quarta-feira, 27 de abril de 2011

Acção Inibitória

419/06.3TCFUN.L1.S1

Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: DIREITO DO AMBIENTE
TUTELA DA PERSONALIDADE
ACTIVIDADES RUIDOSAS
ACÇÃO INIBITÓRIA
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
CONDENAÇÃO CONDICIONAL

Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07-04-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITOS REAIS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
DIREITO CONSTITUCIONAL
Doutrina: - Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado, pág. 325.
- Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 2º, págs. 654 e 684.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º, Nº3, 489.º, 506.º, 507.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 335.º, 1346.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 25.º, 26.º, Nº1, 66.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 22/10/98, PROCESSO Nº. 97B1024;
-DE 13/3/97, PROCESSO Nº. 96B557;
-DE 17/1/02, PROCESSO Nº. 01B4140;
-DE 6/7/04, PROCESSO Nº. 04A2405.

Sumário :

1.Em acção, fundada em alegada violação dos direitos de personalidade dos residentes em fracção habitacional, contígua àquela em que é exercida actividade de restauração por determinada sociedade, geradora de ruídos que afectam de forma relevante o direito ao sossego, repouso e tranquilidade dos AA, que peticionam a condenação da R. a abster-se de exercer no local tal actividade, incumbe à R. o ónus de alegar, de modo tempestivo e adequado, a sua disponibilidade para proceder a obras eficazes de isolamento acústico no seu estabelecimento, facultando à parte contrária o contraditório sobre tal matéria de facto – essencial para a dirimição do pleito, já que se traduz na invocação de factualidade parcialmente impeditiva do efeito jurídico pretendido pelos lesados.

2. Não tendo sido alegada tal factualidade pela R. durante o curso do processo e culminando este na prolação de sentença que julgou procedente o pedido de abstenção do exercício da actividade lesiva, não é lícito à Relação, exorbitando a matéria de facto alegada e processualmente adquirida, substituir – na óptica da aplicação dos princípios contidos no art. 335º do CC - tal condenação por uma inibição, meramente temporária e condicional, da actividade em causa, posta na dependência da realização eventual de obras eficazes de insonorização por parte da R., insuficientemente concretizadas e densificadas, e sem que aos AA. fosse facultada oportunidade processual de discutir tal factualidade nova.

3. A lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Responsabilidade civil extra-contratual da Administração pública: competência dos tribunais administrativos

Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Cível, Acórdão de 25 Mar. 2010

Relator: João Moreira do Carmo.

Processo: 281/08

Jurisdição: Cível

Colectânea de Jurisprudência, N.º 221, Tomo II/2010

Ref. 4373/2010

Sumário 1:

Compete à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação da gestão pública ou de uma actuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

Sumário 2:

i) Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente;

ii) Cabe aos tribunais comuns a tutela judicial dos direitos reais privados, sendo da sua competência material julgar acção de reivindicação;

iii) Face à norma prevista no art.º 4º, nº 1, g), do ETAF, o Tribunal Administrativo é o competente em razão da matéria, para julgar o pedido indemnizatório emergente de responsabilidade extracontratual imputada a um Município e a uma Junta de Freguesia;

iv) Se em acção de reivindicação, para a qual é competente o tribunal comum, for aditado pedido cumulativo de indemnização, contra pessoas colectivas de direito público, por responsabilidade extracontratual das mesmas, para o qual é competente o tribunal administrativo, verifica-se cumulação ilegal de pedidos, excepção dilatória conducente à sua absolvição da instância, quanto a tal pedido.

Texto

I - Relatório

1.[J] e mulher, [M], residentes na Sertã, intentaram contra P., S.A., com sede em Lisboa, Município da S, com sede Sertã, e Junta de Freguesia de A, com sede na, Sertã, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária, pedindo sejam os RR condenados a:

A- A reconhecer que os AA são donos e legítimos possuidores de prédio que identificam, e que este prédio inclui a parcela de terreno onde está instalada antena "mini link", pertença da 1ª ré;

B- A retirar do terreno dos AA a antena mini link, restituindo-lhes aquele prédio livre e devoluto;

C- A absterem-se da prática de quaisquer actos perturbadores do exercício do direito de propriedade dos AA;

D- A pagar, solidariamente, aos AA, a título de indemnização pelos danos patrimoniais, decorrentes da ocupação abusiva do seu prédio desde 1.7.2006 até 30.4.2008, a quantia de 3.300 €, acrescida de juros de mora à taxa legal;

E- E ainda desde 30.4.2008 até que lhes seja restituído livre e devoluto o referido prédio, a quantia de 150 € mensais, actualizável anualmente, a liquidar em execução de sentença;

F- A pagar, solidariamente, a título de indemnização por danos morais a quantia de 800 €;

G- Tudo acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal para os juros civis, desde a citação até integral pagamento.

Alegou, em suma, ser a proprietária de determinado prédio, que identifica, a sua ocupação pela ré P,SA, com a instalação e montagem de um antena de telecomunicações, denominada "mini link", autorizada pela ré Junta de Freguesia, que cedeu tal terreno à ré P,SA, no âmbito de um Acordo de Cedência, celebrado entre estas duas entidades, e com o correspondente licenciamento do réu S, sem que os AA tivessem tomado conhecimento prévio ou autorizado tal ocupação, sabendo os RR que o prédio indicado era dos AA.

Com tal actuação violaram o direito de propriedade dos AA, devendo desocupar tal prédio e indemnizá-los pelos danos patrimoniais e morais causados.

A ré P,SA contestou, dizendo ter actuado a coberto do Acordo de Cedência de terreno celebrado com a Junta de Freguesia e licenciado pelo Município.

A Junta de Freguesia não contestou.

O Réu Município, além de impugnar, deduziu a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, alegando que perante os pedidos de condenação do réu no pagamento de indemnização e na abstenção da prática de comportamentos, a decisão sobre os mesmos compete aos Tribunais Administrativos, nos termos do artigo 2º, n.º 2, da Lei 15/2002 de 22.2.

Os AA pronunciaram-se quanto a tal excepção no sentido da sua improcedência, invocando, em resumo, que formulam primeiramente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam, sendo os demais pedidos consequência deste, pelo que, a competência para a apreciação do conflito, por ser atinente ao direito de propriedade sobre imóveis, cabe ao tribunal da situação dos bens. E que a questão jurídica suscitada nos autos não se reconduz a qualquer das situações previstas no referido artigo 2º, n.º 2 da Lei 15/2002.

Foi proferida decisão que julgou procedente tal excepção, e absolveu todos os réus da instância.

2.Os AA interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões que se sintetizam:

a)Face aos pedidos formulados na acção esta não configura a efectivação de responsabilidade extracontratual, mas antes é uma acção de reivindicação;

b)Sendo os tribunais judiciais os competentes para julgar a presente causa, nos termos do art.º 66º, do CPC, e não o contencioso administrativo, já que a violação do direito de propriedade de um particular, seja por um privado seja por entidade pública ou Estado, deve ser sempre defendido junto dos tribunais comuns;

c) E é assim mesmo que subsidiariamente seja peticionada a condenação em indemnização de entes públicos, e portanto se aprecie a responsabilidade extracontratual destes;

d) A decisão proferida violou os arts.º 66º, do CPC, 18º, da LOTJ, 4º, nº1, h), da Lei 13/2002, de 19.2, e 2º, da Lei 15/02 de 22.2, devendo ser revogada e substituída por outra que declare o Tribunal da Sertã o competente materialmente.

