terça-feira, 8 de abril de 2008

Acusação – Crime de Aproveitamento de Obra Usurpada

Inquérito n.º

*

ACUSAÇÃO

O Ministério Público acusa em processo comum e para julgamento por Tribunal de estrutura singular:

. João …;


 

porquanto:

No dia …/…/…, pelas …h…, junto ao recinto do mercado de …, na Avenida …., em …, o arguido tinha no interior do veículo ligeiro de mercadorias de maca …, de matrícula …, que ali havia estacionado, acondicionados em caixas de papelão, 460 videogramas de formato DVD e 300 fonogramas de formato CD, para venda ao público a 5 € ( cinco euros ) cada dois DVD's ou CD's, os quais havia adquirido em … por … € ( cem euros ), não possuindo qualquer documento referente à aquisição dos mesmos.

O arguido não apresentou qualquer documento dos autores, produtores ou seus legítimos representantes, autorizando a fixação, reprodução e/ou distribuição pública dos referidos CD's e DVD's.

    Sujeitos tais CD's e DVD's a exame, designadamente a fls. 80 a 138, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais, aí se refere e conclui do seguinte modo:


 

    ( inserir o exame )


 

    O arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado de colocar à venda obras de criação musical e artística fixadas em formato de CD-R's e DVD-R's descritos no exame, sem autorização dos autores ou produtores, o que representou.

    O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.

Pelo exposto, incorreu o arguido em autoria material, sob a forma consumada, em:

.um crime de aproveitamento de obra usurpada, p. e p. pelas normas conjugadas do disposto no n.º 1 do artigo 199º e artigo 197º, ambos do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14.03, e alterado pelas Leis n.ºs 45/85, de 17.09, e 114/91, de 03.09, pelos Decretos-Leis n.ºs 332/97 e 334/97, ambos de 27.11, e pelas Leis n.ºs 50/04, de 24.08, com referência às normas contidas nos artigos 9º, 11º, 24º, 41º/1, 68º, 141º, 184º e 195º daquele diploma legal (entretanto alterado pelas Leis n.º 24/06, de 30.06, e 16/08, de 01.04 ).

Requer-se a declaração de perda a favor do Estado dos objectos apreendidos a fls. 5 dos autos, devendo ordenar-se a sua destruição, porquanto foram destinados à prática de facto ilícito típico e, atenta a sua natureza, oferecerem sérios riscos de poderem vir a ser utilizados para a prática de futuros crimes de idêntico jaez, nos termos do disposto nas normas contidas no n.º 1 e n.º 2 do artigo 201º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, na redacção indicada, e do n.º 1 do artigo 109º do Código Penal.

*

Prova:

I - Documental:

- auto de apreensão …; e

- certificado de registo criminal …;


 

II - Pericial:

– auto de exame directo de fls. … dos autos.


 

III - Testemunhal:

1 – M…

*

Estatuto Coactivo:

(…)


 

*

    Nomeio defensora ao arguido a Dr.ª …, advogada de escala, nos termos do art. 64º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.

    Comunique ( art. 66º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal ), sendo ao arguido com identificação do escritório da ilustre defensora.

Advirta o arguido de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários da defensora oficiosa, salvo se requerer e lhe for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição da defensora mediante a constituição de advogado(a).

    Notifique arguido para juntar aos autos, no prazo de 10 dias, a declaração a que alude o art. 39º, n.º 3, da Lei n.º 34/04, de 29.07, na redacção da Lei n.º 47/07, de 28.08, remetendo-lhe formulário para o efeito, mais devendo ser advertido de que:

- prestando falsas declarações na referida declaração, pagará 750 €, nos termos do art. 39º, n.º 8, da Lei n.º 34/04, de 29.07, na redacção da Lei n.º 47/07, de 28.08;

- caso não junte aos autos a declaração e não constitua advogado nos autos, pagará 450 € a título de honorários ao defensor nomeado (art. 39º, n.º 9, da Lei n.º 34/04, de 29.07, na redacção da Lei n.º 47/07, de 28.08 ).

    Comunique a nomeação ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados ( art. 3º, n.º 3, da Portaria n.º 10/08, de 03.01 ).

*

    Cumpra o disposto no art. 283º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal.

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    Processei, imprimi, revi e assinei, seguindo os versos em branco (artigo 94º/2, do Código de Processo Penal).

Local/Data

O Procurador-Adjunto

Acusação – Crime ( sexual ) Continuado


Inquérito n.º


O Ministério Público acusa em processo comum e para julgamento por tribunal de estrutura singular, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

J …, residente …


porquanto:

No dia 11 de Novembro de 2007, em hora não concretamente apurada, de noite, na festa de S. Martinho, em …, o arguido conheceu a menor Berta …, à data com treze anos de idade (nasceu no dia 6 de Outubro de 1994) e trocaram números de telemóvel.

No dia 24 de Novembro de 2007, perto da praia, em …, o arguido encontrou a menor Berta…, ficaram a conversar cerca de 30 minutos e combinaram um novo encontro no dia seguinte.

No dia 25 de Novembro de 2007, na sequência do acordado no dia anterior, o arguido e a menor Berta... passearam junto à beira-mar, em Buarcos, Figueira da Foz, e beijaram-se na boca, com introdução da língua na boca um do outro.

No dia 1 de Dezembro de 2007, o arguido e a menor Berta… encontraram-se em …, passearam juntos, acariciaram-se, beijaram-se na boca, com introdução da língua na boca um do outro, e conversaram sobre a possibilidade de virem a ter relações sexuais.

No dia 2 de Dezembro de 2007, o arguido, no seguimento da conversa mantida no dia anterior com a menor Berta …, aguardou que a sua mãe se deslocasse ao cabeleireiro, pediu-lhe as chaves do seu apartamento, sito na rua …, em …, e ali se encontrou com a menor, por volta das 14 horas.

Depois de ter mostrado o apartamento à menor, de ter colocado música e de ter passeado na varanda, o arguido beijou a menor na boca, com introdução da língua na boca um do outro, deitou-a num sofá da sala, acariciou-lhe os seios e despiu-lhe as calças e as cuecas.

De seguida, o arguido despiu as suas calças e cuecas e, posicionado por cima da menor, introduziu o pénis erecto na vagina da menor, mantendo com ela relações sexuais de cópula, sem ejaculação e sem utilização de preservativo.

No mesmo dia 2 de Dezembro de 2007, pelas 21 horas, o arguido enviou uma mensagem para o telemóvel da menor Berta … na qual escreveu "já dormes não gostaste eu adorei amo-te".

