terça-feira, 8 de abril de 2008

Um Acórdão Interessante - videovigilância

Acórdão da Relação do Porto, de 26-03-2008

Processo: 0715930
N.º Convencional: JTRP00041183
Relator: Joaquim Gomes

Sumário:

Não constituem prova proibida no julgamento de um crime de incêndio as imagens dos arguidos captadas em local de acesso público através de um sistema de videovigilância instalado num centro de lavagem de veículos, mesmo que se desconheça se a instalação desse equipamento foi previamente comunicada à Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Texto ( parcial ):

“…2.- Os fundamentos do recurso.
As questões suscitadas em recurso reconduzem-se à ponderação de gravações de vídeo vigilância, enquanto meio proibido de prova, à medida da pena e à sua suspensão.

*

a) Gravações de vídeovigilância.O regime de proibições de prova no âmbito do processo penal, encontra-se essencialmente regulado pelo preceituado nos art. 125.º, 126.º, do Código Processo Penal[2], os quais devem ser conjugados com as garantias constitucionais de defesa, consagradas no art. 32.º, C. Rep., mormente a injunção imposta pelo seu n.º 8, bem como com as disposições específicas que disciplinam a obtenção do meio de prova de que pretende se fazer uso.Deste regime podemos assentar que a realização da justiça penal, num Estado de Direito Democrático, como pretende ser o nosso, deve sempre assentar no respeito e garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, mormente da preservação da dignidade humana.Assim, logo o citado art. 32.º, n.º 8 da C. Rep. é claro ao preceituar que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.” No mesmo sentido se situa o preceituado no art. 126.º, ao enunciar os métodos proibitivos de prova, indicando como um deles, que para aqui releva, “as provas obtidas mediante intromissão na vida privada”. No que concerne à valoração da prova obtida por reproduções mecânicas, no qual se inserem as relativas aos sistemas de videovigilância, haverá ainda que atender ao disposto no art. 167.º, n.º 1 segundo o qual as mesmas “só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas senão forem ilícitas, nos termos da lei penal” – o seu n.º 2 acrescenta que “Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro”.Deste art. 167.º, n.º 1, resulta assim uma nítida modelação ou influência do direito penal no regime de proibição das provas – veja-se a propósito Costa Andrade, “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal” (1992), p. 136, quando se refere ao “primado da vertente substantiva”; André Lamas Leite, em “As Escutas Telefónicas – Algumas reflexões em redor do seu regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação”, p. 15. Nesta conformidade, podemos desde já concluir que o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, que tanto versa sobre os meios de prova[3] (título ii), como os meios de obtenção de prova[4] (título iii), vem assim comprimir o princípio da livre apreciação da prova decorrente do art. 127.º, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou de valoração de prova.Por outro lado e como segunda conclusão, tratando-se de prova proibida, a mesma deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo, surgindo como autênticas nulidades insanáveis, a par daquelas que expressamente integram o catálogo do art. 119.º.Resta então saber se a obtenção daquelas imagens mediante a referenciada câmara de videovigilância, desconhecendo-se se este sistema está “licenciado” pela Comissão Nacional de Protecção de Dados [CNPD], configura ou não um meio ilícito de prova. Diga-se, desde já, que a Lei n.º 67/98, de 26/Out., que instituiu o regime jurídico de protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, aplicável igualmente à vídeovigilância [art. 4.º, n.º 4], não impõe o controlo prévio destes sistemas quando não esteja em causa o tratamento de dados sensíveis, considerando-se como tal, entre outras situações, a vida privada do titular dos dados – cfr. art. 28.º e 7.º, n.º 2 desta Lei.A própria CNPD em 2004/Abr./19, na sua deliberação n.º 61/2004, acessível em www.cnpd.pt, traçou então os princípios ou linhas orientadoras sobre o tratamento da videovigilância, com base no quadro jurídico resultante da já citada Lei n.º 67/98, do Dec.-Lei n.º 35/2004, de 21/Fev. e do art. 20.º do Código do Trabalho.E isto quando existem regimes específicos que instituem a obrigatoriedade de instalação destes sistemas, como é o caso da Lei n.º 38/98, de 04/Ago., respeitante à organização de competições desportivas, do Dec.-Lei n.º 139/2002, de 17/Mai., relativo ao fabrico e armazenagem de produtos explosivos.Nessa deliberação e quando está em causa uma infracção criminal, consignou-se a dado momento que “Sendo patente que os sistemas de videovigilância estão direccionados para o desempenho de finalidades relativas à «protecção de pessoas e bens», apresentando-se como medida preventiva e de dissuasão em relação à prática de infracções penais e podendo, ao mesmo tempo, servir de prova nos termos da lei processual penal, é imprescindível que – de acordo com o princípio da necessidade – o acesso às imagens seja restrito às entidades que delas precisam para alcançar as finalidades delineadas. Uma vez detectada a prática de infracção penal, a entidade responsável pelo tratamento deve – com a respectiva participação – enviar ao órgão de polícia criminal ou à autoridade judiciária competente as imagens recolhidas”.Tratando-se de utilização de câmaras de vídeo pelas forças de segurança em locais públicos de utilização comum, já a sua regulação encontra-se estabelecida na Lei n.º 1/2005, de 10/Jan.Mas será que obtenção de filmagens, efectuada por particulares, mediante sistemas de vídeovigilância instalados em locais de acesso público, como sucede com o referenciado centro de lavagens, ainda que não tenha sido notificada a CNPD dessa colocação, constitui um ilícito criminal?Ora de acordo com a Lei n.