Não houve contra-alegações.

II - Factos Provados

Os factos provados são os que resultam do atrás relatado.

III - Do Direito

1.Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts.º 685º-A, e 684º, nº3, do CPC).

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

-Competência material do tribunal.

2.1.À partida cumpre referir que tem constituído entendimento invariável da doutrina e jurisprudência, o de que a competência do tribunal em razão da matéria se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor, atendendo-se ao direito que o autor se arroga e pretende ver judicialmente reconhecido.

"Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente" - Ac. do STJ, de 15.1.04, Proc.03B3846, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido, entre muitos outros, Ac. do STJ, de 9/05/95, CJ, 1995, 2º-68º, da Rel. Porto, de 7.11.00, CJ, T.5, pág.184, e da Rel. Guimarães, de 16.6.04, Proc.961/04.1, in www.dgsi.pt.

Dos artigos 66º do C.P.C. e 18º da L.O.F.T.J. decorre que "São da competência dos Tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional".

Assim, como se afirma na decisão recorrida, a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério da atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum. Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual - cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lisboa, 1994, pág.76 e 77.

No caso concreto, face à causa de pedir invocada pelos autores e aos pedidos por si formulados, nomeadamente os indicados acima sob A e B, em defesa do direito de propriedade que se arrogam, e cuja violação imputam aos réus, é indiscutível estarmos perante uma típica acção de reivindicação, prevista no art.º 1311º, do CC, para a qual é manifestamente competente o tribunal comum.

Na verdade "Cabe aos tribunais comuns a tutela judicial dos direitos reais privados" - Ac. do STJ, de 13.5.04, Proc.04A1213, no mesmo site.

De modo que no caso em apreço, perante a apontada acção de reivindicação, e a imputada violação do direito de propriedade dos AA, por banda de todos os réus, para conhecimento de tal acção é competente materialmente o Tribunal da Sertã.

2.2. Só que a questão não acaba aqui. Na verdade, na presente acção os autores pedem, também, a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização, conforme pedidos acima indicados sob D a G, correspondente a danos por si sofridos, em consequência da instalação de uma antena propriedade da ré "P.T. Comunicações, S.A." no seu prédio, com a permissão e licenciamento da ré Junta de Freguesia de A e do réu S, que alegadamente sabiam que tal prédio não pertence ao domínio público.

Relativamente a tal pedido indemnizatório, por responsabilidade extracontratual, com base no art.º 483º, do CC, comum aliás nas acções de reivindicação, é igualmente patente que o Tribunal judicial da Sertã é da mesma maneira competente materialmente em relação à ré P,SA.

2.3. Em relação aos outros dois réus, Junta de Freguesia e Município é que se podem colocar dúvidas.

Segundo o art. 212º, nº 3, da CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais "o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".

Importa considerar, apenas, o actual ETAF.

O art. 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19.2, e pela Lei nº 107-D/2003, de 31.12, estatui que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

A competência dos tribunais administrativos e fiscais está especificada no art. 4º do ETAF, cujo nº 1 estatui que lhes compete:

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extra-contratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

O art. 4º do ETAF em vigor ampliou o âmbito da jurisdição administrativa, no que respeita à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, de forma a abranger não só os casos em que essa responsabilidade decorre de actos de gestão pública, mas também de actos de gestão privada praticados no exercício da função pública.

Nesse sentido, decidiu-se no Ac. do T. Conflitos, de 26-10-2006, Proc. 018/06, JSTA00063698, mesmo site, que, nos termos do art. 4º, nº 1, g), do actual ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer por actos de gestão pública (como no ETAF de 1984) quer por actos de gestão privada, praticados no exercício da função pública.

Verifica-se, assim, que face ao ETAF, em vigor, o critério tradicionalmente considerado para distribuir a competência entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais que arrancava da distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada passou a ser irrelevante para a determinação da competência material (critério a que se mantiveram agarradas as decisões proferidas nos Acds. da Rel. Évora, 8.3.07, Proc.420/07.3, e Rel. Porto de 18.1.2007, mesmo site, em relação a questão relacionada com a violação do direito de propriedade, para determinar que a competência material era dos tribunais comuns, apesar de haver pedidos indemnizatórios contra pessoas colectivas de direito público, em concreto Município e Junta de Freguesia).

Como se observa no citado acórdão do T. Conflitos de 26.10.06 " Com a consagração deste critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual (que não também da contratual) o legislador pretendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação do tribunal competente pois a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos para este Tribunal de Conflitos."

Tal alargamento da competência é hoje reconhecido maioritariamente pela doutrina, como se respiga do citado aresto.

Assim, Mário Aroso de Almeida, em O Novo Regime Do Processo Nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., revista e actualizada, a págs. 99, salienta que: "a) Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da actuação de órgãos da Administração Pública. É o que claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF, que confere aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público".

E, mais adiante salienta: " Todos os litígios emergentes de actuações da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos", invocando no mesmo sentido, em nota de rodapé (65) João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7ª ed., Lisboa, 2003, pág. 265.

Igualmente em Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Vol, I, pág. 59, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, sustentam que "Segundo a actual redacção desta alínea g) - posta pela Lei nº 107-D/2003 (de 31.XII) com o propósito de esclarecer pela positiva as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de responsabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as "questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual" dessas pessoas."

E mais adiante: "(...) diremos então (respeitando a intenção da lei atrás referida e a vontade expressa na "Exposição de Motivos" da Proposta de Lei que veio dar origem ao ETAF) que, sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada"

Finalmente, Sérvulo Correia, in Direito do Contenciosa Administrativo I, a pág. 714, salienta que "No tocante à responsabilidade civil extracontratual, o ETAF adoptou critérios distintos para determinar o âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas colectivas públicas e aos respectivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, privilegiou um factor de incidência subjectiva.

Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos".

Podemos, ainda, acrescentar os Profs. Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Ed., pág. 36, que escrevem

"Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação da gestão pública ou de uma actuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa".

Mas se dúvidas houvesse sobre o alcance da referida g) do art.º 4º do novo ETAF, bastaria consultar a " Exposição de Motivos" da Proposta de Lei nº93/VIII que aprova o novo ETAF, e que está referenciada no Ac. do STJ, de 13.3.07, in CJ, T.1, pág.124 e segs., que decidiu pela competência dos tribunais administrativos, de que transcrevemos o seguinte passo "...dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns. A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado."

Interpretação, esta, que saiu reforçada com a Proposta de Lei nº102/II (que visou alterar, ligeiramente, a redacção inicial do preceito, para a actual redacção, atrás transcrita) também referenciada no citado acórdão do STJ, e onde se diz que com o único propósito de "esclarecer que o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos se estende à apreciação de todos os litígios respeitantes à questão da responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público.

