quarta-feira, 13 de junho de 2007

Artigo 28º, n.º 1, do Código Penal

O art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal refere o seguinte: "Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora ".

Não existindo comparticipação não há que aplicar o art. 28º do Cód. Penal.

Imaginemos dois indivíduos a actuarem concertados, isto é e por exemplo, sabendo os dois da cominação de desobediência que havia sido feita a um deles, mesmo assim resolviam dar um passeio num veículo apreendido.

Quanto a este caso importaria saber se o crime de desobediência é ou não um crime de mão própria, ou seja, que exige a execução corporal do próprio agente.

Resposta: não é .

Não sendo, será mesmo assim de concluir que o legislador penal quis excluir a aplicação do art. 28º do Cód. Penal no que respeita ao crime de desobediência ? Penso que não.

No entanto, penso ser de muito difícil prova o conhecimento da cominação por parte do outro arguido, embora não impossível.

Face a tal dificuldade probatória, admito que se possa construir uma tese que sustente que, afinal, o legislador, que tão rigoroso foi na construção do tipo legal de crime de desobediência, não quisesse, afinal, admitir a comunicabilidade, sob pena de assim se pôr em causa, por uma via transversal, a intenção subjacente à imposição de uma cominação de desobediência.

Um acórdão interessante sobre a ilicitude na comparticipação ( art. 28º do Cód. Penal ) é Acórdão do STJ, de 11.03.2004, processo 4329/04 - 5ª Secção ( Relator Carmona da Mota ), onde se refere: "...No âmbito do DL 15/93, perante o "tipo fundamental " do art. 21.º ( "Tráfico e outras actividades ilícitas "), o art. 24.º ( "Agravação ") não surgirá propriamente, como um "tipo qualificado ", pois que a modificação da moldura penal (do tipo fundamental) não se operará aí "ao nível do tipo ou dos elementos típicos ", antes se verificando "por força de circunstâncias modificativas " derivadas "de uma especial gradação dos elementos constitutivos do crime, v. g., de uma gravidade especialmente acrescida do tipo de ilícito " (Cfr. FIGUEIREDO DIAS, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, § 256 e ss.). II - O art. 24.º (cuja epígrafe é, simples e significativamente, "Agravação ") funcionará, pois, como um mero agrupamento das circunstâncias ( "pressupostos ou conjunto de pressupostos que, não dizendo directamente respeito ao tipo de ilícito [...], todavia contendem com a maior [...] gravidade do crime como um todo e relevam por isso directamente para a [...] determinação da pena "), que, ante as molduras penais dos tipos fundamentais dos arts. 21.º, 22.º e 23.º, as agravam ( "aumentando-as de um terço nos seus limites mínimo e máximo ") especialmente, sendo que as "circunstâncias de carácter específico ou especial são aquelas que valem apenas para certo ou certos tipos legais de crime " (idem). III - Dir-se-ia, pois, que - em caso de comparticipação - todas estas circunstâncias seriam "comunicáveis ", pois que respeitantes ao "grau de ilicitude " do facto e não, simplesmente, à "culpa " e à "personalidade " do agente - cfr. EDUARDO CORREIA, Direito CriminaI, Almedina, 1965, p. 257. IV - No entanto, a jurisprudência, na sua prática, tem distinguido - no âmbito do art. 24.º- entre as circunstâncias estritamente relativas ao facto [alíneas a), b), h) e l)] e as dependentes de uma actuação, de uma intenção, de uma qualidade ou de uma relação especial do agente [alíneas c) a g), i) e j)], comunicando aos comparticipantes apenas aquelas e já não estas, no (implícito) pressuposto de que "outra " (que não a da comunicabilidade/regra) é "a intenção da norma incriminadora " (art. 28.º, n.º 1, do CP)... ".

Se bem percebo, segundo a tese seguida em tal acórdão, no caso de crime de desobediência a solução seria a não comunicabilidade, a não aplicabilidade do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal.

Importa ter em consideração que o conceito de comparticipação do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal deve ser interpretado no sentido de que a existência de cláusulas de exclusão da ilicitude ou da culpa ( cfr. arts. 31º a 39º do Cód. Penal ) não põem em causa a existência de comparticipação para efeitos do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal - este conceito preenche-se num momento prévio.

Ou seja, pode acontecer que, por exemplo, um dos sujeitos do crime venha a beneficiar de uma cláusula de exclusão da culpa, por ter actuado, por exemplo, em estado de necessidade desculpante ( art. 35º do Cód. Penal ), não se afastando, mesmo assim, a comunicação do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal. Todavia, a absolvição criminal por falta de prova afasta a ilicitude, pelo que a comunicação não se faz.

Questão interessante é a do indivíduo que utiliza um "bando " - ver o art. 204º, n.º 2, al. g), do Cód. Penal -, de menores de idade inferior a 16 anos, para cometer um furto de uma valiosa gargantilha.

Neste caso os menores não podem ser objecto senão de inquérito tutelar educativo.

Porém, o indivíduo que os utiliza vê, pelo menos ( sublinho ) por força do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal, ser-lhe imputado o crime de furto qualificado p. e p. pelo art. 204º, n.º 2, al. g), do Cód. Penal, pois existe comparticipação e o facto praticado não deixa de configurar um crime, ainda que os menores não possam ser objecto de perseguição penal e, se forem menores de 12 anos, nem de inquérito tutelar educativo.

Tal indivíduo poderá ser instigador ou autor mediato, conforme melhor se entenda - há divergências na doutrina -, mas uma coisa é certa, comunica-se-lhe a agravação do furto da alínea g) do n.º 2 do art. 204º do Cód. Penal, que diz que o furto é punível com pena de 2 a 8 anos se quem furtar coisa alheia o fizer como membro de bando destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do bando.

A questão aqui reveste-se, porém, de dificuldade, pois será objecto de provável e acesa discussão a forma de provar a reiteração, o que, em caso de menores de idade inferior a 12 anos ainda será mais difícil.

No fundo o que pretendo dizer é que com esta construção não é necessário dizer que o autor mediato se apropria de qualidades de outrem, pois a comparticipação existe, na tese que defendo, assim se respeitando o princípio da legalidade em direito penal, que aquela afirmação dificilmente faria.

Outro caso interessante era o do art. 6º da Lei n.º 22/97, de 27.06 ( regime de uso e de porte de arma ).

Vejamos situações que poderiam ocorrer em tal normativo.

Se B entregasse uma arma para reparação na convicção de que X é armeiro licenciado para a actividade, convicção essa que tinha de ser demonstrada, e se B tinha licença, registo e manifesto da arma, não cometia obviamente um crime.

Mas se entregasse a arma ciente de que X estava ilegal e não tinha sequer licença de uso e porte de arma, o tipo legal a imputar a B era o do art. 6º, n.º 2, da Lei n.º 22/97, de 27.06, na redacção da Lei n.º 98/01, de 25.08, e o tipo legal de crime a imputar a X é o do n.º 1 do mesmo art. 6º. Não havia lugar à aplicação do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal, por o legislador estabelecer tipos específicos para cada conduta.

O n.º 2 do art. 6º citado visou precisamente resolver as dificuldades que uma situação como a referida poderia suscitar em sede do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal.

Caso não existisse o n.º 2 do art. 6º citado, poder-se-ia questionar se, não obstante B possuir licença, manifesto e registo, não incorreria em comparticipação no crime do art. 6º, n.º 1, cometido por X. A resposta teria de ser positiva, pois a tanto obrigaria o art. 28º do Cód. Penal. Daí o art. 6º, n.º 2, ter estabelecido tal solução de forma expressa e mais explícita.