Até àquela data, a menor nunca tinha mantido relações sexuais com nenhum homem e apresentava, em 18 Dezembro de 2007, hímen complacente, com ostíolo himeneal permeável aos dedos indicador e médio justapostos.

Em Dezembro de 2007, a menor Berta … tinha uma idade aparente de harmonia com a idade civil.

O arguido tem uma filha menor, que tinha oito anos à data dos factos, pelo que é conhecedor da desenvoltura feminina das mulheres pré-adolescentes.

Sabia, portanto, o arguido que a Berta... era menor e que tinha a idade de treze anos.

As condutas do arguido acima descritas, praticadas nos dias 24 e 25 de Novembro e 1 e 2 de Dezembro de 2007, são idênticas, pese embora com graus de intensidade diferentes, designadamente a manutenção de um relacionamento amoroso com a menor Berta …, que se inicia com troca de beijos e termina com uma relação sexual de cópula.

A menor Berta … mostrou-se interessada e colaborante com o arguido e mostrou disponibilidade para beijar o arguido na boca, com introdução da língua na boca um do outro, ser por ele acariciada nos seios e com ele manter relações sexuais de cópula.

O arguido actuou, então, de forma homogénea e no contexto de uma mesma solicitação exterior.

O arguido agiu sempre de forma livre e com o propósito concretizado de praticar actos sexuais de relevo, incluindo um acto sexual de cópula, com uma menor de treze anos de idade, bem sabendo ainda que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual.

O arguido sabia também serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.

Cometeu, pelo exposto, em autoria material, sob a forma consumada:


- um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 171.º, nºs 1 e 2, com referência ao artigo 30.º, nºs 2 e 3, do Código Penal.

*


Artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal

O arguido J… é acusado da prática de uma crime continuado de abuso sexual de crianças, punível com pena de prisão de três a dez anos.

Porém, pese embora a moldura penal aplicável ao crime praticado pelo arguido, que demandaria, por força do disposto no artigo 14°, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, a competência do Tribunal Colectivo, estamos em crer que não lhe será, em concreto, de aplicar pena de prisão superior a cinco anos.

Com efeito, a menor Berta … já tinha 13 anos à data dos factos e mostrou disponibilidade para o relacionamento com o arguido, colaborando nos beijos, carícias e relações sexuais.

Acresce que do certificado do registo criminal do arguido (fls. 68), nada consta e apenas há notícia que terá sido condenado pela prática de um crime de furto, portanto pela prática de um crime cujo bem jurídico protegido não se assemelha aquele que o legislador visou proteger com o ilícito criminal previsto e punido pelo artigo 171º, nºs 1 e 2, do Código Penal, pelo qual vai acusado.

Não se olvidará, por outro lado, que o arguido se encontra familiar e profissionalmente inserido, residindo com a sua mãe e irmã e exercendo a profissão de ...

O circunstancialismo referido permite considerar que a pena a aplicar ao arguido não deverá exceder o limite de cinco anos de prisão.

Fica, pois, condicionada a moldura abstracta aplicável ao ilícito criminal imputado ao arguido, razão pela qual se decide lançar mão da faculdade prevista no artigo 16°, n.º 3, do Código de Processo Penal e introduzir os factos em juízo para serem julgados perante o Tribunal Singular.

*


Prova:

  1. Documental:
    1. Certidão de nascimento de Berta … (fls. 33);

  2. Pericial:
    1. Relatório de perícia de natureza sexual em direito penal (fls. 37 a 40); e
    2. Auto de exame directo (fls. 41 a 43);

  3. Testemunhal

    - …

  4. Declarações para memória futura de Berta…, a fls. 84, 85 e 103 a 153

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Medidas de coacção:

(…)

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Como defensor oficioso do arguido J… mantém-se o Dr. …, nomeado a fls. 51.

Comunique a nomeação ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados (artigo 3.º, n.º 3, da Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro).

*

Notifique o arguido da acusação pública ora deduzida, através de via postal simples (artigos 277.º, n.º 3, ex vi do 283º, nºs 5 e 6 do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 113.º, nºs 1, al. c) e 3, do mesmo diploma).

Informe o arguido que, querendo, poderá requerer a abertura da instrução, no prazo de 20 dias, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.

*

Notifique o Ilustre Defensor nomeado da acusação pública ora deduzida, através de via postal registada (artigos 277.º, n.º 3, ex vi do 283º, nºs 5 e 6 do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 113.º, nºs 1, al. b) e 2, do mesmo diploma).

*

Notifique Maria … (id. a fls. 3), em representação de Berta …, da acusação pública ora deduzida, nos termos dos artigos 277º, n.º 3 ex vi do 283º, n.º 5, do Código de Processo Penal

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Comunique ao Exmo. Sr. Procurador da República, de acordo com a Directiva n.º 1/2002, publicada no DR de 04.04.2002 (Circular n.º 6/2002 PGR), Ponto VI, n.º 3, a aplicação do artigo 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal nos presentes autos.


Processei, imprimi, revi e assinei o texto, seguindo os versos em branco (artigo 94.º, n.º 2, Código de Processo Penal)


Local/Data

O Procurador-Adjunto




Um Acórdão Interessante - videovigilância

Acórdão da Relação do Porto, de 26-03-2008

Processo: 0715930
N.º Convencional: JTRP00041183
Relator: Joaquim Gomes

Sumário:

Não constituem prova proibida no julgamento de um crime de incêndio as imagens dos arguidos captadas em local de acesso público através de um sistema de videovigilância instalado num centro de lavagem de veículos, mesmo que se desconheça se a instalação desse equipamento foi previamente comunicada à Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Texto ( parcial ):

“…2.- Os fundamentos do recurso.
As questões suscitadas em recurso reconduzem-se à ponderação de gravações de vídeo vigilância, enquanto meio proibido de prova, à medida da pena e à sua suspensão.

