terça-feira, 6 de março de 2012

Vício de “Inexistência” no caso despacho que reenvia o processo sumário para tramitação sob outra forma de processo fora dos pressupostos do artigo 390.º, n.º 1, do Código de Processo Penal

Acórdão da Relação do Porto, de 15-02-2012

Processo: 496/10.2GCVNF.P1

N.º Convencional: JTRP000

Relator: EDUARDA LOBO

N.º do Documento: RP20120215496/10.2GCVNF.P1

Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO

Sumário:

É inexistente o despacho judicial que determina a remessa dos autos ao MP para prosseguimento sob outra forma processual por entender existir notícia nos autos de um outro crime público em concurso com o acusado e cujas diligências de prova não se compadecem com a realização do julgamento em processo sumário.

 

Texto Parcial:

“…Não obstante o Ministério Público ter deduzido acusação em processo sumário submetendo a julgamento o arguido a quem imputava a prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. no art.º 3.º, n.º 1, do DL n.º 2/98, de 3.1, a Sr.ª Juíza a quo “devolveu” os autos ao Ministério Público por entender que nos mesmos se indiciava a prática pelo arguido de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, em concurso real com o crime acusado, e que as diligências de prova necessárias para a investigação do referido ilícito não se compadeciam com a realização do julgamento em processo sumário.
Sobre o reenvio do processo sumário para outra forma de processo, dispunha o art.º 390.º do C.P.P. (na redação aplicável ao caso em apreço, anterior à introduzida pela Lei n.º 26/2010, de 30.08):
«1. O tribunal só remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual quando:
a) Se verificar a inadmissibilidade, no caso, do processo sumário;
b) Não tenham podido, por razões devidamente justificadas, realizar-se, no prazo máximo previsto no art.º 387.º, as diligências de prova necessárias à descoberta da verdade; ou
c) O procedimento se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
2. […]»
Da redação do preceito resulta que, enquanto as situações previstas nas alíneas a) e c) do n.º 1 podem ser detetadas antes da abertura da audiência, a causa de reenvio a que alude a al. b) tem natureza retrospetiva (“não tenham podido … realizar-se”), só podendo ser alegada depois de concluídos os trinta dias contados da data da detenção (atualmente reduzido para 15 dias, por força da alteração do art.º 387.º introduzida pela Lei n.º 26/2010).
Ou seja, o tribunal só poderá ordenar o reenvio com base na al. b) do n.º 1 do art.º 390º do C.P.P. se, aberta a audiência e iniciada a produção de prova, decorrer o prazo máximo previsto no art.º 387.º, sem que se mostre concluída a produção de prova necessária à descoberta da verdade.
Por outro lado, importa sublinhar que a “prova necessária” deve ser entendida por referência ao conjunto de factos imputados ao arguido na acusação pública que, como se disse, delimita e fixa a atividade cognitiva do tribunal, sendo irrelevantes para esse efeito quaisquer outros factos que pudessem ter sido igualmente imputados ao mesmo arguido, mas não o tenham sido.
Não pode, por isso, o juiz que recebe o processo para julgamento em processo sumário, determinar a reenvio dos autos ao Ministério Público para que proceda a averiguação por quaisquer outros factos que não constem da acusação, sob pena de violação do princípio do acusatório.
Como se disse, em face do princípio da acusação, o se e o objeto concreto da atividade processual é ao acusador que cabe fixar, estando a actividade substancial do juiz limitada e condicionada pela acusação – judex ne procedat ex officio – não podendo assim uma questão ser objeto de julgamento sem que tenha sido anteriormente delimitado o respetivo objeto, nem competindo ao juiz determinar ou sindicar a actuação do Ministério Público indicando, designadamente, os factos ilícitos pelos quais deverá este Magistrado promover a ação penal, que constitui matéria da sua competência exclusiva. E, muito menos, rejeitar uma acusação (neste caso, em processo sumário) por não terem sido imputados ao arguido a totalidade dos factos que, em seu entender, se mostrem indiciados. Permitir-se uma atuação deste jaez consistiria, afinal, na atribuição ao juiz do exercício da ação penal.

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Importa, porém, determinar qual a consequência jurídico-processual para a prática do ato em causa.
Sustenta o recorrente que o despacho judicial proferido a fls. 21 enferma da nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, al. a), do C.P.P., pois por via do mesmo foi impulsionado o emprego de outra forma processual quando a lei determina, inelutavelmente, a utilização da forma de processo sumário.
Não nos parece que tenha razão, com o respeito devido.
É sabido que a desconformidade do ato processual praticado com a norma que deveria ter observado determina a sua ilegalidade, variando as respetivas consequências em função dos distintos graus de tutela impostos pelas normas, em cada caso violadas, ou seja, em função da gravidade do vício. Assim, os vícios dos atos processuais variam entre a inexistência jurídica – o vício mais grave –, a nulidade – sanável e insanável – e a mera irregularidade – o vício menos grave.
O art. 118.º, n.º 1, do C.P.P. consagra o princípio da legalidade ou da tipicidade relativamente às nulidades processuais, estabelecendo que só são nulos os atos praticados com violação ou inobservância da lei quando esta expressamente o comine. Nos casos em que a lei do processo não comina a nulidade, estaremos perante uma irregularidade.
As nulidades insanáveis ou absolutas são de conhecimento oficioso e podem ser conhecidas e declaradas em qualquer fase do processo, até ao trânsito da decisão final. Já as nulidades sanáveis ou relativas têm que ser arguidas e dentro de certo prazo sob pena de sanação. Finalmente, as irregularidades têm também que ser arguidas mas em prazos de tal modo curtos que quase torna imediata a sua sanação.
O art.º 120.º do C.P.P. enuncia, para além das cominadas noutras disposições, as nulidades sanáveis ou relativas, contando-se entre elas, o emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra.
Porém, só constitui uma nulidade deste tipo a efetiva utilização (“o emprego”) de uma forma de processo, quando as regras adjetivas aplicáveis determinariam a utilização de uma forma de processo diversa, v. g., utilizou-se o processo comum quando, face à factualidade imputada e à pena concreta requerida pelo Ministério Público, caberia a forma de processo sumaríssimo – art.º 392.º do C.P.P.
E não já nas situações, como a presente, em que o juiz não recebe os autos para julgamento sob a forma sumária e ordena o reenvio para o seu prosseguimento sob outra forma de processo determinando, a final, que o Ministério Público investigue e deduza acusação por outros ilícitos que entende encontrarem-se indiciados, para além do acusado. Ao assim decidir o juiz profere um despacho relativamente ao qual não tem qualquer competência.
A questão em apreço não se situa, em nossa opinião, na mera violação de regras de adequação formal, não se enquadrando, por isso, em nenhuma das nulidades (insanáveis ou sanáveis) previstas na lei. E, muito menos, poderá ser considerada mera irregularidade, sabido que estas constituem a sanção para as invalidades mais leves. Atento o carácter residual que o legislador atribuiu ao ato irregular, não é possível qualificar a situação em causa como mera irregularidade. Caso contrário, a menor irregularidade e a maior anomalia teriam a mesma resposta.
A anomalia verificada na situação em apreço é tão grande, por traduzir, como se disse, uma intolerável intromissão do juiz na atividade da exclusiva competência do Ministério Público, que o ato em causa “não alcança aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e poder ter vida jurídica, sendo inidóneo para a produção de quaisquer efeitos jurídicos”[6].
A consequência jurídica do despacho recorrido ultrapassa, necessariamente, a que subjaz às nulidades mais graves plasmadas nos artºs. 118º e 119º do C.P.P.
Como refere João C. Correia [7] “é impensável no plano teórico e insustentável em termos práticos que situações de maior gravidade fiquem desprotegidas, apenas por terem sido omitidas pelo legislador. O sistema não pode sancionar as imperfeições mais leves e deixar sem qualquer tutela os defeitos mais graves. Incontornáveis razões de justiça impõem que, nestes casos, não obstante a falta de previsão legal, o vício seja diagnosticado, os seus efeitos destruídos e reposta a legalidade processual. O direito não pode ceder, impotente perante questões de mero formalismo”.
O ato judicial em causa, de usurpação de função da competência exclusiva do Ministério Público, não tem o mínimo de requisitos imprescindíveis ao seu reconhecimento jurídico, não tendo existência face ao direito vigente. Como expressivamente se refere no Ac. desta Relação de 21.06.2006[8], em situação com contornos semelhantes ao presente, “esse despacho é destituído de corpus, sendo inexistente” e, consequentemente, insusceptível de produzir efeitos jurídicos[9] [quod nullum est nullum effectum producere debet].
Declarada a inexistência do despacho recorrido, impõe-se o regresso à fase processual anterior à respetiva prolação, ou seja, à acusação proferida pelo Ministério Público a fls. 14, tudo se passando como se todo o processado posterior não tivesse ocorrido, devendo por isso os autos prosseguirem sob a forma sumária, e isto, não obstante já ter decorrido o prazo máximo a que alude o art.º 387.º do C.P.P., por tal constituir decorrência da declaração de inexistência do referido despacho.

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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, declara-se inexistente o despacho de fls. 21, devendo ser proferido outro que designe data para realização do julgamento do arguido em processo sumário, nos termos dos artigos 386.º e ss. do C.P.P.
Sem tributação.

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Porto, 15 de Fevereiro de 2012
(Elaborado e revisto pela 1.ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
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