quinta-feira, 27 de outubro de 2011

INJÚRIA/DIFAMAÇÃO - PESSOA COLETIVA

Acórdão da Relação do Porto de 14-09-2011

Proc. 19460/09.8TDPRT.P1

Relator: ERNESTO NASCIMENTO

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Sumário (de www.dgsi.pt)

I - Se, relativamente a pessoa singular, em sede de difamação ou de injúria, tanto importa fazer uma imputação desonrosa de um facto como formular um juízo, de igual sorte desonroso, já no âmbito da ofensa a pessoa coletiva, apenas releva a imputação de factos.

II - Posto que grosseira e ordinária, a expressão merda de empresa com que o arguido se refere à assistente (pessoa coletiva) não assume dignidade penal por comportar apenas um juízo de valor, sem imputação de factos.

Processo comum singular 19460/09.8TDPRT da 3.ª secção do 3.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto

Relator - Ernesto Nascimento

Adjunto - Artur Oliveira

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

Texto Parcial:

“…III. 2. 1. Os fundamentos da decisão recorrida.

A acusação particular deduzida pela assistente B, Lda. Foi rejeitada, por ter sido considerada manifestamente infundada, na consideração de que os factos imputados ao arguido não constituíam crime, relativamente à sociedade, única assistente constituída e com acusação deduzida nos autos, pelo crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.º/1 C Penal.

Isto porque, por um lado, a expressão merda é definida como excremento, porcaria, sujidade, coisa reles, coisa desagradável, insignificância (Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora, 8.ª ed., p. 1081), sendo uma expressão, ainda que rude, grosseira ou vulgar, tem apenas o sentido de desabafo ou lamento e não constitui expressão suscetível de ofender ou denegrir a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidos à ofendida, a empresa B, Lda., nos termos exigidos pelo ilícito em apreço e, por outro lado, quanto à expressão são todos um bando de gatunos e filhos da puta - tidas como aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa singular, mas já não o crédito, prestígio ou a confiança de uma pessoa coletiva - considerou-se que não pode ser dirigida à assistente, B, Lda., enquanto pessoa jurídica, mas antes às pessoas singulares que a constituem, por isso, suscetível de integrar um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º C Penal relativamente a uma pessoa singular, mas já não relativamente à assistente nos autos - pessoa coletiva.

III. 2. 2. Os fundamentos do recurso.

Pretende a recorrente que a atuação do arguido, seu funcionário - no tempo e local de trabalho, na presença de outros funcionários e de clientes - ao dizer que não se importava de ficar sem o seu salário, para a merda da empresa falir e que eram todos um bando de gatunos e filhos da puta, integra a previsão do tipo legal de ofensa a pessoa coletiva, previsto no artigo 187.º/1 C Penal.

Entende, então, a recorrente que, o arguido ao proferir a expressão merda desta empresa colocou em causa o crédito, o prestígio e a confiança da sociedade, pois que afirma um facto que não é verdade, está de má fé e denigre a sua imagem e, por outro lado, ao proferir a expressão são todos um bando de gatunos e filhos da puta, estava, também, como ali, a referir-se à sociedade - como se constata pela análise da frase - e não, como se considerou na decisão recorrida, aos seus sócios.

Isto é, entende a recorrente que o arguido sempre se referiu a si própria e que as expressões referidas não são idóneas a ofender a honra e consideração dos seus sócios, pois que as mesmas não são objetivas nem concretas, não se lhes fazendo uma imputação direta, donde, se encontrarem preenchidos todos os elementos necessários do crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço, como postulado no artigo 187.º C Penal

III. 2. 3. O crime de ofensas a organismo, serviço ou pessoa coletiva.

Dispõe o n.º 1 do artigo 187.º C Penal, que:

Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

Esta norma foi introduzida na Reforma operada pelo Decreto Lei 48/95, de 15.03, colocando-se fim à controvérsia a que se vinha assistindo sobre a questão de saber se as pessoas coletivas podiam ou não ser sujeito passivo de crimes contra a honra.