*

a) Gravações de vídeovigilância.O regime de proibições de prova no âmbito do processo penal, encontra-se essencialmente regulado pelo preceituado nos art. 125.º, 126.º, do Código Processo Penal[2], os quais devem ser conjugados com as garantias constitucionais de defesa, consagradas no art. 32.º, C. Rep., mormente a injunção imposta pelo seu n.º 8, bem como com as disposições específicas que disciplinam a obtenção do meio de prova de que pretende se fazer uso.Deste regime podemos assentar que a realização da justiça penal, num Estado de Direito Democrático, como pretende ser o nosso, deve sempre assentar no respeito e garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, mormente da preservação da dignidade humana.Assim, logo o citado art. 32.º, n.º 8 da C. Rep. é claro ao preceituar que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.” No mesmo sentido se situa o preceituado no art. 126.º, ao enunciar os métodos proibitivos de prova, indicando como um deles, que para aqui releva, “as provas obtidas mediante intromissão na vida privada”. No que concerne à valoração da prova obtida por reproduções mecânicas, no qual se inserem as relativas aos sistemas de videovigilância, haverá ainda que atender ao disposto no art. 167.º, n.º 1 segundo o qual as mesmas “só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas senão forem ilícitas, nos termos da lei penal” – o seu n.º 2 acrescenta que “Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro”.Deste art. 167.º, n.º 1, resulta assim uma nítida modelação ou influência do direito penal no regime de proibição das provas – veja-se a propósito Costa Andrade, “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal” (1992), p. 136, quando se refere ao “primado da vertente substantiva”; André Lamas Leite, em “As Escutas Telefónicas – Algumas reflexões em redor do seu regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação”, p. 15. Nesta conformidade, podemos desde já concluir que o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, que tanto versa sobre os meios de prova[3] (título ii), como os meios de obtenção de prova[4] (título iii), vem assim comprimir o princípio da livre apreciação da prova decorrente do art. 127.º, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou de valoração de prova.Por outro lado e como segunda conclusão, tratando-se de prova proibida, a mesma deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo, surgindo como autênticas nulidades insanáveis, a par daquelas que expressamente integram o catálogo do art. 119.º.Resta então saber se a obtenção daquelas imagens mediante a referenciada câmara de videovigilância, desconhecendo-se se este sistema está “licenciado” pela Comissão Nacional de Protecção de Dados [CNPD], configura ou não um meio ilícito de prova. Diga-se, desde já, que a Lei n.º 67/98, de 26/Out., que instituiu o regime jurídico de protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, aplicável igualmente à vídeovigilância [art. 4.º, n.º 4], não impõe o controlo prévio destes sistemas quando não esteja em causa o tratamento de dados sensíveis, considerando-se como tal, entre outras situações, a vida privada do titular dos dados – cfr. art. 28.º e 7.º, n.º 2 desta Lei.A própria CNPD em 2004/Abr./19, na sua deliberação n.º 61/2004, acessível em www.cnpd.pt, traçou então os princípios ou linhas orientadoras sobre o tratamento da videovigilância, com base no quadro jurídico resultante da já citada Lei n.º 67/98, do Dec.-Lei n.º 35/2004, de 21/Fev. e do art. 20.º do Código do Trabalho.E isto quando existem regimes específicos que instituem a obrigatoriedade de instalação destes sistemas, como é o caso da Lei n.º 38/98, de 04/Ago., respeitante à organização de competições desportivas, do Dec.-Lei n.º 139/2002, de 17/Mai., relativo ao fabrico e armazenagem de produtos explosivos.Nessa deliberação e quando está em causa uma infracção criminal, consignou-se a dado momento que “Sendo patente que os sistemas de videovigilância estão direccionados para o desempenho de finalidades relativas à «protecção de pessoas e bens», apresentando-se como medida preventiva e de dissuasão em relação à prática de infracções penais e podendo, ao mesmo tempo, servir de prova nos termos da lei processual penal, é imprescindível que – de acordo com o princípio da necessidade – o acesso às imagens seja restrito às entidades que delas precisam para alcançar as finalidades delineadas. Uma vez detectada a prática de infracção penal, a entidade responsável pelo tratamento deve – com a respectiva participação – enviar ao órgão de polícia criminal ou à autoridade judiciária competente as imagens recolhidas”.Tratando-se de utilização de câmaras de vídeo pelas forças de segurança em locais públicos de utilização comum, já a sua regulação encontra-se estabelecida na Lei n.º 1/2005, de 10/Jan.Mas será que obtenção de filmagens, efectuada por particulares, mediante sistemas de vídeovigilância instalados em locais de acesso público, como sucede com o referenciado centro de lavagens, ainda que não tenha sido notificada a CNPD dessa colocação, constitui um ilícito criminal?Ora de acordo com a Lei n.º 67/98, só o não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados, designadamente a omissão das notificações ou os pedidos de autorização a que se referem os artigos 27.º e 28.º, constituem o crime da previsão do art. 43.º dessa lei, pois tratando-se de uma conduta negligente haverá apenas a contra-ordenação cominada no antecedente artigo 37.º.Segundo o requerimento inicialmente apresentado em audiência de julgamento e no recurso agora em apreço, nunca foi suscitado essa intencionalidade por parte do responsável do tratamento dos dados de vídeovigilância, mas apenas se tinha havido essa comunicação, o que corresponderia a uma eventual contra-ordenação, pelo que, à partida, se afastou e aqui não se coloca, por não se descortinar da sentença recorrida, o referenciado crime do não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados.O recorrente apenas suscita em recurso que a captação mediante gravação em suporte audiovisual das suas imagens naquela ocasião, preenchem o tipo do art. 199.° do C. Penal, relativo a gravações, fotografias e filmagens ilícitas.Mediante tal crime pune-se no seu n.º 2 “quem, contra vontade: Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; [al. a)] ou “Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que tenham sido licitamente obtidos” [al. b)].Mediante este ilícito tutela-se o direito à imagem, constitucionalmente consagrado no art. 26.º da C. Rep. e legalmente no art. 79.º, n.º 1 do Código Civil.No entanto, tem se considerado que será criminalmente atípica, a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente – veja-se a propósito o Ac. R. C. de 2002/Abr./17 [CJ III/40], Ac. R. L. de 2001/Nov./28 [CJ V/138].Até mesmo o art. 70.º, n.º 2 do Código Civil, consagra que “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem …, exigências de policia ou de justiça,…”.Por maioria de razão se deverá estender ao direito penal, o preceituado neste último segmento normativo, face à natureza fragmentária daquele ou ao seu correspondente princípio de intervenção mínima, resultante do art. 18.º, n.º 2, da C. Rep.O único limite para esta justa causa, será sempre a inviolabilidade dos direitos humanos e, como tal, a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e à integridade moral das pessoas, como será o direito ao respeito pela vida privada destas – cfr. art. 8.º da CEDH, o art. 12.º, da DUDH, o art. 17.º do PIDCP, art. 26.º da C. Rep.A propósito, a jurisprudência do TEDH tem entendido que fotografar uma pessoa durante uma manifestação, com vista a identificá-la em futuras manifestações ou a exibição de fotografias tiradas a um suspeito em ocasião de um anterior inquérito policial não constitui uma violação da respectiva vida privada, designadamente do seu direito à imagem – veja-se a Decisão de 1973/Out./12, na sequência da queixa n.º 5877/72; Decisão de 1993/Nov./29, resultante da queixa n.º 20524.A nossa jurisprudência tem, de um modo geral, seguido o mesmo caminho, sendo de salientar ao nível do STJ, por versar provas obtidas por sistemas de videogravação, o Ac. do de 2001/Jun./20 [CJ (S) II/221], segundo o qual:“I.- As proibições de gravação de vídeo mesmo que com o consentimento das pessoas visadas, na medida em que o legislador constitucional e o ordinário pretendem defender a vida, actividade privada das pessoas, pressupõe, v.g., que as imagens tomadas o foram em algum local privado, total ou parcialmente restrito, no qual, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, abrindo-se uma excepção sempre que exigências de polícia ou dos tribunais exigirem ou necessitarem de tais gravações para proteger direitos ou garantias fundamentais que, por exemplo, a vida ou a integridade física exigem.II.- Assim, não é proibida a prova obtida por sistema de videogravação colocado em postos de abastecimento de combustíveis ou noutros locais públicos, com a finalidade de proteger a integridade física, a vida, o património dos proprietários dos veículos ou dos próprios postos de abastecimento perante tentativas de furto ou de roubo”.No mesmo sentido, mas ao nível das Relações, destacamos o Ac. da R. Guimarães de 2004/Mar./29, (recurso n.º 1680/03-2), divulgado em www.dgsi.pt, que versa sobre a captação de imagens por sistema de vídeovigilância num posto de combustível[5], e ainda o Ac. da R. Porto, de 2005/Nov./16 [CJ V/216], este relativo a fotografias obtidas pelos investigadores em locais públicos[6].Também a obtenção de tais imagens em lugares de acesso público existentes nas proximidades de postos de combustível ou de centos de lavagem, não constitui qualquer crime de devassa da vida privada, da previsão do art. 192.º, ou de crime de devassa por meio de informática, estatuído no art. 193.º, ambos do Código Penal, porquanto e como se refere no Ac. R. Porto de 2006/Mai./31 [CJ III/210], mediante tais ilícitos o que se pretende abranger e tutelar é apenas “o núcleo duro da vida privada” e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas.Nesta conformidade, podemos de concluir que os fotogramas obtidos através do sistema de vídeovigilância existentes num centro de lavagem, para protecção dos seus bens e da integridade física de quem aí se encontre, mesmo que se desconheça se esse sistema foi comunicado à CNPD, não correspondem a qualquer método proibitivo de prova, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao “núcleo duro da vida privada” da pessoa visionada.É certo que os fotogramas onde surgem o arguido, resultam de um conhecimento fortuito gravado pelo sistema de vídeovigilância instalado no posto de abastecimento público, mas isso não afecta a licitude desse meio de prova, porquanto o mesmo, como já referimos, não traduz a prática de qualquer ilícito criminal….”

