segunda-feira, 10 de março de 2008

Um Acórdão Interessante - legitimidade do Ministério Público para recorrer.

Acórdão do S.T.J., de 28.02.08
Processo n.º 07B3377
N.º Convencional: JSTJ000
Relator: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Sumário:
Não resultando, nem das regras gerais sobre legitimidade para recorrer, nem de nenhum diploma especial, solução diversa, o Ministério Público não tem legitimidade para interpor recurso de uma decisão proferida num processo em que são partes duas sociedades, nem que se trate de uma decisão sobre competência em razão da matéria.

TEXTO:

Acordam, em conferência, na 7ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Em 21 de Dezembro de 2007, a fls. 141, foi proferido o seguinte despacho:
«1. Por decisão de 19 de Julho de 2006, de fls. 72, o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa julgou-se absolutamente incompetente para julgar uma acção sumaríssima, proposta em 22 de Abril de 2005 por Companhia AA de Lisboa, SA contra BB, Companhia de Seguros, SA, posteriormente integrada, por fusão, na Companhia de Seguros CC, SA, destinada a obter a sua condenação no pagamento de uma indemnização, no montante de 1.714,19 €, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.Como fundamento, a autora alegou ter ocorrido um acidente de viação entre um autocarro de passageiros de que é proprietária e um outro veículo, que considera ter causado o acidente, cujo proprietário “tinha transferido para a R. a responsabilidade civil relativa” à respectiva circulação.A ré contestou, sustentando que o acidente fora causado pelo condutor do autocarro e que, de qualquer forma, a indemnização pretendida era superior aos prejuízos reais por ela sofridos, e concluiu que devia ser absolvida do pedido.O tribunal, todavia, após ter notificado as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão, proferiu decisão julgando-se incompetente em razão da matéria, por entender que a acção era da competência exclusiva do Julgado de Paz de Lisboa, já instalado e a funcionar à data da propositura da acção, nos termos do disposto na alínea h) do nº 1 do artigo 9º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, e absolveu a ré da instância (“art. 101º, 102º, nº 1, 105º, nº 1, 288º, nº 1, al. a), 493º, nº 2, 494º, nº 1, al. a) e 495º, todos do Código de Processo Civil”).

2. Recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa a autora e o Ministério Público, sustentando, em síntese, que a Lei nº 78/2001 não tinha retirado qualquer competência aos Tribunais de Pequena Instância Cível, competentes nos termos do artigo 101º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, antes tendo apenas criado a faculdade de optar entre estes Tribunais e os Julgados de Paz, na área em que dispõem de competência concorrente.

3. Por acórdão de 8 de Maio de 2007, de fls. 106, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento aos agravos, mantendo o despacho recorrido.
Veio agora apenas o Ministério Público interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso que foi admitido como agravo com subida imediata nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
Nas alegações apresentadas, o Ministério Público concluiu da seguinte forma:
“ 1. No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz é optativa, relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial concorrente.
2. Aliás, não se encontrando todo o território nacional coberto pela instalação de julgados de paz, não faz sentido que esta jurisdição conheça, em exclusivo, de matérias apreciadas por tribunais judiciais em outras circunscrições territoriais.
3. Igualmente o princípio da reserva de jurisdição, ou a disponibilidade das partes na possibilidade de submeterem os litígios materialmente judiciais nos tribunais judiciais, aponta para uma competência alternativa.
4. Favorecem, de resto, a tese da competência alternativa os art°s 41° e 59°, n° 3 da referida lei, não fazendo sentido que os tribunais judiciais, inicialmente incompetentes, adquiram competência quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos julgados de paz ou seja requerida prova pericial.
5. E o reconhecimento de que dois tribunais (um tribunal judicial e um julgado de paz) têm idêntica competência material não implica qualquer ofensa aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diversas.
6. O diploma que define o regime de competência, organização e funcionamento dos julgados de paz não consagra a sua competência exclusiva ou alternativa relativamente aos tribunais judiciais, o que aponta no sentido da competência alternativa.
7. Por outro lado, é de salientar que a competência exclusiva expressa nos projectos de lei que antecederam a aprovação da Lei 78/2001, de 13.7, não obteve consagração no texto da lei vigente.
8. O que indicia que o legislador quis, efectivamente, afastar do texto definitivo a exclusividade da competência dos julgados de paz.
9. E a prolongada inércia legislativa no sentido de clarificar tal questão não pode deixar de apontar neste sentido.
10. Acresce que a criação, com carácter experimental, e a instalação dos julgados de paz, operadas pela Lei 78/2001, não se traduziram numa derrogação da competência dos tribunais judiciais, nas comarcas territorialmente abrangidas.
11. Nem com a entrada em vigor da referida lei, nem posteriormente, foram adoptadas quaisquer alterações ao Código de Processo Civil ou à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
12. Pelo exposto, o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa é competente, em razão da matéria, para apreciar o caso concreto.
13. Assim, a absolvição da Ré da instância por incompetência absoluta deste tribunal violou o disposto nos art°s 9°, nº 1, al. h), 41°, 59° , n° 3 da Lei 78/2001, de 13.7, 66° do Cod. Proc. Civil e 211 ° da CRP. “