Deixo à consideração ainda a seguinte situação:

António furta da carteira do pai 5oo euros, o que faz de forma concertada e em comunhão de esforços com Berta. Estamos perante uma co-autoria de crime de furto p. e p. pelo art. 203º, n.º 1, do Cód. Penal. Como António é filho do ofendido, cumpre aplicar a regra do art. 207º, al. a), do Cód. Penal, que estabelece que "No caso do artigo 203º (...) o procedimento criminal depende de acusação particular se: a) O agente for (...) descendente (...) da vítima (...) ". Mas Berta não é irmã de António.

A questão a resolver é a seguinte:
- Sendo o crime particular em relação a António, sê-lo-á também em relação a Berta ?
- Pelo facto de intervir Berta, o crime passa a semi-público ?
- No caso em apreço a ilicitude é a mesma, porquanto a moldura penal é a mesma ?

A diferença reside na natureza do crime. Se se entender que a ilicitude permanece inalterada, não tem aplicação o art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal. Como resolver a questão ?

Se o crime não revestir natureza particular em relação ambos, terá de ser semi-público também em relação a ambos, em violação do art. 207º, al. a), do Cód. Penal ?

Outra solução seria ser particular em relação ao filho e semi-público em relação a Berta, pelo que se o pai não apresentasse queixa ou não formulasse acusação particular em relação ao filho, também se não poderia perseguir Berta ( arts 115º, n.º 2, e 116º, n.º 3, do Cód. Penal ). Como resolver a questão ?

Poder-se-á entender que, afinal, a desgraduação de um crime semi-público em particular é ainda uma questão de ilicitude, pelo que o art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal tem aplicação, no sentido de que a qualidade de filho beneficia o co-autor ?

O art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal estabelece: "1. Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora ". Lendo o trabalho da Prof. Teresa Beleza, vejo que exclui a aplicabilidade do art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal.

Como resolver ?

Concordando que a questão da ilicitude permanece inalterada com o art. 207º do Cód. Penal, não posso acompanhar quem sustenta que o queixoso poderá escolher perseguir Berta e não o filho. Os arts. 115º, n.º 2, e 116º, n.º 3, do Cód. Penal estabelecem a regra inequívoca de que em caso de comparticipação o queixoso não pode escolher quem quer perseguir criminalmente - trata-se de uma decorrência do princípio da igualdade e não há motivo para tratar de forma desigual uma situação em tudo igual. Assim, ou o procedimento criminal prossegue em relação a ambos ou é arquivado em relação a ambos. Ora, sendo a questão da ilicitude a mesma, sustenta a doutrina que o art. 28º, n.º 1, do Cód. Penal não se aplica. Importa, pois, saber se o facto de um crime revestir natureza particular e outro natureza semi-pública cria ou não uma situação de desigualdade de tratamento. Não cria, pois que a moldura abstracta da pena é a mesma. O facto de o procedimento criminal de um crime depender de queixa e o outro depender de queixa, de constituição como assistente e de acusação particular não tem como consequência a conversão de ambos os crimes em crimes semi-públicos ou de ambos os crimes em crimes particulares. A solução deverá ser encontrada nos seguintes moldes: o MP pode acusar um dos furtos e o pai terá de se constituir assistente e formular acusação particular pelo crime de furto cometido pelo filho, sendo certo que se não o fizer, os autos se arquivam em relação a ambos os arguidos. Ou seja, tenho para mim que a questão é meramente processual e terá de ter os remédios do direito processual penal, conjugados com o acima sustentado por referência aos arts 115, n.º 2, e 116º, n.º 3, do Cód. Penal.

O art. 116º, n.º 3, do Cód. Penal estabelece que "A desistência de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, salvo oposição destes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa ". Trata-se da afirmação do princípio da indivisibilidade da queixa. Tal norma deve ser objecto de interpretação extensiva, por identidade de razão, à situação em que havendo dois arguidos o assistente apenas formula acusação particular em relação a um deles, pois que está também a escolher quem pretende que seja sujeito a procedimento criminal, em violação do princípio da igualdade. A Prof. Teresa Beleza defende a exclusão da aplicabilidade do art. 28º nos casos do art. 303º do Cód. Penal de 1982 (redacção original ), parecendo-me que a situação é idêntica à supra-referida.