790, onde se lê que “Fora da previsão do nº 1 do artigo 1681º do Código Civil, designadamente nas situações a que se reportam os seus nºs 2 e 3, a lei não contempla a dispensa de prestação de contas por parte do cônjuge administrador”.
[4] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.02.2005, Processo nº 04B4671, in www.dgsi.pt.
[5] Vide neste sentido, relativamente a uma acção de divórcio, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.98, Processo nº 98B500, in www.dgsi.pt.
[6] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2004, Processo 05B2720, in www.dgsi.pt.