4. A fls. 173, foi proferido despacho convidando as partes a pronunciar-se, querendo, nos termos do nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, conjugado com os artigos 749º e 762º, nº 1, do mesmo Código, sobre a possibilidade de não se conhecer do mérito do recurso, por ilegitimidade do Ministério Público.Não houve qualquer resposta.

5. Com efeito, o Ministério Público não tem legitimidade para interpor recurso do acórdão da Relação de 8 de Maio de 2007, mesmo estando em causa apenas uma decisão sobre competência e apesar de, pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 11/2007, de 24 de Maio de 2007, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Julho do mesmo ano, ter sido definida a orientação segundo a qual «No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no artigo 9.º, n.º 1, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente.» Não resultando das regras gerais sobre legitimidade para recorrer (artigo 680º do Código de Processo Civil) nem de nenhum diploma especial (v.g., do Estatuto do Ministério Público) solução diversa, não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer o presente recurso.

6. Assim, de acordo com o disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 700º do Código de Processo Civil, conjugado com os artigos 749º e 762º nº 1º do mesmo diploma, julgo findo o recurso, não conhecendo do respectivo objecto, por ilegitimidade do recorrente para o interpor. Sem custas.»

2. Em 10 de Janeiro de 2008, a fls. 147, o Ministério Público veio reclamar para a conferência deste despacho, que sustenta ter sido proferido “ao arrepio da orientação deste Alto Tribunal, sendo certo que o próprio acórdão uniformizador que fixou jurisprudência relativamente à questão aqui também em causa teve na sua origem iniciativa recursiva do Ministério Público, tratando-se, como se trata, em derradeira análise, de incompetência absoluta em razão da matéria – arts. 101º, 288º, nº 1, al. a), 494º, al. a) e 495º, C.P.C. – (cfr. Ac. Un. Jurisp. de 24.05.07, in proc. nº 881/07-7ª Sec.)”.
Notificadas deste requerimento, as recorridas não responderam.

3. Confirma-se o despacho reclamado, pelos fundamentos dele constantes, que se transcreveram. Apenas se acrescenta que de nenhuma das disposições legais indicadas na reclamação resulta legitimidade para o Ministério Público interpor este recurso; nem tão pouco de terem sido julgados outros recursos interpostos em circunstâncias semelhantes ou idênticas também pelo Ministério Público.
Assim, indefere-se a reclamação, confirmando a decisão de julgar findo o recurso, não conhecendo do respectivo objecto, por ilegitimidade do recorrente para o interpor.
Sem custas
Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Fevereiro de 2008
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro de Faria
Salvador da Costa