sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Dolo de coacção ( tentada )

Agiu o arguido de forma livre e com o propósito, não conseguido, ao utilizar aquela expressão, de evitar que o ofendido denunciasse os factos à Polícia de Segurança Pública, assim procurando limitar a sua liberdade de determinação pessoal, o que representou.

Dolo de ofensa à integridade física qualificada ( objecto especialmente perigoso )

Agiu o arguido de forma livre e com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do ofendido e de lhe produzir as lesões verificadas, resultado este que representou.

Ao empregar o objecto referido e ao dirigi-lo à cabeça do ofendido, teve consciência do carácter altamente perigoso de tal instrumento, quando assim utilizado, e que da sua conduta poderiam ter resultado graves lesões para o ofendido.

Dolo de resistência

Agiu o arguido de forma livre e com o propósito de, através do emprego da violência supra descrita, dirigida contra os elementos da autoridade policial, de se eximir ao cumprimento dos comandos que aqueles lhes pretendiam impor, assim pondo em causa a autoridade subjacente aos mesmos, o que representou.

Dolo de jogo ilícito

Os arguidos agiram de forma livre, com o propósito concretizado de, em conformidade com o anteriormente entre ambos acordado e em conjugação de esforços, no supra mencionado estabelecimento, desenvolver a prática de um jogo cujas características conheciam, e dela obter proveito económico, bem sabendo que, no âmbito de tal jogo, a obtenção de qualquer prémio se baseava exclusivamente na sorte e que tal actividade lhes estava vedada, o que representaram.

Negligência ( grosseira ) inconsciente

Ao agir conforme acima descrito e de forma livre, o arguido não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que deveria ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, pois, causa às lesões acima referidas, as quais foram causa directa e necessária da morte de António ....

Dolo de falsificação e de burla

Agiu o arguido de forma livre e com o propósito concretizado de, ao proceder como descrito, imitando a assinatura do representante da titular da conta e também ocultando tal facto à Júlia ..., assim a determinando, contra a sua vontade, a aceitar o referido cheque n.º ..., fazer sua a quantia inscrita no rosto deste cheque, não obstante saber que não lhe pertencia e que causava prejuízo patrimonial à Ribeiro ..., Ldª, sabendo ainda que colocava também em causa a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório de tal tipo de documentos.

Dolo ( directo ) de desobediência

Agiu o arguido de forma livre e com o propósito de conduzir tal veículo de que era fiel depositário, apesar da obrigação aludida, e de assim desobedecer à ordem que lhe fora transmitida, pondo em causa a autoridade subjacente à mesma, resultado este que representou.

Dolo ( directo ) de Ameaça

Agiu a arguida de forma livre e com o propósito concretizado de utilizar tais expressões que sabia serem adequadas a produzir receio, medo e inquietação à ofendida.

Alimentos - Fundo de Garantia

Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão 20 Dezembro 2007

Relator: Manuel Fernando Granja Rodrigues da Fonseca
Processo: 10780/2007-6


PODER PATERNAL. ALIMENTOS. Procedência da apelação contra a não fixação da pensão de alimentos no âmbito da regulação paternal que atribuiu a guarda da menor à avó materna em virtude dos pais, toxicodependentes, se encontrarem em paradeiro desconhecido.
FUNDO DE GARANTIA DOS ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES. A pensão de alimentos deve ser sempre fixada, mesmo que se desconheça o paradeiro ou a existência de qualquer fonte de rendimentos dos obrigados a prestá-la, até porque somente na existência de prestações vencidas pode ser chamado a intervir o fundo de garantia.

***

Acórdão da Relação de Coimbra, de
Processo: 886/06.5TBCVL-A.C1
N.º Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA

Sumário:

I – A responsabilidade do FGADM reveste a natureza de uma obrigação própria, autónoma ou independente, subsidiária ou residual e actual, que visa, sobretudo, acudir às necessidades presentes e futuras do menor e que são causadas pelo não cumprimento de anterior obrigação da pessoa por ela vinculada judicialmente.
II – A lei faz depender o dever de o Estado (através do FGADM) de prestar alimentos da verificação cumulativa dos seguintes requisitos ou pressupostos: a) existência de sentença judicial que condene pessoa a prestar alimentos (devidos) a menor, fixando o montante dessa prestação; b) que haja incumprimento (total ou parcial) dessa obrigação; c) que o obrigado tenha a sua residência no território nacional; d) que os rendimentos líquidos do menor não sejam superiores ao salário mínimo nacional; e) que o menor não beneficie, na mesma quantidade, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
III – É pressuposto legal para que o FGADM assuma a obrigação de pagar alimentos a menor o reconhecimento da impossibilidade ou da inviabilidade (no momento) da cobrança coerciva dos alimentos devidos a esse menor pelo seu progenitor a eles obrigado.
IV – Esse reconhecimento é normalmente feito na sequência do incidente do incumprimento previsto no artº 189º da OTM.
V – Porém, nada impede que no próprio processo de regulação do exercício do poder paternal, reconhecida que seja logo aí a impossibilidade manifesta do progenitor poder cumprir a obrigação alimentar a que aí ficou adstrito a favor de seu filho menor, se imponha logo nessa mesma sentença, reguladora desse exercício, ao Fundo a obrigação de prestar alimentos ao menor, e independentemente da referida sentença não ter ainda transitado em julgado.


Extracto do acórdão:

"2. De direito.
2.1 Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artº 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC e 161 da OTM, sendo o penúltimo normativo na versão anterior ao DL nº 303/2007 de 24/8 – cfr. artºs 9 al. a), 11, nº 1, e 12, nº 1).Ora, compulsando as conclusões do presente recurso – em conjugação com as alegações que a precedem -, verifica-se que a grande questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se a imposição ao FGADM da obrigação de pagamento de uma prestação alimentícia a favor de um menor (neste caso da A...) pressupõe ou não a existência de uma prévia condenação judicial de alguma das pessoas que estava, legalmente, obrigada (neste caso do progenitor/pai daquela) a proceder a tal pagamento? E, no caso de a resposta ser positiva, quais as consequências daí a retirar para o caso presente, e nomeadamente se poderá e deverá o progenitor da menor ser condenado a uma prestação alimentícia a favor daquela sua filha, mantendo-se a obrigação imposta ao Fundo?
2.2. Apreciemos então.Como é sabido, a referida grande questão aqui em equação surge no contexto e âmbito de aplicação da Lei nº 75/98 de 19/11 e do DL nº 164/99 de 13/5, consagrando o primeiro diploma a garantia de alimentos devidos a menores, enquanto o segundo desenvolve a sua regulamentação. Diplomas esses que são o resultado e concretização das preocupações há muito manifestadas, quer pelas Organizações Internacionais (vg. Convenção dos Direitos da Criança, adoptada pela ONU, em 1989 – embora só viesse a ser assinada em 26/1/1990 -, e Recomendações do Conselho da Europa: RE (82)2, de 4/2/1982, e R (89)1, de 18/1/1989), quer pela nossa Magna Carta (cfr. artº 69, nºs 1 e 2), no sentido de acautelar o desenvolvimento integral futuro das crianças. E para esse efeito resultou a consagração, entre outros (e tendo em conta o caso em apreço), de um verdadeiro direito a alimentos a favor das crianças e jovens até atingirem, pelo menos, os 18 anos de idade. Alimentos esses que, assim, em primeira linha, devem ser assegurados pelos familiares dos menores ou à guarda de quem encontrem, e especialmente pelos seus progenitores - sendo que eles constituem mesmo uma das questões essenciais a decidir quando à regulação do exercício do poder paternal se tornar necessária (cfr. artºs 1877, 1878, nº 1, 1879, 1905, nº 1, 1909, 2009 e 2013 do C. Civil) - e também pelo próprio Estado, embora em segunda linha (como iremos ver). E é, assim, com vista a concretizar a referida responsabilidade do Estado, no tocante a assegurar os alimentos a menores, que surgem a Lei nº 75/98 e o DL nº 164/99 acima citados. Vejamos então em que termos e condições surge essa responsabilidade (e com a única preocupação de dar resposta à grande questão acima elencada e aqui em discussão). Para o efeito, importa reter o que rezam, a tal propósito, os normativos legais que integram aqueles diplomas legais. Comecemos pela Lei nº 75/98:Artº 1º (sob a epígrafe “Garantia de alimentos devidos a menores”): “Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artº 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao inicio do efectivo cumprimento da obrigação.” (sublinhado nosso)
Artº 2º:“Nº 1 – As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC. Nº 2 – Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.” (sublinhado nosso)
Artº 3º:“Nº 1 - Compete ao Ministério Público ou ainda àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue requerer nos respectivos autos de incumprimento que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar.” (sublinhado nosso)(…) Nº 4 – O montante fixado pelo tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado”. (sublinhado nosso)
Artº 6º:“Nº 3 – “O Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores fica sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas as prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso.” (sublinhado nosso)
Do DL nº 164/99:
Artº 2º:“Nº 2 - Compete ao Fundo assegurar o pagamento das prestações de alimentos atribuídas a menores residentes em território nacional, nos termos dos artigos 1º e 2º da Lei 75/98, de 19 de Novembro.” (sublinhado nosso)
Artº 3 (sob a epigrafe “pressupostos e requisitos de atribuição”):“Nº 1 – O Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos referidas no artigo anterior até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando: a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artº 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e b) O menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre. Nº 2 – Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao salário mínimo nacional, quando a capitação de rendimentos do respectivo agregado familiar não seja superior àquele salário. Nº 3 - As prestações a que se refere o nº 1 são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC, devendo o tribunal atender, na fixação desse montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.” (sublinhado nosso)
Artº 5º:“Nº 1 – O Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vistas à garantia do respectivo reembolso.” (sublinhado nosso)
Artº 7º (sob a epigrafe “Manutenção da obrigação principal”): “O reembolso não prejudica a obrigação de prestar alimentos previamente fixada pelo tribunal competente”.
Artº 9: “Nº 1 - O montante fixado pelo tribunal mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação que o devedor está obrigado”. (sublinhado nosso)
Normativo esse que deve ser articulado com artº 2013 do CC, já que é ali que se tipificam as situações que levam à cessação da obrigação alimentar por parte da pessoa a ela obrigada (e da qual não consta a situação em quem os alimentos passem a ser assegurados pelo FGADM).

Do cotejo dos normativos legais atrás citados (citação essa propositadamente feita para realçar a clarividência daquilo se passará a afirmar) haverá que extrair, desde logo, as seguintes conclusões:
Que a responsabilidade do FGADM reveste a natureza de uma obrigação própria, autónoma ou independente, subsidiária ou residual e actual, que visa, sobretudo, acudir às necessidades presentes e futuras do menor e que são precisamente causadas pelo não cumprimento da anterior obrigação da pessoa pela ela vinculada judicialmente.
Que tal obrigação nasce precisamente com uma decisão judicial que a impõe.
Que a lei faz depender o dever de o Estado (através do FGADM), de prestar alimentos, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos ou pressupostos: a) Existência de sentença judicial que condene pessoa a prestar alimentos (devidos) a menor, fixando o montante dessa prestação; b) Que haja incumprimento (total ou parcial) dessa obrigação; c) Que o obrigado tenha a sua residência no território nacional; d) Que os rendimentos líquidos do menor não sejam superiores ao salário mínimo nacional; e) Que o menor não beneficie, na mesma quantidade, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
Ora, de tais conclusões nasce a resposta à grande questão acima colocada, ou seja, de que o primeiro pressuposto da legitimação da intervenção do Fundo assenta na existência de uma prévia sentença judicial que fixe essa obrigação alimentar a cargo de uma pessoa que esteja legalmente vinculada a prestar alimentos ao menor (seguida da comprovação do incumprimento – total ou parcial - dessa obrigação por parte dessa pessoa a ela obrigada).Tal interpretação - da qual resulta que a responsabilidade do Estado neste domínio, através intervenção do FGADM, assume a natureza subsidiária e substitutiva da pessoa devedora dos alimentos - cremos não ofender nenhum preceito constitucional, e nomeadamente aquele acima citado, pois o que importa é que fiquem salvaguardados os interesses do menor, e que o Estado intervenha quando a pessoa que em primeira linha deva responder não o faça.
Neste sentido, e bem assim das conclusões acima fixadas, vide, entre muitos outros e nomeadamente aqueles citados nas alegações de recurso, Ac. RP de 8/7/2004, processo 0422217; Ac. RC de 25/5/2004, processo nº 70/04; Ac. RC de 05/04/2005, processo 617/05, Ac. RC de 3/5/2006, processo 805/06; Ac. RC de 10/7/2007, processo 56/06, todos disponíveis no site da internet, das respectivas Relações, www.dgsi.pt; Ac. RC de 21/11/2006, processo 900-G/2002, da 2ª sec. cível, e ainda Remédio Marques, in “Algumas Notas Sobre Alimentos, Devidos A Menores, Coimbra Editora, págs. 221/221”. Posição essa que, não obstante se nos afigurar dominante, vem tendo algumas “vozes” discordantes, vide, por todos, Ac. RP de 2/10/2006, processo 0653974; Ac. RP de 23/02/2006, processo 06330817, e Ac. RC de 12/4/2005, processo 265/05, também todos disponíveis na net.
Pois bem, transportando tais considerações e conclusões para o caso em apreço, logo a constatação de que in casu não existe condenação judicial prévia do pai da menor A... a fixar-lhe a obrigação de contribuir com uma pensão alimentícia a favor da mesma, já que esta, na regulação do seu exercício paternal na acção a que dizem respeito estes autos, ficou entregue à guarda e aos cuidados de sua mãe. Já vimos, pelas razões que supra deixámos exaradas, que tal condenação judicial prévia do progenitor/pai constituía uma (a primeira) condição sina qua non para desencadear a intervenção do Fundo e impor-lhe a obrigação ou encargo de contribuir com o pagamento de uma pensão alimentícia a favor daquela menor. Na sentença recorrida o tribunal a quo, muito reconhecendo a obrigação legal que o pai tinha de contribuir com alimentos a favor daquela sua filha, entendeu, todavia, não o condenar a tal obrigação pelo facto de resultar da matéria factual assente que o mesmo não dispunha de quaisquer meios (económicos) que lhe permitissem cumprir tal obrigação, ou seja, de poder pagar a pensão alimentícia que ali viesse ser fixada, a seu encargo, a favor da referida menor. Afigura-se-nos, todavia, que o srº juiz a quo andou mal ao não fixar ao progenitor tal obrigação, condenando-o (formalmente) ao pagamento de uma prestação alimentícia a favor daquela sua filha, pelo seguinte:
Desde logo, e como acima já deixámos expresso, porque a fixação de alimentos é uma das três questões essenciais a decidir na sentença que regula o exercício do poder paternal, não devendo o progenitor a eles obrigado ficar desresponsabilizado do dever de contribuir para a alimentação do seu filho.
Depois, porque a impossibilidade momentânea do progenitor em prestar os alimentos, não significa que no futuro (mais ou menos próximo) não possa poder vir a prestá-los, com a alteração da situação em que então se encontra e que lhe permita passar a dispor de meios para o fazer, devendo o mesmo ser incentivado à procura da criação de condições para o efeito.
Depois ainda, e tal como decorre do artº 2008, nº 1, do CC, porque o direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido.Por fim, e como argumento decisivo, porque, como acabámos de ver, a não fixação de qualquer prestação alimentar inviabilizará no futuro qualquer possibilidade de intervenção do FGADM nessa área e destinada a suprir aquela obrigação do progenitor.
Na verdade, tal condenação judicial revela-se, como vimos, indispensável para que o Fundo possa intervir em substituição do progenitor, garantindo os alimentos ao menor, e sempre que não seja possível obter os mesmos do seu progenitor a eles obrigado. Obrigação essa do Fundo que, como vimos, apenas perdurará enquanto se mantiver ou não cessar aquela obrigação imposta ao progenitor.
No sentido acabado de defender vidé ainda, Ac. RLx de 23/10/2003, in “CJ, Ano XXVIII, T4 – 117” e Ac. RC de 10/7/2007, processo 56/06, in www.dgsi.pt/jtrc.
Posto isto, importa desde já salientar - o que será tido em conta naquilo que se passará a decidir e a concluir – que estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, por via do qual o tribunal não está vinculado a critérios de legalidade estrita, devendo adoptar mesmo a solução que julgue mais conveniente e oportuna para cada caso (cfr. artº 1410 do CPC ex vi artº 150 da OTM).
Pois bem, aqui chegados, e reconhecida a razão ao recorrente, haverá que revogar, nessa parte, a sentença recorrida, e fixar o montante da prestação alimentícia a cargo do requerido/pai, B..., e a favor daquela sua filha, a menor A....Desse modo, e ponderando quer os critérios legais estatuídos para o efeito, e que já foram expandidos na sentença recorrida, quer a matéria factual dada, a tal propósito, ali também como provada, e que acima se deixou transcrita, afigura-se ajustado fixar o montante de tal prestação em € 100,00 (cem euros) mensais.