Como consta da ata n.º 25 da Comissão Revisora do C Penal de 1995, visa o tipo legal previsto no artigo 187.º C Penal criminalizar ações (os rumores) não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa coletiva, valores que não se incluem em rigor no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria.

Como é sabido os tipos legais de difamação e de injúria, previstos, respetivamente, nos artigos 180.º e 181.º C Penal, pressupõem, respetivamente, a imputação de um facto ou a formulação de um juízo, bem como em qualquer dos casos, a sua reprodução - no primeiro - e a imputação de factos ou a utilização de palavras - no segundo.

Por seu lado, o tipo objetivo de ilícito do artigo 187.º C Penal pressupõe, a afirmação ou a propalação de factos inverídicos; idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa coletiva; que o agente não tenha fundamento para, em boa fé, os reputar de verdadeiros.

III. 2. 4. Conhecendo.

O dito do arguido - não me importava de ficar sem o meu salário, para esta merda desta empresa falir, são todos um bando de gatunos e filhos da puta.

Começaremos a sua análise pela parte final.

Obviamente que, sem descurar e olvidar - antes tendo presente - a primeira arte da expressão, de caráter único de resto, proferida num mesmo momento, de um só fôlego - afirmar-se que são todos uns gatunos e filhos da puta, no seguimento de se ter afirmado que a empresa era uma merda, visa tão só as pessoas de alguém com ela relacionado.

Quem, a represente, quem a dirige, o que é compatível com os seus sócios e ou gerentes.

É a eles que o arguido se refere, inequivocamente, quando afirma, serem todos um bando de gatunos e filhos da puta.

Desde logo, a empresa é uma entidade singular, por definição e, o arguido utiliza, não só o plural, para se referir a quem tem em mente na sua afirmação, como, utiliza, mesmo, um nome coletivo, bando, o que pressupõe, naturalmente, uma pluralidade de visados/destinatários, o que não pode deixar de afastar, liminarmente, qualquer possibilidade de se estar a referir, nesse segmento, sequer, ou também, à sociedade.

Por outro lado a natureza das expressões utilizadas, gatuno e filhos da puta, qualquer delas, pelo seu sentido etimológico e corrente, com que vulgarmente são utilizadas, traduzindo ligações a desonestidades e atos menos sérios, necessariamente, se reportam a pessoas singulares e não a sociedades.

Donde, manifesta e inequivocamente que a parte final da expressão do arguido não pode ter tido a sociedade como alvo.

Não lhe era direcionada, nem de resto é idónea, pelo seu significado intrínseco, a visar.

Visava, seguramente as pessoas - mais do que uma - que o arguido identifica com a empresa, porventura os seus sócios e ou gerentes.

Visados que, apesar de não terem podido deixar de tomar conhecimento do que o arguido afirmou não consideraram que os juízos de valor a que se reconduzem as expressões bando de gatunos e filhos da puta, como ofensivas da sua honra e consideração, do seu bom nome, pelo menos por forma a justificar a instauração de um processo crime.

Bem andou, a decisão recorrida, desde logo, neste segmento ao considerar que com as precisas expressões bando de gatunos e filhos da puta se não dirigiam à sociedade assistente, pelo que a mesma não constituía crime - atentando-se naturalmente que estamos em sede de crimes de natureza particular e que os visados não se queixaram, sequer e quem assumiu as dores da ofensa foi a sociedade, enquanto tal.

Quanto ao mais.

Também não merece censura a decisão recorrida, ao considerar que a expressão merda de empresa no contexto e que foi afirmada traduz uma expressão rude, grosseira, vulgar, com um sentido de desabafo ou lamento, mas não suscetível de ofender ou denegrir a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidos à assistente.

Ademais e decisivamente, a anteceder tal género de apreciação, atinente à objetividade da expressão, ao contrário do que exige o tipo em questão, merda de empresa não encerra, em si mesmo, quaisquer factos, mas tão só constitui um juízo (rude e grosseiro) de valor que a norma em causa não prevê, como forma de cometimento do ilícito.

