quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Prisão preventiva. Requisitos do despacho que a aplica. Recurso. Manifesta improcedência.

ACÓRDÃOS DA RELAÇÃO DE LISBOA

Decisão sumária de 02-09-2008


I – O recurso de um despacho que, na sequência do 1º interrogatório judicial, impõe a prisão preventiva pode, em princípio, visar:
a)A declaração da nulidade desse despacho;
b)A revogação do despacho por:
a.Não estarem reunidas as condições gerais previstas no artigo 192º do CPP.
b.Não existir, em concreto, nenhum dos requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção enunciados no artigo 204º do mesmo diploma e invocados no despacho recorrido;
c.Não se encontrarem preenchidos os pressupostos específicos da medida de coação aplicada, impugnação essa que pode pretender pôr em causa:
i.A existência (tendo em conta as provas atendíveis) de fortes indícios da prática dos factos que justificaram a imposição da medida;
ii.A qualificação jurídica desses factos;
iii.A subsunção do crime indiciado no elenco daqueles que são abrangidos pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 202º [esta última com referência às alíneas i), j) e m) do artigo 1º] e pelo n.º 2 do artigo 203º do Código de Processo Penal;
d.Terem sido incorrectamente aplicados os princípios que regem as medidas de coacção em geral e a prisão preventiva em particular.
II – Exigindo a lei que o despacho que aplica a medida de coacção contenha:
A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido;
A enunciação, salvo em casos excepcionais, dos elementos que indiciam os factos imputados;
A qualificação jurídica desses factos; e
A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida;
e tendo o arguido, em princípio, acesso aos elementos de prova que fundamentaram a decisão, essa impugnação tem de acatar o formalismo imposto pelo artigo 412º do Código de Processo Penal, não se podendo limitar a fazer meras alusões vagas ao caso concreto e referências gerais às normas e princípios aplicáveis às medidas de coacção.
III – Para a interposição de um tal recurso é, pelo menos, necessário que o recorrente identifique os pontos concretos do despacho recorrido que pretende impugnar e os fundamentos específicos dessa mesma impugnação.
IV - É, assim, de rejeitar liminarmente, por manifesta improcedência, o recurso interposto pelo arguido do despacho que lhe aplica a medida coactiva de prisão preventiva se este, na respectiva motivação:
a) - Não identifica os pontos concretos do despacho recorrido que pretende impugnar e os fundamentos específicos dessa mesam impugnação;
b) Limita a sua motivação a meras alusões vagas ao caso concreto e a referências gerais às normas e princípios aplicáveis às medidas de coacção.
Proc. 6947/08 3ª Secção
- Desembargador: Carlos Almeida
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)

TITULAR DO DIREITO DE QUEIXA/VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO/CÔNJUGE

Acórdão da Relação do Porto de 14-07-2008
Processo: 0812103
Nº Convencional: JTRP00041547
Nº do Documento: RP200807140812103
Relator: LUÍS TEIXEIRA


Sumário:
Titulares do interesse protegido pelo crime de violação de domicílio, estando em causa a habitação de um casal, são ambos os cônjuges, ainda que um deles haja abandonado a casa há alguns meses, por desavenças com o outro.

Texto:
Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
- Assistente: B………. .
- Arguidas: C……….
e
D………., todos melhor ids. nos autos.
*
1. Nos autos nº …/07.7TAMAI, do .º juízo do Tribunal Judicial da Maia, em que se investigava a eventual prática pelas arguidas dos crimes de violação de domicílio e de introdução em lugar vedado ao público, findo o inquérito, pelo Ministério Público foi proferido despacho de arquivamento pelas razões e fundamentos transcritos no mesmo, a fls. 33 e 34.
2. Inconformado com o arquivamento dos autos, requereu o assistente a abertura de instrução pelos motivos que integram o seu requerimento de fls. 87 a 92, pugnando pela pronúncia das arguidas pela prática daqueles crimes: violação de domicílio e de introdução em lugar vedado ao público
3. Realizadas as diligências de instrução, procedeu-se ao debate instrutório – fls. 205 e 206 – e, findo este, foi proferida decisão - de fls. 190 a 204 - de não pronunciar as arguidas pela prática dos factos e qualificação jurídica imputados pelo assistente.
4. Desta decisão recorre agora o assistente, formulando as seguintes conclusões:
4.1. Com a ruptura do casamento e saída do lar conjugal, sem intenção de regresso, por parte da recorrida D………. como é unanimemente aceite pela doutrina e jurisprudência, não lhe é mais permitido que entre na habitação que não é sua.
4.2. Por maioria de razão, não pode fazer entrar ou permitir que permaneça na habitação, terceiro.
4.3. As co-recorridas sabiam de toda a factualidade, mormente a recorrida D………., de não habitar com o recorrente bem como da hostilidade recíproca entre o recorrente e a recorrida C………. e que, por isso, esta não era bem-vinda ao último reduto de intimidade e privacidade que constitui o domicílio do recorrente.
4.4. O agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude matéria que, normalmente, se presume.
4.5. Em Portugal, aos olhos gerais, uma pessoa “convidada” a sair da habitação de outrem, mesmo que autorizada por um co-habitante, sai.
4.6. Entendendo-se o contrário é eternizar ”erros não censuráveis sobre a ilicitude” e o morador ficar sem o último reduto de intimidade.
4.7. As recorridas, no dia 25 de Dezembro de 2006, uma a permitir a entrada e permanência da outra, numa residência que não era de nenhuma das duas, tendo uma delas sido instada pelo residente para sair e respondendo que uma que “só saio a mal” e a outra “fica…a casa também é minha”, cometem um crime de violação de domicílio, previsto e punível pelo artigo 190º, nº 1, do Código Penal, pelo qual devem ser pronunciadas, pelo menos por este, em co-autoria.
5. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, dizendo em síntese:
5.1. Dos elementos de prova coligidos em sede de inquérito e em sede de instrução, supra referidos, relacionados e conjugados entre si, resulta que, no presente caso, os indícios recolhidos não são, de todo, suficientes para a decisão de submeter a causa a julgamento.
5.2. Por não se indiciar, desde logo, o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de violação de domicilio e de introdução em lugar vedado ao público, p. e p., respectivamente, pelos art.ºs 190° e 191° do Código Penal.
5.3. Em face do exposto deverá ser mantida a decisão, ora recorrida, de não pronúncia das arguidas D………. e C………. .
6. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso deve ser considerado manifestamente improcedente.
7. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o assistente veio responder, continuando a pugnar pela pronúncia das arguidas.
8. Foram colhidos os vistos.
II
Segundo o teor da motivação de recurso e respectivas conclusões, a única questão a apreciar traduz-se em saber se, com a conduta do dia 25 de Dezembro de 2006, as arguidas cometeram algum crime[1].
III
É o seguinte o teor da decisão instrutória na parte que releva para o objecto do recurso:
“Relativamente aos factos do dia 25 de Dezembro de 2006, o assistente alega que consentiu que a arguida D………. entrasse em sua casa, mas esta, contra a vontade expressa daquele, fez entrar a sua prima C………. e que esta convidada a sair, o declinou dizendo que só saia a mal. Sabiam ambas que a entrada e presença da C………. era contra a vontade do assistente, pelo que teve que chamar a PSP de ………. para retirar a arguida C………. de sua casa.
Ouvida a arguida C………., esta referiu que a casa em causa também é da arguida D………., e que no dia 25.12., o B………. já tinha aberto a porta e porque se encontrava entreaberta entraram. O assistente quando a viu disse “não és bem-vinda a esta casa e por isso vais sair”, a arguida pediu-lhe que deixasse entregar os presentes de Natal à menina e que a deixasse assistir à abertura, tendo-lhe o mesmo respondido que tinha de se ir embora, por não ser bem-vinda. A arguida respondeu-lhe que só saia a mal porque a casa também era da sua prima, ao que a prima e arguida D………. anuiu. Assim, ficou ali a assistir os presentes até que a determinada altura o assistente lhe disse “já que estás aqui podes sentar-te na cadeira” e disse-lhe também para se sentar à mesa.
Acerca dos factos ocorridos neste dia, foi ouvido o agente da PSP que foi chamado ao local e que fez constar na “participação” de fls. 144 dos autos, as informações que lhe forma transmitidas, não tendo presenciado quer a chegada das arguidas a casa do assistente, quer a saída da mesma. (cfr. fls. 165).
Ora, perante tais factos temos, por um lado, que a arguida C………. entendeu o consentimento dado pela sua prima, a arguida D………., como um consentimento válido para ali permanecer.
Coloca-se assim a questão de se saber se este consentimento dado pela arguida D………. à arguida C………. é válido.
Para responder a tal pergunta temos que saber, in casu, quem é o portador do bem jurídico.
Como já vimos, o portador do bem jurídico é aquele a que assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação, seja qual for o seu fundamento jurídico: um direito real, uma relação obrigacional ou uma situação de direito público. Decisivo é que aquela posição seja conforme ao direito. Por outro lado, não tem que haver correspondência entre o portador do bem jurídico-penal e o detentor de posições jurídico-civilmente protegidas (como proprietário, possuidor, etc.) sobre o espaço da habitação.
Ora, no presente caso, quer o assistente, quer a arguida D………. avocam a qualidade de titulares de um direito de retenção sobre a fracção em causa e como tal, ambos têm o direito a fazer dela a sua habitação, sendo que a arguida já ali habitou.
Contudo, no dia em causa - 25.12.06- o casal encontrava-se separado de facto e quem residia na casa de morada de família era apenas o assistente e a menor, filha de ambos.
Assim, afigura-se-nos que a habitação da arguida D………., penalmente tutelada, terminou com a sua saída de casa, ocorrendo, nessa altura, o termo efectivo daquela esfera de privacidade e segredo (cfr., neste sentido, “Comentário Conimbricense do Código penal”, tomo I, pág. 704).
Assim, tem sido a opinião da jurisprudência, a título de exemplo, o Acórdão do TRP, de 20.02.02, pº 0111124, in www.dgsi.pt refere que “tendo um co-titular de uma casa deixado de a habitar há mais de um ano e passando a mesma a servir de habitação de outro co-titular, não pode o primeiro aí penetrar sem o consentimento do segundo(...)”
No entanto, a arguida C………. agiu convencida que a arguida D………. era também “proprietária” da casa de morada de família, nas suas palavras, “a casa era dela também”, pelo que ao dar-lhe autorização para entrar e nela permanecer, legitimava a sua actuação.
Acerca da validade do consentimento de um dos portadores do bem jurídico, a doutrina e a jurisprudência tem entendido que: “Há casos em que a habitação pertence em comum a várias pessoas (v.g. cônjuges (…). O principio é aqui a igualdade tanto no plano interno como externo: o consentimento de qualquer dos titulares será bastante para só por si e mesmo com a oposição de outro ou outros - legitimar a entrada de terceiros”(ob. citada, pág. 705 e Acórdão do STJ de 23.03.94 aí citado)
Acresce que, a doutrina tem entendido que a concordância do portador do bem jurídico afasta a responsabilidade do agente a título da violação do domicílio em qualquer uma das modalidades. Trata-se de um caso de acordo que exclui a tipicidade (cfr. Costa Andrade, in “Consentimento”, pág. 362 e ss.).
Ora, afigura-se-nos que, no que concerne à arguida C………., estamos perante um erro sobre a ilicitude.
Preceitua o art. 17º do Código Penal que:
1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.
Ora, atendendo a que a arguida C………. sabia que o assistente e arguida D………. são casados, que a casa “era dos dois” e embora separados de facto, ela ainda era “dona” da mesma, afigura-se-nos que ao ter como válido o consentimento da sua prima, a arguida C………. actuou com o cuidado que uma pessoa portadora de uma recta consciência ético jurídica actuaria. Aliás, tal entendimento de que o consentimento da arguida D………. era válido foi perfilhado pela Digna Magistrada do Ministério Público no seu douto despacho de arquivamento.
Pelo exposto, entendemos que o erro da arguida não lhe é censurável.
E mesmo que assim não se entenda, a versão da arguida atentas as circunstâncias expostas, e à posição do arguido ora dizendo-lhe que tinha que se retirar ora convidando-a a sentar-se numa cadeira e à mesa, não foi uma posição concludente e clara no sentido de que a arguida C………. tinha que se retirar, pelo que, faltando este elemento do crime, tornam-se despiciendas tecer quaisquer outras considerações, por não se verificar o tipo de ilícito em causa.

Concluindo:
A ponderação de todos os elementos de prova coligidos em sede de Inquérito e em sede de instrução, supra referidos, relacionados e conjugados entre si, resulta que, no presente caso, os indícios recolhidos não são, de todo, suficientes para a decisão de submeter a causa a julgamento, já que se assim fosse, a absolvição será mais provável do que a condenação, sendo que o non liquet na questão da prova sempre terá de ser valorado a favor do arguido.
*
8.
Em face do exposto, por se entender que não foram recolhidos indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação às arguidas de uma pena, por virtude da imputação às mesmas dos factos constantes do Requerimento de abertura de Instrução, por não se indiciar, desde logo, o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de violação de domicilio e de introdução em lugar vedado ao público, p. e p., respectivamente, pelos art.s 190º e 191º do Código Penal, nem de qualquer outro ilícito criminal, decido, ao abrigo do disposto no art. 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal, não pronunciar as arguidas C………. e D………., pelos factos e disposições legais constantes do RAI e, em consequência, determinar o oportuno arquivamento dos autos”.
IV
Apreciando:
1. Em suma, decidiu o tribunal recorrido não pronunciar as arguidas porque ambas agiram numa situação de erro sobre a ilicitude, não censurável, que exclui o dolo.
Concordando-se com a decisão final de não pronúncia, parece-nos, no entanto, que a solução jurídica pode e deve assentar noutros fundamentos.
Diz o artigo 190º do Código Penal que:
“1. Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. (...)”.
Refere-se e bem no despacho impugnado que o bem jurídico protegido com esta incriminação “é a privacidade/intimidade. Que só é protegida face a agressões qualificadas pela exigência de violação de uma esfera pessoal espacialmente limitada e fisicamente assegurada: a habitação”[2].
Por sua vez, “o bem jurídico analisa-se …numa dupla dimensão: uma dimensão formal (a ultrapassagem de um espaço fisicamente assegurado e hoc sensu a violação da posição de domínio que confere ao portador concreto o direito de admitir e excluir); e uma dimensão material, correspondente aos valores ou interesses pertinentes à privacidade/intimidade. Esta última uma dimensão cujo peso e hermenêutico pode ser determinante na definição da compreensão e alcance de muitos elementos da factualidade típica (v. g. objecto da acção, titular do direito, início e termo do direito, etc.)”[3].
O objecto da acção é a habitação, sendo esta o espaço fisicamente fechado - quatro paredes e um telhado -, efectivamente reservadas ao alojamento de uma ou várias pessoas, nomeadamente de uma família, associada, na sua forma mais paradigmática, à casa. Ou, no dizer de FECHNER[4], “a habitação é o pedaço mais visível do espaço reservado ao indivíduo”.

2. Definido e delimitado o bem jurídico protegido, cumpre agora averiguar do seu titular, no caso que nos ocupa.
Segundo a alegação do recorrente, é ele o seu portador, na medida em que a arguida D………., sua mulher, abandonou a casa no dia 5 de Outubro de 2006, sem qualquer intenção de regressar, ficando a viver na casa, o assistente e a filha.
E assim foi igualmente entendido pelo tribunal recorrido que, apoiando-se na doutrina de Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, fls. 704 e na jurisprudência do ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 20.2.2002, proferido no processo 0111124, afirma que “a habitação da arguida Elisabeth, penalmente tutelada, terminou com a sua saída de casa, ocorrendo, nessa altura, o termo efectivo daquela esfera de privacidade e segredo”.
Ora, neste particular, é diferente o nosso entendimento, na medida em que, com os elementos que o processo proporciona, não é possível nem legítimo concluir que a recorrida D………. deixou de ter qualquer tutela ou protecção quanto à casa que até então era a casa da família, o designado lar conjugal, onde coabitavam ela, o assistente e a filha.
Entre o assistente e recorrida D………. existe um vínculo[5] e forte, que não pode ser considerado indiferente: o matrimónio.
Do casamento entre o assistente e a recorrida nasceram direitos e obrigações, que são relevantes e que devem ser atendidas na dinâmica do relacionamento entre ambos e essencialmente no enquadramento jurídico da conduta da recorrida D………. .
“O casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” - artigo 1671º, nº 1, do Código civil.
E “a direcção da família pertence a ambos os cônjuges…” - nº 2, do mesmo preceito.
“Os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família atendendo, nomeadamente, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar” - artigo 2673º, nº 1, do Código Civil -, devendo os mesmos adoptar esta residência - nº 2, do mesmo preceito.
De entre os deveres conjugais, é sabido que constam os de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.
Significa tudo isto que, a residência da família e a residência dos cônjuges, é um facto relevante considerado pelo legislador, atribuindo-lhe mesmo efeitos e protecção, no que respeita à sua eventual disposição ou transmissão, pressupondo ou exigindo sempre o consentimento de ambos: v. artigos 1682º-A, nº 2 e 1682º-B, ambos do Código Civil.

3. Contrariamente ao alegado pelo assistente, a arguida D………. diz que saiu da casa de morada de família, com a filha, em virtude de estar a ser vítima de maus tratos pelo marido, ora assistente - declarações de fls. 24 e 25 dos autos.
Não permitem estes autos apurar das verdadeiras razões da saída da arguida da casa de morada de família, nem se conhece qual foi, exactamente, a evolução da situação jurídica deste casal após a ocorrência dos factos que originaram este processo bem como qual a situação actual. Embora ajudasse a perceber melhor, não se afigura de todo imprescindível para a apreciação do recurso.
Facto assente é que, ou de motu próprio ou devido aos maus tratos, a arguida saiu da casa de morada de família com a filha, continuando o assistente a morar na casa.
E na sequência desta saída, em 27 de Novembro foi fixado provisoriamente o poder paternal da filha do casal, nos termos expressos na certidão de fls. 178 e 179.
Acontece que a simples separação de facto entre estes cônjuges, não faz cessar de imediato o casamento, que se mantém, igualmente se mantendo os deveres conjugais[6], regulando o legislador o caso concreto do dever de assistência, nos termos do artigo 1675º, do Código Civil, sendo a regra, a da manutenção, se a separação não for imputável a qualquer dos cônjuges.
De entre os deveres conjugais e no que ao caso interessa, persiste o de coabitação.
Este traduz-se no dever de fazer vida em comum, debaixo do mesmo tecto e abrange o designado “débito conjugal”, o qual se traduz, por sua vez, no dever de cada um dos cônjuges ter relações de sexo com o outro - v. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição, fls. 257 e 258.
Não se considerando findo ou suspenso por inexistência de divórcio, conforme se referiu na nota de rodapé anterior (6), também a simples separação de facto não o fez cessar.
Ora, conjugando todos estes factos e disposições legais e o que as regras da experiência nos ditam, em que não raras vezes após um período[7] de separação entre cônjuges existe uma reconciliação entre ambos, não tem em nosso entender qualquer base legal a premissa assumida pelo assistente de que, com a saída da arguida D………. no dia 5 de Outubro de 2006, a mesma deixou desde logo, a partir daquela data, de poder entrar na casa de habitação ou de morada de família, sem o consentimento do assistente.
Assistente e arguida já viviam juntos, como marido e mulher, há mais de nove anos. Tinham a sua casa de morada de família, onde ambos viviam com a filha do casal. Por desavenças conjugais, surgiu uma separação física de ambos. Mas tal atitude da arguida, ainda que não apoiada material e processualmente em termos de imputação de culpa, ao assistente[8], não impede que a mesma, na sua qualidade de cônjuge, possa ter acesso à casa de morada de família, por ter perdido o direito de aí se deslocar ou pernoitar.
Separação de facto entre cônjuges é uma coisa; outra, diferente, é o uso e fruição da casa de morada de família. É que, mesmo em situação de separação, a casa pode ser fruída por ambos os cônjuges. Não existe qualquer impossibilidade legal ou física para que assim não possa ser.
A não ser que os cônjuges, expressamente, por acordo, estipulem um regime diferente, nomeadamente acordem que apenas um deles passará a habitar a casa que é do casal.
Não pode o assistente entender e concluir como concluiu, que com a saída da arguida, a mesma deixou de poder regressar à habitação, em qualquer circunstância, quer para usufruir de alguns bens pessoais que aí ainda mantivesse, quer para aí pernoitar, quer para aí receber algum amigo ou familiar[9].
Uma relação conjugal é uma relação, por natureza e em regra, de emoções, o que significa que o que hoje e agora é amor, no minuto ou dia seguinte pode ser ódio e vice-versa.
Pelo que a decisão de sair de casa em determinado momento, pode não significar abdicar ou prescindir de querer continuar a habitar/usufruir a casa que até então foi do casal, quer em comunhão com o outro cônjuge[10], quer em regime de exclusividade.
Na verdade, apesar de ter saído de casa, nada impedia a arguida D………. - a não ser que houvesse acordo com o assistente noutro sentido -, de requerer ao tribunal o direito a habitar a casa de morada de família, quer a título provisório, quer a título definitivo - v. artigos 1793º, do C. Civil e 1413º, do Código de Processo Civil, caso o pedido seja feito sem ser na pendência de acção de divórcio e 1407º, nº 7, deste último diploma, caso seja feito na pendência de acção de divórcio litigioso, sendo certo que, na acção de divórcio por mútuo consentimento, é condição daquele, o acordo dos cônjuges, nesta matéria.

4. Sendo este o enquadramento legal, entendemos que, no fundo, a arguida agiu e portou-se de acordo com o mesmo: a sua saída de casa, até pelas razões por que o fez, não significou que quisesse e tivesse abdicado de ter acesso à casa de habitação ou lar conjugal, sobretudo depois de ter sido fixado provisoriamente o poder paternal da filha e a mesma ter ficado com o direito de visitas.
Entendeu a arguida que podia exercer esse direito, nomeadamente com o acesso à casa, desde logo como forma de melhor exercer esse direito. A arguida não só o declarou expressamente ao assistente como se portou como tal, exigindo a entrada em casa.
Toda a ocorrência dos factos e respectivo enquadramento jurídico, tem como pano de fundo o factor tempo, na medida em que tudo acontece ou ocorre decorridos apenas alguns dias, no máximo, dois meses, da saída da arguida de casa, tendo ainda como pressuposto que, antes destes factos, a arguida já tinha ido a casa visitar a filha, sem quaisquer conflitos.
Ou seja, todo o circunstancialismo ocorre ainda numa altura que se pode designar de transitório, entre uma coabitação pacífica para uma separação de facto stricto sensu, sem nada estar ainda definido entre os cônjuges, incluindo o direito a habitar a casa de morada de família.
Esta situação não é comparável àquela ou àquelas em que a separação já perdura no tempo, meses, anos ou mais, em que, por acordo expresso ou ainda que por mero acordo tácito, os cônjuges assumem a separação como duradoura ou definitiva e passam a viver em lugares diferentes, cada um com a sua residência, em separado.
Temos para nós como certo que, ainda que juridicamente casados e ainda que a casa, bem comum do casal ou arrendada, passou a ser só a residência de um deles, passou a ter também uma protecção diferente.
Enquanto que na vivência comum, na casa do casal, os cônjuges partilham não só o espaço físico mas a sua privacidade/intimidade, havendo consentimento e aceitação recíproca nesta partilha, com a sua separação mais ou menos prolongada, essa intimidade e partilha deixou de ter sentido, passando a ter tratamento de terceiros entre si.
E não deixa de ser relevante que mesmo para efeitos de fundamento de divórcio litigioso, a lei só atribui, por enquanto, efeitos jurídicos, à separação de facto superior a três anos.
Aceita-se, no entanto, que para efeitos de protecção do domicílio de qualquer cônjuge, tendo em conta o bem jurídico protegido, o prazo do término da tutela da habitação para aquele que sai, seja diferente.
Pressuposto essencial é que na sequência dessa separação exista também uma clara definição/separação de domicílios, aceite pacificamente entre os cônjuges, sem qualquer referência temporal, que poderá coincidir até com a data da saída de qualquer deles de casa ou definida pela perduração da separação no tempo, que traduza uma clara separação de vivências e intimidade entre os cônjuges.
Julgamos que deverá ser com este sentido que deve ser interpretada a jurisprudência citada quer pelo assistente quer pela decisão recorrida, pois em ambas é apontado o período aproximado de um ano de separação de facto:
- Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 21.6.1990, proferido no processo 041472, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jstj - fls.72;
- Ac. desta Relação do Porto de 11.6.2001, citado pelo assistente a fls 75 bem como na decisão recorrida, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrp, sendo o teor do sumário o seguinte:
“tendo um co- titular de uma casa deixado de a habitar há mais de um ano e passando a mesma a servir de habitação de outro co-titular, não pode o primeiro aí penetrar sem o consentimento do segundo(...)”.
Por sua vez, exemplificativo do que se disse sobre o direito a habitar a casa de morada de família por qualquer dos cônjuges, decidiu-se no ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 29.1.2003, proferido no processo nº 0241383, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrp, o seguinte:
“Em caso de divórcio por mútuo consentimento, o dever de coabitação fica suspenso a partir da primeira conferência.
Assim, até tal momento, a casa de morada de família é considerada a residência de ambos os cônjuges, podendo cada um deles nela entrar e permanecer por direito próprio, não obstante existir uma separação de facto do casal.
Deste modo, tendo o arguido entrado na dita casa, antes da primeira conferência citada, não existe violação de domicílio a punir nos termos do artigo 190º do Código Penal, ainda que, de facto, já se encontrasse separado da mulher”.

5. Considerações que afastam qualquer ilicitude da conduta da arguida D………., por a mesma estar legitimada, no período em que o faz - 25 de Dezembro de 2006 -, a entrar na casa de morada de família independentemente da vontade ou consentimento expresso do assistente.
Situação que legitima deste modo também a entrada e presença da arguida C………. na casa, pois esta só o faz por ter o consentimento expresso/solicitação da arguida D………., que se fez acompanhar da prima por recear pela sua segurança e integridade física, resultando das declarações da testemunha E………., ouvida a fls. 169, que também esta a acompanhou em duas ocasiões a casa para visitar a filha.

6. Ademais, no que respeita à conduta da arguida D………. quanto ao dia 25 de Dezembro, mesmo que se entendesse que não poderia já entrar na casa sem o consentimento expresso ou tácito do assistente, resulta indiciado nos autos que este consentimento existiu, discordando apenas da entrada da arguida C………. e nomeadamente que a D………. a tivesse persuadido a entrar.
A optar-se por este entendimento, sempre a conduta da D………. estaria legitimada pelo consentimento do assistente e a ilicitude da conduta da arguida C………. excluída pelo erro não censurável, nos termos exactamente apreciados pelo tribunal recorrido, para cujos fundamentos se remete, ao abrigo do artigo 425º, nº 5, do Código de Processo Penal, aplicável a este acórdão, por analogia.
*
O artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, diz-nos que “ se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia “.

Não tendo sido recolhidos aqueles indícios de verificação dos pressupostos de que depende a aplicação às arguidas de uma pena, deverão estas não ser pronunciadas.

V
Decisão
Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 8 (oito) UCs.

Porto, 14/07/2008
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto

_______________________
[1] Embora no requerimento de abertura de instrução o assistente impute às arguidas outros factos, nas conclusões de recurso do despacho de não pronúncia limita estas aos factos do referido dia 25 de Dezembro.
[2] Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial. Tomo I, pág. 701.
[3] Mesmo autor e obra, fls. 702.
{4] Referenciado por Costa Andrade, in ob. Cit., fls. 702.
[5] Pelo menos existia à data da prática dos factos, ocorridos em 25 de Dezembro de 2006, não constando dos autos outros elementos que nos informem sobre a situação jurídica actual, neste aspecto, sendo certo que a mesma se pode manter ou ter evoluído para uma situação de divórcio, entre outras. De qualquer modo, relevante para apreciação da questão, é a situação jurídica e fáctica dos mesmos, àquela data.
[6] Quer o divórcio quer os deveres conjugais apenas cessam com a dissolução do casamento, decretado por divórcio ou dissolvido por morte, nos termos dos artigos 1788º e 1789º, ambos do código Civil. E no que ao divórcio respeita, deveria diferenciar-se consoante se tratasse de divórcio litigioso - em que só a sentença transitada em julgado produzia efeitos -, ou de divórcio por mútuo. Neste, antes da alteração do DL nº 272/2001, de 13 de Outubro, que revogou, entre outros, o artigo 1777º, do C. Civil, que previa a realização da segunda conferência, o dever de coabitação só ficava suspenso a partir da realização da primeira conferência, ao abrigo do artigo 1776º, nº 3, do mesmo diploma legal.
[7] Que pode atingir não só dias como até meses.
[8] Embora a crer no que a arguida diz, de ser vítima de maus tratos, essa imputação exista.
[9] Pois pode acontecer que, por força da necessidade de sair de casa para não ser vítima de qualquer ofensa ou maus tratos, a cônjuge mulher tivesse que ir viver para um quarto ou residencial sem as condições de aí receber familiares e amigos e mantivesse interesse em recebê-los em casa, como sempre.
[10] Podendo esta partilha voltar a ser em regime de coabitação pura ou apenas de partilha do mesmo espaço físico, a demais vida em separado.

SINOA

A respeito da nomeação de um único defensor a diversos arguidos no âmbito do SINOA , informo que tal deverá ser feito através de uma primeira solicitação de defensor em relação a um deles, averbando-se depois no "cancelar" o defensor indicado as demais arguidos.