Aqui chegados, outra questão importa ultrapassar e que se traduz em saber se haverá algum obstáculo legal a que tal prestação seja, desde já, assegurada pelo FGADM?

Vejamos.Como resulta do que supra se deixou expresso, um dos outros pressupostos legais para que o Fundo assuma a obrigação de pagar alimentos a menor assenta no reconhecimento da impossibilidade ou da inviabilidade (no momento) da cobrança coerciva dos alimentos devidos a esse menor pelo seu progenitor a eles obrigado. Reconhecimento esse que normalmente é feito na sequência do incidente do incumprimento previsto no artº 189 da OTM. No caso presente, resulta, desde logo, claramente da matéria factual dada como assente que o referido progenitor se encontra de momento impossibilitado de cumprir obrigação alimentar que lhe acabou de ser imposta a favor daquela sua filha (impossibilidade que advém quer do facto de não dispor de quaisquer meios ou rendimentos, quer ainda por se encontrar actualmente detido preventivamente). Perante a clarividência de tais factos, e tendo em conta a natureza do processo aqui em causa e os princípios supra assinalados porque se rege, afigura-se-nos despropositado ter que previamente recorrer a tal incidente para reconhecer aquilo neste momento constitui já uma evidência cristalina, sendo certo que tal constituiria uma afronta clamorosa aos princípios da economia e da celeridade processual (subjacentes a toda a actual versão do CPC e bem assim a toda a legislação sobre menores) e ainda da não prática de actos inúteis (cfr. artº 137 ex vi artº 161 da OTM). Nesse contexto, e como se afirma no acórdão desta Relação acima citado de 05/04/2005, não se poderia compreender a obrigatoriedade de interpor um incidente de que se sabe, logo à partida, não ter efeito útil, redundando o mesmo numa pura perda de tempo. Significa tal que nada impede que no próprio processo de regulação do exercício do poder paternal, reconhecida que seja logo aí a impossibilidade manifesta do progenitor puder cumprir a obrigação alimentar a que ali ficou adstrito a favor do seu filho menor, se imponha logo nessa mesma sentença, reguladora desse exercício, ao Fundo a obrigação de prestar alimentos ao menor, e independentemente da referida sentença não ter ainda transitado em julgado (cfr. ainda, neste sentido, o acima citado acórdão desta Relação de 10/7/2007). Ora aqui chegados, e reconhecidos como preenchidos todos os demais requisitos acima enunciados de que depende a sua intervenção, nada impede, portanto, que se imponha, desde já, ao FGADM a obrigação de assegurar a prestação alimentos à menor A..., por força da impossibilidade actual do seu pai em poder prestar-lhe os alimentos a que ficou obrigado. E nessa medida, e tendo em conta toda a materialidade factual dada como assente (e muito especialmente, por um lado, a escassa remuneração mensal auferida pela sua mãe, e, por outro, a idade da menor e as necessidades e as despesas que importa despender com ela, quer aquelas que resultam directamente provadas, quer aquelas que resultam das regras da experiência da vida e relacionadas com a sua alimentação, vestuário, educação e saúde), afigura-se-nos ajustado impor ao FGADM a obrigação de prestar alimentos à menor no mesmo montante mensal a que ficou obrigado o seu pai (mas de que por ora se encontra impossibilitado) ou seja, no montante mensal de € 100,00 (cem euros).

Termos, pois, em que se julga procedente o recurso (já que nele o recorrente apenas se insurgia, no fundo, contra a parte da decisão da 1ª instância que não condenou previamente o progenitor a prestar alimentos, com a fixação do seu montante – cfr. pedido final inserto nas conclusões e parágrafos 1º, 2º e 3º da primeira página das alegações).

***

III- DecisãoAssim, em face do exposto, e no provimento do recurso, acorda-se em:
a) Fixar (nisso o condenando) ao requerido, B..., a obrigação de contribuir, a título de alimentos, com uma prestação mensal no montante de € 100,00 (cem euros) a favor da sua filha/menor, A....
b) Perante a impossibilidade actual do pai da menor em poder cumprir a obrigação que lhe foi imposta em a), impor (nisso o condenando) ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM) a obrigação de contribuir a favor daquela menor, e a título de alimentos, com uma pensão ou prestação mensal no montante de € 100,00 (cem euros).
c) Manter quanto ao demais o decidido na sentença proferida pela 1ª instância sobre a regulação do exercício do poder paternal daquela menor.
Sem custas (no que concerne ao recurso) – cfr. conjugação dos artºs 446, nº 1, do CPC e 2, nº 1 als. a) e g) – à contrario - do CCJ.
Coimbra, 2008/02/12

Lei do Jogo: computadores/máquinas de diversão ?

Tribunal da Relação do Porto, Acórdão 19 Dezembro 2007
Relator: António Gama Ferreira Ramos
Processo: 0744699
Jurisdição: Criminal

Sumário:
Não são considerados máquinas de diversão os computadores usados pelo público na prática de jogos mas cuja utilização dependa do tempo previamente comprado.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Revisão/Alteração de Medida de Promoção e de Protecção - desnecessidade de novo julgamento.

Acórdão da Relação de Coimbra, de 08.03.06
Processo: 4213/05
Relator: José Maria Sousa Pinto

Interesse do acórdão:
-para além do mais, estabelece qual a tramitação a seguir, na fase de revisão da medida de protecção aplicada, designadamente quando é de alterar a medida de acolhimento em instituição para medida de confiança a instituição com vista a futura adopção.

“Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra,

I – Relatório

A..., progenitor dos menores B..., C... e D..., veio recorrer do despacho proferido pela Senhora Juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Figueiró dos Vinhos que decidiu, relativamente a tais menores, a alteração da medida de promoção e protecção de acolhimento em instituição, para a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, pelo prazo de 6 meses.
Com efeito, discordando de tal despacho veio o recorrente apresentar as suas alegações, nas quais exibiu as seguintes conclusões:
A- As medidas de promoção e protecção constantes das alíneas a) a f) do n.º 1, do art.º 35.º da LPCJP, limitam o exercício do poder paternal, enquanto que a medida de confiança com vista a futura adopção (alínea g) do n.º 1, do art.º 35.º da LPCJP) determina a privação da titularidade e do exercício do poder paternal.
B- No âmbito de um processo de promoção e protecção, ao modificar-se a medida aplicada, qualquer que seja, para a medida de confiança a pessoa ou a instituição com vista a futura adopção, obriga à notificação formal dos progenitores de que, a partir daquele momento, a cominação possível do processo é a da perda do poder paternal, concedendo prazo para a defesa.
C- A medida de confiança a pessoa ou a instituição para futura adopção não pode ser tomada sem que os progenitores participem na discussão da medida e tenham a oportunidade de exercer o contraditório.
D- A falta de notificação dos progenitores para o exercício da sua defesa em relação à possibilidade de ser tomada determinada medida, e tendo esta sido tomada, gera a nulidade do despacho proferido pelo douto Tribunal a quo.
O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou as suas contra-alegações, nas quais sustentou não se verificar a aludida nulidade processual dado que os progenitores dos menores teriam sido ouvidos sobre a possível alteração da medida de promoção e protecção.
A Senhora Juíza do Tribunal a quo sustentou o seu despacho em termos semelhantes ao que foi defendido pelo Ministério Público.
Foram colhidos os vistos legais.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, ex vi do artigo 749º, todos do Código de Processo Civil (CPC).
É apenas uma a questão suscitada pelo agravante e que se prende com a apreciação da omissão da sua notificação para que se pronunciasse sobre a alteração da medida de promoção e protecção de acolhimento em instituição - que se encontrava em vigor e que havia sido aplicada aos seus três filhos menores - para a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, o que, na sua óptica, constituirá nulidade processual.

III – FUNDAMENTOS

1. De facto

A questão a decidir é unicamente de direito, passando-se a indicar a factualidade que se mostra relevante para a apreciação da questão sub judice:
1- O Ilustre Advogado, Dr. E..., desde 16 de Abril de 2002 que é patrono oficioso de A... (pai dos menores), como resulta de fls. 100 a 112, do processo de promoção e protecção apenso (558/2001).
2- Por despacho de 15/07/2005 (fls. 406), aqui dado inteiramente por reproduzido, escreveu-se designadamente o seguinte:
“Nesta fase, concordando-se com a douta promoção do Ministério Público, deverão os sujeitos processuais tomar posição sobre a substituição das medidas aplicadas pela medida de confiança a pessoa relacionada para a adopção.
“Assim, designa-se o dia 20 de Julho de 2005, pelas 10 horas para tomada de declarações aos progenitores, aos menores e ainda à técnica Isabel Monteiro, nos termos do art.º 85.º e 4.º i), da LPCJP.
“…”.
3- O despacho referido no ponto anterior foi notificado ao patrono indicado no ponto 1, tendo-lhe sido enviada cópia do mesmo (fls. 408).
4- Na sequência do despacho referido no ponto 2, os progenitores dos menores, em 16 de Agosto de 2005, foram ouvidos em declarações, sendo que do auto relativo à mãe consta: “Questionada sobre a hipótese dos seus filhos serem entregues a casais com vista à adopção esclareceu que não concorda pois ela é que é mãe deles.
“…”
Quanto ao pai, do respectivo auto pode ler-se: “Quando confrontado com a possibilidade dos seus filhos serem confiados a casais com vista à adopção esclareceu que não concorda com tal medida sendo seu desejo que os menores voltem para a companhia dos pais, achando que já tem reunidas as condições para que os menores voltem a integrar o seu agregado familiar.
“…”.

2. De direito

Como se referiu supra, é apenas uma a questão suscitada pelo agravante o qual entende que terá havido omissão da sua notificação para que se pronunciasse sobre a alteração da medida de promoção e protecção de acolhimento em instituição - que se encontrava em vigor e que havia sido aplicada aos seus três filhos menores - para a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, o que, na sua óptica, constituirá nulidade processual.
Apreciemos tal questão.
Tem razão o recorrente quando refere que a nova medida de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo, prevista na al. g), do n.º 1, do art.º 35.º da LPCJP [Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99 de 1/9 e actualizada pela Lei n.º 31/2003, de 22/08, diploma a que nos referiremos de ora em diante sempre que expressamente não indicarmos outro.], implica para os envolvidos (pais e filhos) consequências afectivas e jurídicas de grande peso, pois que a mesmo implicará desde logo o fim das visitas por parte da família natural ao menor (art.º 62.º-A, n.º 2).
Mas se assim é, não deixa também de ser verdade que as alterações que foram introduzidas pela Lei 31/2003 de 22/08, visaram fundamentalmente permitir que aquelas situações muitas vezes detectadas de negligência familiar ou mesmo desinteresse e/ou abandono, pudessem de uma forma mais célere conduzir à adopção dessas crianças-vítimas, permitindo-lhes uma nova vida potenciadora do amor e carinho tão necessários ao seu são desenvolvimento.
A inclusão da nova medida prevista na citada al. g) do n.º 1, do art.º 35.º, visou pois evitar a instauração duma acção autónoma – de confiança judicial – permitindo-se assim que no âmbito de processo já instaurado, devidamente instruído com todos os elementos fornecidos pelos diversos intervenientes processuais, se pudessem encurtar tempos, sem que por via disso se mitigassem direitos, evitando-se igualmente a, por vezes frequente, duplicação de procedimentos e diligências.
É óbvio que uma tal alteração legislativa não poderia esquecer que estando em causa direitos de família tão importantes como os que se prendem com a filiação e o poder paternal, haveria que acautelar os direitos de pronuncia dos pais naturais.
A salvaguarda de tais direitos não passa no entanto, logicamente, pela obrigatoriedade da tramitação do processo de promoção e protecção seguir o que está previsto para o processo de confiança judicial – a lei não o impõe, a lógica do diploma não o aconselha.
Assim, quando em processo de promoção e protecção se começa a delinear a possibilidade de se vir a ter que determinar a aplicação da medida de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção, há sempre que exercer o contraditório, ouvindo-se designadamente os pais.
Tal obrigatoriedade resulta desde logo do princípio da Audição obrigatória e participação, consagrado no art.º 4.º, al. i), sendo este princípio detectado ao longo do diploma, designadamente nos artgs. 85.º, 104.º, n.º 3 e 114.º.
A forma como essa intervenção se processará depende da fase do processo.
Assim, sendo o processo de promoção e protecção constituído pelas fases de instrução, debate judicial, decisão e execução da medida (vd. art.º 106.º, n.º 1) haverá que ver, face a cada uma delas, em que moldes se concretiza tal princípio do contraditório.
Se na fase do debate judicial se prevê um formalismo mais vincado (sinónimo indiscutível de que se está numa fase não muito avançada do processo, em que ainda não houve decisão não provisória sobre a medida a aplicar à criança – vd. art.º 114.º), já numa fase de execução da medida tal não sucederá.
Na revisão da medida (incluída na fase de execução da mesma) os procedimentos processuais são substancialmente mais reduzidos, dado entender-se que nas fases anteriores (instrução, debate judicial e decisão) houve uma escalpelização de toda a situação, tendo então os diversos intervenientes tido a oportunidade de apresentarem as suas posições e provas.
Nesta fase (de revisão), a apreciação sobre a necessidade ou não de substituir a medida tem em conta não só tudo o que levou à decisão da medida aplicada, como também a realidade vivenciada após tal aplicação, verificando-se se a mesma se revelou adequada ou se, pelo contrário, necessita de ser substituída, com vista a satisfazer pela melhor forma os interesses dos menores envolvidos.
Compreende-se assim que nesta fase se conceda aos intervenientes interessados no processo, a possibilidade de se pronunciarem sobre essa eventual necessidade de substituir a medida – podendo mesmo requerer diligências e oferecer meios de prova - mas que tal contraditório decorra de forma simples e célere, sem passar a constituir uma nova fase instrutória.