Todos os litígios, que é como quem diz, mesmo os decorrentes da sua actividade de gestão privada."

No mesmo sentido, privilegiando um factor de incidência subjectiva, vai o Ac. do STJ, de 12.2.2007, Proc. 07B238, in www.dgsi.

Bem como, "Na anterior redacção do ETAF a distribuição de competências entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum fazia-se segundo o princípio geral de que à primeira competia conhecer das relações jurídicas administrativas.

Assim, a primeira regra para discernir a qual das jurisdições competia o processo era a de ver se o litígio respeitava à gestão privada ou à gestão pública da entidade pública envolvida, sendo que na primeira hipótese, aquela em que tal entidade agia como um simples titular de direitos privados igual a qualquer outro, ficava como este sujeita apenas à jurisdição dos tribunais comuns. Estávamos, pois, perante um critério de atribuição de competência de carácter objectivo.

Com as novas regras do ETAF o legislador veio alterar esta disciplina, referindo expressamente a adopção de um novo critério, agora de carácter subjectivo. Ou seja, compete à jurisdição administrativa o julgamento das causas em que o Estado seja parte. E isto independentemente da relação jurídica em litígio ser regulada pelo direito privado ou pelo direito administrativo" - Ac. do STJ, de 27.9.2007, Proc.07B1477, mesmo site.

Considerando, assim, que a presente acção, relativamente ao pedido indemnizatório, tem o seu fundamento na responsabilidade civil extracontratual e que duas das entidades causadoras de danos são pessoas colectivas de direito público, a Junta de Freguesia e o Município, o tribunal materialmente competente para a decidir é o tribunal administrativo.

No caso dos autos não se trata de uma situação de pedidos subsidiários, como os AA afirmam nas suas alegações, já que o pedido subsidiário apenas será tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior - art.º 469º, nº 2, do CPC. Trata-se de um caso de cumulação de pedidos, pois os AA pretendem que todos eles sejam procedentes, embora o pedido indemnizatório, correspondente aos formulados sob D a G, esteja dependente, para o seu conhecimento, do pedido dominante de reivindicação, correspondente aos formulados sob A e B - art.º 470º, nº 1, do CPC.

Ocorre, porém, que para este pedido indemnizatório, quanto aos réus Junta de Freguesia e Município, o tribunal da Sertã não é materialmente competente, pelo que se verificam as circunstâncias que impedem a coligação, previstas no art.º 31º, nº 1, do CPC, relativamente à competência material.

Trata-se, pois, de uma situação de cumulação ilegal de pedidos, excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância, dos indicados dois réus, Junta de Freguesia e Município, relativamente a tal pedido indemnizatório (arts.º 495º e 288º, nº 1, e), do CPC).

2.4.1. Há quem entenda, contudo, que não basta a referida incidência subjectiva, como explanado em 2.3., para determinar a inerente competência material, sendo necessário que se esteja perante uma relação jurídico-administrativa.

Nesta linha vai a seguinte argumentação, que transcrevemos.

"Poderia, assim, e sem mais, concluir-se pela competência da jurisdição administrativa.

Mas deve ponderar-se que o nº 3 do artigo 212 da Constituição da República refere serem competentes os tribunais administrativos e fiscais para acções "que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais." (e, a final, o nº 1 do artigo 1º do ETAF).

Daí que o artigo 4º nº 1 g) da ETAF tenha de ser lido à luz desta norma constitucional, em termos de a responsabilidade delitual dos órgãos da administração só seja conhecida no foro administrativo se a comissão do acto ilícito estiver no âmbito de relações jurídicas administrativas.

Este conceito não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo. Assim será, sob pena do ETAF de 2002 nada ter inovado, frustrando-se a intenção do legislador.

Precisemos então o conceito.

Crê-se que na base estará uma perspectiva jurídico material, tendo de existir uma controvérsia, resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.

É que podem assim existir relações jurídicas materialmente administrativas sem que tenham como titulares órgãos da administração.

Na opinião dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira ("Constituição da República Portuguesa - Anotada", 3ª ed, 815) "Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais) (nº 3 in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:

1- as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração);

2- as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza "privada" ou "jurídico civil". Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal."

O Cons. Fernandes Cadilha (no seu recente "Dicionário de Contencioso Administrativo", 2007, p. 117/118) refere:

"Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, (...)

Em consequência, e ainda com este autor, o artigo 4º nº 1 alínea g) abrange todos os casos de responsabilidade civil extra contratual da Administração "independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada." e ainda, "as acções de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas" (ob. cit. 115).

Aceita-se, sem quaisquer reservas que assim seja, mas só por ter sido propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extra contratual da Administração (quiçá por os tribunais administrativos estarem mais vocacionados, e até tenham maior sensibilidade, para lidar com questões que envolvam aplicação do direito público e com a Administração pública) mas também por querer arredar de vez a velha dicotomia gestão pública - gestão privada, tantas vezes de difícil caracterização e com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflitos doutrinários entre administrativos e civilistas.

Assim sendo, e no caso em apreço, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade aquiliana de uma Autarquia, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como ressalta da matéria articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos." - fim de transcrição, extraída do Ac. do STJ, de 8.5.07, Proc.07A1004, mesmo site.

Parece ser esta, igualmente, a argumentação seguida pelos dois Acórdãos da Rel. Porto, de 14.7.08, indicado site, citados nas alegações dos recorrentes.

Não nos parece ser a melhor interpretação legal, antes nos parece estar contemplada a posição mais lata, exposta em 2.3.

De facto, acompanhando o citado Ac. do STJ, de 13.3.2007, diremos que a menção a relação jurídico-administrativa, feita pelos indicados artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº1, do ETAF, não impede que a lei geral concretize a cláusula constitucional, atribuindo àquela jurisdição casos que verdadeiramente não emergem de relações jurídico-administrativas.

Como refere o Prof. Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, Lições, 7ª Ed., pág.116,

" O âmbito da justiça administrativa não se determina, portanto, simplesmente no plano substancial e no plano funcional, com base na Constituição, dependendo ainda do recorte orgânico-processual que seja dado à jurisdição administrativa. E essa definição realiza-se no plano legal, onde, a par de normas que visam concretizar o conteúdo da cláusula geral estabelecida pela Constituição, são de destacar, por um lado, os preceitos que implicam a diminuição por subtracção do âmbito da jurisdição administrativa, e. em contrapartida outros que produzem a sua ampliação, por atribuição aos tribunais administrativos do julgamento de questões que, em princípio, não lhes caberia substancialmente conhecer...".

É esta, de resto, a orientação que sobre o assunto tem vindo a ser acolhida pelo Tribunal Constitucional, que não vê na cláusula geral do nº 3, do art.º 212º, da CRP, o estabelecimento de uma reserva material absoluta de jurisdição para o conhecimento das relações jurídico-administrativas, admitindo-se a remissão para o legislador comum, que poderá excluir desta jurisdição matéria que a ela pertencia em princípio, bem como nela incluir outra que, regra geral, estariam dela afastadas (cfr. Ac. do T. Constitucional, nº 268/03, de 27.5.2003, in Acórdãos do T. Constitucional, Vol. 56, pág. 325).

