quarta-feira, 10 de junho de 2009

Abuso de Confiança/Bens Comuns do Casal

Acórdão do S.T.J., de 28-05-2009
Processo: 226/09.1YFLSB
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO

Sumário :


I - Estando provado que o arguido e a assistente/demandante casaram no regime de comunhão de adquiridos e que, durante a constância do matrimónio, o casal acumulou poupanças que provinham única e exclusivamente dos rendimentos do trabalho de ambos e que constituíam, assim, bens comuns do casal, das quais o arguido se apropriou em proveito próprio e exclusivo, sem conhecimento ou consentimento da assistente, não se verifica o crime de abuso de confiança.

II - Tratando-se de «“património colectivo” o direito cabe a cada uma das pessoa por completo sem que se verifique a sua divisão em quotas ideais; por isso, abuso de confiança só será aqui possível se e quando o agente, uma vez feita a divisão, ultrapassar a parte que lhe cabe» (Comentário Conimbricense, Tomo II, p. 98).

III - A questão, portanto, não pode colocar-se no plano criminal, através de um crime que tem como elemento típico a inversão do título de posse ou detenção, que no caso não de verificou, mas no plano cível, pois, ao contrário do que diz a decisão recorrida, o arguido, na qualidade de cônjuge, portanto, com legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal, não podia “dar-lhe(s) o destino que bem entendesse”, mas administrá-los no interesse do casal (art.ºs 1678.º, n.º 3 e 1682.º, n.º 4, do CC).

IV – Se é certo que, conforme o disposto no art.º 71.º do CPP, o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, tem de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado, não é por não se apurarem na sentença os elementos constitutivos do crime que desaparece, automaticamente, o dever de indemnizar.

V - Com efeito, o art.º 377.º, n.º 1, do mesmo código, dispõe que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo de, nos termos do n.º 3 do art.º 82.º, poder remeter as partes para os meios comuns.

VI - Portanto, tendo o STJ, anteriormente, ordenado que a Relação retirasse da procedência do recurso quanto à parte criminal (absolvição pelo crime) as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, teria aquele tribunal de verificar se, tendo deixado de subsistir a responsabilidade civil fundada na prática de um crime, poderia persistir responsabilidade civil fundada na prática de um acto ilícito de outra natureza ou injunção prevista no C. Civil.

VII - Nos termos do art.º 1682.º, n.º 4, do CC, «Quando um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais».

VIII - «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente (...) qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação» (art.º 483.º, n.º 1, do CC). Ora, «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (art.º 562.º).

IX - No caso, a forma de reparar o dano causado é, especificamente, a fixada pelo art.º 1862.º, n.º 4: a atribuição à meação do cônjuge administrador (dos bens móveis comuns alienados gratuitamente sem consentimento do outro) do «valor dos bens alheados». Ante a «reconstituição natural» configurada por esta disposição legal, torna-se dispensável, pois, a indemnização em dinheiro (art.º 566.º, n.º 1) a que as instâncias, escusadamente, lançaram mão.

X - Assim sendo, o arguido não deve ser condenado na indemnização fixada na 1ª instância, mas a ter de relacionar no processo de inventário em curso (por apenso à acção de divórcio), por conta da sua meação, o valor dos bens alheados (€ 241 082).