Com o que se deixa dito, pretende-se demonstrar que o recorrente quando refere que os pais deveriam ter sido notificados formalmente com a estipulação duma cominação, está a verbalizar uma realidade que não consegue demonstrar (porque inexistente) ser legalmente imposta.
Com efeito, os artgs. a que alude a tal propósito – 85.º e 104.º, n.º 3 – não indicam qual a forma como deverá ser exercido o necessário contraditório, muito menos indicam que se tenha de referir que existe um qualquer efeito cominatório, neste caso, pela simples razão de que ele não existe. [Como é evidente não é pelo facto dos progenitores não exercerem o seu direito de pronuncia sobre a medida a aplicar que esta será necessariamente aplicada.]
Daqui resulta que tendo os pais dos menores sido ouvidos em declarações sobre a possível alteração da medida aplicada, visando a sua futura adopção, foi dado cumprimento aos apontados artgs. 4.º, al. i), 85.º e 104.º.
Na realidade, nessa oportunidade, poderiam os progenitores não só apresentar razões para a sua discordância como indicar provas que entendessem pertinentes para sustentar a sua posição, sendo que o art.º 104.º o permite. Certo é que o não fizeram.
Não foi assim omitido qualquer dever especial de notificação, o que implicaria desde logo não estarmos face a qualquer nulidade, situação que levaria a que se concluísse que o recurso não deveria proceder.
Sucede porém que para além da oportunidade que foi dada ao recorrente para se pronunciar sobre a possível medida a aplicar, foi feito algo mais, passível de abalar os próprios pressupostos em que assenta a questão colocada neste recurso.
Vejamos.
O recorrente tem um patrono nomeado desde Abril de 2002 (ponto 1 do probatório), que nessa qualidade o representa no processo para todos os efeitos, sendo que as notificações que não se destinem a chamá-lo a praticar uma acto pessoal são realizadas na pessoa daquele (art.º 253.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil).
Ora, por despacho de 15/07/2005 (fls. 406), o Senhor Juiz do Tribunal a quo, escreveu-se designadamente o seguinte:
“Nesta fase, concordando-se com a douta promoção do Ministério Público, deverão os sujeitos processuais tomar posição sobre a substituição das medidas aplicadas pela medida de confiança a pessoa relacionada para a adopção [Sublinhado nosso.].
“Assim, designa-se o dia 20 de Julho de 2005, pelas 10 horas para tomada de declarações aos progenitores, aos menores e ainda à técnica Isabel Monteiro, nos termos do art.º 85.º e 4.º i), da LPCJP.
Tal despacho foi devidamente notificado ao patrono nomeado (ponto 3 do probatório), sendo que tal notificação, por via do apontado art.º 253.º do Cód. Proc. Civil, traduz o conhecimento que foi dado ao progenitor do teor do despacho proferido, permitindo- -lhe, não só por via das declarações que veio a prestar, tomar posição sobre a eventual substituição das medidas aplicadas pela medida de confiança a instituição com vista a futura adopção.
Certo é que na sequência de tal notificação o patrono nomeado nada veio dizer.
Assim, mesmo que se considerasse que a tomada de declarações aos pais dos menores não cumpria cabalmente a exigência de respeito pelo princípio do contraditório, para efeitos de substituição de medida de promoção e protecção (posição que não perfilhamos), ainda assim tinha tal princípio sido respeitado pois que foi efectuada a notificação necessária e suficiente destinada a dar a possibilidade ao progenitor de se pronunciar sobre a mesma.
Daqui se conclui pois que não houve por qualquer forma omissão do dever de notificação avançado pelo agravante, não havendo assim a registar qualquer nulidade, estando por isso o recurso vetado ao insucesso.

IV – DECISÃO

Desta forma, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em negar provimento ao recurso e, nessa conformidade, mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelo agravante, tendo-se porém presente o apoio judiciário de que beneficia.
Coimbra,

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Suspensão Provisória do Processo - abertura de instrução

Acórdão do STJ, de 13.02.08
Processo: 07P4561
N.º Convencional: JSTJ000
Relator: Simas Santos

Sumário:

1 – Tendo trazido a Lei n.º 48/2007 alterações significativas ao teor do art. 281.º do CPP (suspensão provisória do processo) é de aplicar imediatamente esta nova redacção ao processo em recurso, à luz do disposto no n.º 1 do art. 5.º do CPP, por se não verificar qualquer excepção do seu n.º 2.
2 – Da alteração do n.º 1 daquele art. 281.º, resulta que em caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, sempre que se verificarem os respectivos pressupostos:
– podia o Ministério Público decidir-se com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 59/98);
– o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 48/2007).
3 – A Exposição de Motivos da respectiva proposta de lei confessa a intenção de «alargar a aplicação deste instituto processual de diversão e consenso» já fora consubstanciada em outras iniciativas legislativas e regulamentares como da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Lei Quadro da Política Criminal) e cujo art.º 12.º, em relação à pequena criminalidade, prevê que os magistrados do Ministério Público privilegiam, no âmbito das suas competências e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, a aplicação de diversas medidas entre as quais a suspensão provisória do processo [n.º 1, al. b)], directivas e instruções genéricas que vinculam os magistrados do Ministério Público, nos termos do respectivo Estatuto (n.º 3). Devendo o Ministério Público reclamar ou recorrer, nos termos do CPP e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, das decisões judiciais que não acompanhem as suas promoções destinadas a prosseguir os objectivos, prioridades ou orientações de política criminal previstos naquela lei (art. 17.º). O que foi retomado nas Directivas e instruções genéricas em matéria de execução da lei sobre política criminal, já emitidas pelo Procurador-Geral da República.
4 – A Lei n.º 48/2007, acentuou a natureza de poder-dever conferido pela norma do n.º 1 ao Ministério Público ao substituir a expressão “pode (…) decidir-se (…) pela suspensão do processo” por esta outra, claramente impositiva: “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina (…) a suspensão do processo», mas já assim se devia entender no domínio da redacção dada pela Lei n.º 59/98, mas pretendeu-se afastar a interpretação de que “o pode decidir-se” constituía uma mera faculdade concedida ao Ministério Público a usar discricionariamente e afirmar a interpretação de que verificados os respectivos pressupostos, se impunha ao Ministério Público a suspensão provisória do processo.
5 – Por outro lado, o acrescentamento, no mesmo n.º 1 do art. 281.º do CPP, da expressão “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente” reforça ainda esta interpretação e dá direitos acrescidos a estes sujeitos processuais, a que hão-de necessariamente corresponder as acções, os expedientes necessários à sua concretização, dentro da garantia de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrada (art. 20.º) e levada ao art. 2.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.º do CPP: «2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.»
6 – E a remissão do n.º 2 do art. 307.º do CPP para o artigo 281.º obtida a concordância do Ministério Público, significa que, encerrado o debate instrutório, o juiz de instrução profere despacho de pronúncia ou não pronúncia, mas determina, se for o caso a suspensão provisória do processo.
7 – O arguido e o assistente podem, pois, pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo, a qual não pode deixar de ser determinada, se se verificarem os respectivos pressupostos: no decurso do inquérito, ao Ministério Público por requerimento; findo o inquérito, ao juiz de instrução, na “acção” adequada à efectivação desse direito e que só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura de instrução em que se pede que se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que em caso afirmativo se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como o impõe o n.º 2 do art. 307.º do CPP, pois só esse requerimento abre a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o art. 307.º e que inclui, como se viu, a possibilidade de suspender provisoriamente obtida a concordância do Ministério Público.