Termo de Identidade e Residência

Acórdão da Relação do Porto, de 26-03-2008
Processo: 0840057
N.º Convencional: JTRP00041130

Sumário:
1. Não vale como notificação da acusação ao arguido a comunicação por via postal simples para a morada indicada aquando da prestação do termo de identidade e residência, se posteriormente indicou outra morada.2. E também essa notificação não pode ser efectuada por via postal simples para a nova morada, se esta se situar em Espanha, por ali não ter aplicação o procedimento previsto no nº 3 do art. 113º do Código de Processo Penal.3. A invalidade da notificação da acusação ao arguido constitui uma irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente no despacho proferido ao abrigo do art. 311º do mesmo diploma legal.

Um Acórdão Interessante - Faca de Cozinha

Relator: Fernando Ribeiro Cardoso
Processo: 169/08-1
Jurisdição: Criminal


DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA. Inexistente. A posse de uma faca de cozinha com punho de madeira e vinte centímetros de comprimento de lâmina, afecta às lides domésticas, não configura o crime de posse de arma proibida. ARMA BRANCA. A faca em questão, sendo indubitavelmente uma arma branca, não é num quadro de mera detenção uma arma branca proibida, para o efeito da integração da conduta do agente na previsão do crime. Com efeito, apesar de ser um objecto que por ser um instrumento corto-perfurante a sua perigosidade é menor, e que com bastante frequência, os cidadãos trazem consigo para os mais variados fins lícitos. Assim, a sua detenção não constitui qualquer anormalidade, não precisa de ser justificada.
Acordam, precedendo conferência, na Relação de Évora:

1. O Ministério Público deduziu acusação e requereu o julgamento, com intervenção do Tribunal colectivo, do arguido A.P.S., melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 151.º n.º1 e 2 do Código Penal, em concurso real com um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º n.º1, alin. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

2. Remetidos os autos à distribuição e cabidos em sorteio à Vara de Competência Mista de ..., o senhor juiz, por seu despacho de 27 de Setembro de 2007, rejeitou a acusação quanto ao crime de detenção de arma proibida, por entender que os factos nela vertidos não são susceptíveis de integrar a prática pelo acusado desse crime que lhe foi imputado.

3. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desse despacho pugnando pela sua revogação e substituição por outro que receba a acusação contra o arguido no que respeita igualmente a esse crime. O Recorrente extrai da motivação de tal recurso as seguintes conclusões:
1.ª - Na acusação considerou-se ter o arguido cometido o crime de detenção de arma proibida, por, no dia 11 de Fevereiro de 2007, pelas 14h35m, trazer consigo uma faca de cozinha de marca desconhecida e sem qualquer número de referência, composta por um punho em madeira com 11, 80 cm de comprimento e uma lâmina com 20 cm, com o comprimento total de 32 cm, do tipo "corto-perfurante", não tendo justificado a sua posse e achando-se estar preenchido o art. 86°, n.° l, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
2.ª - A douta decisão recorrida entendeu que a referida "faca de cozinha", enquanto arma branca, teria aplicação definida, pois que serviria para os usos diários do arguido, que a transportava no seu veículo.
3.ª - É manifesto o vício interpretativo no qual a douta decisão recorrida incorre, ao querer estender o requisito de "sem aplicação definida" às "armas brancas", quando resulta claro da letra da lei que o mesmo, apenas e tão-só, se refere aos "instrumentos".
4.ª - O conceito de "instrumentos sem aplicação definida" já constava do anterior regime legal, designadamente, do art. 3.º n.º l, alínea f), do Decreto-Lei n.º 207°-A/75, de 17 de Abril, o qual proibia a detenção, uso e porte de armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda de outros instrumentos sem aplicação definida, que pudessem ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse, pelo que o elemento histórico também ampara a nossa posição.
5.ª - Aliás, o conceito de "arma branca" está bem delineado no art.2°, n.° l, alínea l), da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, não fazendo sentido que o legislador o quisesse, no art. 86°, n.° l, alínea d), tomar mais fluído ou ambíguo, acrescentando-lhe a expressão sem aplicação definida.
6.ª - Fez o douto despacho recorrido uma incorrecta interpretação do art. 86°, n.° l, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
7.ª - Ainda que se assim se não considere, sempre teríamos como duvidoso que a faca de cozinha que o arguido transportava no seu veículo automóvel fosse uma "arma branca com aplicação definida", por o mesmo a utilizar nos seus" usos diários", já que não resultam dos autos quaisquer referências a que o arguido se servisse dela para esses seus "usos diários"(até porque se trata de uma faca de cozinha transportada num veículo automóvel!), pelo que, também por aqui, não deveria o douto despacho recorrido ter rejeitado a acusação."

