quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

PROCESSO PENAL – TRATAMENTO DEGRADANTE (ART. 3.º) – TRATAMENTO DESUMANO (ART. 3.º) – JULGAMENTO EQUITATIVO – RESPEITO PELA VIDA PRIVADA – ADMINISTRAÇÃO FORÇADA DE EMÉTICOS – TRÁFICO DE DROGA – DIREITO A NÃO SE AUTO-INCRIMINAR

I. Para efeitos do artigo 3.º, os maus-tratos têm de revestir um mínimo de gravidade, sendo essa avaliação naturalmente relativa, dependendo do conjunto das circunstâncias do caso, da duração do tratamento infligido, das suas consequências físicas e psíquicas e ainda, por vezes, do sexo, da idade e do estado de saúde da vítima; as alegações de maus-tratos devem ter por base adequados elementos de prova; para avaliar da prova o Tribunal rege-se pelo princípio da prova “para além da dúvida razoável” que pode formar-se ou inferir-se a partir da existência de diversos elementos de facto suficientemente precisos, fortes e concordantes, ou mesmo a partir de presunções de facto quando inilidíveis (não susceptíveis de prova em contrário).
II. Segundo a jurisprudência estabelecida entende-se por tratamento “desumano” aquele que é praticado com premeditação ou durante horas consecutivas, provocando lesões físicas ou grave sofrimento físico ou psicológico; o tratamento considera-se “degradante” quando provoca nas vítimas sentimentos de medo, angústia e inferioridade, causando humilhação e aviltamento, ou quando determina a vítima a agir contra a sua vontade ou consciência; para se determinar se um determinado tratamento é “degradante”, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º da Convenção, o Tribunal irá apurar se aquele comportamento se destinava a humilhar e diminuir a pessoa; contudo, mesmo quando o comportamento impugnado não se destina a humilhar o visado, este facto não afasta, por si só, a verificação de uma violação do artigo 3.º, no entanto, o grau de sofrimento e humilhação infligidos tem, em todo o caso, de ser superior (ou ultrapassar) o inevitável sofrimento e humilhação implícitos a qualquer medida sancionatória legítima.
III. No que respeita às intervenções médicas a que um detido pode estar sujeito, mesmo contra a sua vontade, o artigo 3.º da Convenção exige que o Estado assegure a defesa do bem-estar físico das pessoas que se encontram privadas de liberdade, promovendo, por exemplo, assistência médica aos reclusos/detidos –essas pessoas continuam a merecer a tutela do artigo 3.º da Convenção, cujo conteúdo é inderrogável.
IV. Uma determinada intervenção que revele ser uma necessidade terapêutica de acordo com os princípios da medicina não pode, em princípio, ser entendida como degradante ou desumana.
V. Os artigos 3.º e 8.º da Convenção não impedem o recurso à prática de actos médicos que, apesar de contrários à vontade do suspeito, se revelem necessários à recolha de elementos de prova sobre o seu envolvimento na prática de um crime; nestes termos, os órgãos da Convenção, têm entendido que a recolha de sangue ou de amostras de saliva contra a vontade do suspeito no âmbito da investigação de um crime não viola, nos casos apreciados, estes artigos da Convenção.
VI. Contudo, a realização forçada de um qualquer acto médico com vista à obtenção de prova sobre a prática de um crime tem de encontrar justificação convincente nos factos do caso; isto é particularmente verdadeiro naqueles casos em que o acto médico a praticar é especialmente intrusivo, destinando-se a recolher do interior do corpo do indivíduo/suspeito a prova do crime que se suspeita aquele tenha cometido – o carácter particularmente invasivo dessas intervenções exige um escrutínio rigoroso de todas as circunstâncias envolventes, devendo ter-se em conta a gravidade da infracção em causa, sendo que as autoridades têm de demonstrar que ponderaram a utilização de métodos alternativos para a recolha da prova, e que do método (acto ou intervenção) escolhido não decorrerão danos duradouros para a saúde do suspeito.
VII. É ainda relevante saber se o acto (ou intervenção) médico foi ordenado e realizado por um médico e se a pessoa em causa foi colocada sob vigilância médica; outro factor relevante será apurar se do tratamento ou intervenção médicos resultou o agravamento do estado de saúde do suspeito ou se dele resultaram danos prolongados.
VIII. O Código de Processo Penal Alemão prevê que as autoridades de investigação criminal possam ordenar a realização de intervenções médicas invasivas contra a vontade do suspeito para a recolha de prova, desde que sejam realizadas por um médico e delas não decorra o risco de dano para a saúde dos visados; ponderados os elementos do caso, o tribunal conclui que a administração de eméticos ao requerente, tal como foi ordenada pelas autoridades competentes, foi motivada não tanto por razões de ordem médica, mas antes para a preservação de meios de prova, relativamente ao crime de tráfico de droga de que o requerente era suspeito; no entanto, esta conclusão só por si não basta para considerar que a medida impugnada (a administração forçada de eméticos ao requerente) é contrária ao artigo 3.º da Convenção, o Tribunal, de resto, já em diversas ocasiões declarou que a Convenção não proíbe, em princípio, a prática de actos médicos compulsórios quando visem assistir na investigação de um crime.
IX. O Tribunal salienta que o tráfico de droga é um crime grave e reconhece os esforços e as sérias dificuldades que os Estados enfrentam no combate ao tráfico; neste caso concreto, o requerente – um traficante “de rua” (street dealer) – foi visto a guardar (embalagens de) droga na boca, antes de ser ordenada e praticada a administração de eméticos contra a sua vontade, por isso, devia supor-se que o requerente não estava a traficar droga em grandes quantidades, facto que, de resto, se confirma na sentença que condenou o requerente a seis meses de prisão com pena suspensa; o Tribunal concede que era de importância vital para os investigadores determinar, com certeza, a quantidade e a qualidade da droga que o requerente traficava, mas não está convencido que a administração forçada de eméticos fosse indispensável neste caso para a obtenção de prova, as autoridades poderiam ter esperado que a droga fosse expulsa do organismo naturalmente, já que a administração forçada de eméticos – que na Alemanha já causou duas mortes até à data deste acórdão – não comporta riscos apenas negligenciáveis, como alega o Governo.
X. Quanto ao modo como os eméticos foram administrados ao requerente, apurou-se que depois de o requerente se ter recusado ao tratamento, foi subjugado por quatro agentes policiais, tendo sido usada força, depois, foi-lhe inserido um tubo pelo nariz até ao estômago com vista a ultrapassar a resistência física e psicológica que o requerente pudesse manifestar, o que certamente lhe terá causado dor e angústia, mais tarde, ainda lhe foi injectado um outro emético; deve ter-se em consideração o sofrimento psicológico sofrido pelo requerente enquanto aguardava que os medicamentos produzissem efeitos, durante esse tempo o requerente esteve sempre sob a vigilância de agentes da polícia e de um médico, e teve de vomitar nestas condições o que deve ter sido humilhante; no entanto, apesar da invasão da privacidade a que o requerente foi sujeito por causa da necessidade de vigilância, o método adoptado pelas autoridades que, apesar de tudo, envolve ou depende de funções naturais do organismo é muito menos invasivo e não afecta tanto a integridade física e moral de uma pessoa que um qualquer outro método, ou intervenção médica (cirúrgica) que houvesse que ser praticada contra a vontade do indivíduo.
XI. A medida impugnada atinge o mínimo de gravidade exigido pelo artigo 3.º da Convenção, as autoridades interferiram gravemente na integridade física e moral do requerente, agindo contra a vontade deste; obrigaram-no – através de intervenção médica – a vomitar, não por razões de saúde mas tendo em vista a recolha de prova, que poderiam ter obtido através de métodos menos intrusivos; a maneira como a administração de eméticos teve lugar era propícia a suscitar no requerente sentimentos de medo, angústia e inferioridade capazes de o humilhar, sendo que, para mais, o procedimento adoptado acarretava riscos para a sua saúde; se bem que a intenção das autoridades não fosse a de humilhar ou aviltar o requerente, a forma como agiram causou-lhe dor física e sofrimento psicológico, pelo que se considera que o requerente foi sujeito a tratamento desumano e degradante, contrário ao artigo 3.º da Convenção.
XII. Não cabe nas atribuições do Tribunal conhecer de eventuais erros de facto ou de direito alegadamente cometidos pelos tribunais nacionais, a menos que – e apenas na medida em que – estes tenham violado os direitos e liberdades consagrados na Convenção; o artigo 6.º tutela o direito a um processo equitativo, todavia, não estabelece quaisquer regras sobre admissibilidade das provas, que é uma matéria que compete às leis nacionais; assim sendo não cabe, em princípio, ao Tribunal determinar se um determinado tipo de prova – por exemplo, provas que sejam obtidas ilegalmente segundo a lei nacional – pode ser admitida, nem pronunciar-se sobre a culpabilidade do arguido, a única questão a que deve responder é a de saber se o processo, considerado no seu conjunto, incluindo o modo como a prova foi obtida, foi justo.
XIII. Para determinar se o processo foi equitativo deve atender-se aos direitos da defesa e, em particular, determinar se ao arguido foi dada oportunidade de discutir a autenticidade da prova produzida e objectar à sua admissibilidade; relativamente à qualidade da prova deve notar-se que quando a prova é muito forte e fiável, a necessidade de que se produza prova complementar (supporting evidence) é menor.
XIV. Quando se avalia da natureza equitativa de um processo crime deve tomar-se em consideração o peso do interesse público na investigação e punição de determinado tipo de crimes, podendo pesar-se este interesse público contra o interesse do indivíduo em que a prova que se produza contra si seja obtida legalmente; todavia, preocupações de interesse público nunca poderão justificar medidas que excluam ou ponham em causa o âmago dos direitos de defesa do arguido, incluindo o direito que lhe assiste de não se auto-incriminar, garantido pelo artigo 6.º da Convenção.
XV. Em casos anteriores, o Tribunal considerou que o uso de escutas contrário ao artigo 8.º da Convenção – por falta de “base legal” que o sustentasse, e que constituía uma ingerência no direito ao respeito da vida privada –, não determinava a violação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção e do princípio do processo equitativo, quando a informação assim obtida fosse admitida e usada como prova no julgamento pelos tribunais nacionais.
XVI. No entanto, relativamente às provas obtidas em violação do artigo 3.º da Convenção outras considerações se impõem; podem suscitar-se questões acerca da equidade do processo (artigo 6.º, n.º 1, da Convenção) quando a prova seja obtida através de uma violação ao artigo 3.º, mesmo quando se demonstre que a utilização dos elementos de prova assim obtidos não foi decisiva para a condenação do arguido; deve ter-se presente que o artigo 3.º da Convenção encerra um dos valores fundamentais numa sociedade democrática que não admite derrogações.
XVII. O Tribunal salienta, a propósito do uso de prova obtida com violação dos princípios do direito ao silêncio e à não auto-incriminação, que estes são princípios geralmente aceites a nível internacional que radicam no núcleo essencial do direito a um processo equitativo, tal como consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção; com esta garantia pretende-se seja assegurada a defesa do arguido contra a coacção que seja ilegitimamente exercida pelas autoridades, contribuindo assim para que se evitem abusos e erros judiciários; o direito de não se auto-incriminar pressupõe que cabe à acusação o ónus da prova, sem o recurso – para tanto – à coacção ou pressão sobre o arguido ou sobre a sua vontade.
XVIII. O direito de não se auto-incriminar impõe que se respeite a vontade do arguido de não falar e manter o silêncio, no entanto, este direito não contempla a impossibilidade de utilização no processo de meios de prova que sejam obtidos através do arguido independentemente da sua vontade (ou mesmo, contra a sua vontade) por poderes de autoridade, tais como, documentos obtidos na sequência de buscas judicialmente ordenadas, ou de recolha de amostras e exames de sangue, urina, saliva, cabelo, voz, ou recolha de outros tecidos orgânicos para a realização de testes de DNA.
XIX. Analisados os factos do caso em presença à luz destes princípios, verifica-se que a prova recolhida na sequência da administração de eméticos ao arguido não foi obtida ilegalmente, ou em incumprimento à lei interna.
XX. O tratamento a que o requerente foi sujeito embora não tivesse atingido a gravidade de um acto de tortura, alcançou, no entanto, o nível de gravidade mínimo que permite qualificá-lo como tratamento desumano ou degradante, caindo assim no âmbito de aplicação do artigo 3.º da Convenção; assim sendo não é de excluir que a utilização ou admissibilidade de meios de prova obtidos através da prática intencional de maus-tratos implique que o julgamento do arguido seja tido como injusto (ou não equitativo).
XXI. A discricionariedade dos tribunais nacionais que poderiam excluir a prova ora impugnada não deve ser positivamente considerada já que os mesmos tribunais consideraram que a administração de eméticos estava autorizada segundo a lei nacional; para além disso, o interesse público na condenação do requerente não era de molde a permitir validar a utilização daquela prova em julgamento; relembramos que o requerente era um traficante de rua, comum, que vendia drogas numa quantidade relativamente pequena, e que, a final, foi condenado numa pena suspensa de seis meses, donde a utilização como prova da droga recolhida na sequência da administração forçada de eméticos ao requerente determinou a iniquidade de todo o julgamento, pelo que houve violação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção.

Caso JALLOH c. ALEMANHA, acórdão de 11 de Julho de 2006.

JURISPRUDÊNCIA CITADA:
§ Price c. Reino Unido, queixa n.º 33394/96, ECHR 2001 – VII;
§ Mouisel c. França, queixa n.º 67263/01, ECHR 2002 – IX;
§ Gennadi Naoumenko c. Ucrânia, queixa n.º 42023/98, acórdão de 10 de Fevereiro de 2004;
§ Ireland c. Reino Unido, acórdão de 18 de Janeiro de 1978, Série A n.º 25;
§ Labita c. Itália [GC], n.º 26772/95, ECHR 2000 – IV;
§ Hurtado c. Suiça, Relatório da Comissão de 8 de Julho de 1993, Série A n.º 280;
§ Dinamarca, Noruega, Suécia e Holanda c. Grécia (caso Grego), queixas n.os 3321/67, Relatório da Comissão de 5 de Novembro de 1969;
§ Keenan c. Reino Unido, queixa n.º 27229/95, ECHR 2001 – III;
§ Raninen c. Finlândia, acórdão de 16 de Dezembro 1997, Reports of Judgments and Decisions 1997 – VIII;
§ Peers c. Grécia, queixa n.º 28524/95, ECHR 2001 – III;
§ Herczegfalvy c. Áustria, acórdão de 24 de Setembro de 1992, Série A n.º 244;
§ Nevmerzhitsky c. Ucrânia, queixa n.º 54825/00, acórdão de 5 de Abril de 2005;
§ X. c. Holanda, queixa n.º 8239/78, Decisão da Comissão de 4 de Dezembro de 1978, Decisões e Relatórios (DR) 16;
§ Schmidt c. Alemanha, queixa n.º 32352/02, decisão, acórdão de 5 de Janeiro de 2006;
§ Peters c. Holanda, queixa n.º 21132/93, Decisão da Comissão de 6 de Abril de 1994;
§ Ilijkov c. Bulgária, queixa n.º 33977/96, Decisão da Comissão de 20 de Outubro de 1997;
§ Krastanov c. Bulgária, queixa n.º 50222/99, acórdão de 30 de Setembro de 2004;
§ D. c. Reino Unido, acórdão de 2 de Maio de 1997, Reports… 1997 – III;
§ Schenk c. Suiça, acórdão de 12 de Julho de 1998, Série A n.º 140;
§ Teixeira de Castro c. Portugal, acórdão de 9 de Junho de 1998, Reorts 1998 – IV;
§ Khan c. Reino Unido, queixa n.º 35394/97, ECHR 2000 – V;
§ P.G. e J.H. c. Reino Unido, queixo n.º 44787/98, ECHR 2001 – IX;
§ Allan c. Reino Unido, queixa n.º 48539/99, ECHR 2002 – IX;
§ Heaney e McGuinness c. Irlanda, queixa n.º 34720/97, ECHR 2000 – XII;
§ İçöz c. Turquia, queixa n.º 54919/00, decisão de 9 de Janeiro de 2003;
§ Koç c. Turquia, queixa n.º 32580/96, decisão de 23 de Setembro de 2003;
§ Chahal c. Reino Unido, acórdão de 15 de Novembro de 1996, Reports… 1996 – V;
§ Selmouni c. França [GC], queixa n.º 25803/94, ECHR 1999 – V;
§ Saunders c. Reino Unido, acórdão de 17 de Dezembro de 1996, Reports… 1996 – VI;
§ J.B. c. Suíça, queixa n.º 31827/96, ECHR 2001 – III;
§ Tirado Ortiz e Lozano Martin c. Espanha, queixa n.º 43486/98, decisão, ECHR 1999 – V;
§ Choudhary c. Reino Unido, queixa n.º 40084/98, decisão de 4 de Maio de 1999.´

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JURISPRUDÊNCIA NACIONAL CONEXA:
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/2007

Processo n.º 695/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão


Sumário:

III – Decisão

Nestes termos, o Tribunal decide:

i) julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos n.ºs 25.º, 26.º e 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;
ii) consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126º, nºs 1, 2 alíneas a) e c) e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior.
iii) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que agora se formula.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Março de 2007
Gil Galvão
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra
Artur Maurício
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Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 228/2007

Processo nº 980/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma

Sumário:

III
Decisão

5. Nestes termos, o Tribunal decide:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos n.ºs 25.º, 26.º e 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;
b) consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126º, nºs 1, 2 alíneas a) e c) e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior.
c) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que agora se formula.

Lisboa, 28 de Março de 2007
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto (nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos

DECLARAÇÃO DE VOTO
Pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da norma impugnada também por falta de habilitação legal suficiente para proceder ao exame em causa. Apesar de menos “intrusivo” do que certos outros exames médicos, o exame de ADN para a identificação de perfis genéticos, envolvendo ainda uma restrição a direitos, liberdades e garantias (designadamente, a direitos relativos ao controlo sobre a própria informação genética, que devem reputar-se consagrados no artigo 26.º), carece, a meu ver, de uma habilitação legal específica, que não existia e que não pode considerar-se satisfeita com a mera remissão (constante do Acórdão n.º 157/2007 e aceita na presente decisão) para a concretização da norma que foi efectuada no caso concreto pelo tribunal: a “densificação” judicial da norma habilitante não pode suprir a necessária habilitação legislativa específica, que, a meu ver, é exigida pela Constituição da República.
Paulo Mota Pinto

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Acórdão da Relação do Porto de 05.05.2007
Processo: 0546541
N.º Convencional: JTRP00040280

Sumário: É inválida a prova obtida através de exame à saliva, pelo método de zaragatoa bucal, do suspeito de um crime de homicídio, contra a sua vontade, se o exame, ordenado durante o inquérito pelo Ministério Público, não foi previamente autorizado pelo juiz de instrução.

"... Nesta conformidade:
IV – Decisão:
Nos termos e com os fundamentos indicados, conferindo procedência ao recurso interposto pelo arguido B………., revoga-se a decisão recorrida, pelo que não se tendo como constitucional a colheita coactiva de vestígios biológicos que lhe foi efectuada para determinação do seu perfil genético, ordenada pelo Ministério Público, considera-se não válida e consequentemente não susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da mesma.
Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário, por ser o 1.º Adjunto no acórdão reformado.
Porto, 5 de Maio de 2007
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
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