º 67/98, só o não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados, designadamente a omissão das notificações ou os pedidos de autorização a que se referem os artigos 27.º e 28.º, constituem o crime da previsão do art. 43.º dessa lei, pois tratando-se de uma conduta negligente haverá apenas a contra-ordenação cominada no antecedente artigo 37.º.Segundo o requerimento inicialmente apresentado em audiência de julgamento e no recurso agora em apreço, nunca foi suscitado essa intencionalidade por parte do responsável do tratamento dos dados de vídeovigilância, mas apenas se tinha havido essa comunicação, o que corresponderia a uma eventual contra-ordenação, pelo que, à partida, se afastou e aqui não se coloca, por não se descortinar da sentença recorrida, o referenciado crime do não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados.O recorrente apenas suscita em recurso que a captação mediante gravação em suporte audiovisual das suas imagens naquela ocasião, preenchem o tipo do art. 199.° do C. Penal, relativo a gravações, fotografias e filmagens ilícitas.Mediante tal crime pune-se no seu n.º 2 “quem, contra vontade: Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; [al. a)] ou “Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que tenham sido licitamente obtidos” [al. b)].Mediante este ilícito tutela-se o direito à imagem, constitucionalmente consagrado no art. 26.º da C. Rep. e legalmente no art. 79.º, n.º 1 do Código Civil.No entanto, tem se considerado que será criminalmente atípica, a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente – veja-se a propósito o Ac. R. C. de 2002/Abr./17 [CJ III/40], Ac. R. L. de 2001/Nov./28 [CJ V/138].Até mesmo o art. 70.º, n.º 2 do Código Civil, consagra que “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem …, exigências de policia ou de justiça,…”.Por maioria de razão se deverá estender ao direito penal, o preceituado neste último segmento normativo, face à natureza fragmentária daquele ou ao seu correspondente princípio de intervenção mínima, resultante do art. 18.º, n.º 2, da C. Rep.O único limite para esta justa causa, será sempre a inviolabilidade dos direitos humanos e, como tal, a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e à integridade moral das pessoas, como será o direito ao respeito pela vida privada destas – cfr. art. 8.º da CEDH, o art. 12.º, da DUDH, o art. 17.º do PIDCP, art. 26.º da C. Rep.A propósito, a jurisprudência do TEDH tem entendido que fotografar uma pessoa durante uma manifestação, com vista a identificá-la em futuras manifestações ou a exibição de fotografias tiradas a um suspeito em ocasião de um anterior inquérito policial não constitui uma violação da respectiva vida privada, designadamente do seu direito à imagem – veja-se a Decisão de 1973/Out./12, na sequência da queixa n.º 5877/72; Decisão de 1993/Nov./29, resultante da queixa n.º 20524.A nossa jurisprudência tem, de um modo geral, seguido o mesmo caminho, sendo de salientar ao nível do STJ, por versar provas obtidas por sistemas de videogravação, o Ac. do de 2001/Jun./20 [CJ (S) II/221], segundo o qual:“I.- As proibições de gravação de vídeo mesmo que com o consentimento das pessoas visadas, na medida em que o legislador constitucional e o ordinário pretendem defender a vida, actividade privada das pessoas, pressupõe, v.g., que as imagens tomadas o foram em algum local privado, total ou parcialmente restrito, no qual, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, abrindo-se uma excepção sempre que exigências de polícia ou dos tribunais exigirem ou necessitarem de tais gravações para proteger direitos ou garantias fundamentais que, por exemplo, a vida ou a integridade física exigem.II.- Assim, não é proibida a prova obtida por sistema de videogravação colocado em postos de abastecimento de combustíveis ou noutros locais públicos, com a finalidade de proteger a integridade física, a vida, o património dos proprietários dos veículos ou dos próprios postos de abastecimento perante tentativas de furto ou de roubo”.No mesmo sentido, mas ao nível das Relações, destacamos o Ac. da R. Guimarães de 2004/Mar./29, (recurso n.º 1680/03-2), divulgado em www.dgsi.pt, que versa sobre a captação de imagens por sistema de vídeovigilância num posto de combustível[5], e ainda o Ac. da R. Porto, de 2005/Nov./16 [CJ V/216], este relativo a fotografias obtidas pelos investigadores em locais públicos[6].Também a obtenção de tais imagens em lugares de acesso público existentes nas proximidades de postos de combustível ou de centos de lavagem, não constitui qualquer crime de devassa da vida privada, da previsão do art. 192.º, ou de crime de devassa por meio de informática, estatuído no art. 193.º, ambos do Código Penal, porquanto e como se refere no Ac. R. Porto de 2006/Mai./31 [CJ III/210], mediante tais ilícitos o que se pretende abranger e tutelar é apenas “o núcleo duro da vida privada” e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas.Nesta conformidade, podemos de concluir que os fotogramas obtidos através do sistema de vídeovigilância existentes num centro de lavagem, para protecção dos seus bens e da integridade física de quem aí se encontre, mesmo que se desconheça se esse sistema foi comunicado à CNPD, não correspondem a qualquer método proibitivo de prova, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao “núcleo duro da vida privada” da pessoa visionada.É certo que os fotogramas onde surgem o arguido, resultam de um conhecimento fortuito gravado pelo sistema de vídeovigilância instalado no posto de abastecimento público, mas isso não afecta a licitude desse meio de prova, porquanto o mesmo, como já referimos, não traduz a prática de qualquer ilícito criminal….”