Se em sede de difamação tanto importa, pois, fazer uma imputação desonrosa de um facto, fulano tirou-me a carteira, como formular um juízo, de igual sorte, desonroso, fulano é um ladrão e se em sede de injúria tanto basta a imputação do mesmo facto ou a afirmação da palavra, já no âmbito da ofensa a pessoa coletiva, apenas releva a imputação de factos.

Donde, ressalta um evidente interesse, real e efetivo na distinção (tarefa, as mais das vezes, plena de dificuldades) entre facto, por um lado, juízo e palavras, por outro.

A noção de facto constitui, assim, o ponto nuclear, no conhecimento da relevância jurídico-criminal da conduta do arguido.

A propósito da distinção facto versus juízo, refere o Prof. Faria Costa in Comentário Conimbricense: facto é o que se traduz naquilo que é ou que acontece, na medida em que se considera como um dado real da existência, facto é um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, um juízo de existência.

Um facto é um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos, distinguindo-se, neste sentido, dos acontecimentos, que são também factos, mas que se expressam por conjunto de cações que se protelam no tempo.

Por sua vez, o juízo, independentemente dos domínios em que pode operar (juízos psicológico, lógico, axiológico, jurídico) deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa a existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor.

Quanto à palavra, a questão por demais evidente, não suscita dúvidas, de maior.

No caso concreto, com a expressão merda de empresa, seguramente que não estamos na presença, da imputação de factos, mas fundamentalmente, perante a formulação de um juízo de valor, sobre a imagem que o arguido tem da assistente (ainda que diretamente relacionada com os comportamentos e posturas que conhece dos seus representantes).

Merda de empresa não contém qualquer elemento de descrição/narração de realidade factual.

A expressão merda de empresa numa linguagem boçal, grosseira e ordinária, não tem outro significado que não seja adjetivar a imagem que o arguido tem da assistente e que equivale a má, pouco correta e pouco séria.

Donde, no caso concreto, uma vez que o que o arguido fez, foi formular um juízo de valor e não afirmar, ou propalar factos, modo, via, instrumento, de todo, não previsto, no tipo legal do artigo 187.º C Penal, não assume a conduta do arguido dignidade penal, por falta de tipicidade, podendo, então, a assistente, através de outro ramo de direito - o civil - satisfazer perfeita e plenamente - aliás até de maneira sistematicamente mais coerente e eficaz - os seus interesses, em ver ressarcidos os prejuízos que a alegada violação da sua credibilidade, do seu prestígio e confiança, provocou.

Se a emissão de um juízo de valor não é suscetível de integrar a factualidade típica, desde logo, com este fundamento - que precede a análise, avaliação e apreciação do sentido, que lhe é dado, com que foi utilizado e que é idóneo a traduzir - nunca por nunca, este segmento da expressão utilizada pelo arguido, se pode traduzir ou ter a virtualidade de integrar o tipo do artigo 187.º/1 C Penal - que é o que aqui está em questão.

Em resumo, não pode deixar de se manter o despacho recorrido, ainda que com outros argumentos - na consideração de que a ofensa prevista no tipo de crime do artigo 187.º/1 C Penal, não pode ser cometida, senão pela afirmação ou propalação de factos, estando excluída a possibilidade - prevista para os crimes de difamação e de injúria - de ser cometido através da emissão de juízos de valor ou com palavras ofensivas.

É tempo de concluir, afirmando a falta de fundamento, para o recurso apresentado pela assistente.

IV. DISPOSITIVO

Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação, em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente, B, Lda., confirmando-se - ainda que com fundamentação diversa - a decisão recorrida.

Taxa de justiça pela recorrente que se fixa no equivalente a 4 UC,s.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2011.setembro.14

Ernesto de Jesus de Deus Nascimento

Artur Manuel da Silva Oliveira

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico.