quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Um acórdão interessante - "meio particularmente perigoso"

Transcrição parcial do texto do acórdão da Relação do Porto, de 14.11.2007
( processo 0744042, n.º convencional JTRP00040751, relator: Custódio Silva ),
in www.dgsi.pt:

“…Apreciemos a primeira questão [ não se verifica a autoria, pelo arguido, do crime de ofensa à integridade física qualificada ( arts. 143º, n.º 1, 146º, n.ºs 1 e 2, e 132º, n.º 2, al. g), do C. Penal ), por não se estar face à circunstância modificativa agravante considerada e prevista nos arts. 146º, n.º 2, e 132º, n.º 2, al. g) - utilização de meio particularmente perigoso -, do C. Penal? ].O crime cuja autoria foi imputada ao arguido assenta na verificação de um tipo de culpa agravado, moldado pelos exemplos ( padrão ) previstos no n.º 2 do art. 132º do C. Penal.Sucede que a verificação desses exemplos ( padrão ) não determina, como consequência imediata, a realização de esse tipo de culpa, pois indispensável se torna que, no concreto ( pela delimitação da imagem global do facto, na feliz expressão do ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 2005, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 184, ano XIII, tomo II/2005, Abril/Maio/Junho/Julho, pág. 253 ), os mesmos manifestem uma especial censurabilidade ou perversidade [ ensinamento de Teresa Serra, in Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, págs. 63/65: « como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa; culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito; no artigo 132º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte ( ou a ofensa à integridade física) foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores …; com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade; significa isto, pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder; assim, poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor; especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente …; importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade; a razão da qualificação do homicídio ( ou da ofensa à integridade física ) reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte ( ou a ofensa à integridade física ) foi causada; com efeito, qualquer homicídio simples ( ou ofensa à integridade física simples ), enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o ( a ) comete » ].Ora, no caso, o que os factos enumerados como provados demonstram está longe de revelar que a acção do arguido possa ser tida como especialmente censurável ( a especial perversidade não pode, aqui, ser, sequer, ponderada ), desde logo na relação com a censurabilidade que se manifesta em qualquer crime de ofensa à integridade física perpetrada por instrumento idêntico ( quanto à sua natureza cortante ou perfurante; logo, perigoso; ademais, o mesmo, pelas suas características e pelas finalidades, comuns, a que está adstrito, não provoca na sua utilização especial perigosidade, não se revestindo de muito maior perigo para a integridade física das pessoas do que a generalidade dos meios perigosos que podem ser utilizados em agressões físicas ) àquele que o arguido utilizou.Ou seja, não podemos dizer que o dito instrumento, que é necessariamente perigoso, pela potencialidade específica que tem para provocar ofensa à integridade física, seja, como é indispensável, particularmente perigoso [ como se escreveu no ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 2005, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 184, ano XIII, tomo II/2005, Abril/Maio/Junho/Julho, págs. 253/254, « este há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para provocar danos físicos, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente; estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou muito perigosos ( facas, pistolas, instrumentos contundentes), não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão » ].O que se acaba de dizer até sai reforçado pelo tipo de lesões provocadas ( ferida cortante, de cerca de 15 cm, com atingimento da camada muscular, mas sem lesão pleural - na região anterior do hemitórax direito -, e ferida superficial cortante, com 7 cm de comprimento - terço inferior e anterior do antebraço direito ).Mas não só (e, aqui, mesmo que, por hipótese de raciocínio, concedêssemos estar face a instrumento particularmente perigoso), pois as circunstâncias em que o arguido actuou não permitiam afirmar que a sua acção havia sido especialmente censurável ( está assente: defesa, mesmo que empregando meio excessivo e francamente desmedido ) contra o que tomara como agressão iminente.É certo que, quando se enumeraram os factos provados, a sentença sob recurso veio a consagrar expressamente, que o instrumento utilizado, pelas suas características perfurantes e cortantes era singularmente perigoso.Mas, como é óbvio, por um lado, tendo tal afirmação como conclusão de facto, a mesma jamais podia dispensar a sua valoração jurídica ao nível da integração daquela circunstância modificativa agravante, e, portanto, sempre aquela conclusão, essencial, se tinha de tirar; por outro, se se entendesse que com essa afirmação se queria significar, pura e simplesmente, a verificação da dita circunstância modificativa agravante, então estaríamos face a algo que, por ser de direito, se tinha de considerar, ao nível do facto, como não escrito ( v. o princípio acolhido no art. 646º, n.º 4, do C. de Processo Civil ), o que imporia, igualmente, aquela essencial conclusão.Dito isto, mais se impõe dizer: não se verifica aquela circunstância modificativa agravante e, por isso, o crime de ofensa à integridade física qualificada ( arts. 143º, n.º 1, 146º, n.ºs 1 e 2, e 132º, n.º 2, al. g), do C. Penal )…”.