2.4.2. Mas, mesmo a acompanhar-se aquele raciocínio, conducente a uma posição mais restrita, sempre se dirá que o tribunal administrativo, não deixaria de ser competente, relativamente ao pedido indemnizatório apresentado pelos AA, quanto ao S, pois, segundo o que invocam, a responsabilização do mesmo alicerça-se no licenciamento da instalação de equipamento de telecomunicações fora das condições previstas na lei, por não ter sido autorizada pelos respectivos proprietários. Ora, esta actividade de licenciamento insere-se no âmbito das actividades de gestão pública de tal pessoa colectiva de direito público, a quem está cometida a correspondente função administrativa. Na verdade, o DL 151-A/2000, de 20 de Julho, que estabelece o regime aplicável ao licenciamento de redes e estações de radiocomunicações e à fiscalização da instalação das referidas estações e da utilização do espectro radioeléctrico prevê no seu artigo 20º que a instalação de estações de radiocomunicações e respectivos acessórios, designadamente antenas, carece do consentimento dos respectivos proprietários e dos actos de autorização previstos na lei, nomeadamente os da competência das autarquias (n.º s 1 e 2), sendo que a autorização municipal inerente a tal instalação e funcionamento encontra-se regulada no DL 11/2003, de 18 de Janeiro.

Tal actuação que os autores alegam ter sido desenvolvida pelo réu S, causadora dos danos por si sofridos, integra-se numa relação jurídica administrativa, regulada pelo direito público, por a concessão da necessária autorização municipal ser um acto de gestão pública, pois está no âmbito das competências que lhe são atribuídas por lei.

O que quer dizer, que mesmo seguindo a exposta perspectiva interpretativa, restritiva, no caso em apreço, a competência para o conhecimento do pedido indemnizatório, relativamente ao mencionado Município, pertenceria sempre ao Tribunal Administrativo.

3. Nos termos do art.º 713º, nº 7, do CPC, elabora-se o sumário respectivo:

i) Para o efeito de determinação do tribunal competente para o julgamento de uma acção deve-se atender ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente;

ii) Cabe aos tribunais comuns a tutela judicial dos direitos reais privados, sendo da sua competência material julgar acção de reivindicação;

iii) Face à norma prevista no art.º 4º, nº 1, g), do ETAF, o Tribunal Administrativo é o competente em razão da matéria, para julgar o pedido indemnizatório emergente de responsabilidade extracontratual imputada a um Município e a uma Junta de Freguesia;

iv) Se em acção de reivindicação, para a qual é competente o tribunal comum, for aditado pedido cumulativo de indemnização, contra pessoas colectivas de direito público, por responsabilidade extracontratual das mesmas, para o qual é competente o tribunal administrativo, verifica-se cumulação ilegal de pedidos, excepção dilatória conducente à sua absolvição da instância, quanto a tal pedido.

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se, parcialmente, procedente o recurso dos AA, revoga-se, parcialmente, a decisão recorrida, e em consequência declara-se competente, em razão da matéria, o Tribunal da Sertã, para conhecer de todos os pedidos formulados pelos AA (supra mencionados sob A a G), relativamente à ré P, e dos pedidos formulados pelos AA, supra mencionados sob A a C, relativamente aos réus S e Junta de Freguesia de A.

Custas pelos AA, na proporção de 1/3.

Coimbra, 25.3.2010

João Moreira do Carmo

Alberto Ruço

Judite Pires

Confiança de menor a terceira pessoa

Para além das situações susceptíveis de darem origem a processo de promoção e de protecção - cf. art. 3º da Lei n.º 147/99, de 01.09, na redacção da Lei n.º 31/03, de 22.08 -, no qual é possível a aplicação das medidas de apoio junto de outro familiar (cf. art. 40º) ou de confiança a pessoa idónea (cf. art. 43º),

passaram a existir as seguintes possibilidades legais de confiança de menor a terceira pessoa:

- a tutela, verificados os pressupostos do art. 1921º do Cód. Civil, designadamente se os pais houverem falecido, estiverem inibidos, estiverem há mais de seis meses impedidos de facto de exercerem as responsabilidades parentais ou se forem incógnitos;

- a limitação ao exercício das responsabilidades parentais, por via de acção tutelar comum do art. 210º da O.T.M. ( cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 01-04-2004, Processo n.º 2476/2004-6, Relator: Pereira Rodrigues; in www.dgsi.pt );

- a inibição do exercício das responsabilidades parentais pela via dos arts. 1913º ou 1915º do Cód. Civil, conjugados com os arts. 194º e segs da O.T.M.;

- a limitação ao exercício das responsabilidades parentais pela via dos arts. 1918º e 1907º do Cód. Civil, conjugados com os arts. 194º e segs. da O.T.M.;

- a confiança a terceira pessoa por acordo prévio, homologado judicialmente, nos termos do art. 1903º do Cód. Civil, na redacção da Lei n.º 61/08, de 31.10, homologação essa que seguirá a forma de acção tutelar comum do art. 210º da O.T.M..;

- a confiança a terceira pessoa no âmbito de acção de regulação ou de alteração do exercício das responsabilidades parentais, na sequência de acordo ou de sentença.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Fixação de alimentos em face da impossibilidade de apuramento da situação económica do devedor

 

Acórdão da Relação de Guimarães, de 15-03-2011

Processo. 4481/09.9TBGMR.G1
Relator:
CANELAS BRÁS

Extracto:

“…ou se faz efectivamente a prova positiva de que nada se tem e de que se faz um esforço por conseguir arranjar ocupação que permita granjear rendimentos para fazer face a tais obrigações alimentares – e, aí, se poderá ainda ponderar uma não fixação da prestação de alimentos – ou se nada se prova, por desconhecimento ou ocultação, aquela prestação não pode deixar de ser fixada, naturalmente dentro da razoabilidade e com a possibilidade de poder vir a ser revista a todo o tempo, mesmo a pedido do obrigado, quando se obtiverem elementos mais seguros sobre a sua situação económica.
E, assim, se conseguem articular melhor os (contraditórios) interesses que aqui se acham em presença, não incentivando fugas ou desobrigando quem tem, numa primeira linha, que assumir os ónus dos filhos que gera: precisamente os seus progenitores.
Numa outra ordem de argumentação, para efeitos verbi gratia do disposto no artigo 2006.º do Código Civil, a levar-se à risca a tese que ficou plasmada na douta sentença recorrida, nunca a menor, credora dos alimentos, poderia exigir do seu pai, em caso de mora, as prestações que estivessem em falta – mesmo que, um dia, ele voltasse rico do Reino Unido, onde reside e trabalha há vários anos –, pela simples, mas decisiva, razão de que, não tendo sido fixadas, nunca haverá quaisquer prestações em falta...”

terça-feira, 5 de abril de 2011

Impugnação da matéria de facto: modo de interposição do recurso.

 

 

Supremo Tribunal de Justiça, Secção Criminal, Acórdão de 1 Jul. 2010, Processo Procº Nº 241/08.2GAMTR.P1.S1

Relator: Santos Carvalho.