1.
AA, Procurador-Adjunto, arguido no proc. n.º .../07.9YRCBR, da Relação de Coimbra, notificado de acusação contra si deduzida pelo Ministério Público, pela prática de um crime do art. 292.º, n.º 1 do C. Penal, requereu a abertura da instrução, pedindo que fosse dado sem efeito o despacho de acusação formulado, substituindo-o por outro que suspenda provisoriamente o processo, nos termos do art. 281.º, n.º 1 do CPP, uma vez obtida a concordância do Ministério Público, de acordo com o art. 307.º, n.º do mesmo diploma legal.
Foi esse requerimento rejeitado liminarmente por se ter entendido inadmissível, no caso, a instrução.
Inconformado recorre o arguido para esse Supremo Tribunal de Justiça dessa rejeição, sustentando que deveria ter sido o mesmo requerimento deferido e aberta a instrução.
Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pronunciando-se pela procedência do recurso e pela substituição da decisão recorrida por outra em que se admita a requerida abertura da fase de instrução.
Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, teve vista o Ministério Público que se pronunciou igualmente pela procedência do presente recurso, sem embargo de reconhecer que a solução não é isenta de algumas dúvidas, entendendo que a fase de instrução tal como foi requerida pode ter utilidade e, acima de tudo, para além de permitir ao arguido o controlo de um poder-dever por parte do Ministério Público, permite-lhe também tentar evitar ao mesmo tempo a sujeição a julgamento com os inerentes malefícios que lhe são comummente apontados e, não é expressamente proibida por lei.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.
2.1.
E conhecendo.
São os seguintes os elementos relevantes para a apreciação da questão colocada.
O arguido, notificado da acusação, requereu a abertura de instrução, invocando o art. 287.º, n.º 1 a) e n° 2 do CPP e que o crime do art. 292.º n.º 1 do C. Penal, de que fora acusado, é punível com uma pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, pelo que, cabendo na previsão do art. 281.º, n.º 1 do CPP, lhe confere a faculdade de, em sede de instrução, reagir à decisão do Ministério Público da não promoção da suspensão provisória da processo, nos termos do art.307.º, n.º 2 do mesmo diploma. A abertura da instrução permitia-lhe o controlo judiciário dessa decisão do Ministério Público e construir no debate instrutório o diálogo entre os vários sujeitos processuais que nele podem intervir, no sentido da obtenção de um consenso que viabilize a suspensão provisória do processo, finalidade que se enquadra nos objectivos que, com o debate, a lei pretende que se atinjam.
O arguido, não contestando a factualidade vertida na acusação, ofereceu prova, designadamente quanto à quantidade e qualidade de álcool ingerido imediatamente antes do acidente, se teria ou não consciência de que se encontrava alcoolizado e se tal circunstância era evidente e ainda relativamente ao que as mesmas terão presenciado antes e após o despiste do veículo conduzido pelo arguido e quanto ao tempo e oportunidade que teve de deixar o local.
Esse requerimento foi objecto do seguinte despacho:
«(…) 2 – De harmonia com o estatuído no art.° 286.°, n.° 1, do CPP, a instrução – fase jurisdicional do processo preliminar – visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Daí que, sendo requerida por arguido – como no caso –, na sequência de acusação, terá por necessária finalidade a submissão a competente magistrado judicial da indagação da admissibilidade legal do acto acusatório pela aferição da pertinente indiciação da realização pelo sujeito passivo dos elementos constitutivos da(as) imputada(as) infracção(ões) criminal(ais), ou pela verificação da existência doutras razões jurídicas – de direito material ou adjectivo, (activa, causas de exclusão da ilicitude ou culpa, prescrição, amnistia, etc.) – que o inviabilizem ou neutralizem, total ou parcialmente, (cfr. ainda arts. 308.°, n.ºs. 1 e 2, e 283.°, n.º 2, do CPP) (Vide, a propósito, entre outros, Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III — Editorial Verbo, 1994 –, pags. 125/133; Prof. Jorge de Figueiredo Dias, Para Uma Reforma Global do Processo Penal Português, pág. 38; e Raul Soares da Veiga, O Juiz de Instrução e a Tutela dos Direitos Fundamentais, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais (Almedina), pags. 183/220, maxime pág. 199).
No essencial demanda-se do juiz de instrução a comprovação da objectiva legalidade da acusação, pela verificação da reunião de material probatório bastantemente demonstrativo da existência de crime e do seu responsável (autor, co-autor, cúmplice), e pela formulação de juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do incriminado sujeito – em sede de julgamento – a reacção penal ou medida de segurança, e não já o policiamento da soberana discricionariedade do M.° P.° quanto ao juízo de oportunidade de sujeição do agente delitivo a julgamento, em razão de ponderosos – ou ponderáveis – critérios de utilidade ou conveniência, nos limites legais, pela opção pela acusação ou pela suspensão provisória do processo – prevenida no art. 281.º do CPP – como na situação sub judice, como é de mediano entendimento.
Por conseguinte, havendo o arguido expressamente assumido a realização do imputado acto comportamental, e, por isso, a indiciação da assacada infracção criminal, (cfr. art.° 7.° do requerimento de abertura de instrução), muito mal se compreende o impulsionamento da fase instrutória tão-só com vista ao virtual condicionamento – quiçá coactivo (!)– do Ministério Público á revisão e alteração da sua oportuna opção de acusar em detrimento do recurso ao enunciado mecanismo de suspensão provisória do processo, cuja prossecução, com o devido respeito por diversa opinião – máxime pela plasmada no aresto invocado (Ac. da RL de 16/11/2006, disponível em http://www.gde.mj.ptljtrl), que, naturalmente, não sufragamos –, roçaria o absurdo jurídico.
3 – Como assim, apresentando-se-me como axiomática a respectiva inadmissibilidade/proibição legal, em conformidade com o estatuído no normativo 287.°, n.º 3, parte final, do CPP – sem outras considerações por despiciendas –, rejeito liminarmente o requerimento de abertura de instrução formulado pelo identificado cidadão-arguido.»
2.2.
Admissibilidade da instrução
Sustenta o recorrente que a rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução com fundamento em inadmissibilidade legal, violou os arts. 287.º, n.º 3 e 307.º n.º 2 do CPP (conclusão 1). E que a doutrina e jurisprudência têm entendido que não foi vontade do legislador definir um âmbito lato de denegação da instrução, mas outrossim que a ratio legis do art. 287.º, n.º 3 do CPP é a da restrição máxima aos casos de rejeição do requerimento de abertura de instrução (conclusão 2), sendo legalmente inadmissível a instrução em sede de processo sumário e sumaríssimo (art. 286.º, n.º 3 do CPP), a requerida por quem não tem legitimidade para tal ou fora dos casos previstos na lei [art. 287.º, n.º 1 a) e b) do CPP], ou ainda por falta de tipicidade legal (cfr. Simas Santos e M. Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2 Ed., pág. 163, TRP de 0903.2005 e de 23.02.2005, in www.dgsi.pt) (conclusão 3).
O recorrente, com o seu requerimento de abertura de instrução, pretendeu colocar em causa a decisão do Ministério Público de deduzir acusação, quando poderia/deveria ter-se socorrido do mecanismo da Suspensão Provisória do Processo (conclusão 4) e a lei não exclui a possibilidade de requerer a abertura de instrução com esta finalidade, pelo que rejeitar o requerimento com fundamento na inadmissibilidade legal é interpretar e aplicar o dispositivo legal previsto no art. 287.º, n.º 3 do CPP de forma ampla, quando o mesmo se reveste de carácter restritivo (conclusão 5).
Em sede de instrução – diz – é possível a apreciação de questões de direito ou de facto subjacentes à acusação, designadamente no que concerne ao grau de culpa (conclusão 6). A aplicação da suspensão provisória do processo pode ter lugar em sede de instrução, com a concordância do Ministério Público – art. 307.º n° 2 do CPP (conclusão 7) visando o recorrente demonstrar, com a instrução, que estão preenchidos todos os pressupostos exigidos pelo art. 281° do CPP e pugnar pela sua aplicação, fazendo uso do contraditório a que tem direito (conclusão 8), pois que ao requerer a abertura de instrução não tem de o fazer exclusivamente baseado em pura matéria de facto, ele pode requerê-la em função de uma discordância em relação à qualificação jurídica dada a esses factos, ou baseada no seu tratamento jurídico em termos de consequências político-criminais (conclusão 9).
Antes de se entrar na apreciação desta razões de discordância do recorrente, importa notar que as normas aplicáveis, designadamente o art. 281.º do CPP sofreram alterações com algum significado nesta querela e que se deverão ter por aplicáveis de imediato.
Na verdade, a Lei n.º 48/2007, que entrou em vigor a 15 de Setembro passado (art. 7.º), não integra qualquer norma transitória que contemple a sua aplicação no tempo.
Assim, na resolução das questões que nesse âmbito se coloquem, dever-se-á atender ao disposto no art. 5.º do CPP, pelo que as alterações em matéria de recurso serão aplicadas imediatamente, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (n.º 1).Importará, no entanto e face ao disposto no n.º 2 desse art. 5.º, acautelar as situações em que dessa aplicação imediata possa resultar:— Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa [a)]; ou — Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo [b)].Nesses casos, a Lei n.º 48/2007 não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência.Vejamos o que dispõe hoje o art. 281.º do CPP (suspensão provisória do processo):
«1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2 - São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efectuar prestação de serviço de interesse público;
d) Residir em determinado lugar;
e) Frequentar certos programas ou actividades;
f) Não exercer determinadas profissões;
g) Não frequentar certos meios ou lugares;
h) Não residir em certos lugares ou regiões;
i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;
l) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;
m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3 - Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
4 - Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.
5 - A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.
6 - Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
7 - Em processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.»
Do confronto da redacção daquele artigo dada pela Lei n.º 59/08, resulta que foi alterada a redacção dos n.ºs 1, 2 e 3 em diversas alíneas, n.º 6 e foi aditado o n.º 7.
Da alteração do n.º 1, a que agora importa para o caso sujeito, resulta que em caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, sempre que se verificarem os respectivos pressupostos:
– podia o Ministério Público decidir-se com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 59/98);
– o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (redacção da Lei n.º 48/2007).
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X-02, que originou a Lei n.º 48/2007, explicaram-se assim, essas alterações:
«A suspensão provisória do processo passa a poder ser aplicada a requerimento do arguido ou do assistente. Ainda no âmbito da suspensão, restringe-se o requisito de ausência de antecedentes criminais passando a exigir-se apenas que não haja condenação ou suspensão provisória anteriores por crime da mesma natureza. Também o requisito da culpa diminuta é transformado em previsão de ausência de culpa elevada. Nos crimes de violência doméstica e contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravados pelo resultado permite-se que o Ministério Público determine o arquivamento independentemente da pena aplicável, em nome do interesse da vítima, desde que não haja, de novo, condenação ou suspensão provisória anteriores por crime da mesma natureza. Através destas alterações pretende alargar-se a aplicação deste instituto processual de diversão e consenso»
Mas impõe-se que se explicite que esta confessada intenção de «alargar a aplicação deste instituto processual de diversão e consenso» já fora consubstanciada em outras iniciativas legislativas e regulamentares e se revela noutro plano.
Referimo-nos à Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Lei Quadro da Política Criminal) e cujo art.º 12.º, em relação à pequena criminalidade, prevê que os magistrados do Ministério Público privilegiam, no âmbito das suas competências e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, a aplicação de diversas medidas entre as quais a suspensão provisória do processo [n.º 1, al. b)], directivas e instruções genéricas que vinculam os magistrados do Ministério Público, nos termos do respectivo Estatuto (n.º 3). Devendo o Ministério Público reclamar ou recorrer, nos termos do CPP e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República, das decisões judiciais que não acompanhem as suas promoções destinadas a prosseguir os objectivos, prioridades ou orientações de política criminal previstos naquela lei (art. 17.º). O que foi retomado nas Directivas e instruções genéricas em matéria de execução da lei sobre política criminal, já emitidas pelo Procurador-Geral da República.Como se viu já, com a Lei n.º 48/2007, acentuou-se a natureza de poder-dever conferido pela norma do n.º 1 ao Ministério Público ao substituir a expressão “pode (…) decidir-se (…) pela suspensão do processo” por esta outra, claramente impositiva: “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina (…) a suspensão do processo».
Já assim se devia entender no domínio da redacção dada pela Lei n.º 59/98, mas pretendeu-se afastar a interpretação de que “o pode decidir-se” constituía uma mera faculdade concedida ao Ministério Público a usar discricionariamente e afirmar a interpretação de que verificados os respectivos pressupostos, se impunha ao Ministério Público a suspensão provisória do processo.
Entendia-se (cfr. o Relatório sobre as Formas de processo penal especiais e institutos de consenso e oportunidade, de 14.7.2005, do Ministério Público de Vila Nova de Gaia), e deve continuar a entender-se, que a aplicação de uma pena, mesmo que materialmente justa, passados vários anos sobre o facto que se pune, traduz-se sempre – e especialmente na pequena criminalidade – na falta de realização de justiça plena, seja porque esse facto, com o decurso do tempo, perdeu o desvalor que revelava, dando origem a uma censura mais branda do que aquela que a proximidade do facto permitiria, seja porque o próprio arguido mais dificilmente irá relacionar a essa censura com o facto que lhe deu origem, ou ainda porque o interesse e confiança da vítima e da comunidade na punição decresce.
Nesse contexto, as formas processuais especiais e os institutos de consenso e oportunidade previstos no Código de Processo Penal, para além de potenciarem uma maior celeridade, pela sua estrutura desburocratizada, são mais económicos para o sistema pela redução de diligências que proporcionam e por envolverem uma menor implicação de recursos humanos e materiais. Essa economia permite também uma significativa redução do tempo que medeia entre o facto e a reacção penal correspondente.
Dificilmente se compreende a baixa adesão aos mecanismos que o legislador criou – cujo campo de aplicação tem vindo a sucessivamente ampliar por via legislativa – com vista a possibilitar uma mais rápida e desburocratizada realização de justiça, sem contudo abrir mão dos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Tanto mais que refira-se que a aplicação destes institutos não constitui um poder discricionário e, como tal, insindicável dos magistrados, o que se revelaria uma intrusão destemperada do princípio da oportunidade no nosso ordenamento jurídico.
Devem antes ser aplicadas pelo titular do processo sempre que deste resultem preenchidos, de facto e de direito, os pressupostos de que depende a sua aplicação.
É, pois, este poder/dever de aplicar os institutos de consensualização e formas de processo especiais que vai temperar o espírito de oportunidade que também lhes subjaz, sem contradizer – antes com ele se compatibilizando – o princípio da legalidade, pedra angular do nosso sistema penal.
Aliás, Pierrette Poncela fala expressamente das «sanções aplicadas pelo Procurador da República» e justifica assim o título: «O título do nosso parágrafo poderá prestar-se à contestação. Com efeito, convencionou chamar-se a estas sanções (dispensa de pena e suspensão do processo) medidas alternativas ao processo. É certo que elas têm um regime jurídico específico, mas também são sanções que respondem à comissão de uma infracção penal; podem, pois, ser qualificadas não de penas mas sim de sanções penais» (Droit de la Peine, 2.ª Ed., pág. 177).
E fazem entre nós, seguramente apelo aos critérios atendíveis na escolha e determinação das penas, designadamente dos art.ºs 70.º e 71.º do Código Penal, a ponderar em primeiro lugar pelo Ministério Público, com o mesmo rigor que é exigido ao julgador (Sobre a relevância da actuação do Ministério Público na questão da medida da pena, cfr. ponto H da Recomendação n.º R(92)/17, de 19.10.92, do Conselho da Europa e Simas Santos, Intervenção no 5º Congresso do Ministério Público, O Princípio da Igualdade, a Medida da Pena e o Ministério Público, a 19-11-98).
Por outro lado, o acrescentamento, no mesmo n.º 1 do art. 281.º do CPP, da expressão “oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente” reforça ainda esta interpretação e dá direitos acrescidos a estes sujeitos processuais, a que hão-de necessariamente corresponder as acções, os expedientes necessários à sua concretização, dentro da garantia de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrada (art. 20.º) e levada ao art. 2.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.º do CPP: «2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.»
Vem esta menção a propósito do teor do n.º 2 do art. 307.º do CPP, já referido, e que dispõe que encerrado o debate instrutório, no momento em que o juiz de instrução profere despacho de pronúncia ou não pronúncia, «é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 281.º, obtida a concordância do Ministério Público».
Ora, a remissão para a disciplina do n.º 1 do art. 281.º, correspondentemente aplicável, visa a redacção actual, nos termos atrás interpretados, inclusive quanto à possibilidade de o arguido ou o assistente pediram a suspensão provisória do processo e o poder-dever que, por tal normativo, é imposto ao juiz de instrução.
Temos, assim e em esquema, que o arguido e o assistente podem pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo, a qual não pode deixar de ser determinada, se se verificarem os respectivos pressupostos.
Enquanto no decurso do inquérito, aqueles sujeitos processuais se podem dirigir ao Ministério Público, dominus dessa fase processual, por mero requerimento, já ao seu direito a pedir, ao juiz de instrução, a suspensão provisória do processo, tem de corresponder uma adequada “acção”, destinada a efectivar esse direito e que ocorre já depois de findo o inquérito e tomada posição final pelo Ministério Público
A acção dirigida ao juiz de instrução, findo o inquérito, como é o caso, só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura de instrução em que se pede que se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que em caso afirmativo se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como o impõe o n.º 2 do art. 307.º do CPP. Só esse requerimento abre a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o art. 307.º e que inclui, como se viu, a possibilidade de suspender provisoriamente obtida a concordância do Ministério Público.
Face ao texto resultante da revisão de 1998 já se devia, aliás, entender assim.
Com efeito, no texto que passou a vigorar, o Ministério Público findo o inquérito podia, além do mais, arquivar o processo, suspender provisoriamente o processo ou deduzir acusação.
E, como se viu, pois que nessa parte não houve alterações, o art. 307.º, n.º 2 já dispunha que o juiz de instrução, na “comprovação judicial” das opções do Ministério Público, podia pronunciar, não pronunciar ou suspender provisoriamente o processo, diligenciando, neste último caso, pela obtenção da concordância do Ministério Público.
Ou seja, a falada “comprovação judicial”, em espelho com os poderes conferidos ao Ministério Público, podia (pode) conduzir a um de três resultados possíveis, entre os quais se conta a suspensão provisória do processo; o que significa que o pedido formulado no requerimento que conduz à instrução e a esse “reexame” podia (pode) ser o da aplicação de qualquer uma dessas três soluções, incluindo, assim, a suspensão provisória do processo.
E as restantes regras do CPP convocadas não inviabilizam, mas favorecem este entendimento.
Com efeito, o n.º 1 do art. 286.º dispõe que “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Mas daí não se pode concluir pela exclusão da suspensão provisória do processo, uma vez que ela constitui uma “sanção penal” que conduz à não submissão (eventual) da causa a julgamento, ou seja a um dos fins visados exactamente pela instrução, através da comprovação judicial.
Isto é, o requerimento de abertura da instrução com vista à suspensão provisória do processo não viola a regra sobre a finalidade da instrução. A comprovação judicial a que se reporta o n.º 1 citado, não pode ser restrita ao domínio do facto naturalístico, mas há-de compreender, sempre que relevante, a dimensão normativa dos factos, susceptível de conduzir ou não a causa a julgamento.
Depois, o requerimento de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (n.º 3 do art. 287.º do CPP).
Ora, em norma nenhuma do CPP se incluiu esta hipótese como sendo de inadmissibilidade (legal) da instrução.
Sobre a inadmissibilidade da instrução prevista na lei, que não incluiu o pedido de suspensão provisória do processo pode ver-se Simas Santos e Leal-Henriques, (Código de Processo Penal Anotado, II, 2ª Ed., pág. 163). Já em sentido contrário se coloca Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código de Processo Penal…, pág. 738, anotação2-l) e pág.723, anotações 16-18], que ancora a sua posição no entendimento de que a posição do Ministério Público de determinação (ou não) da suspensão provisória do processo só é susceptível de reclamação hierárquica. No entanto, esta posição estará demasiado presa à origem da intervenção do juiz na suspensão provisória do processo, relacionada com a jurisprudência constitucional, quando, como se analisou, a evolução do instituto e a sua regulamentação apontam para uma atribuição de poderes ao juiz de instrução, em verdadeiro “espelho” em relação ao Ministério Público, que vai muito além da origem histórica da consagração da sua intervenção, tanto mais que, como se viu, pode agora ser requerida quer ao Ministério Público, quer ao juiz de instrução.
Finalmente, não se vê que a necessidade de concordância do Ministério Público, que não usou do instituto da suspensão provisória do processo, com a sua aplicação por “sugestão” do juiz de instrução, tão pouco inviabilize a possibilidade que se vem considerando.
Desde logo, não se pode esquecer que se trata, como se viu, de um espaço de diálogo e de consenso no seio do processo penal, que nasce, pois, da aproximação de posição inicialmente muito distantes ou até antagónicas; o primeiro dos pressupostos enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 281.º para a suspensão provisória do processo é a «concordância do arguido e do assistente», que inicialmente se opõem nas suas posições. Do mesmo modo a circunstância de o Ministério Público não ter feito uso do poder-dever que aquele n.º 1 encerra não quer dizer que não concorde coma posição, argumentada, do juiz de instrução, que contribua para que a situação se apresente numa outra perspectiva e seja receptivo a uma mudança de posição.
Depois, como é o caso sujeito, sem serem, na essência, contestados os factos da acusação, é oferecida prova da verificação dos pressupostos do n.º 1 do art. 281.º do CPP, pelo que pode acontecer que da instrução resultarem verificados elementos necessários à suspensão do processo que, durante o inquérito não haviam sido suficientemente esclarecidos e assim se justificar a mudança de atitude do Ministério Público concordando com a suspensão provisora do processo quando anteriormente não fizera uso dessa possibilidade.
3.
Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução, que deve ser substituído por outro que ordene a abertura da instrução, se outra razão a isso não obstar.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2008
Simas Santos (Relator)
Santos Carvalho
Rodrigues Costa

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Ruído

Acórdão da Relação do Porto, de 15.01.08
Processo: 10787/2006-1
Relator: Folque Magalhães

Sumário:
I - O Regulamento Geral sobre o Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei nº 251/87, de 24 de Junho não regula o ruído provocado pelos actos de uma pessoa ou várias, por modo mais ou menos instantâneo, mas sim actividades de cariz ruidoso.
II – Resulta do art. 20º do ditado Regulamento, que trata das actividades ruidosas, que não cabe no campo de aplicação deste diploma a matéria dos autos, pois o artigo refere-se a licenciamento de locais destinados a espectáculos, diversões e quaisquer actividades ruidosas públicas ou privadas, sendo certo que estas actividades ruidosas hão-de ter a mesma natureza quanto à sua origem das provenientes de espectáculos ou diversões.
III - Estando provado que o R. é inquilino do prédio e que cedeu o uso desse andar a dançarinas de strip-tease que actuam no estabelecimento explorado por sociedade de que o R. marido é sócio e que desde que o andar é ocupado por essas dançarinas, a A. não consegue dormir a noite toda, é de concluir que foi feita uma utilização imprudente do referido andar, nos termos do art. 1038º d) do C.Cv.
IV - Tal aspecto da questão há-de conjugar-se com o direito das pessoas à sua integridade física, a qual pode ser violada, nomeadamente, através de ruídos que impeçam as pessoas de dormir durante o período normal de repouso, estando tal direito consagrado no art. 70º nº 1 do C.Cv., segundo o qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita à sua personalidade física ou moral. Por conseguinte, embora por interpostas pessoas, o inquilino praticou um facto ilícito.

Um acórdão interessante - irrecorribilidade da decisão instrutória quando confirma a acusação, mesmo na parte em que aprecia nulidades

Acórdão da Relação do Porto, de 13.02.08
Processo: 0745687;
N.º Convencional: JTRP00041045.


Sumário:
A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo no domínio do Código de Processo Penal na versão anterior à que resultou da Lei nº 48/2007, é irrecorrível também na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.



Acordam – em conferência – na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

1 – O arguido B………., inconformado com o segmento da decisão instrutória (exarada na peça certificada a fls. 163/169 do presente processo incidental) que lhe indeferiu a arguição de pretensas nulidades do inquérito – atinentes à recolha de pessoais vestígios biológicos (saliva) para exame de ADN e localização celular do telemóvel –, dele interpôs o recurso ora analisando, de cuja motivação[1] extraiu o seguinte quadro conclusivo (por transcrição):
1. Vem o presente recurso interposto da Decisão Instrutória proferida no âmbito dos presentes autos, que julgou inexistentes as nulidades invocadas pelo aqui Recorrente de que, salva melhor opinião, padece o inquérito. Quer quanto à localização celular operada por antenas de telemóveis, quer pela recolha de vestígios biológicos por zaragatoa bocal, sem despacho judicial a ordenar a recolha e sem expressa autorização do recorrente, as quais sustentam probatoriamente a acusação pública deduzida.
2. No nosso ordenamento jurídico só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma recolha de vestígios biológicos para análise de ADN.
3. Ora, o arguido ora recorrente, recusou-se a assinar o auto de recolha de vestígios biológicos, expressando deste modo, a sua recusa à efectivação da colheita aqui em crise.
4. Uma vez recusada, a realização de tal colheita careceu de ordem da autoridade judiciária competente, foi limitada à promoção do digno Procurador da República, titular do inquérito.
5. A realização de qualquer exame na pessoa que a ele se tenha recusado, sem anterior decisão da autoridade judiciária competente, porque violadora do disposto no n.º 1 do artigo 172 do C. P. P., integra a nulidade prevista no artigo 126, n.º 2 a), b) e c) do mesmo diploma processual, constitui tal meio de prova nulidade insanável.
6. De resto sempre estaria ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos n.ºs 25.°, 26.° e 32.°, n° 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.°, n° 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos do recorrente para determinação do seu perfil genético, quando este último não manifestou a sua expressa autorização para a respectiva realização.
7. Da mesma forma seria igualmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.°, n° 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126°, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada sem o consentimento do recorrente.
8. Terá de ser reconhecida e declarada a ilegalidade da sobredita colheita, nos termos em que a mesma teve lugar, com todas as legais consequências, desde logo, a proibição absoluta de valoração da prova do ADN, porquanto a mesma ser nula.
9. E considerar-se que atempadamente arguida a nulidade de que enferma pois ademais, se vislumbrando in casu uma nulidade dependente de arguição, que não é sequer de conhecimento oficioso.
10. As nulidades suscitadas devem obediência ao regime constante do n.º 3 do mencionado artigo 120.º do Código do Processo Penal, que foi absolutamente respeitado em todos os seus pressupostos pelo aqui Recorrente.
11. Em sede de requerimento de Abertura de Instrução, o aqui Recorrente suscitou ainda a Nulidade da "prova celular" por violação do princípios processuais penais, nomeadamente da subsidiariedade e da necessidade concretizados no rigoroso regime estatuído nos art.º 187 e ss. do C.P.P.
12. E isto porque, compulsados os presentes autos, resulta que a única prova (não prova) existente nos autos são informações de células activadas pelos telemóveis sem qualquer outro suporte e sem que qualquer outra diligencia investigatória tenha sido levada a cabo.
13. Pelo exposto a recolha de prova celular sem qualquer controlo judicial é manifesta e claramente nula!
14. O que conduz à inevitável invocação da nulidade da alegada prova celular por ostensiva e manifesta violação da constitucionalmente consagrada reserva da vida privada conforme preceituado no n.º 8 do art.º 32.º da Lei Fundamental e n.º 3 do art.º 126.º do CPPENAL
15. Pleitando-se nesta sede, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 189.º do Código do Processo Penal, pela declaração de nulidade das localizações cujo regime há-se ser de acordo com os princípios legais estatuídos para as intercepções telefónicas como preconiza o ante projecto de revisão ao Código do Processo Penal.
16. Insurge-se o recorrente contra o despacho recorrido na parte em que sustenta que foram proferidos despachos a solicitar a localização celular, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 269.º do CPP, logo "carecendo de fundamento legal a alegada nulidade"
17. Reclama o recorrente que a prova celular, única que milita contra os arguidos seja declarada nula e não possa ser valorada em sede de audiência de discussão e julgamento como prova.
18. Pelo exposto, pretende o aqui Recorrente ver declarada a nulidade de que enfermam as localizações celulares realizadas à revelia do controlo judicial legal e imperativamente exigido, nos termos preconizados na Lei Constitucional; na Lei Processual Penal e na Jurisprudência uniforme.
Termos em que, e nos que V. Ex.as suprirão, deverão as localizações celulares realizadas no âmbito dos presentes autos e, bem assim, o exame de ADN por recolha de zaragatoa bocal, ser declaradas nulas; revogando, nesta parte, a decisão instrutória proferida, em preito à JUSTIÇA
2 – O Ministério Público – em primeira instância e nesta Relação[2] – e a assistente C………., SA, pugnaram pela manutenção do decidido, suscitando, porém, previamente, est’última entidade a inadmissibilidade do recurso, (vd. referentes peças processuais - de resposta e parecer - juntas a fls. 174/178, 179/198-199/218 e 240/241, nesta sede tidas por transcritas nos respectivos dizeres).
3 – Exercitando a prerrogativa prevenida no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente reiterou, no essencial, a sua tese argumentativa, (vide peça de fls. 249/255-256/262).
4 - Na fase processual própria deixou-se consignado o parecer do relator da verificação de fundamento de rejeição do recurso por inadmissibilidade legal, pelo que, observadas as demais formalidades legais, se procedeu à respectiva apreciação em conferência, [vide arts. 417.º, n.º 3, als. a) e c), 419.º, ns. 3 e 4, al. a), e 420.º, n.º 1, do CPP, 17.ª/penúltima versão, decorrente do DL n.º 324/2003, de 27/12, a propósito aplicável, em conformidade com o disposto no art.º 5.º, n.º 2, al. a), em razão da acrescida solenidade da conferência em relação à decisão sumária do relator, postulada no art.º 417.º, n.º 6, als. a) e b), da actual versão – de 2007 – do citado compêndio, e potencial aumento da susceptibilidade de acerto decisório].

II – FUNDAMENTAÇÃO

QUESTÃO PRÉVIA (inadmissibilidade do recurso)

Consabidamente, o âmbito da irrecorribilidade do despacho de pronúncia de arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, determinada pelo art.º 2.º, n.º 2, al. 53, da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro (Lei de Autorização Legislativa), e consagrada no art.º 310.º, n.º 1[3], do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, sempre gerou viva controvérsia – doutrinal e jurisprudencial –, mormente quanto à abrangência do segmento decisório atinente à arguição de nulidades processuais, cuja recorribilidade motivou, máxime, múltiplos e divergentes arestos dos tribunais superiores – quer no sentido negativo, quer no positivo –, diversão jurisprudencial que acabou por ser harmonizada pelo Acórdão n.º 6/2000, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/01/2000, (publicado em 07/03/2000, no n.º 56 do Diário da República, I SÉRIE-A) – ainda assim sem unanimidade –, que fixou jurisprudência (embora não obrigatória, conforme então já se estabelecia no n.º 3 do art.º 445.º do CPP - segmento normativo introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08) no sentido da respectiva recorribilidade, e que veio a ser complementado pelo Acórdão n.º 7/2004, do Pleno das Secções Criminais do mesmo STJ, de 21/10/2004, (publicado em 02/12/2004, no n.º 282 do Diário da República, I SÉRIE-A) – também tomado por maioria –, que fixou jurisprudência no sentido da subida imediata do concernente recurso.
O entendimento que acabou por vingar quanto à referida recorribilidade nunca se eximiu, porém, de ponderosas e esclarecidas críticas, mesmo no seio do próprio Supremo Tribunal de Justiça, em essencial razão da unicidade do acto processual de pronúncia e da respectiva incindibilidade, bem como do propósito legislativo de incutimento de celeridade processual à fase instrutória – juízo que a nós, pelo menos ao relator, sempre se apresentou inultrapassável –, de que se deu nota nas várias declarações de voto de vencido dos dois enunciados acórdãos uniformizadores, particularmente no último, pela voz dos Ex.mos Conselheiros José Vaz dos Santos Carvalho, António Luís Gil Antunes Grancho, Políbio Rosa da Silva Flor, António Pereira Madeira, Armindo dos Santos Monteiro e João Manuel de Sousa Fonte.
Ciente de tal discussão jurídica, o legislador, renovando e vincando o intento de promoção da simplificação e celeridade processual, já expressamente estabelecido no art.º 2.º, n.º 2, als. 1, 2 e 53, da Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, (vide, máxime, pag. 11 da Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 109/X), veio-lhe a pôr definitivo cobro no acto de revisão do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – vigente desde 15/09/2007, (vide respectivo art.º 7.º) –, pelo esclarecimento inserido no n.º 1 do citado art.º 310.º, de que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias e incidentais, e determina a imediata remessa dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
Tal esclarecimento configura manifestamente uma interpretação legal e autêntica do enunciado postulado normativo, havendo-se, pois, claramente, como lei interpretativa.
Como assim, dado que, em conformidade com o disposto no art.º 13.º, n.º 1, do Código Civil, a lei interpretativa se integra na lei interpretada, impor-se-á o entendimento desta – art.º 310.º, n.º 1, do CPP –, desde o início da respectiva vigência, e, portanto, retroactivamente, com o significado ora esclarecido pelo órgão legiferante[4], nenhuma razão subsistindo, consequentemente, à observância da orientação jurisprudencial enunciada no Acórdão n.º 6/2000, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, cuja disciplina se encontra ultrapassada.
Por conseguinte, sendo agora indiscutível a total irrecorribilidade da decisão instrutória que determinar a sujeição do arguido a julgamento pelos actos comportamentais imputados na acusação do M.º P.º, demandar-se-á a rejeição do recurso em questão, por inadmissibilidade legal, [cfr. art.º 420.º, n.º 1, por referência ao 414.º, n.º 2, do C. P. Penal, versão introduzida pela Lei n.º 59/98, de 15/08, e 420.º, n.º 1, al. b), do mesmo compêndio legal, na versão decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto].

III – DISPOSITIVO

Destarte – sem outras considerações por despiciendas –, delibera-se:
1 – A rejeição do recurso – por inadmissibilidade legal.
2 – A condenação do identificado arguido/recorrente ao pagamento da soma pecuniária equivalente a 3 (três) UC, nos termos do art.º 420.º, n.º 4, da versão anterior, e 3 da actual, do CPP, a que acrescerá igual montante de 3 (três) UC, a título de taxa de justiça, pelo decaimento no recurso, [cfr. ainda normativos 513.º, n.º 1, do CPP, em qualquer das enunciadas versões; 82.º e 87.º, ns. 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais].
***
(Consigna-se, nos termos do art. 94.º, n.º 2, do C. P. Penal, que o antecedente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário).
***
Porto, 13 de Fevereiro de 2008.

Os Juízes-desembargadores:
Abílio Fialho Ramalho
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva (a excelência dos fundamentos contidos no acórdão fez com que me tivessem sido criadas dúvidas sobre o entendimento que, não obstante, mantenho isto é, entenderá o recurso admissível e, por isso, conhecerá do seu objecto)
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento

__________________________
[1] Ínsita na peça certificada a fls. 4/39.
[2] Respectivamente por Ex.mos Procurador da República e Procurador-geral-adjunto.
[3] Art.º 310.º, n.º 1: A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
[4] Vide, a propósito, Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, 11.ª Edição (reimpressão), máxime a pags. 239/243 e 294/295.

Lei n.º 7/2008, D.R. n.º 33, Série I de 2008-02-15

Lei da Pesca nas Águas Interiores

Lei n.º 5/2008, D.R. n.º 30, Série I de 2008-02-12

Lei n.º 5/2008, D.R. n.º 30, Série I de 2008-02-12
Assembleia da República
Aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Um acórdão interessante - declaração de extravio e crime de falsificação

( Acórdão Comentado )

Acórdão da Relação do Porto, de 04.10.06
Processo n.º 0614063
N.º Convencional: JTRP00039527

Sumário:
A comunicação de falso extravio de um cheque ao banco configura um crime de falsificação de documento previsto no artº 256º, nº1, al. b), do CP95.

Texto do Acórdão:

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

“B………., LDA”, assistente nos autos, recorreu para esta Relação do despacho que não pronunciou o arguido C………., formulando as seguintes conclusões:
1- A jurisprudência fixada no assento 4/2000, de 19/1/2000, restringe-se ao regime anterior à entrada em vigor do DL 454/91 e à vigência do C. Penal de 1982, não tendo aplicação nas situações posteriores à entrada em vigor daquele diploma e no domínio do art. 256º do C. Penal de 1995;
2- No domínio do art. 256º do C. Penal e do Dec. Lei 454/91, constitui facto juridicamente relevante a comunicação falsa de extravio de cheques às instituições de crédito sacadas por justificar a recusa de pagamento e por, se a conta não tiver fundos suficientes para o pagamento, obstar às consequências para o sacador da emissão de cheque sem provisão;
3- Nos autos há indícios suficientes da prática de dois crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. b) do C. Penal, decorrente das circunstâncias descritas, feitas pelo arguido ao D………., SA e à E………., SA, de falso extravio dos cheques, pelo que este deve ser pronunciado por eles;
4- O douto despacho recorrido ao decidir como decidiu violou o art. 256º, n.º 1 al. b) do C. Penal, bem como os artigos 1º, 1º-A, 2º, 3º, 8º, n.º 3, 11º, n.º 1, b) do Dec. Lei 454/91, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei 316/1997, de 19 de Novembro, Dec. Lei 323/2001, de 17 de Dezembro e 38/2003, de 24 de Abril, e violou o art. 308º, 1, 1ª parte e 2 do C. Penal.

O MP na 1ª instância respondeu à motivação, sustentando a validade da decisão de não pronúncia.

Nesta Relação, a Ex.ª Procuradora-geral Adjunta foi de parecer que o recurso não merece provimento, embora com fundamentação diversa da acolhida no despacho recorrido. “Na verdade (defende aquela Magistrada), após a vigência do DL 454/91, a questão de saber se a falsa declaração de extravio ou de furto constituía crime de falsificação, deixou de ter interesse, na medida em que a conduta consubstanciadora desse crime passou a integrar o crime de emissão de cheque sem cobertura p. e p. no seu artigo 11º, n.º 1, al. b) na redacção dada pelo Dec. Lei 316/97, de 19/11. Assim, o proibir à instituição sacada o pagamento de cheque passou a integrar crime de emissão de cheque sem cobertura, deixando de ser necessário convocar toda a jurisprudência até aí existente sobre qual o ilícito criminal que tal conduta integrava”.

Dado que os cheques em causa nos autos eram pós datados, a conduta do arguido está excluída da incriminação, por força do art. 11º, 3 do referido diploma.

Cumprido o disposto no art. 417º, 2 CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto

O despacho recorrido é do seguinte teor.
“Despacho de não pronúncia proferido nos autos de instrução n.º ../05 (inquérito n.º /05..TAMTS).
A assistente “B………., Lda.” veio requerer a abertura de instrução por não se conformar com o despacho de arquivamento dos autos pelo Ministério Público, alegando as seguintes razões de discordância: No dia 25 de Janeiro de 2005, a assistente participou criminalmente contra os legais representantes da sociedade “F………., Lda.”, imputando-lhes a prática de dois crimes de burla, p. p., pelo artigo 218°, n.º 1 e 2, e um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366°, todos do Código Penal.
Os factos constantes da referida participação criminal são os seguintes:
1°- A denunciante dedica-se à actividade de montagens de instalações eléctricas.
2°- A representada dos denunciados dedica-se à produção de eventos.
3° - No exercício das respectivas actividades, a denunciante, em Junho de 2004, a pedido dos denunciados, procedeu à montagem da instalação eléctrica do evento denominado "G……….", que decorreu nas antigas instalações da H………., sitas na zona vulgarmente conhecida por ………., no concelho de Matosinhos, tudo nos termos dos orçamentos nº 04102A3 e 04102TM1 (cfr. doc. 10 a 14).
4° - O preço desses trabalhos realizados pela denunciante ascendeu a € 53.051,51, com IVA incluído, conforme facturas n.ºs 2663A e 2668A, de 17 de Junho e 21 de Junho de 2004 (cfr. doc. de fls. 15 e 16).
5° - O pagamento desse preço, conforme o acordado, deveria ter sido efectuado nas datas das referidas facturas, o que não se verificou (cfr. doc. de fls. 17).
6.º - Para pagamento parcial do preço, os denunciados emitiram e entregaram à denunciante, em 18 de Junho de 2004, um cheque no valor de € 20.000 que, apresentado a pagamento, foi devolvido com a indicação de falta de provisão, em 18/06/2004 (cfr. documento de fls. 17).
7.º - Na sequência da devolução desse cheque, e das consequências daí decorrentes para o giro comercial da representada dos denunciados, a denunciante acordou, em 30/06/2004, a pedido daqueles, que o pagamento do valor integral dos trabalhos efectuados fosse feito em 4 prestações, sendo:- Uma no valor de € 12.500, em 30/06/2004;- Outra no valor de € 10.000, em 30/07/2004; - Outra no valor de € 10.000, em 31/08/2004;- E a última no valor de € 20.551,51, em 20/09/2004.
8° - Para titular aqueles montantes, os denunciados preencheram, assinaram e entregaram à denunciante quatro cheques, todos eles sacados sobre o “D………., SA”, apondo-lhes no local destinado à data, os dias de pagamento supra mencionados.
9° - O primeiro dos referidos cheques destinado ao pagamento daquela primeira prestação, no montante de € 12.500, depois de ter sido devolvido por falta de provisão, foi apresentado novamente a pagamento tendo sido pago pelo banco sacado.
10° - O segundo dos referidos cheques destinado ao pagamento da segunda prestação do acordo, no montante de € 10.000, datado de 30/07/2004, tendo sido apresentado a pagamento, foi devolvido pelo banco sacado, por falta de provisão.
11° - A pedido dos denunciados, para poderem justificar a regularização desse cheque devolvido por falta de provisão junto do banco sacado e do Banco de Portugal, a denunciante acordou em devolver-lho contra a entrega de um cheque, do mesmo valor, emitido com data de 08/12/2004.
12° - Na sequência desse referido acordo os denunciados preencheram, assinaram e entregaram à denunciante um cheque sacado sobre a E………., SA, daquele montante, tendo os denunciados aposto nesse cheque a data acordada para o seu pagamento.
13° - O terceiro cheque destinado ao pagamento da 3.ª prestação do acordo de pagamento referido no artigo 7.° supra, também no valor de € 10.000, datado de 31/08/2004, tendo sido apresentado a pagamento no balcão de Matosinhos do I………. foi devolvido por mandato do banco sacado, por falta de provisão (cfr. doc. de fls. 18).
14° - O quarto cheque destinado ao pagamento da 4.ª prestação do supra aludido acordo pagamento, no valor de € 20.551,51, datado de 20/09/2004, tendo sido apresentado a pagamento no mesmo balcão do I………., em 21/09/2004, foi devolvido por mandato do banco sacado, em 23/09/2004, com a menção de "Chq. Rev. Extravio" (cfr. doc. de fls. 19).
15° - O cheque sacado sobre a E………., SA, que foi emitido em substituição do cheque que titulou a segunda prestação do acordo de pagamento de 30 de Junho de 2004, datado de 8/12/2004, tendo sido apresentado a pagamento, em 13/12/2004, também junto do balcão de Matosinhos do I………., foi devolvido, em 14/12/2004, por mandato do banco sacado com a menção de "ch. Rev. Furto" (cfr. doc. de fls. 20).
16°- Os denunciados, ao dar instruções aos bancos sacados para a revogação das ordens de pagamento contidas naqueles dois cheques, comunicando-lhes que os mesmos haviam sido, um extraviado e outro furtado, quiseram, e alcançaram, que esses bancos devolvessem esses referidos cheques com essas indicações.
17° - Os denunciados bem sabiam que as razões invocadas junto daqueles bancos eram falsas, como sabiam que a denunciante era a legítima dona e possuidora desses cheques, por lhe terem sido entregues por eles, denunciados, para o pagamento da referida dívida da sua representada.
18° - Os denunciados com a sua conduta quiseram, e conseguiram, impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques pelos bancos sacados, com intenção de, deste modo, alcançar beneficio para si, ou para a sua representada, quer ao impedir o débito das quantias tituladas nos cheques, nas respectivas contas, quer ao evitar a devolução dos cheques por falta de provisão, e com isso, entre outras consequências, evitar a inibição do uso de cheque e a participação ao Banco de Portugal, benefícios que bem sabiam não lhes caber.
19°- Os denunciados, por outro lado, com essa descrita conduta causaram prejuízo patrimonial à denunciante, o qual é, pelo menos, de valor igual ao do montante titulado naqueles dois cheques.
20° - Os denunciados agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram, como são, proibidas.
“Registada, autuada e distribuída como inquérito, o Exmo Senhor Procurador-Adjunto, considerando que os factos não eram subsumíveis a ilícito criminal, determinou, com o devido respeito, mal, o arquivamento do inquérito, nos termos do artigo 277°, nº 1 do CPP. No que concerne ao denunciado crime de simulação de crime, p. p, pelo artigo 366° do Código Penal, o Ex.mo Procurador Adjunto, autor do despacho de arquivamento, não realizou qualquer diligência que sustente a sua conclusão, ou seja, não averiguou, como devia, se o arguido, por si ou a seu mando, denunciou criminalmente, ou não, à autoridade competente, ou a outra com o dever de a transmitir à autoridade competente (...), o furto do cheque. A omissão daquela diligência, que só ao Ex.mo Senhor Procurador-Adjunto cabia determinar, por ser o titular da acção penal, em conformidade com o que dispõe o artigo 48.° do CPP, constitui nulidade, por acarretar a insuficiência do inquérito, nos termos do artigo 120°, n.° 2, alínea d) do CPP, que aqui expressamente, e desde já, se argúi. Por outro lado, o arguido ao comunicar, por si, ou a seu mando, por escrito, às mencionadas instituições bancárias o extravio de um cheque e o furto de outro, o que constituem factos juridicamente relevantes, uma vez que os mesmos justificaram a recusa de pagamento dos referidos bancos, fê-lo falsamente, cometendo, assim, dois crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.°, n.° 1, alíneas a) e b) do Código Penal (neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12.05.2004, publicado em www.dgsi.pt). Acontece que, no inquérito, o Exmo Senhor Procurador-Adjunto não solicitou ao D………., SA e à E………., SA as referidas comunicações do arguido para a revogação das ordens de pagamento contidas naqueles cheques, diligências que só a ele cabia ordenar, ou, se fosse o caso, promover a sua busca e apreensão desses documentos naquelas instituições. Ora, essas omissões, que constituem também a nulidade estabelecida no artigo 120°, n° 2, alínea d), do CPP, que aqui também se argúem, já que redundam na insuficiência do inquérito, impediram o Exmo Senhor Procurador-Adjunto de averiguar da existência desses crimes, concluindo, de forma intempestiva, e sem se pronunciar sobre eles, pela sua inexistência.(...) Em face do inquérito em análise (ou da falta dele) podemos concluir que se verifica uma total falta de promoção do mesmo, que ao caso é obrigatório, o que constitui nulidade insanável, conforme preceitua as alíneas b) e d), do artigo 119° do CPP.”
Para cumprimento do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do CPP, a assistente reiterou no essencial os factos já constantes da denúncia, nos termos que melhor constam de fls. 38 a 42 dos autos.
Declarada aberta a instrução, foram tomadas declarações ao representante legal da assistente, cfr. fls. 82. Solicitou-se à E………., SA e ao “D………., SA” cópia das comunicações efectuadas pela “F………., Lda.” para a revogação das ordens de pagamento dos referidos cheques, documentos que se mostram juntos a fls. 103 e 111. Foram apresentados, pela assistente, os documentos de fls. 91 a 94 e foi inquirida uma testemunha a fls. 95. Não foi possível proceder ao interrogatório do arguido, por motivo de doença do mesmo cfr. resulta de fls. 112 a 123 e 142 a 145. Teve lugar o debate instrutório que decorreu com observância do legal formalismo. Não há nulidades ou quaisquer outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito e que ora cumpra conhecer salvo as alegadas nulidades da falta e da insuficiência de inquérito, e da falta da sua promoção pelo Ministério Público. Em relação à alegada nulidade da falta de inquérito, embora a questão não seja absolutamente líquida, afigura-se-nos que tal nulidade só deve ocorrer quando se possa ou deva concluir pela obrigatoriedade do inquérito em toda e qualquer denúncia. Nos termos do artigo 247.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público procede ou manda proceder ao registo de todas as denúncias que lhe forem transmitidas, o que não significa que todas as denúncias justifiquem e determinem a abertura de um inquérito. Como determina o artigo 262.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação. E o n.º 2 do mesmo artigo preceitua que “ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”. A expressão “notícia de um crime” tem o significado de notícia de factos que objectivamente preencham os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito criminal. Ou seja, o legislador, ao prever a “notícia de um crime” também previu “a contrario”, a “notícia de um não crime”, isto é a denúncia de factos que para o denunciante, numa interpretação pessoal subjectiva, constituem crime, mas que objectivamente, para o Ministério Público, obedecendo a critérios de objectividade, e seguindo a doutrina ou a jurisprudência dominantes, não preenchem qualquer ilícito de natureza criminal. Nessas situações, por razões de economia processual e de respeito pela dignidade da pessoa denunciada, não deve haver lugar à abertura de inquérito por factos que manifestamente não configuram crime. Mesmo tendo ocorrido o registo da denúncia, aliás obrigatório, e a sua autuação como inquérito, essa autuação não impede o Ministério Público de analisar a substância e o mérito da denúncia, bem como a prova documental apresentada, e determinar o arquivamento dos autos (e a não realização de inquérito) quando “a conduta dos denunciados – muito embora seja objectivamente ilícita – não integra ilícito penal, mas tão só ilícito de natureza civil, a dirimir em sede própria.”Porque assim o entendemos, e nos parece ser a melhor apreciação, consideramos improcedente a invocada nulidade por falta de inquérito, uma vez que em substância não estamos perante um arquivamento de inquérito, em sentido estrito, mas sim do arquivamento de uma denúncia, decisão que legalmente também compete ao Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 263.º n.º 2, do C.P.P. “a contrario”. Aliás, pode constatar-se que a assistente, na denúncia apresentada, concluía pelo cometimento, pelo denunciado, de dois crimes de burla e, eventualmente um crime de simulação de crime, mas no termo da instrução, em sede de debate instrutório, veio a reconhecer que não resultavam indícios suficientes da prática, pelo arguido, dos crimes de burla e de simulação de crime. Inexistindo lugar a inquérito, por decisão do Ministério Público, no exercício das suas competências como titular da acção penal, não existe fundamento legal para as alegadas nulidades da falta de promoção do processo pelo Ministério Público e da insuficiência do inquérito. Entrando na análise do objecto da instrução, nos termos do artigo 286.º do Código de Processo Penal, esta fase judicial visa a comprovação da decisão da acusação ou do arquivamento em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia – artigo 308.º do Código de Processo Penal.São suficientes os indícios quando deles resulta uma possibilidade razoável de condenação do arguido numa pena ou medida de segurança – artigo 283.º do Código de Processo Penal. Assim, a pronúncia do arguido só deve ter lugar quando a prova indiciária recolhida permita concluir ser mais provável uma condenação do que uma absolvição no caso de submissão dos autos a julgamento. Analisada e ponderada toda a prova produzida e documentada nos autos, afigura-se-nos suficientemente indiciados os seguintes factos:
A assistente “B………., Lda.” dedica-se à actividade de montagem de instalações eléctricas. O arguido C………. é o único gerente e legal representante da “F………., Lda”, empresa que se dedica à produção e realização de espectáculos, eventos desportivos e de lazer, publicidade aplicada, aluguer de equipamento desportivo e de lazer e importação e exportação de equipamento desportivo e de lazer. No exercício das respectivas actividades, a assistente, em Junho de 2004, a pedido da representada do arguido, procedeu à montagem da instalação eléctrica do evento denominado "G……….", que decorreu nas antigas instalações da H……….., sitas na zona vulgarmente conhecida por ………., no concelho de Matosinhos, tudo nos termos dos orçamentos n° 04102A3 e 04102TM1. O preço desses trabalhos realizados pela assistente ascendeu a € 53.051,51, com IVA incluído, conforme facturas nos 2663A e 2668A, de 17 de Junho e 21 de Junho de 2004. O pagamento desse preço, conforme acordado, deveria ter sido efectuado nas datas das referidas facturas, o que não se verificou. Para pagamento parcial do preço, o arguido emitiu e entregou à assistente um cheque no valor de € 20.000, datado de 18/06/2004, que, apresentado a pagamento, foi devolvido com a indicação de falta de provisão em 18/06/2004 (doc. reproduzido a fls.17). Na sequência da devolução desse cheque, a assistente acordou, em 30/06/2004, a pedido do arguido, que o pagamento do valor integral dos trabalhos efectuados fosse feito em 4 prestações, sendo a primeira no valor de € 12.500, em 30/06/2004, a segunda no valor de € 10.000, em 30/07/2004, outra no valor de € 10.000,00€, em 31/08/2004, e a última no valor de € 20.551,51, em 20/09/2004.Para titular aqueles montantes, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente, quatro cheques, todos eles sacados sobre o “D………., SA”, apondo-lhes no local destinado à data, os dias de pagamento supra mencionados. O primeiro dos referidos cheques destinado ao pagamento daquela primeira prestação, no montante de € 12.500, depois de ter sido devolvido por falta de provisão, foi apresentado novamente a pagamento tendo sido pago pelo banco sacado. O segundo dos referidos cheques destinado ao pagamento da segunda prestação do acordo, no montante de 10.000,00€, datado de 30/07/2004, tendo sido apresentado a pagamento foi devolvido pelo banco sacado, por falta de provisão. A pedido do arguido, para poder justificar a regularização desse cheque devolvido por falta de provisão junto do banco sacado e do Banco de Portugal, a assistente acordou em devolver-lho contra a entrega de um cheque, do mesmo valor, emitido com data de 08/12/2004. Na sequência desse referido acordo o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque reproduzido a fls. 20 dos autos, no montante de € 10.000. O terceiro cheque destinado ao pagamento da 3.ª prestação, datado de 31/08/2004, tendo sido apresentado a pagamento no balcão de Matosinhos do I………., foi devolvido por mandato do banco sacado, por falta de provisão verificada em 2/09/2004. O quarto cheque destinado ao pagamento da 4.ª prestação do supra aludido acordo de pagamento, no valor de € 20.551,51, datado de 20/09/2004, tendo sido apresentado a pagamento no mesmo balcão do I………., foi devolvido por mandato do banco sacado, em 23/09/2004, com a menção de "Chq. Rev. Extravio". O cheque sacado sobre a E………., SA, que foi emitido em substituição do cheque que titulou a segunda prestação do acordo de pagamento de 30 de Junho de 2004, datado de 8/12/2004, tendo sido apresentado a pagamento, em 13/12/2004, também junto do balcão de Matosinhos do I………., foi devolvido, em 14/12/2004, por mandato do banco sacado com a menção de "ch. Rev. Furto". O arguido comunicou, por escrito, ao D………., S.A e à E………., SA, o extravio daqueles dois referidos cheques. O arguido bem sabia que os factos que fez constar daqueles documentos que apresentou junto daqueles bancos eram falsos, pois sabia que a assistente era, como é, a legítima dona e possuidora desses cheques, por lhe terem sido entregues por ele arguido, para o pagamento da referida dívida da sua representada, não se coibindo, apesar disso, de o fazer. O arguido com a sua conduta quis, e conseguiu, impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques pelos bancos sacados, com intenção de, deste modo, alcançar benefício ou evitar inconvenientes para si, ou para a sua representada. O arguido, por outro lado, com essa descrita conduta quis causar, como efectivamente causou, prejuízo patrimonial à assistente, o qual é, pelo menos, de valor igual ao do montante titulado naqueles dois cheques. O arguido, por si e na qualidade de representante da referida sociedade “F………., Lda.” veio apresentar queixa junto do Ministério Público ou de autoridade policial, contra J………., alegado representante da aqui assistente, imputando-lhe o facto de se ter apropriado, contra a vontade dos queixosos, dos cheques datados de 31/08/2004, 20/09/2004 e 8/12/2004 que levou consigo, “aproveitando a confusão de papéis existentes em cima da secretária” apesar de se ter obrigado a devolvê-los à referida sociedade representada pelo aqui arguido. O inquérito …./04..TDPRT, relativo a essa queixa, veio a ser arquivado por despacho do Ministério Público, de 3/03/2005, reproduzido a fls. 92 a 93 dos autos. A “F………., Lda” emitiu a factura n.º ……, datada de 15/04/2005, em nome da Câmara Municipal de Matosinhos para pagamento da “vossa comparticipação obras de beneficiação do recinto da G………. em Matosinhos realizadas no ano de 2004”, no valor de € 90.000 mais € 17.100 de IVA. Não resultou suficientemente indiciado dos autos que o arguido, no momento da emissão daqueles cheques, todos eles pré-datados, já tivesse a intenção e o propósito de obstar ou impedir o seu pagamento, e de ter induzido em erro a ora assistente quanto a uma absoluta garantia do seu pagamento nas datas neles apostas. Também não resulta indiciado que o arguido tenha denunciado o furto dos cheques sem o imputar a uma pessoa determinada. Nesse sentido, segundo as declarações do representante legal da assistente, a fls. 82, “quando efectuaram o trabalho nada lhes dizia ou fazia prever que o arguido, como representante da F………., Lda, não pretendesse honrar o compromisso de pagamento desses serviços. Só vieram a assumir esse facto quando vieram a tomar conhecimento que o mesmo arguido tinha apresentado uma queixa pelo furto dos cheques” (a queixa apresentada contra o colaborador da assistente, J………., a que alude o despacho de arquivamento reproduzido a fls. 92 a 94). A emissão de cheques pré-datados para pagamentos em prestações está normalmente ligada a uma função de garantia, mas também a uma situação económica do devedor que não lhe permite pagar a totalidade no momento da emissão dos cheques. O arguido chegou a pagar € 12.500, quase ¼ do total da dívida, procedimento que normalmente não ocorre nos casos de utilização fraudulenta do cheque quando o devedor tem o propósito de enganar, de induzir em erro a contraparte e de obter com o não pagamento do cheque um enriquecimento ilegítimo à custa do prejuízo do credor, o que no caso dos autos não pode ser afirmado para além de uma dúvida razoável. Por sua vez, o artigo 11.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, exclui a incriminação, do cheque sem provisão, que considera não punível, nos casos em que o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador. E relativamente ao crime de falsificação de documento, cumpre-nos considerar que o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Assento n.º 4/2000, de 19 de Janeiro, fixou jurisprudência no seguinte sentido:“Se, na vigência do Código Penal de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982.” O S.T.J. fundamentou esse Assento nas seguintes e resumidas conclusões: “Depois de, regularmente, ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador, por escrito, solicitou ao banco sacado que o não pagasse porque se lhe tinha extraviado. Por essa razão, quando o tomador/portador lhe apresentou o cheque, para pagamento, dentro do respectivo prazo legal, o sacado recusou pagá-lo, lançando a correspondente declaração, com a menção «extraviado», no verso do título.(...) O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com a qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação. Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos imperfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacador ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado. Já se vê, portanto, que o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador. (...) A carta que o sacador remeteu ao banco sacado é (...) um documento particular. A invocação do extravio, contida em tal documento, consubstancia a descrição ou relato de um facto, na realidade, inexistente. Estamos perante um facto falso, juridicamente relevante, isto é, que faz nascer, modificar ou extinguir uma relação jurídica, ou, mais genericamente, que tem consequências jurídicas?«Artigo 21.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque: Quando uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de um cheque, o detentor a cujas mãos ele foi parar – quer se trate de um cheque ao portador, quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito pela forma indicada no artigo 19.º – não é obrigado a restituí-lo, a não ser que o tenha adquirido de má fé, ou que, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave.»Como flúi deste preceito, o extravio do cheque não é causa de extinção ou modificação dos direitos e obrigações dos que, antes, eram subscritores cambiários, nem, por si, faz nascer qualquer direito ou obrigação para quem quer que seja. Mas, dir-se-á, na medida em que não fica excluída a possibilidade de o título vir a ser adquirido, posteriormente, a non domino, o extravio terá, pelo menos, determinado a extinção do direito de propriedade daquele a quem se extraviou. Não é assim. Tal direito subsiste, apesar e para além do extravio, podendo o desapossado requerer, judicialmente, a sua reforma (artigo 1072.º do Código de Processo Civil) e reivindicá-lo do terceiro em cujas mãos aparecer (cf. Pinto Coelho, apud Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 2.ª ed., Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 99). (...) Na verdade, o direito daquele a quem o cheque se extraviou é sempre o mesmo, quer o actual detentor o tenha adquirido de boa fé ou com má fé ou culpa grave. O que é distinta é a eficácia da tutela que lhe é, legalmente conferida, numa situação e noutra, ou seja, no confronto com a protecção da posse do adquirente de má fé ou com culpa grave ou com a do adquirente de boa fé: no primeiro caso, a lei dá total prevalência ao seu direito; no segundo, porém, privilegia, antes, o do actual detentor. (...) O que interessa reter é que o que impede o desapossado de recuperar o cheque é a inexistência do dever legal de o restituir, por parte do detentor que o adquiriu de boa fé, e não o facto do extravio (que só de forma mediata ou indirecta se relaciona com tal impedimento). No âmbito que temos vindo a considerar, o extravio não se projecta, portanto, como facto juridicamente relevante. Assumirá essa relevância no domínio da revogação do cheque ou da oposição ao pagamento? A resposta, na sequência lógica do anteriormente exposto, é negativa. Com efeito: Por um lado, durante o prazo de apresentação, a irrevogabilidade do cheque é absoluta; portanto, não admite excepções, nem mesmo em casos de verificação de «justa causa», como, v.g., o extravio e o desapossamento ilícito. Por outro, após o prazo de apresentação, é absolutamente eficaz, independentemente de ter ou não ter justificação. O direito à revogação não nasce, assim, por efeito directo do extravio. Se assim é, se o extravio do cheque, em si e só por si, não tem consequência jurídica, então, o relato falso da sua ocorrência não basta para integrar a alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP de 1982. Logo, porque do documento que enviou ao sacado o sacador não fez constar, falsamente, facto juridicamente relevante, não cometeu ele o crime previsto pelos citados preceitos legais.” Esta jurisprudência é igualmente aplicável no domínio do artigo 256.º do Código Penal Revisto e no domínio do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, e apesar de ter tido dois votos de vencido, dos Srs. Conselheiros Hugo Afonso dos Santos Lopes e António Correia de Abranches Martins é considerada vinculativa para os tribunais, enquanto a norma interpretada não for alterada pelo legislador ou a jurisprudência não for modificada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Do exposto se conclui pela inexistência do crime de falsificação de documentos alegado pela assistente.
Por último e relativamente ao crime de simulação de crime, um dos seus pressupostos é o facto de a denúncia ou formulação da suspeita da prática de crime não ser imputada a pessoa determinada. Como resultou apurado na instrução e foi reconhecido pela assistente no debate instrutório, o arguido apresentou queixa pelo furto dos cheques imputando a responsabilidade a um determinado colaborador da assistente, o que é adequado a afastar a aludida incriminação por simulação de crime. A denúncia apresentada pelo arguido poderá configurar uma denúncia caluniosa que já estará a ser objecto de inquérito segundo o referido a fls. 96 dos autos. Pelo exposto, nos termos dos artigos 307.º, n.º 1, e 308.º do Código de Processo Penal, não pronuncio o arguido C………., ordenando o arquivamento dos autos.
Notifique e oportunamente arquive”.

2.2. Matéria de direito

A questão objecto do presente recurso é, em suma, saber se a conduta do arguido, comunicando por escrito aos bancos sacados (D………., SA e E………., SA) o extravio de dois cheques que tinha entregue à assistente, para pagamento de uma dívida da sua representada (“F………., Lda.”), visando assim impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques, integra o crime previsto no art. 256º do C. Penal (falsificação de documentos).
Sobre o eventual enquadramento dos factos indiciados no crime de emissão de cheque sem provisão, a recorrente conforma-se com a decisão, pois os dois cheques em causa foram “pós datados”, o que afasta a incriminação da sua emissão – cfr. art. 11º, n.º 3 do Dec. Lei 454/91, de 28 de Dezembro.
Também não está em causa o comportamento do arguido, traduzido na queixa de que os cheques tinham sido furtados, pois tal matéria é objecto de outro inquérito – cfr. fls. 96 dos autos.
Em causa, repete-se, está apenas a questão acima referida, ou seja, saber se a informação falsa dada aos Bancos sacados de que os cheques foram extraviados, visando desse modo evitar o pagamento, configura ou não o crime de falsificação de documento.

O despacho recorrido apelou ao Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2000, de 19/1, cujo teor é o seguinte:
“Se, na vigência do Código Penal de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal de 1982 - D.R. I-A, n.º 40, de 17-02-2000”.

Devemos afastar liminarmente a aplicação da doutrina do referido Assento, já que o mesmo se reportava expressamente às situações ocorridas antes da entrada em vigor do Dec. Lei 454/91. A situação em causa ocorreu no domínio de vigência do Dec. Lei 454/91, a qual regulamentou a punição da emissão de cheques sem provisão de modo radicalmente diferente.

A mudança do quadro legal exige uma nova ponderação da questão e, por isso, não se pode continuar a aplicar a doutrina do assento.

Sobre idêntica questão, pronunciou-se o acórdão desta Relação, de 12-05-2004, proferido no processo 0411700, nos seguintes termos:
“O recorrente defende estar suficientemente indiciada a prática por parte da arguida de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº 256º, nºs 1, alínea b), e 3, do CP. Esta menção do nº 3 do artº 256º parece significar que o recorrente entende que a falsificação é do próprio cheque. Se assim é, defende agora coisa diferente do que sustentou no requerimento de abertura de instrução, onde escreveu: “(...) o crime de falsificação foi apreciado pela Digna Magistrada do Mº Pº, numa primeira análise, como tendo sido cometido no próprio cheque. Ora, não é esse o correcto enquadramento factual. A arguida cometeu um crime de falsificação porque produziu uma declaração escrita dirigida ao banco em que afirmava que o cheque havia sido extraviado, quando, como resulta demonstrado, foi livre e espontaneamente que a arguida emitiu e entregou o cheque ao assistente. Esta é que á falsificação!”. Mas, não houve falsificação do cheque. O banco recusou o pagamento, indicando como motivo o “extravio” do cheque. Porém, ao lavrar no verso do cheque a declaração de que recusava o pagamento do cheque por “motivo de extravio”, o banco não afirmou ele próprio que o cheque era extraviado, até porque ele não pode saber se houve extravio. Quem sabe se isso aconteceu é o titular da conta. Por isso, aquela declaração exarada no verso do cheque apenas quer dizer que o banco não pagou o cheque porque este havia sido dado como extraviado pela titular da conta. E isso não é falso, antes corresponde à verdade: o cheque havia sido dado como extraviado pelo titular da conta respectiva. É isso que se diz no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/01/2000, publicado no DR I Série-A de 17/2/2000, a propósito de situação idêntica, embora no domínio do CP de 1982: “O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com o qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação. Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos perfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacado ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado. Já se vê, portanto, que o que sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador. Mas, se assim é, se o declarado coincide com o realmente acontecido, então, da declaração do sacado não consta nenhum facto falso e, portanto, pelo facto de este a ter exarado no verso do título, o sacador não cometeu o crime previsto e punido pelo artigo 228º, nºs 1, alínea b), e 2”.O que é falso é o facto comunicado pelo arguido ao banco; não o cheque. E é no relato do facto falso de extravio do cheque na carta enviada pela arguida ao L………. que a falsificação se concretiza. Essa carta é um documento particular e declara um facto que não corresponde à verdade. É, pois, na declaração de extravio do cheque que reside a falsidade.”.

Estamos plenamente de acordo com esta análise.
No presente caso, o arguido fez um relato falso, comunicando por escrito aos bancos sacados o extravio dos cheques entregues à assistente, visando assim evitar o seu pagamento. A carta enviada aos bancos é um documento particular, onde se declarou um facto que se sabe não corresponder à verdade, com intenção de prejudicar o titular do cheque. Estão assim preenchidos os elementos do tipo de ilícito previsto no art. 256º do C. Penal (Falsificação de documento). Por outro lado, a doutrina do assento não é transponível (já vimos acima que não era directamente aplicável), por ter havido uma alteração substancial do respectivo regime legal. O argumento essencial do assento, segundo o qual a menção de extravio era um facto juridicamente irrelevante, hoje não é sustentável. Tal situação modificou-se com o Dec. Lei 454/91, de 28 de Dezembro, uma vez que, como sublinha o acórdão acima citado, “o extravio do cheque comunicado ao banco sacado pelo titular da conta é um facto juridicamente relevante, na medida em que esse facto justifica a recusa de pagamento do cheque por parte do banco, nos termos do artº 8º, nº 3, do DL nº 454/91”.

Finalmente, do mesmo modo julgamos que o argumento da Ex.ª Procuradora-geral Adjunta nesta Relação, segundo o qual a comunicação do extravio faz parte da incriminação do cheque sem provisão, também não é decisivo. Se é verdade que a proibição do pagamento, à instituição sacada, integra o crime de emissão de cheque sem provisão, tal não afasta a verificação do tipo da falsificação. Pode, quando muito, justificar apenas a não punição da falsificação, por estarmos perante um concurso aparente (consumpção). Contudo, se não se verificarem os demais elementos do crime de emissão de cheque sem provisão, fica por punir não só o cheque sem provisão, como a falsificação. Daí que, como se diz no acórdão acima citado, não tem sentido argumentar, como também se faz na decisão recorrida, que, integrando a conduta da arguida um dos elementos do crime de emissão de cheque sem cobertura - “proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque” (artº 11º, nº 1, alínea b), do DL nº 454/91) - haveria violação do princípio ne bis in idem, se houvesse punição pela falsificação, na medida em que no caso não há procedimento pelo crime de emissão de cheque sem provisão, por se ter entendido não estarem presentes todos os seus elementos constitutivos.”.

Nestes termos, verifica-se que a assistente tem toda a razão, pois os autos contêm indícios suficientes da prática de dois crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. b) do C. Penal, decorrente das comunicações de falso extravio dos cheques (acima descritas), feitas pelo arguido ao D………., SA e à E………., SA. Impõe-se, assim, a revogação do despacho recorrido.

3. Decisão

Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, se nada mais obstar, pronuncie o arguido nos termos requeridos.
Sem custas.

Porto, 4 de Outubro de 2006

Élia Costa de Mendonça São Pedro
António Eleutério Brandão Valente de Almeida
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves


Comentário:

Propendemos para considerar que a matéria de facto não é susceptível de integrar o tipo legal em causa.

Com efeito, tal é tanto assim que a este propósito inclusive já foi uniformizada jurisprudência, é certo que visando o anterior regime jurídico do cheque, mas que, face ao actual, não perdeu a sua pertinência e, acrescentamos, obrigatoriedade.

Assim, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Assento n.º 4/2000, de 19 de Janeiro, fixar jurisprudência no sentido de que:
“Se, na vigência do Código Penal de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982”.

O S.T.J. fundamentou-se nos seguintes considerandos:

“Depois de, regularmente, ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador, por escrito, solicitou ao banco sacado que o não pagasse porque se lhe tinha extraviado. Por essa razão, quando o tomador/portador lhe apresentou o cheque, para pagamento, dentro do respectivo prazo legal, o sacado recusou pagá-lo, lançando a correspondente declaração, com a menção «extraviado», no verso do título.(...) O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com a qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação. Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos imperfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacador ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado. Já se vê, portanto, que o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador. (...) A carta que o sacador remeteu ao banco sacado é (...) um documento particular. A invocação do extravio, contida em tal documento, consubstancia a descrição ou relato de um facto, na realidade, inexistente. Estamos perante um facto falso, juridicamente relevante, isto é, que faz nascer, modificar ou extinguir uma relação jurídica, ou, mais genericamente, que tem consequências jurídicas? «Artigo 21.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque: Quando uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de um cheque, o detentor a cujas mãos ele foi parar – quer se trate de um cheque ao portador, quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito pela forma indicada no artigo 19.º – não é obrigado a restituí-lo, a não ser que o tenha adquirido de má fé, ou que, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave.» Como flui deste preceito, o extravio do cheque não é causa de extinção ou modificação dos direitos e obrigações dos que, antes, eram subscritores cambiários, nem, por si, faz nascer qualquer direito ou obrigação para quem quer que seja. Mas, dir-se-á, na medida em que não fica excluída a possibilidade de o título vir a ser adquirido, posteriormente, a non domino, o extravio terá, pelo menos, determinado a extinção do direito de propriedade daquele a quem se extraviou. Não é assim. Tal direito subsiste, apesar e para além do extravio, podendo o desapossado requerer, judicialmente, a sua reforma (artigo 1072.º do Código de Processo Civil) e reivindicá-lo do terceiro em cujas mãos aparecer (cf. Pinto Coelho, apud Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 2.ª ed., Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 99). (...) Na verdade, o direito daquele a quem o cheque se extraviou é sempre o mesmo, quer o actual detentor o tenha adquirido de boa fé ou com má fé ou culpa grave. O que é distinta é a eficácia da tutela que lhe é, legalmente conferida, numa situação e noutra, ou seja, no confronto com a protecção da posse do adquirente de má fé ou com culpa grave ou com a do adquirente de boa fé: no primeiro caso, a lei dá total prevalência ao seu direito; no segundo, porém, privilegia, antes, o do actual detentor. (...) O que interessa reter é que o que impede o desapossado de recuperar o cheque é a inexistência do dever legal de o restituir, por parte do detentor que o adquiriu de boa fé, e não o facto do extravio (que só de forma mediata ou indirecta se relaciona com tal impedimento). No âmbito que temos vindo a considerar, o extravio não se projecta, portanto, como facto juridicamente relevante. Assumirá essa relevância no domínio da revogação do cheque ou da oposição ao pagamento? A resposta, na sequência lógica do anteriormente exposto, é negativa. Com efeito: Por um lado, durante o prazo de apresentação, a irrevogabilidade do cheque é absoluta; portanto, não admite excepções, nem mesmo em casos de verificação de «justa causa», como, v.g., o extravio e o desapossamento ilícito. Por outro, após o prazo de apresentação, é absolutamente eficaz, independentemente de ter ou não ter justificação. O direito à revogação não nasce, assim, por efeito directo do extravio. Se assim é, se o extravio do cheque, em si e só por si, não tem consequência jurídica, então, o relato falso da sua ocorrência não basta para integrar a alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP de 1982. Logo, porque do documento que enviou ao sacado o sacador não fez constar, falsamente, facto juridicamente relevante, não cometeu ele o crime previsto pelos citados preceitos legais”.

Ora, apesar de existir quem sufrague o oposto (cfr. Acs. R.P. de 12.05.2004, processo 0411700, e de 4.10.2006, processo 0614063, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt/), entendemos que esta jurisprudência vinculativa é igualmente aplicável no domínio do artigo 256.º do Código Penal Revisto e no domínio do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12.

Sustenta aquele entendimento que o aludido assento não tem já aplicação devido à substancial alteração do regime do cheque, nomeadamente o constante do “novo” art.º 8º, sendo que o extravio do cheque comunicado ao banco sacado pelo titular da conta é um facto juridicamente relevante, na medida em que esse facto justifica a recusa de pagamento do cheque por parte do banco, nos termos do art.º 8º, n.º3 do DL n.º 459/91.

Ora, dispõe o n.º 3 do art.º 8º do supra-aludido diploma legal que “Para efeitos do previsto no número anterior, constitui, nomeadamente, justificação de recusa de pagamento a existência de sérios indícios de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque”.

A este respeito, escreve Tolda Pinto (Cheques sem provisão – Regime jurídico anotado, Coimbra Edt.ª, 1998), que “As causas consideradas justificadas de recusa de pagamento são enumeradas de forma exemplificativa. No entanto, exige-se da instituição de crédito sacada uma preocupação acrescida no momento da devolução do cheque pois é necessário que existam indícios sérios de que se verificam, no caso concreto, alguma daquelas causas. Assim, a instituição de crédito sacada deve providenciar pela obtenção junto do cliente de prova documental que fundamente a sua decisão em recusar o pagamento do cheque”.

Daqui se pode já antever como controverso que a mera declaração de extravio seja susceptível de, integrando o conceito de sérios indícios, justificar a recusa de pagamento do cheque (veja-se, neste sentido, o recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, proferido no proc. 06A542, de 28.02.2008, disponível in http://www.dgsi.pt/).

A isto acresce o facto de o disposto no art. 8º, n.º 3, supra-aludido respeitar a situações que ficam aquém do tipo legal de crime do art. 11º do mesmo diploma legal, atento o valor aí pressuposto.

Por outro lado, a ter-se tal comunicação como integrante daquele tipo legal estar-se-ia em confronto com jurisprudência assente, segundo a qual “a falsa comunicação, ao banco sacado, do extravio do cheque, feita com o propósito de obstar ao pagamento, integra o crime de emissão de cheque sem provisão da alínea c) do n° 1 do artigo 11° do Decreto-Lei n° 454/91, de 28 de Dezembro, e não o crime de falsificação”, cfr. Ac. R.P. de 30.04.1997, in Bol. do Min. Da Just., 466, 587.

De facto, mal se compreenderia que, só pelo facto do cheque dos autos ter uma função de garantia (na medida em que é pós-datado) gozasse de uma tutela decorrente desta incriminação excluída aos demais (sem referir as condicionantes decorrentes do valor do cheque enquanto condição de punibilidade, dificilmente conjugáveis com um crime de perigo abstracto como é o de falsificação).

A isto a cresce o facto de entre nós ser relativamente pacífico que, quanto ao desvalor da acção de comunicação falsa de extravio em cheques destinados a pagamentos, a mesma integrar o crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11º, n.º 1, al. b), do DL n.º 454/91, no qual se estatui, na redacção actual, que “Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro: (…) b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque ...” ( cfr. entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Sá Nogueira), de 1991.10.23, Boletim do Ministério da Justiça, 410, pág. 382.
O legislador, à semelhança do que veio a fazer também no art. 104º, n.º 3, do R.G.I.T. ( Lei n.º 15/01, de 05.06), quis esgotar a previsão penal de tal conduta no tipo legal de crime em apreço, com exclusão do de falsificação, liberdade de conformação essa que o legislador penal pode e deve ter, desde que almejando um fim justo. A relevância da declaração de extravio, afinal, não é a que lhe é atribuída, como aqui se demonstra, mas antes e apenas a de uma declaração falsa em documento particular sem outro efeito que não o aqui indicado. Não há, desde logo, possibilidade de integração do crime de falsificação, pelo que não estamos perante qualquer situação de concurso aparente de crimes.

A não ser assim, o resultado seria o de os cheques pós-datados voltarem a receber tutela penal, em sede de crime de falsificação, pela via da incriminação, a esse título, das declarações de extravio.

Assim vistas as coisas, tal-qualmente resultam da matéria provada, será que tal declaração incorpora um falso facto, juridicamente relevante, isto é, que faz nascer, modificar ou extinguir uma relação jurídica, ou, mais genericamente, que tem consequências jurídicas?

Ora, cremos que o AUJ ( Acórdão de Uniformização de Jurisprudência ) responde à questão da relevância jurídica dessa declaração com perfeita actualidade na medida em que: “o extravio do cheque não é causa de extinção ou modificação dos direitos e obrigações dos que, antes, eram subscritores cambiários, nem, por si, faz nascer qualquer direito ou obrigação para quem quer que seja.

Mas, dir-se-á, na medida em que não fica excluída a possibilidade de o título vir a ser adquirido, posteriormente, a non domino, o extravio terá, pelo menos, determinado a extinção do direito de propriedade daquele a quem se extraviou. Não é assim. Tal direito subsiste, apesar e para além do extravio, podendo o desapossado requerer, judicialmente, a sua reforma (artigo 1072.o do Código de Processo Civil) e reivindicá-lo do terceiro em cujas mãos aparecer (cf. PintoCoelho, apud Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 2.a ed., Atlântida Editora, Coimbra, 1977,p. 99).
É certo, porém, que a reivindicação não conduzirá, necessariamente, à recuperação do título, já que, se o tiver adquirido de boa fé, o actual detentor não está obrigado a restituí-lo. Mas, mesmo nesse caso, a não recuperação do cheque não é consequência da extinção ou modificação do conteúdo do direito do desapossado que tenha sido efeito directo do extravio.
Na verdade, o direito daquele a quem o cheque se extraviou é sempre o mesmo, quer o actual detentor o tenha adquirido de boa fé ou com má fé ou culpa grave. O que é distinta é a eficácia da tutela que lhe é, legalmente, conferida, numa situação e noutra, ou seja, no confronto com a protecção da posse do adquirente de má fé ou com culpa grave ou com a do adquirente de boa fé: no primeiro caso, a lei dá total prevalência ao seu direito; no segundo, porém, privilegia, antes, o do actual detentor. Porquê? Talvez, também, por se partir do princípio de que o desapossado poderia mais facilmente evitar o extravio do que o adquirente impedir a aquisição a non domino; seguramente, porque, atentas as condições de transmissibilidade do cheque, não se mostra curial fazer depender a protecção do adquirente da verificação de um facto negativo — não ter sido roubado ou não se ter extraviado ao proprietário (neste sentido, Vaz Serra, «Títulos de crédito», Boletim do Ministério da Justiça, n.o 61, p. 130). De qualquer modo, o que interessa reter é que o que impede o desapossado de recuperar o cheque é a inexistência do dever legal de o restituir, por parte do detentor que o adquiriu de boa fé, e não o facto do extravio (que só de forma mediata ou indirecta se relaciona com tal impedimento).

No âmbito que temos vindo a considerar, o extravio não se projecta, portanto, como facto juridicamente relevante.

Assumirá essa relevância no domínio da revogação do cheque ou da oposição ao pagamento?

A resposta, na sequência lógica do anteriormente exposto, é negativa.

Com efeito:
Por um lado, durante o prazo de apresentação, a irrevogabilidade do cheque é absoluta; portanto, não admite excepções, nem mesmo em casos de verificação de «justa causa», como, v. g., o extravio e o desapossamento ilícito.
Por outro, após o prazo de apresentação, é absolutamente eficaz, independentemente de ter ou não ter justificação.
O direito à revogação não nasce, assim, por efeito directo do extravio”.
Pelo exposto, estamos em crer que o AUJ em questão se mantém perfeitamente actual na medida em que sustenta que “…o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador.
Mas, se assim é, se o declarado coincide com o realmente acontecido, então, da declaração do sacado não consta nenhum facto falso e, portanto, pelo facto de este a ter exarado no verso do título, o sacador não cometeu o crime…” de falsificação.