4. Não houve resposta ao recurso, que foi admitido por despacho de 20.11.2007.

5. Senhor juiz manteve o despacho recorrido (cf. fls.21).

6. Nesta Relação o Senhor Procurador-Geral Adjunto, louvando-se na argumentação expendida pelo recorrente, defendeu a procedência do recurso.
6.1 - Cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP, não houve resposta.
6.2 - Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
7. Atento que o objecto do recurso é demarcado pelas conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação (art. 412.º n.º 1, do Código de Processo Penal) e ponderados os poderes de cognição deste Tribunal ad quem (art. 428.º, do mesmo Código), importa, no caso, saber se os factos vertidos na acusação integram ou não o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º n.º1, alin. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que o Ministério Público imputou ao arguido.
II
8. Importa, desde logo, reter os seguintes segmentos do processado:
8.1 - O Despacho acusatório em questão, no segmento que importa à decisão recursória, é do seguinte teor:
" No dia 11 de Fevereiro de 2007, pelas 14h 35m, o arguido trazia consigo uma faca de cozinha de marca desconhecida e sem qualquer número de referência, composta por um punho em madeira com 11,80 cm de comprimento e uma lâmina com 20 cm, com o comprimento total de 32 cm, do tipo "corto-perfurante", não tendo justificado a sua posse.
O arguido agiu consciente e voluntariamente. Conhecia as características da descrita faca, bem sabendo que não podia deter e trazer consigo tal instrumento nas referidas circunstâncias, porquanto não justificou a sua posse e a mesma servia para ser usada como arma de agressão.
Sabia ser proibida a sua conduta e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação".
8.2 - O despacho recorrido, no segmento que importa à decisão recursória, é do seguinte teor:
[" O M.P. deduziu acusação contra o arguido A. S., além do mais por um crime de detenção e arma proibida, p. e p., pelo arº 86º, nº 1, al d) da Lei 5/06 de 23.2.
Isto porque o arguido trazia consigo "uma faca de cozinha" com o comprimento de lâmina de 20 cm, do tipo corto-perfurante não tendo justificado a posse (vide artigo 20º da acusação).
Face ao artº 2º, nº 1, l) da referida Lei, é arma branca. Se tivesse lâmina com comprimento inferior a 10 cm, seria, em princípio, instrumento corto-perfurante.
Mas continuaria a ser "faca de cozinha".
Ora, na mencionada alínea d) o legislador indicou vários tipos de armas proibidas, destacando-os uns dos outros através de aposição de várias vírgulas.
Um dos tipos de armas proibidas é "outra armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida, ...".
A referida "faca de cozinha" seja arma branca, como é no caso concreto, seja instrumento, é de aplicação definida, servindo para os usos diários (o arguido transportava-a no seu veiculo).
Entendemos pois que não cabe no tipo legal.
A não justificação da sua posse, como se diz na acusação, só é relevante caso se trate de arma branca, engenho ou instrumento sem aplicação definida.
No caso concreto, não se divisando que a referida "faca de cozinha", arma branca no caso concreto, seja sem aplicação definida o arguido não tinha que justificar a sua posse.
Por isso, afigura-se-nos que juridicamente não praticou o arguido o crime de detenção de arma proibida que lhe vem imputado.
- Pelo exposto, não recebo a acusação do M.P. relativamente a tal crime.
Notifique."
9. A questão posta no recurso consiste em saber se a faca de cozinha que o arguido detinha constitui arma proibida para efeitos de integração da conduta no tipo do artigo 86.º n.º1, alin. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que preceitua:
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(...)
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projécteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.
2 - A detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui, para efeitos do número anterior, detenção de arma fora das condições legais."
Para melhor compreensão da questão, impõe-se dizer que o legislador nacional, em conformidade com a orientação da Directiva n.º 91/477/CEE, de 18 de Junho de 1991, classificou as armas por classes, de A a G, em função do seu grau de perigosidade, do fim a que se destinam e do tipo de utilização que lhes é permitido.
Definem-se como armas e outros acessórios da classe A, um elenco de armas, acessórios e munições cuja proibição de mostra generalizada nos países do espaço europeu, aí se integrando ainda armas cuja detenção, face à sua proliferação no tecido social e à frequência da sua utilização ilícita e criminosa, deve ser desmotivada.
Assim, proíbem-se, entre outras, as armas brancas com lâmina cuja actuação depende de mecanismos.
Prevê-se, de facto, no transcrito art. 86.º, além do mais, a punição para a posse de "arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers [que integram a classe A - cf. n.º2, alin. d) e e) do art. 3.º e que vêm definidas nas alin. ar), aq), ap), ao), an) e aj) do art. 2.º n.º1 do mesmo diploma legal] e de "outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse".
A Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, dá-nos a definição do conceito de "arma branca" na alin. l) do seu art. 2.º, nos seguintes termos:
"Arma branca" todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões.
A enunciação das características de alguns dos objectos que como tal podem ser qualificados de armas brancas deixa de fora outros que na praxe judiciária ganharam essa mesma designação (v. g. matracas, mocas, correntes de bicicletas, tacos de basebol, etc.).
A lei classifica, desde logo, como armas brancas o arco, a arma submarina, a besta, o estilete, a estrela de lançar, a faca de arremesso, a faca borboleta e a faca de abertura automática ou faca de ponta e mola [cf. alin. ae), ai), an), ao), ap), aq) e ar) do n.º1 do citado art. 2.º].
E integra ainda na classe A "as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção" - cf. alin. f) do n.º2 do art. 2.º.
O artigo 4.º n.º1 da Lei n.º 5/2006 determina que "são proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A".
Apesar da interdição referida, o n.º 2 do mesmo artigo prevê que, mediante autorização especial do director nacional da PSP, possam ser autorizados a venda, a aquisição, a cedência e a detenção de armas e acessórios da classe A destinados a museus públicos ou privados, investigação científica ou industrial e utilizações em realizações teatrais, cinematográficas ou outros espectáculos de natureza artística, de reconhecido interesse cultural, com excepção de meios militares e material de guerra cuja autorização é da competência do ministro que tutela o sector da Defesa Nacional.
Ainda que o conceito de arma branca possa abranger múltiplos instrumentos, nem todos eles podem integrar-se no conceito de arma cuja aquisição, detenção, transporte ou uso é proibida e passível de integrar o crime em causa. Só é absolutamente proibida a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte por particulares das armas brancas que integrem a classe A.
Há outras armas brancas, nas quais se incluem os sabres e outras armas tradicionalmente destinadas às artes marciais que integram a classe F) - cf. n.º8, alin. a) do art. 3.º - que podem ser adquiridas através de compra e venda ou doação, estando a aquisição, a detenção, o uso e o porte de armas dessa classe sujeita a licença do director nacional da PSP (cf. art.10.º, 11.º e 17.º). E no caso das armas brancas integradas na classe F, a sua detenção ilegal, apenas faz incorrer o seu autor na prática de uma contra-ordenação.
Para tanto bastará atentar no que dispõe o Artigo 97.º do mesmo diploma que sanciona com coima de EUR 600 a EUR 6000 "quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo reprodução de arma de fogo, arma de alarme, ou armas das classes F e G...".
Assim, a interpretação sustentada pelo Ministério Público não pode, com o devido respeito, ser acolhida.
Entendemos que a interpretação da alin. d) do n.º1 do art. 86.º da Lei n.º 5/2006 deve ser feita num sentido menos lato do que aquele que os seus termos, em princípio, poderiam consentir e que o ilustre recorrente aqui veementemente defende.
É o que manifestamente se impõe face ao "princípio da necessidade", da máxima importância e com consagração constitucional no art. 18.º n.º 2 da CRP.
Com efeito, ele "...obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais" (1) e dirige-se tanto ao legislador como ao intérprete.
Ou seja, para que a detenção ou porte de "outras armas brancas" a que alude a alin. d) do n.º1 do art. 86.º constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos:
1) Ausência de aplicação definida;
2) Capacidade para o uso como arma de agressão;
3) Falta de justificação para a posse.
A expressão "sem aplicação definida", usada na alin. d) do n.º1 do citado art. 86.º, não se restringe, com o devido respeito, aos "instrumentos", abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos.
Com efeito, o legislador inclui na classe A as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas (ou seja, as armas sem aplicação definida). E inclui também na classe A quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão - cf. alin. f) e g) do n.º2 do art.3.º. São essas as outras armas brancas, engenhos ou instrumentos cuja aquisição, detenção, transporte ou uso se quis proibir.
A ser assim, como pensamos que é, para que a detenção, uso e porte de outras armas brancas, para além das especificadas na alin. d) do n.º1 do citado art. 86.º constitua crime, impõe-se concomitantemente, o preenchimento, entre outros, dos referidos três requisitos. Não apenas um, ou dois, mas os três.
Se assim não fosse, seria sempre punível a posse da tal faca de cozinha com 20 cm de comprimento de lâmina. Tal como seria sempre crime a posse de qualquer outro objecto com aplicação definida, desde que pudesse ser usado como arma de agressão, ainda que houvesse justificação para a sua posse.
A aceitar esta tese, e porque quase todos os objectos, instrumentos ou artefactos de uso corrente nas actividades domésticas, agrícolas (foices, gadanhas, roçadoras, etc), florestais e industriais podem cumprir um, ou dois, desses três requisitos, seriam, por isso, "armas proibidas", sendo portanto punível a sua posse, independentemente do seu uso.
Assim, não obstante o arguido ter em seu poder, ou na sua esfera de disponibilidade, uma faca de cozinha com as características supra descritas, que pode ser usada como arma de agressão, mesmo que não tenha justificado a sua posse, não cometeu o crime de detenção de arma proibida, que lhe foi imputado, pois falta-lhe a ausência de aplicação definida.
A caracterização de um objecto como arma proibida tem a ver com as suas características (grau de perigosidade) e com a utilização ou afectação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.
Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal. Sendo indubitavelmente uma arma branca, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida.
A faca de cozinha é, por conseguinte, um objecto que pode excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão contra pessoas, mas não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal. A sua perigosidade é evidente, por ser um instrumento corto-perfurante, mas a sua integração no contexto espacial da sua utilidade retira-lhe as características de arma proibida, ainda que possa ser considerada arma para outros fins, nomeadamente para os efeitos prevenidos no art. 4.º do DL n.º 48/95, de 15 de Março.
Por isso que a detenção de uma faca de cozinha com uma lâmina de 20 cm - ainda que fora do contexto espacial da sua utilização - não é proibida e punida pela lei vigente, tal como não era proibida e punível pelo regime que a lei ora em vigor revogou.
Assim, a decisão recorrida não pode deixar de se manter.

10. Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Sem custas (art. 522 n.º 1 do CPP).
(Processado por computador e revisto pelo relator)
Évora, 2008.03.04
Fernando Ribeiro Cardoso
_____________________________
(1) - Cf. Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português", Editorial Notícias, pág. 84

Um Acórdão Interessante - Crime Sexual Continuado

Relator: Eduardo Maia Figueira da Costa
Processo: 07P4830
Jurisdição: Criminal

ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA AGRAVADO. CRIME CONTINUADO. Inexistente. Pratica dois crimes de abuso sexual de criança, e não um único crime continuado, o arguido que leva a sua filha para a cama tendo comportamentos de cariz sexual com ela, voltando a fazê-lo, em dias diferentes mas com actos menos gravosos que o primeiro, aproveitando as situações mais favoráveis para o efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher, mãe da criança. O aproveitamento desses períodos mais favoráveis em que a repetição seria mais fácil exclui o crime continuado porque não diminui a culpa, devendo-se à constante vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, superando as normais inibições ligadas às relações entre pais e filhos. MEDIDA DA PENA. Cinco anos e nove meses de prisão em cúmulo jurídico.




Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

O Tribunal Colectivo do 2º Juízo Criminal de Évora condenou o arguido AA na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 172º, nº 1, 177º, nº 1, a) e 30º, todos do CP, o primeiro na versão anterior à Lei nº 59/2007, de 4-9.
Desta decisão recorreram o MP e o arguido.
O MP formulou as seguintes conclusões da sua motivação:
1ª - "Só há crime continuado quando se verifica uma diminuição considerável da culpa do agente que deriva de um condicionalismo exterior que propicia a repetição de várias acções criminosas, mediante um procedimento que se reveste de um certa uniformidade."
2ª - "O fundamento da diminuição da culpa encontra-se assim no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente, e o pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de modo considerável e de fora, facilitou aquela repetição".
3ª - Os factos provados nestes autos devem ser qualificados não como um crime continuado de abuso sexual de criança agravado, mas antes como um concurso efectivo de dois crimes de abuso sexual de criança agravados.
4ª - Assim o impõe o art. 30.°, do Código Penal, no seu n° 2, nomeadamente porque nenhum facto se provou susceptível de enquadrar uma diminuição considerável da culpa do agente, que o douto acórdão recorrido violou ao não entender assim.
5ª - Trata-se de um concurso efectivo de dois crimes de abuso sexual de criança agravados.
6ª - Assim o impõe o art. 30.°, do Código Penal, no seu n.° l, quando dispõe: "O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente", que o douto acórdão igualmente violou ao não aplicar desse modo aquele preceito legal.
7ª - Uma interpretação que torne automática a aplicação do último segmento do n° 3, do actual art. 30°, do Código Penal, seria violadora dos princípios constitucionais no que tange à dignidade da pessoa humana e ao direito à integridade física e moral das pessoas.
8ª - Em resultado da diferente qualificação jurídica, verificando-se uma situação de concurso de crimes de abuso sexual de crianças agravados, haverá que rectificar a pena aplicada, à luz do disposto nos arts. 71° e 77°, n°s l e 2, do Código Penal.
Por sua vez, o arguido concluiu assim a sua motivação:
1 - O arguido foi condenado na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2 - Tem modesta condição sócio-económica.
3 - Sempre trabalhou, tendo a sua vida profissional organizada, e ajudando financeira e economicamente a sua família.
4 - Estava, antes de ser detido, socialmente integrado.
5 - Os factos reportam-se a um curto período temporal, verão de 2006, sendo certo que, nem antes nem depois, houve notícia de que o arguido tivesse praticado qualquer tipo de crime.
6 - Nada consta do seu C.R.C., sendo um arguido primário e trata-se da sua primeira condenação.
7 - A pena de prisão efectiva terá como finalidade satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção, sendo certo que a suspensão da execução da pena deverá ter como base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o mesmo sentirá a sua condenação como uma advertência tão forte que não cometerá, no futuro, nenhum crime.
8 - Assim, o facto de o arguido se encontrar detido à ordem dos presentes autos, desde 20 de Novembro de 2006, e que a mesma (detenção em cerca de um ano), em conjugação com a ameaça da pena e com o período de inibição do exercício do poder paternal, já satisfaz de forma adequada as finalidades da punição geral e especial.
9 - Pelo que não deveria ter sido aplicada ao arguido a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, por se mostrar demasiado severa e gravosa.
10 - A pena deverá, então, assumir uma finalidade ressocializadora e só seria de optar por uma pena efectiva se houvesse uma exigência tão forte de prevenção geral que fosse comunitariamente insuportável que o arguido fosse restituído à liberdade, o que no caso concreto não se perfilha.
11 - Face às circunstâncias acima alegadas, deve a pena aplicada ao recorrente ser reduzida para 3 (três) anos, suspensos na sua execução por 5 (cinco), mantendo-se a sanção acessória de inibição do exercício do poder paternal pelo período de 6 (seis) anos e a obrigação de pagamento de uma prestação de alimentos a seus filhos.
12 - É verdade que o Tribunal recorrido citou os critérios constantes do artigo 71.° do Código Penal. Mas,
13 - O Tribunal "a quo" violou o preceituado no artigo 71° ao não ponderar todos os factores que devem ser ponderados na aplicação da medida concreta da pena, limitando-se a considerar todos os factos pela sua gravidade, ignorando e abstendo-se de conhecer factores que se consideram relevantes para a determinação da medida concreta da pena, como são: as condições pessoais do agente e a conduta anterior e posterior aos factos, tal como, o facto de esta condenação acarretar consequências familiares a nível económico.
14 - Bem como o preceituado no artigo 50.° do Código Penal, pois no presente caso o arguido é delinquente primário, nada constando do seu certificado de registo criminal, os factos ocorrem num determinado período, bem delimitado no tempo, o que nos permite concluir, como já foi dito, que o período de detenção de cerca de l (um) ano, a censura do facto, a ameaça da pena e a inibição do exercício do poder paternal, são suficientes para o afastar da reincidência, satisfazendo as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
15 - Por estas razões devem as penas aplicadas ser reponderadas e atenuadas, sob pena da reintegração do recorrente se encontrar prejudicada, tal como a da vida familiar.
O MP teve vista dos autos.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
É a seguinte a matéria de facto apurada:
O arguido é casado com S..., de quem tem dois filhos, um dos quais, T..., nascida a 23 de Maio de 1995.
O casal depois de ter imigrado para Portugal, vindos do Brasil, de onde é natural, e após permanecer um período em Lisboa, veio com os filhos, concretamente com a filha T..., residir na zona de Évora.
O arguido com S... e os filhos residiam no Monte... d, Évora, onde o arguido e S... trabalhavam.
S... ausentava-se, por vezes, por curtos períodos, para ir a Lisboa tratar de assuntos em virtude da casa que tinham nessa cidade, pelo facto de aí terem morado, o que fazia sozinha, tendo chegado em mais do que uma ocasião a pernoitar naquela cidade.
Numa dessas ocasiões, à noite, em período que coincide com o Verão de 2006, em data não concretamente apurada, quando S... tinha ido a Lisboa e aí ficado a pernoitar, ficando o arguido sozinho em Évora com os filhos, o arguido decidiu levar a menor T...a manter consigo práticas sexuais com vista à satisfação dos seus instintos libidinosos, bem sabendo qual era a idade daquela menor, sua filha.
Assim, o arguido levou a menor consigo para a cama do casal.
A menor estava apenas vestida com cuecas e soutien e o arguido tinha apenas uns calções ou peça de vestuário semelhante.
Deitado na cama com a menor, o arguido acariciou os seios e a zona genital dela, colocou a mão na zona vulvar e da vagina da menor onde mexeu com os dedos, e, tendo colocado o pénis erecto fora dos calções e afastado as cuecas da menor na zona genital, colocou o seu corpo sobre o corpo da menor e friccionou o pénis que tinha tirado para fora dos calções e a zona genital contra a zona genital dela também fora da roupa, em movimentos oscilatórios do corpo, aí ejaculando, sem penetração vaginal.
Em seguida, a menor levantou-se e foi à casa de banho, onde viu um líquido nas pernas, que desconhecia e que era o esperma do arguido.
Quis o arguido satisfazer os seus instintos libidinosos, o que conseguiu, sempre ciente de qual era a idade da criança.
Obedecendo sempre ao seu desejo de satisfazer aqueles instintos libidinosos, o arguido, que frequentemente tocava nos seios da menor por cima da roupa, pelo menos em três outras ocasiões, na ausência de S..., em datas não concretamente apuradas, no interior da residência, levantou a blusa da menor e chupou-lhe os seios.
Ao fazê-lo, chupando e acariciando os seios da menor, para satisfazer os seus instintos libidinosos, agia o arguido sempre do mesmo modo e com o propósito único de satisfazer tais instintos, usando, para esses fins, a menor T...
Quer quando deitou a menor na sua cama e a acariciou e lhe mexeu na zona vulvar e vaginal, aí friccionando o pénis e ejaculando, quer quando acariciava e chupava os seios da menor, sabia o arguido que molestava a menor T... nos seus sentimentos mais íntimos e que a impedia de dispor livremente do seu corpo e da sua sexualidade.
Sabia o arguido, ao agir da forma descrita, que os mencionados contactos físicos que estabeleceu com a menor T..., conforme se deixou descrito, eram dotados de elevada intensidade sexual e que eram idóneos a prejudicar o desenvolvimento harmónico daquela menor na sua esfera sexual, em função da sua pouca idade.
Sabia o arguido que punha também em causa a livre determinação sexual da menor e que a mesma não tinha idade para se determinar livremente para a prática de actos sexuais daquela natureza.
Teve o arguido sempre plena consciência de qual era a idade da menor T... e que mesma era sua filha.
Agiu o arguido sempre deliberada e conscientemente, bem sabendo que lhe eram proibidas tais condutas.
O arguido não confessou a prática dos factos, tão pouco demonstrando qualquer arrependimento.
É casado. Tem 42 anos. Antes de detido, vivia com a mulher (a testemunha S...), a filha de ambos (T...Azevedo) e um filho com 15 anos.
Tem o 12º ano. Trabalhava como treinador de cavalos, ganhando cerca de € 570,00 mensais.
A mulher é cozinheira em restaurantes.
Nada consta do respectivo CRC.
Encontra-se detido à ordem dos presentes autos desde 20-11-2006.
O MP coloca uma única questão: a da errada qualificação dos factos como um crime continuado abrangendo todas as condutas imputadas ao arguido, entendendo que o arguido cometeu dois crimes.
Este, por sua vez, apenas questiona a medida da pena, a qual pretende que seja reduzida a 3 anos e suspensa na sua execução.
Crime continuado
Nos termos do art. 30º, nº 2 do CP, constitui um único crime a prática repetida do mesmo tipo legal de crime, executada de forma essencialmente homogénea, e no quadro de uma solicitação exterior que diminua a culpa do agente.
Este último elemento constitui o fundamento da unificação criminosa: a diminuição da culpa do agente, resultante da "cedência" a uma solicitação exterior. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, ou sempre que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.
O elemento unificador das condutas consiste na diminuição de culpa do agente, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da actuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente.
Analisemos agora o caso dos autos. Note-se que na acusação eram imputados ao arguido dois crimes. Contudo, o tribunal considerou que os factos se deviam integrar num único crime continuado, "ante o modo homogéneo como as situações exteriores em causa nos surgem, num mesmo quadro de solicitação exterior, potenciada pelo êxito das sucessivas operações levadas a cabo, num período temporal limitado".
Não se pode, no entanto, aceitar que o "êxito" da primeira "operação" e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido. Este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado.
Aliás, é notório que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.
Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um "acordo" entre ela e o arguido, que não se provou.
Acresce que nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes.
Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse e repetiu, que haja uma efectiva diminuição da culpa do agente.
Mas tal não se provou, como já ficou referido. A repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.
Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, poderão sê-lo como crime de trato sucessivo.
O crime de trato sucessivo caracteriza-se pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude.
É neste âmbito que se integram aqueles comportamentos do arguido acima referidos. Eles incluem-se numa série de actos homogéneos, obedecendo à mesma resolução criminosa, e praticados com frequência.
Não existe aqui uma culpa diminuída pela repetição criminosa. Pelo contrário, a repetição do crime revela uma resolução criminosa persistente, uma ilicitude e culpa acrescidas.
Conclui-se, assim, que são imputáveis ao arguido dois crimes: um constituído pelos factos descritos inicialmente na matéria de facto do acórdão recorrido, segundo os quais o arguido levou a ofendida para a sua cama e aí a acariciou e apalpou, ejaculando encostado à zona genital dela; o outro consistente nas diversas acções sucessivamente praticadas pelo arguido em dias diferentes e consistentes em acariciar e chupar os seios da ofendida.
Qualquer destes crimes se deve enquadrar no tipo legal dos arts. 172º, nº 1 (agora art. 171º, nº 1, após a publicação da Lei nº 59/2007) e 177º, nº 1, a) do CP, embora a ilicitude do primeiro seja sem dúvida mais acentuada.
Procedem, pois, os argumentos do MP.
Medida da pena
A integração dos factos em dois crimes, e não num único, conforme consta da decisão recorrida, obriga necessariamente à sua revisão também quanto à pena fixada.
Contudo, há que apreciar os argumentos do arguido relativos à medida da pena. Argumentos esses que são notoriamente insubsistentes.
Na verdade, é de todo insustentável a sua pretensão de redução da pena nos termos por ele enunciados, atendendo à ilicitude e à culpa, e daí a impossibilidade de atender à sua pretensão de ver suspensa a pena.
Pelo contrário, a reacção penal não poderá deixar de ser agravada, pela prática de dois crimes e não de um, conforme vinha condenado.
Tendo em conta que a moldura penal em causa é de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, considera-se adequado, face ainda à ilicitude dos factos e às necessidades de prevenção geral, especialmente fortes neste domínio, mas também de prevenção especial, e atendendo ainda a que o arguido nem sequer confessou os factos, não beneficiando de qualquer atenuante que não seja a da ausência de antecedentes criminais, considera-se adequado condenar o arguido pelos factos descritos inicialmente na acusação em 4 anos de prisão e pelos restantes em 2 anos e 6 meses de prisão, sendo a pena unitária fixada em 5 anos e 9 meses de prisão.

III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso do arguido, mas julga-se procedente o recurso do MP, condenando-se o arguido, como autor de dois crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 172º, nº 1 (agora art. 171º, nº 1) e 177º, nº 1, a) do CP, nas penas parcelares de 4 (quatro) anos de prisão e 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, fixando-se a pena única em 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão.

Vai o arguido condenado em 8 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2008

Maia Costa (relator)
Pires da Graça
Pereira Madeira