Processo: Procº Nº 241/08.2GAMTR.P1.S1

Jurisdição: Criminal

Colectânea de Jurisprudência, N.º 224, Tomo II/2010

Sumário:

Impugnação da matéria de facto: modo de interposição do recurso.

Texto Parcial:

«…Ora analisando a motivação e as conclusões do recurso verifica se que o recorrente indica os pontos de facto provados que alega incorrectamente julgados (por isso não deviam ser provados), e indica os meios de prova usados, avalia os e indica que não podiam levar á convicção a que o tribunal chegou e indica os como impondo decisão diversa, e fazendo referência aos ficheiros das gravações dos depoimentos testemunhais indicados remete para a totalidade desse depoimentos, não satisfazendo a exigência dos n.ºs 3 e 4 citados não indicando as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa, uma vez que o que a lei pretende que o recorrente indique o facto incorrectamente julgado, indique que a prova X..., (que identifica com o inicio e fim da parte do depoimento no caso de a prova ser testemunhal) impunha decisão diversa e porquê, e diga qual era essa decisão, e indique concretamente as passagens gravadas do depoimento que impõem essa alteração (n.º 4), a fim de o tribunal de recurso proceder á audição dessas passagens (n.º 6).

Ora o arguido recorrente não satisfaz as indicações exigidas pela lei que são essenciais, pois "... à Relação não cumpre proceder a um novo julgamento em matéria de facto, apreciando a globalidade das "provas" produzidas em audiência, antes lhe competindo, atenta a forma como se encontra estruturado o recurso... (cfr. Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, 2002, pág. 37), emitir juízos de censura crítica ", face á forma de impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto (passível de modificação se, havendo documentação, a prova tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412°, n.º 3, a) e b), art. 431° b) CPP aí se impondo a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (a expressão "concreta" é nova sendo introduzida pela nova Lei que alterou o CNI, e traduz o que já era Jurisprudência e Doutrina assente).

E como se refere no Ac. TC 140/04 cit. "a indicação exigida pela alínea b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do artigo 412° do Código de Processo Penal... é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo se, pois, referências específicas,... ", ora concretas o que está de acordo com o facto de "... o recurso não é tudo, é um remédio para os erros, não é novo julgamento" (G. Marques da Silva, Conferência parlamentar sobre a revisão do C.P.P., A.R., Cód. Proc. Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65), e constituindo apenas um remédio para os vícios, o tribunal ad quem verifica apenas da legalidade da decisão recorrida tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão e daí a importância da indicação da lei, porque o recurso em matéria de facto, destina se apenas á apreciação de pontos concretos e determinados.

Só assim pode ser entendido o especial dever de motivação e das conclusões que apenas se satisfaz com a especificação, ponto por ponto, do que foi mal decidido, como das provas concretas que " impõem decisão diversa" por referência à concreta passagem do depoimento gravada.

Assim está a Relação impossibilitada de apreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto (cfr. Ac. R. G. 25/6/07 in www.dgs.pt, Ac. STJ de 5/6/08 in www.dgsi.itij/pt proc. nº 08P1884, AC.TC. n.º 140/2004, de 10 de Março, proc. nº 565/2003, DR, II série, de 17 de Abril de 2004, Ac. do STJ de 15 7 2004, proc. nº 2360/04 5a, in Ac. Guimarães citado) e tal não é desconforme á Constituição como decidiu o TC, em relação ao art. 412°3 CPP no Ac. nº 140/04 de 10/3, DR IP Série, de 17/4/04, em relação aos nºs 3 e 4 do art. 412° CPP, ac. nº 259/02, in http//tribunalconstitucional.pt, e, no ac. 488/04 porque está em causa algo "imprescindível... para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto... O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo se, pois, referências especificas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão preferida em matéria de facto" sendo que, " no caso das exigências constantes do artigo 412° nºs 3, alínea b) e 4 do Código de Processo Penal, cujo cumprimento incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada", sendo que a indicação que o recorrente faz das provas testemunhais em que se baseia, não satisfaz a exigência de especificação (ou indicação exacta e ora passagem concreta) do art. 412° 4, CPC (a parte do depoimento que impõe decisão diversa).

Nesse sentido o Ac. R. Porto de 7/2/07 Proc. 2897/06 4 do seguinte teor:

"Esta exigência legal não se basta com a mera indicação de que os depoimentos chamados à colação se encontram gravados; ou que se encontram gravados na cassete nº tal; ou gravados no lado A ou B da cassete nº tal; ou ainda, por forma mais sofisticada mas igualmente inútil, que o depoimento da testemunha T.. se encontra gravado na cassete nº tal, lado A ou B, de voltas x a voltas y. Disso toma conhecimento o tribunal de recurso através de mera consulta da acta, de onde necessariamente constam tais informações, pelo que não faria sentido impor ao recorrente que desse nota desses elementos.

O que se exige é que o recorrente, sustentando que um determinado ponto de facto foi incorrectamente julgado, o indique expressamente, mencionando aprova que confirma a sua posição; e tratando se de depoimento gravado, que indique também, por referência ao correspondente suporte técnico, os segmentos relevantes da gravação. " Interpretação esta que está em conformidade com o expendido no Ac. T.C. 488/04.

A existência da gravação não substituiu a exigência legal imposta ao recorrente, pelo que aderimos á decisão desta Relação, no Ac. de 7/2/07 Proc 2897/05.4, pelo que nessa parte (art. 403°CPP) deve o recurso ser rejeitado art. 420° CPP e dele não se conhecer, em razão do que não pode a matéria de facto ser alterada pela Relação com base na prova testemunhal indicada e se considera definitivamente fixada (art. 431°b) CPP), salvo se ocorrer outro motivo para a sua modificação, como os que se analisarão a seguir.

O Tribunal da Relação, perante as falhas que apontou ao recurso quanto à impugnação da matéria de facto por confronto com as provas produzidas na audiência e documentadas em acta, falhas essas que revelariam um alegado mau cumprimento do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP, deveria ter mandado aperfeiçoar as conclusões do recurso antes de se pronunciar, como tem sido jurisprudência constante deste STJ e do Tribunal Constitucional, para permitir um segundo grau de recurso em matéria de facto.

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs de 26-9-01, proc. n.º 2263/01, de 18-10-01, proc. n.º 2374/01, de 10-4-02, proc. n.º 153/00, de 5-6-02, proc. n.º 1255/02, de 7-10-04, proc. n.º 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.º 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.º 2951/05-5).

Assim decidiu que "(5) se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do n.º 3 e especialmente do n.º 4 do art. 412.º do CPP, a Relação não pode sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de o conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431.º do CPP. (6) Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente dos ónus estabelecidos nos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1.ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, não fazendo apelo, repare-se, ao n.º 4 daquele artigo, o que no caso teria sido infringido. (7) - Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do n.º 3 do art. 412.º é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431.º, al. b), cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante. (8) Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos que questiona, a solução não é "a improcedência", por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões. (Acs de 7-11-02, proc. n.º 3158/02-5 e de 15-5-03, proc. n.º 985/03-5)".

E que, face à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma do art. 412.º, n.º 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas als. a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. n.º 320/2002 do T. Constitucional, DR-IA, 07.10.2002), não pode manter-se a decisão da Relação que decidiu não tomar conhecimento dos recursos no que se refere à decisão de facto, por não terem os recorrentes dado cumprimento ao imposto nos n.º 3 e 4 daquele art. 412.º.

Em tal caso a Relação deve tomar posição sobre a suficiência ou insuficiência das conclusões das motivações e ordenar, se for caso disso, a notificação do recorrente para corrigir/completar as conclusões das motivações de recurso, conhecendo, depois, desses recursos. (Acs. de 12-12-2002, proc. n.º 4987/02-5, de 7-10-04, proc. n.º 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.º 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.º 2951/05-5).

Só não será assim se o recorrente não tiver respeitado, de todo, as especificações a que se reporta a norma legal em causa, pois o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação (cfr. os Acs. do STJ de 11-1-01, proc. n.º 3408/00-5, de 8-11-01, proc. n.º 2453/01-5, de 4-12-03, proc. n.º 3253/03-5 e de 15-12-05, proc. n.º 2951/05-5).

Mas, se o recorrente, como é o caso dos autos, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, com a indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou (v.g., falta de vestígios de sangue na roupa, hora em que ocorreu o homicídio e permanência do arguido no local de trabalho entre determinadas horas), só lhe faltando indicar "as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa", não se pode dizer que há uma total falta de especificações, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar. Tanto mais que, se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considere relevantes para a descoberta da verdade (art.º 412.º, n.º 6, do CPP), sob pena do recorrente "escolher" a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material.

A Relação, ao proceder da forma como transcrevemos, não conheceu da impugnação da matéria de facto, já que a rejeitou por razões meramente formais e não deu oportunidade ao recorrente de corrigir os pequenos desvios em que, alegadamente, incorreu.

Portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.ºs 379.º, n.º 1, al. c) e 425.º, n.º 4, do CPP.

Esse vício é sanável no tribunal recorrido, devendo o mesmo, antes de mais, conceder um prazo ao recorrente para o aperfeiçoamento.

Só depois de fixada a matéria de facto é que o tribunal da Relação terá nova oportunidade de abordar as restantes questões suscitadas pelo recorrente.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em anular o acórdão recorrido e em mandá-lo repetir, com sanação do apontado vício e após a referida notificação ao recorrente.

Não há lugar a tributação.

Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 1 de Julho de 2010

Os Juízes Conselheiros

Santos Carvalho

Arménio Sottomayor»

Fundo de Garantia de Alimentos

 

 

ACÓRDÃO N.º 87/2011

Processo n.º 844/10

2.ª Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Em processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, por sentença proferida em 25 de Novembro 2008, A. foi condenado a pagar mensalmente, a título de alimentos, a quantia de € 130, actualizável anualmente em 3% ou de acordo com a taxa de inflação se superior, a partir de 2010, a cada um dos seus filhos menores, B. e C..

Posteriormente, D., mãe daqueles menores, veio requerer em Fevereiro de 2010 que as pensões de alimentos acima referidas fossem suportadas pelo F.G.A.D.M (Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social) por se encontrarem verificados os requisitos exigidos pelo artigo 3.º, Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que veio regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro.

Após instrução do pedido e emissão de parecer favorável do Ministério Público, foi proferida sentença que condenou o F.G.A.D.M. a pagar mensalmente a D. as pensões de alimentos, relativas aos filhos B. e C., no montante mensal de €136,50, por cada um, desde Fevereiro de 2010, após recusar a aplicação do disposto no artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-lei n.º 164/99, de 13 de Maio, com fundamento na sua inconstitucionalidade.

O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, na parte em que recusou a aplicação do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, nos termos conjugados dos artigos 202º, nº 1 e 2, 203º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, por inconstitucionalidade material (por violação do disposto nos artigos 1º, 7º, nº 5 e 6, 13º, 63º, nº 3, 67º, nº 2, alíneas c) e g), 69º e 81º alíneas a) e b) da Constituição da República Portuguesa), nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 3, 75.º-A, n.º 1, 78.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.

Apresentou alegações em que concluiu que devia ser “julgada inconstitucional, por violação dos arts. 69º nº 1 e 63º, nºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, a norma do art. 4º, nº 5 do Decreto-Lei 164/99, de 13 de Maio, quando interpretada no sentido literal de que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente do incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo, porém, quaisquer prestações anteriores”.

Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Na sentença recorrida declarou recusar-se a aplicação do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Dispõe este preceito:

“O Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal”.

O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, pedindo a fiscalização da constitucionalidade do n.º 5, do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio.

Nas alegações de recurso, restringiu o objecto do pedido de fiscalização a uma determinada interpretação deste dispositivo.

Da leitura da fundamentação da decisão recorrida constata-se que esta interpretou o transcrito preceito com o sentido de que a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.

E foi este critério normativo, extraído da interpretação do referido artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que a decisão recorrida considerou que violava a Constituição, como caminho necessário para, no caso concreto, poder determinar o pagamento pelo FGADM das pensões de alimentos devidas a dois menores desde Fevereiro de 2010 (data do pedido).

Assim sendo, constata-se que a norma recusada foi precisamente essa leitura normativa do n.º 5, do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, pelo que deve ser ela a integrar o objecto do presente recurso de constitucionalidade

2. Do mérito do recurso

O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que agora vem colocada à sua consideração.

Com efeito no acórdão n.º 54/2011 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) decidiu-se julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 69.º, n.º 1, e 63.º, n.º 1 e 3, da Constituição, a norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação de que a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.

A jurisprudência fixada neste acórdão é inteiramente transponível para o presente caso, pelo que, remetendo-se para a respectiva fundamentação, mantém-se a posição de considerar inconstitucional a referida interpretação normativa.

Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 69.º, n.º 1, e 63.º, n.º 1 e 3, da Constituição, a norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação de que a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.

b) E, em consequência, julgar improcedente o recurso.

Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido quanto ao conhecimento, nos termos da declaração exarada no Acórdão n.º 54/2011) – Catarina Sarmento e Castro (Por ser inteiramente transponível, remeto para a minha declaração de voto no Acórdão n.º 54/2011) – Rui Manuel Moura Ramos.

FUNDO DE GARANTIA

Fundo de Garantia

Tribunal Constitucional
Acórdão 54/2011, de 1 Fev. 2011, Processo 707/10
Relator:João Eduardo Cura Mariano Esteves

Sumário:
As prestações alimentares atribuídas aos menores devem cobrir todo o período em que se verifica o incumprimento por parte dos pais do dever de proverem à subsistência dos seus filhos, desde que exista um mecanismo que permita acorrer, num curto espaço de tempo, aos casos de necessidade urgente. O Tribunal julga inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 69.º, n.º 1, e 63.º, n.º 1 e 3, da Constituição, a norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação de que a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.

Em sentido equivalente:
TC, 3ª Secção, Ac. de 8 de Junho de 2005
TC, Ac. de 19 de Dezembro de 2002

Em sentido contrário:
STJ, Secção Cível, Ac. de 7 de Julho de 2009

sexta-feira, 1 de abril de 2011

FRAUDE FISCAL/ CRIME QUALIFICADO/ VALOR/ CONDIÇÕES DE PUNIBILIDADE

 

Acórdão da Relação do Porto, de 23-03-2011

Processo: 70/05.5IDAVR.P1

Nº Convencional:
JTRP000

Relator:
ÉLIA SÃO PEDRO

Nº do Documento:
RP2011032370/05.5IDAVR.P1

Indicações Eventuais:
1ª SECÇÃO


Sumário:

Por razões literais, sistemáticas e teleológicas, o limite de € 15.000 do nº 2 do artigo 103º do RGIT é aplicável à fraude fiscal qualificada prevista no artigo 104º do mesmo RGIT.

 

TEXTO PARCIAL:

“…(ii) Mérito do recurso
A questão a decidir no presente recurso é a de saber se a norma do art. 104º, n.º 2 do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, (considerando que os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000,00) é aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104º, n.º 1, als. a) e e) e n.º 2 do mesmo RGIT.
Os termos da questão estão claramente colocados na decisão recorrida:
“(…) Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se o já enunciado nº 2 do art. 103° do RGIT que estabelece a não punibilidade das condutas fraudulentas quando a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €15.000 vale nos casos em que a fraude é qualificada (entendimento que parece ser o perfilhado pelos arguidos).”
Na análise da questão, a decisão recorrida ponderou o seguinte:
“A este propósito, a doutrina tem-se pronunciado no sentido da validade, no âmbito do art. 104°, daquele limite (assim Cfr. Susana Aires de Sousa, in Ob. Cit., pag. 118 e Isabel Marques da Silva in Regime das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º 5, Almedina, pag. 156), entendendo que a exigência de valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima decorre da própria definição do crime como «fraude qualificada», isto é, como mera qualificação do crime fiscal base de fraude. A fraude qualificada só assume dignidade penal quando a vantagem patrimonial ilegítima conseguida pelo agente em detrimento do património do Estado for igualou superior àquele montante.
Já em sentido contrário pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/05/2009, proferido no processo nº. 352/02.8IDBRG. Ali, como argumento avança-se que a realidade prevista na punição da fraude qualificada por ser mais gravosa do que a que vem enunciada no tipo fundamental da fraude simples é dela dissociável e concluindo, deste modo, por excluída a exigência da obtenção com a fraude um valor mínimo de beneficio patrimonial ilegítimo.
Pensada a questão e sopesados os argumentos avançados pela doutrina e pela Jurisprudência conhecida (mormente o citado Acórdão), considera o Tribunal que foi efectivamente intenção do legislador manter na punição da fraude qualificada a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima, conclusão que decorre da própria qualificação do crime fiscal base de fraude e que, assim, exige a verificação de todos os elementos essenciais deste e ainda circunstâncias especiais que têm por efeito a agravação da penalidade aplicável. Deste modo, para que exista crime de fraude qualificada devem mostrar-se preenchidos, primeiramente, todos os elementos do crime de "fraude simples" tipificado no art. 103° do RGIT, incluindo a obtenção de vantagem patrimonial ilegítima de valor pelo menos igual a € 15.000.”
Que dizer?
Quando os factos foram cometidos, o art. 103º do RGIT (texto inicial da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho) tinha seguinte redacção:
“Artigo 103.º (Fraude)
1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 7500.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.
A Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, procedeu a várias alterações do RGIT, nomeadamente ao citado art. 103º, cuja redacção passou a ser a seguinte:
“Artigo 103.º (Fraude)
1 - (…)
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.
3 - (…)”
O artigo 104º manteve-se inalterado, com a seguinte redacção:
“Artigo 104.º (Fraude qualificada)
1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.
2 - A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.
3 - Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.”
Como se refere na sentença recorrida, a questão controvertida é a de saber se a alteração do art. 103º, n.º 2 do RGIT, descriminalizando as condutas cuja vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a 15.000 €, se aplica (também) aos crimes de fraude qualificada ou apenas aos crimes de fraude simples.
O acórdão citado pelo Ministério Público neste recurso, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 18-05-2009, no processo n.º 352/02.8IDBRG.G1, entendeu que “o limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, não é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT, nomeadamente quando o agente utiliza facturas ou documentos equivalentes na execução do crime”
Trata-se, contudo, de uma posição isolada, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
ISABEL MARQUES DA SILVA, reconhecendo que a questão é controversa, considera que “embora o art. 104º seja “estranhamente mudo” sobre este aspecto”, o regime previsto no n.º 2 do art. 103º do RGIT (fraude fiscal simples) “deve valer também para a fraude qualificada a exigência do valor mínimo de vantagem patrimonial ilegítima, sendo essa exigência decorrente da própria definição do crime fiscal base da fraude, exigindo para a verificação de todos os elementos deste e ainda de circunstâncias especiais, que têm por efeito a agravação da penalidade” – RGIT, Cadernos IDEF, 5, 2ª Edição, pág. 164.
SUSANA AIRES DE SOUSA, em Os crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2009, pág.118, citando em seu apoio (ainda) GERMANO MARQUES DA SILVA, em Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias, Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo II, 2001, pág. 64, é da mesma opinião: «Uma outra questão importante é a de saber se o n.º 2 do artigo 103.º que estabelece a não punibilidade das condutas fraudulentas quando a vantagem ilegítima for inferior a € 7500 vale nos casos em que a fraude é qualificada. A nosso ver a resposta só pode ser no sentido da validade, no âmbito do artigo 104.º daquele limite. A fraude qualificada só assume dignidade penal quando a vantagem patrimonial ilegítima, conseguida pelo agente em detrimento do património do Estado, for igual ou superior àquele montante».
NUNO POMBO, em Fraude Fiscal, Almedina, 2007, pág. 215, defende igual opinião: «Refira-se por último que o legislador, pela técnica usada no desenho da norma incriminadora, veio permitir que se instalasse a dúvida quando a saber se a efectiva punição, tal como se estabelece para o crime de fraude simples, pressupõe a pretensão de ser auferida vantagem patrimonial igual ou superior a 15.000 €. Com efeito, o artigo 104.º sobre este aspecto, é estranhamente mudo. Parece-nos todavia, que a melhor solução, em homenagem mais ao espírito do instituto do que aos elementos literais disponíveis, será a que advoga dever ser tomado em conta o limite de que depende a respectiva punição. A qualificação opera-se pela recepção de circunstâncias modificativas agravantes e deve traduzir-se não no alargamento das situações puníveis mas, como acontece, num endurecimento das respectivas penas».
SIMAS SANTOS e JORGE DE SOUSA, em Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª Edição, 2008, pág. 737, anotação 3 ao art. 104º, consideram também aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada o valor “referência” da vantagem patrimonial ilegítima, quando referem: “A falsificação ou viciação, ocultação, destruição, inutilização ou recusa de entrega, exibição ou apresentação de livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária, pelo agente, bem como o uso por este daqueles elementos, sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro, por parte das entidades empregadoras, dos trabalhadores independentes e dos beneficiários que visem a liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias de valor igual ou superior a € 7500, não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber, caso em que será a aplicável [als. d) e e) do n.º 1 e 3]”. Este entendimento supõe que as condutas a que alude o art. 104º, 1, als d) e e) causem diminuição de receitas fiscais de valor superior ao do liminar da “punibilidade” previsto no artigo anterior.
Por seu turno, o acórdão da Relação de Coimbra, de 19-01-2011, proferido no processo n.º 1036/06.3TAAVR.C1, entendeu que “o limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT”.
Também o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão recente, de 16/03/2011, proferido no recurso n.º 65/05.9IDAVR.P1, entendeu que “o crime de fraude fiscal apenas será qualificado se, para além da ocorrência de, pelo menos, duas das suas circunstâncias agravativas, as mesmas forem aptas a causar um prejuízo ou a diminuição de vantagens tributárias no valor de, pelo menos, €15.000”
A nosso ver, é este o melhor entendimento, por diversas razões: literais, sistemáticas (lógicas) e teleológicas.
Em primeiro lugar, existem alguns aspectos literais a impor tal leitura, como seja a referência, no art. 104º, aos “factos previstos no artigo anterior”. Um dos factos previstos no artigo anterior é precisamente o previsto no n.º 2, segundo o qual não há punibilidade quando o montante da vantagem patrimonial ilegítima for “inferior a 15.000 €”. Se tivesse havido intenção de punir a fraude qualificada, independentemente do valor da vantagem ilegítima, a remissão deveria ter excluído o n.º 2.
Outro aspecto literal decorre da expressão usada no n.º 2 do art. 104º: “fraude”. Na verdade, o n.º 2 do art. 104º começa por dizer que “a mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante (…)”. Ao falar em fraude, está certamente a referir-se a uma fraude punível, ou seja, que tenha causado uma diminuição de receitas de valor superior a 15.000 €, já que abaixo desse valor o comportamento é punível e qualificado apenas como contra-ordenação e não como “fraude” fiscal (art. 118º do RGIT).
Para além desta referência aos factos previstos no art. 103º, sem excluir o n.º 2 e utilizando a expressão “fraude”, há elementos sistemáticos relevantes. A técnica legislativa de agravar a moldura penal dos crimes, através de circunstâncias qualificativas, traduz sempre uma remissão para o crime simples (género), destacando um especial modo de realização (espécie). O crime qualificado é assim, por definição, aquele que contém todos os elementos do crime simples, com a particularidade de ser cometido em determinadas circunstâncias.
Finalmente, a circunstância qualificativa a que se refere o n.º 2 do art. 104º decorre do facto de o crime de fraude simples ser cometido através da “utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes”. Esta incriminação especial resultou da utilização em larga escala de “facturas falsas” (ISABEL MARQUES DA SILVA, ob. cit. pág. 164, “… processos que invadiram os tribunais portugueses…”) e, portanto, de se ter querido combater uma forma especialmente em voga de cometer o crime de fraude fiscal. Não se vê qualquer razão especial para que o crime de fraude fiscal cometido através de facturas falsas ou documentos equivalentes deva ser punido, mesmo que a vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a € 15.000. Toda a criminalidade fiscal visa combater a fuga ao pagamento de obrigações tributárias e, por isso, o bem jurídico comum é a obtenção das receitas fiscais devidas, elevado à categoria de bem jurídico penalmente relevante, por se tratar de um bem comum da maior importância para o ordenamento da sociedade. O direito tributário tem mecanismos próprios para executar as dívidas fiscais e não tem sentido, nos dias de hoje, criminalizar o incumprimento das obrigações pecuniárias. Por isso, o legislador recorre ao direito penal para punir as obrigações acessórias, através das quais se podem ocultar ou alterar as futuras obrigações pecuniárias. É certo que pune a violação de obrigações acessórias, mas a razão de ser da punição dessas obrigações é sempre evitar a frustração do recebimento das receitas tributárias. Daí que o valor do prejuízo fiscal tenha, no direito penal tributário, tão grande relevância, sendo em função desse valor que, afinal, se demarca o crime da contra-ordenação (cfr. art. 118º do RGIT). A existência de um determinado valor do prejuízo fiscal (vantagem patrimonial ilegítima), a demarcar o crime da contra-ordenação, significa que o legislador entende que os prejuízos mais pequenos não devem ser criminalizados, qualquer que seja a obrigação acessória que tenha sido frustrada e qualquer que seja o meio utilizado para tal. Atenta a finalidade da punição (visando sempre o cumprimento de obrigações pecuniárias), não faria sentido que o prejuízo fiscal fosse irrelevante para criminalizar a conduta, mas já fosse bastante para recortar o tipo de crime qualificado pelo meio utilizado. Se fosse essa a intenção do legislador, teria criminalizado com total autonomia a conduta em causa, o que não fez neste caso. Ou seja, as razões que levaram o legislador a estabelecer, no n.º 2 do art. 103º, um limiar da punibilidade como crime, tanto se verificam quando o crime seja cometido através da utilização de facturas falsas, como quando seja cometido através da celebração de um negócio jurídico simulado, pois está sempre em causa evitar comportamentos que visem obter vantagens patrimoniais fiscalmente ilícitas.
É certo que se o meio utilizado for crime autonomamente punível – falsificação ou burla, por exemplo – nada obstará à sua punição, desde que o prejuízo causado seja inferior a 15.000 €.
Tal decorre, sem dúvida, do disposto no n.º 3 do art. 104º do RGIT, quando refere que não haverá punição autónoma, excepto se as condutas que integrarem o crime de fraude fiscal forem punidas mais gravemente (“os factos previstos nas alíneas d) e e) … não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber”). Por isso, se a conduta do arguido não for punível, por força do disposto no art. 103º, 2 do RGIT, nada obsta a que a mesma seja punível se couber noutro tipo de ilícito, v.g. o crime de falsificação de documentos.
Do exposto resulta que a decisão recorrida está apenas parcialmente correcta.
Está correcta, quando julgou extinto o procedimento criminal relativamente ao crime de fraude fiscal qualificada, imputado aos arguidos. Mas não está completamente certa, pois tornava-se necessário tomar posição sobre a qualificação jurídica dos factos da acusação (contra-ordenação p. e p. pelo art. 118º do RGIT, ou outro tipo de ilícito), tendo em vista o disposto no art. 358º ou 359º do CPP, após ter chegado à conclusão de que os factos imputados na acusação (e que integravam o crime de fraude fiscal qualificada na data da sua prática) deixaram de ser crime, face à alteração do art. 103º, n.º 2, introduzida pela Lei nº. 60-A/2005, de 30 de Dezembro.
Nestes termos, impõe-se conceder parcial provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida quanto à não verificação do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104°, n.º 1, alíneas a) e e) e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, revogando-a todavia na parte em que julgou desde logo extinto todo o procedimento criminal, sem tomar posição sobre diversa qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder parcial provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida quanto à não verificação do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104°, n.º 1, alíneas a) e e) e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, revogando todavia a mesma na parte em que julgou desde logo extinto todo o procedimento criminal contra os arguidos, sem ter apreciado a subsistência de tal procedimento, relativamente aos factos constantes da acusação, com outra qualificação jurídica.
Sem custas.
Porto, 23/03/2011
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando”