sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Escritura de dissolução de sociedade – crime de falsificação do art. 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal

Acórdão da Relação de Coimbra, de 20-12-2011

Processo: 40/08.1TAPNH.C1

Relator: ISABEL VALONGO

 

Sumário:

Para o efeito do disposto na al. d), do n.º 1, do art.º 256º, do C. Penal, nomeadamente, no que respeita ao alcance da expressão “facto juridicamente relevante”, a relevância jurídica existe sempre que o facto inscrito no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício.

E, assim, a falsidade existe mesmo que o facto não seja dos que o documento tem por finalidade certificar ou autenticar ou dos que são essenciais para a validade do documento.

Transcrição parcial:

“…Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

A inconformidade dos recorrentes dirige-se à matéria de direito, pelo que se tem por assente a matéria de facto.

Os arguidos interpõem o presente recurso por entenderem que os factos provados não preenchem o requisito subjetivo do tipo legal de crime por que foram condenados – crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º nº 1, al d), e 3 do CPenal.

Resulta dos factos apurados que os arguidos, a 9 de março de 2006, os arguidos se dirigiram ao primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Viseu, e outorgaram a escritura pública de “Dissolução” da “XX...-, LDA.”, tendo declarado perante o Primeiro Ajudante daquele Cartório e do Centro de Formalidades de Empresas de Viseu, estando aquele no pleno exercício de funções notariais, “... que decidem dissolver a sociedade, que já cessou atividade, tendo já liquidado todo o seu ativo e passivo, sendo as respetivas contas encerradas e aprovadas nesta data”.

Os arguidos sabiam que as declarações que faziam constar no documento não correspondiam à realidade, uma vez que a sociedade, naquela data e ainda atualmente, tinha dívidas a terceiros, nomeadamente à Segurança Social, no valor de 14.722,66€ e dívidas referentes a IVA e Coimas referentes aos anos de 2002, 2003 e 2004. Além do mais, a sociedade foi condenada, por sentença do Tribunal de Trabalho da Guarda, nos autos de Acidente de Trabalho (Proc. 99/98), transitada em julgado a 24.02.1999, no pagamento à autora C... da pensão anual e vitalícia de 214.982$00 e a cada uma das filhas menores, a pensão anual e temporária de 143.322$00, valores discriminados na sentença junta aos autos a fls. 126 a 130 e que a “XX...-, LDA.” não pagou. Acresce que a citada sociedade, naquela data, era titular de um bem imóvel, prédio rústico, sito em …, adquirido por compra a 24.07.1998, inscrito na Conservatória de Registo Predial de Pinhel, e ali descrito, com o nº … , inscrito na matriz da citada freguesia com o número …

O crime de falsificação de documento, previsto no art. 256.º, do Código Penal, pune com pena de prisão até três anos ou com pena de multa:

1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito.

O art 255.º do CP, considera documento “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”

A norma do art. 256º nº 1 do Cod. Penal indica como elemento do tipo subjetivo a intenção por parte do agente de "causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime".

"Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado" - Comentário Conimbricense do Código Penal Conimbricense, tomo II, pag. 685.

O bem jurídico tutelado/protegido pelo crime de falsificação de documentos é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, ou seja, o valor probatório dos documentos em geral e particularmente dos enunciados na sua “qualificativa” – nº 3 do preceito -, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II (1999), p. 680.

O dolo específico, traduzido na intenção do agente causar prejuízo a outra pessoa ou de obter para si um benefício ilegítimo, não altera o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação, acima mencionado.

Como refere Helena Moniz «O facto de o agente ter de atuar com esta específica intenção não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não constitui objeto de proteção o património, tão pouco a confiança no conteúdo dos documentos ( S/S/ Cramer § 267 1), mas apenas a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova, em particular a prova documental.» - Cfr. "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, pág. 685.

De facto o crime de falsificação de documentos é um crime intencional, terminologia associada à existência de um dolo específico enquanto particular intenção do agente, definida pelo tipo, quando da realização do mesmo, para além da mera existência de um dolo genérico, como mero conhecimento e vontade de realização do tipo.

No caso concreto, essa especial intenção concretiza-se na fórmula "Os arguidos sabiam que, dessa forma, obtinham para si um benefício ilegítimo a que não tinham direito.” Conjugada com o facto provado nº 9. “Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente ao outorgarem na escritura pública nos termos supra referidos, o que fizeram com vista a criar um documento a que fosse atribuída fé pública, sabendo que o que declaravam e faziam constar no mesmo era juridicamente relevante e não correspondia à verdade, logrando assim inscrever no registo e tornar pública a dissolução da sociedade e inexistência de ativo e passivo e levar à extinção da sociedade “XX...-, LDA.” enquanto pessoa coletiva.”

O crime de falsificação de documentos constitui um crime de perigo, ou seja, após a falsificação documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste: a confiança pública e a fé pública foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo – ob cit pag 681.

Trata-se de um crime de perigo abstrato, (o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador) pois como se alude no citado Comentário Conimbricense (p. 681) “…para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo (de violação do bem jurídico); basta que se conclua, a nível abstrato, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico – verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual”.

É também considerado como um crime formal ou de mera atividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado, considerando os interesses que o tipo legal visa proteger. Mas se considerarmos a atividade do agente, isto é, o ato de falsificar o documento, podemos considerar que se trata de um crime material de resultado.

Assim, ao nível do tipo objetivo, o documento é falso quando não corresponde à realidade, como ocorre com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica).

Na falsificação intelectual, a declaração é conforme com a vontade, todavia contra a verdade dos factos – contra a vontade real – como ensina Helena Moniz (O Crime de Falsificação de Documentos, pág. 191) e ilustra com o seguinte exemplo: “A diz que quer vender o seu carro y, e quer mesmo vender 8 vontade real) e declara isso mesmo (e é o que mais tarde está escrito no documento) todavia, o carro não é dele. Ao dizer que vende o seu carro faz uma declaração de facto falso (juridicamente relevante – pois de outro modo não poderia vender o carro) em documento.”

Na falsidade em documento, integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, trata-se pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é que abra ensejo à obtenção de um benefício (neste sentido vidé, Helena Moniz "Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667" e Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-05-2009, Processo: 457/07.9TASCD.C1 (JusNet 2903/2009), Relator: DR. JORGE DIAS e de 07-02-2007,Nº 1540/05.0TAAVR.C1 (JusNet 300/2007), Relator: DR. ESTEVES MARQUES, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2009, Processo: 1289/06.7TAVCT.G1 (JusNet 7567/2009), Relator: TERESA BALTAZAR, in www.dgsi.pt).

Consequentemente, “a mentira" inserida no documento deve apresentar-se como relevante, sem o que não haverá falsificação, ou seja, é necessário que "a declaração corporizada em escrito...", seja "... idónea para provar facto juridicamente relevante....", como resulta do teor dos artigos 255º, al. a) e 256, nº 1 al. d) do C.Penal. (Acórdão Rel Coimbra, de 2 Mar. 2011, Processo 909/09.6TALRA.C1 - Relator: CALVÁRIO ANTUNES.)

No caso vertente os arguidos declararam perante notário deliberar dissolver XX...-, LDA. declarando também que tal sociedade “já cessou a sua atividade”, tendo já sido liquidado todo o ativo e passivo, sendo as respetivas contas encerradas e aprovadas nesta data.

Resulta pois da matéria de facto provada que os arguidos declaram perante o notário a existência de um facto – a liquidação e encerramento das contas – que não correspondia à verdade.

Assim, como se salienta na sentença recorrida, verifica-se que através dessa declaração, e à luz do que dispõe o Código das Sociedades Comerciais no art. 160.º, n.º 2, foi-lhes possível extinguir a sociedade comercial, o que fizeram, inscrevendo o próprio encerramento da liquidação no registo.

Com efeito, dispõe o art 160.º do CSC sob a epígrafe “ Registo comercial “:

Artigo 160.º Registo comercialclip_image001

1 - Os liquidatários devem requerer o registo do encerramento da liquidação.clip_image001[1]

2 - A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação.clip_image001[2]

Em concreto, a relevância jurídica resulta da própria lei: o ato permitiu uma alteração no mundo do Direito, traduzida na extinção de uma pessoa coletiva, com o consequente benefício, que no caso não tem relevância patrimonial direta, traduzido no próprio encerramento, gerador de aparência perante terceiros de uma realidade diferente da existente, suscetível de gerar inação daqueles na reclamação de créditos. Acrescida da cessação das responsabilidades dos arguidos enquanto gerentes. E impediram que terceiros pudessem requerer a insolvência da sociedade, o que teria consequências diretas para as suas pessoas. E conclui-se que a influência de um ato destes no mundo do Direito é de tal ordem, que a simples extinção da sociedade, quando havia património e dívidas por cobrar, se traduziu num benefício que, de outra forma não lograriam e, logo, injusta e legalmente não tutelada.

De notar que o art 1º, nº 1 do Código de Registo Comercial dispõe que “O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico. “ sublinhado nosso.

O que ultrapassa a simples constatação de que a escritura pública de dissolução da sociedade, enquanto documento autêntico faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo notário, assim como dos factos que neles são atestados com base na perceção deste (artº 371º do CCivil).

É certo que, como se refere no ac RP de 19/10/2010 “As declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha ativo nem passivo e de que não existiam bens a partilhar – são da mera responsabilidade daqueles, não representando a escritura prova plena quanto a esses factos. Trata-se de uma declaração re inter alios ata, não vinculativa para os credores sociais”.

No mesmo sentido o ac. da RP de 14/4/2010 “a escritura pública outorgada não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar: não é meio de prova suscetível de ser usado para excecionar eventuais débitos. Portanto, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 256.º, do Código Penal [a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos, e em particular, que os outorgantes produziram perante o notário aquelas declarações] não sofreu qualquer dano: o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina”.

A declaração inverídica feita pelos recorrentes ao notário e inserida na escritura pública não é suscetível de integrar a prática de um crime de Falsificação de documento, do artigo 256.º, do Código Penal: o documento não exibe qualquer aspeto suscetível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado. É um documento exato [regular] que contém uma declaração inverídica.

Por outro lado, haverá que conjugar o disposto no artº 1020º do CCivil, «encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, com o que dispõe o Artigo 163.º Passivo superveniente :

“1 - Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.” (sublinhado nosso)

Os antigos sócios responderão por esse passivo social mas apenas até ao montante do que receberam na partilha (salvo quanto aos sócios de responsabilidade ilimitada). Como refere Raúl Ventura, in Dissolução e Liquidação das Sociedades, pág. 484, "(...)A responsabilidade dos antigos sócios é limitada ao montante que receberam na partilha, (...). «Montante que receberam na partilha» apura-se relativamente a cada sócio, i.é, cada sócio é responsável até ao montante por ele recebido na partilha e não por aquilo que outros sócios também tenham recebido, (...).

A sociedade poderá dissolver-se por deliberação dos sócios (art. 141º, nº 1, al. b), do CSC (JusNet 32/1986)), devendo seguir-se a liquidação da mesma (nos termos dos arts. 146º e segs.), a menos que a sociedade não tenha, à data da dissolução, dívidas, caso este em que os sócios poderão proceder imediatamente à partilha dos haveres sociais (art. 147º, nº 1). Havendo dívidas, deverá o liquidatário proceder ao pagamento das dívidas da sociedade para as quais seja suficiente o ativo social e, relativamente às dívidas litigiosas, deverão acautelar os eventuais direitos do credor por meio de caução, prestada nos termos do Código de Processo Civil (art. 154º, nºs 1 e 3).

A sociedade dissolvida, mas em liquidação, mantêm a personalidade jurídica (art. 146º, nº 2). Mas já se considera extinta, sem prejuízo porém do disposto nos artigos 162º a 164º, com o registo do encerramento da liquidação (art. 160º, nº 2).

Como decorre das mencionadas disposições legais, mormente da conjugação dos arts. 160º, nº 2, 162º e 163º, nºs 1 e 2, dissolvida a sociedade e efetuado o registo do encerramento da liquidação, esta considera-se extinta, facto este que determina a perda da personalidade jurídica e judiciária (cfr. art. 5º do CPC).

É que, como também decorre dessas disposições, mormente do art. 163º, nº 1, a extinção da sociedade não determina a extinção dos créditos, não satisfeitos ou acautelados aquando da liquidação, de que sejam titulares os credores sociais.

Pois bem andou o tribunal recorrido ao que a relevância jurídica existe sempre que o facto inscrito no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício – Leal-Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 1982, Vol. 3, 1986, Ed. Rei dos Livros, pag. 147. E sendo esse o critério – da relevância jurídica – para a própria punição, “a falsidade existe mesmo que o facto não seja dos que o documento tem por finalidade certificar ou autenticar ou dos que são essenciais para a validade do documento – idem. Leal-Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 1982, Vol. 3, 1986, Ed. Rei dos Livros, pag. 147[1]”

Por último, resultaram provados factos suscetíveis de revelar o elemento subjetivo do tipo – falsificação de documento - a intenção de causar prejuízo a outra pessoas ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo. Aliás, nem sequer se descortina com que outra intenção poderão ter agido os arguidos que não seja a de conseguir o «benefício ilegítimo».

Estão, por isso, verificados os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito imputado aos arguidos.

*

(…)

III. DISPOSITIVO

Nos termos e com os fundamentos expostos, julga-se totalmente improcedente o recurso com a consequente manutenção da decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC.

Isabel Valongo (Relatora)

Paulo Guerra

______________________________________________________________________________________

[1] Sufraga-se, pois, entendimento diverso daquele plasmado no Acórdão do TRP no processo n.º 5316/04.4TDPRT.P1 de 14 de abril de 2010, onde se decidiu que a conduta em causa nos autos não constituía crime, sendo a pedra de toque de tal entendimento, se bem se interpreta a fundamentação do acórdão, à consideração de que a falsidade intelectual se restringe aos casos de desconformidade entre o que se declarou e o que se escreveu e à necessidade de o próprio documento ser apto para fazer prova do facto documentado:

“19. Por outro lado, a escritura pública tinha por objetivo a dissolução da sociedade, e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito [pontos 3. e 6.] que abala ou anula essa sua finalidade. O elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projetar. A escritura pública outorgada não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar: não é meio de prova suscetível de ser usado para excecionar eventuais débitos. Portanto, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 256.º, do Código Penal [a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos, e em particular, que os outorgantes produziram perante o notário aquelas declarações] não sofreu qualquer dano: o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina … ”- Sic.

USO ANORMAL DO PROCESSO: SEPARAÇÃO DO INCIDENTE - ARTIGO 720º CPC

Acórdão da Relação de Coimbra, de 09.01.2012

Processo: 139/01.5JAAVR.C1-C

Relator: BRÍZIDA MARTINS

 

Sumário:

Definitivamente fixada a responsabilidade penal que à arguida cabe expiar, e vindo esta a apresentar sucessivos requerimentos [de interposição de recurso e de reclamação subsequente sobre as decisões que nenhum deles admitiu, pois que todos eles foram rejeitados até ao presente], com o fim manifesto de obstar à execução da decisão condenatória corroborada, definitivamente, nesta instância, justifica-se que se lance mão do mecanismo previsto no art.º 720.º, n.º 1 CPC, com vista à apreciação do último requerimento apresentado, e os autos baixem imediatamente à primeira instância.

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

*

1. Compulsando-se a tramitação processual dos presentes autos até ao momento, é possível apurar-se que:

(…)

- Notificada deste despacho, mais uma vez apresentou a arguida reclamação, agora dirigida ao Ex.mo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional [cf. apenso respetivo].

*

2. Ora, do elencar de vicissitudes processuais que assim sobressai dos autos, conclusão manifesta que urge fazer-se a de que, definitivamente fixada a responsabilidade penal que á arguida cabe expiar, vem a mesma apresentando sucessivos requerimentos [de interposição de recurso e de reclamação subsequente sobre as decisões que nenhum deles admitiu, pois que todos eles rejeitados até ao presente], com o fim manifesto de obstar á execução da decisão condenatória corroborada, definitivamente, nesta instância, rectius de se eximir ao cumprimento da pena que lhe foi aplicada.

Nesta perspetiva, mostram-se pois preenchidos os pressupostos de funcionamento do mecanismo previsto no art.º 720.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável ao caso presente, ex vi do disciplinado pelo art.º 4.º, do Código de Processo Penal.

*

3. Nestes termos, atenta a natureza anómala do processado a que a arguida A… vem dando causa, determina-se que os termos subsequentes ao requerimento de reclamação dirigido ao Ex.mo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, aliás, ainda não admitido, se processem em separado.

Para o efeito, a Secção organizará processo separado que incluirá o traslado composto pelo aresto deste Tribunal da Relação; por todos os requerimentos de interposição de recurso impetrados desde então pela arguida, quer para o Supremo Tribunal de Justiça, quer para o Tribunal Constitucional; dos despachos que determinaram as suas rejeições, bem como das correspetivas reclamações e subsequentes despachos, corroborando-as, isto é, das peças processuais começadas por elencar no presente aresto supra em 1.

De seguida, abrirá conclusão nesses autos para apreciação da reclamação interposta para o Ex.mo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional.

Custas do incidente anómalo pela reclamante/recorrente, fixando-se a respetiva taxa de justiça em 4 UCs, nos termos do art.º 84.º, do Código das Custas Judiciais, ainda aplicável ao caso presente.

Notifique.

*

Brízida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves

APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA – competência do juiz de instrução criminal

Acórdão da Relação de Lisboa, de 20.12.2011

Processo: 36/11.6PJOER-A.L1-5

Relator: AGOSTINHO TORRES

Descritores: APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA

JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL

Sumário:

I. A inviolabilidade da correspondência é um direito fundamental que só pode ser coartado nos casos previstos na lei (art.34, da Constituição da República Portuguesa);

II. Não é de admitir qualquer distinção entre correspondência fechada e correspondência aberta, não existindo diminuição de exigências garantísticas desta em relação àquela;

III. Constituindo a leitura da correspondência um atentado ao direito da inviolabilidade da mesma, só o juiz de instrução criminal pode, verificando-se os requisitos legais, determinar e validar a apreensão de correspondência, ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida e decidir se a mesma é ou não relevante.

 

Transcrição parcial:

“2.2-Está em apreciação e, em síntese, a seguinte questão:

Na sequência de busca domiciliária ordenada judicialmente e autorizada nos termos e para os fins dos art.ºs 176, 177.º, 178.º n.º 4 e 179.º n.º 1 e 3 do CPP no âmbito de inquérito crime, foi apreendida vária documentação consistente em correspondência dirigida pelo arguido A... à arguida C..., a partir do Estabelecimento Prisional e de cujo teor se suspeitaria haver referências importantes quanto ao planeamento, execução e autoria do homicídio qualificado em investigação.

Efetuada a apreensão o M.ºP.º solicitou ao Mm.º JIC a validação de todas as apreensões de correspondência efetuada, que tomasse conhecimento do respetivo conteúdo dos 28 envelopes apreendidos nos termos e para os efeitos do art.º179.º n.º 3 do CPP.

O Mm.º JIC tinha ou não competência material para o efeito, nomeadamente a prevista nos termos do art.º 269.º, n.º1, al.ª d), e 268.º do CPP ou, ao invés, tal competência de validação era atributo do M.ºP.º como titular do inquérito, nos termos dos art.º 178, n.º 1,3 e 5 e 267.º do CPP?

2.3- A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

2.3.1- Da argumentação do despacho recorrido colhe-se que o Mm.º JIC entende que, quando a correspondência (cartas apreendida após busca domiciliária por si autorizada, se encontre já aberta, lida pela destinatária e guardada, com desselagem dos envelopes que lhe serviam de invólucro, não cumpre diferenciá-la de qualquer outra documentação guardada no domicilio, pelo que, sendo cartas trocadas entre arguidos, não estão protegidas por segredo profissional ou médico, obedecendo ao disposto no art.º 178.º n.º3 do CPP, a validar pela autoridade judiciária competente , in casu, o M.ºP.º enquanto dominus da fase de inquérito em que se encontram os presentes autos, no prazo de 72 horas (cf. artigo 178.º, n.º 1, 3 e 5, e 267.º do Código de Processo Penal), não se verificando assim, no caso em apreço, a competência material do juiz de instrução criminal estabelecida pelo artigo 269.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal.

Deste entendimento discorda o recorrente M.ºP.º nos termos constantes do seu recurso e plasmados nas já transcritas conclusões da motivação apresentada.

Do auto de busca, realizada dia 4.10.2011, ao domicilio da arguida C..., consta, além do mais, que foram encontrados na sala da habitação “28 envelopes abertos, todos contendo correspondência enviada via correio e entregue em mão pelo arguido A... à buscada”

Segundo referido pelo Mm.º JIC e por si sustentado, os detalhes acerca de os envelopes contendo os escritos apreendidos estarem ou não selados, terem sido entregues em mão ou remetidos por via postal, terem sido escritos ou não pelo arguido A... e enviados à arguida C... ou se ela leu ou não todos eles apenas seriam relevantes para a autoridade judiciária competente para decidir da validação da apreensão e para apreciar da sua pertinência probatória ou da sua falta, neste caso ordenando a sua devolução ao legitimo possuidor. Tais detalhes não são factos que influam na decisão de saber quem é a autoridade judiciária competente para a solicitada validação.

Por sua vez, o M.ºP.º contrapõe que:

“(…) – No dia 04 de outubro de 2011, pelas 10h50m, foi realizada a busca ordenada e foram apreendidos 28 envelopes e respetivo conteúdo, sendo que dos quais:

a) 22 (vinte e dois) têm manuscrito na frente do envelope a indicação de que o remetente é o arguido A... e a destinatária é a arguida C..., desconhecendo-se qual o seu conteúdo. Desses 22 envelopes, 19 foram enviados por via postal (conforme resulta do carimbo dos CTT aposto nos mesmos), e, três foram necessariamente entregues por mão (conforme atesta a não indicação das moradas de destinatário e remetente, e, a ausência de selo e de carimbo postal). Destes três últimos envelopes referidos, dois deles nunca foram fechados/selados, já que cada um deles mantém a tira removível na zona com cola.

b) 03 (três) não têm qualquer palavra manuscrita na frente ou no verso do envelope, desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foram necessariamente entregues por mão, quer por ausência de menção do remetente e do destinatário quer por ausência de selo e de carimbo postal.

c) 01 (um) tem as palavras “MINHA MUSA” manuscritas na frente do envelope, desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foi necessariamente entregue por mão, conforme resulta da ausência de menção do remetente e de cabal identificação do destinatário, e, da ausência de selo e de carimbo postal.

d) 01 (um) tem a palavra “FOFINHA” manuscrita na frente do envelope (na zona do remetente), desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foi necessariamente entregue por mão, conforme resulta da ausência de cabal identificação do remetente e/ou do destinatário, e, da ausência de selo e de carimbo postal. Nunca foi fechado/selado, já que mantém a tira removível na zona com cola.

e) 01 (um) tem os nomes “JESPV…” (sensivelmente na zona destinada ao remetente) e “A...” (na zona destinada ao destinatário) manuscritos na frente do envelope, desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foi necessariamente entregue por mão, conforme resulta da ausência de cabal identificação do remetente e/ou do destinatário, e, da ausência de selo e de carimbo postal. Nunca foi fechado/selado, já que mantém a tira removível na zona com cola.

6 – Conforme informação consignada no Auto de Apreensão de fls. 758, assinado pela arguida C..., todos os 28 envelopes estavam abertos e continham “correspondência enviada via correio e entregue em mão pelo arguido A... à buscada”, informação que, segundo se julga, terá resultado, por um lado, pela constatação de que em 22 (vinte e dois) envelopes há a expressa indicação de que o remetente é o arguido A... e a destinatária é a arguida C..., e, por outro lado, por informação prestada pela arguida aquando da busca e apreensão.

7 – Do referido Auto de Apreensão não consta nem resulta que:

a) os 06 (seis) envelopes sem expressa indicação de que o remetente é o arguido A... e a destinatária é a arguida C..., tenham sido escritos pelo arguido A... nem que se dirijam à arguida C.... Nada garante que os envelopes entregues em mão pelo arguido A... à arguida C... se destinem à mesma e não a um terceiro.

b) a arguida C... tenha lido o conteúdo de todos os envelopes. Não se pode concluir tal pelo facto de todos os envelopes se encontrarem abertos, pois conforme resulta supra, quatro dos envelopes nunca foram fechados/selados, já que mantêm a respetiva tira removível na zona com cola.

8 – Em 06/10/2011, o Ministério Público ordenou a remessa dos autos ao Mmo. J.IC., com a promoção de que validasse as apreensões de correspondência efetuadas e que tomasse “conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida à arguida C… – constituída por 28 envelopes e que se encontram num envelope A4 destes Serviços -, para os efeitos do art. 179.º n.º 3 do Cód. Proc. Penal” (cf. fls. 780).

(…) »

Quid juris?

Dispõe o Artigo 178..º do CPP acerca dos objetos suscetíveis de apreensão e dos pressupostos desta:

1 - São apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova (itálico nosso).

2 - Os objetos apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto.

3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária. (itálico nosso)

4 - Os órgãos de polícia criminal podem efetuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º

5 - As apreensões efetuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. (itálico nosso)

6 – (…)

7 – (…);”

Acerca deste prazo de 72 horas referido no art.º 178.º, n.º5 do CPP tem-se entendido que não é prazo para validação das apreensões mas para a apresentação delas à autoridade judiciária e que a omissão da validação pela autoridade judiciária das apreensões efetuadas pelo OPC constitui mera irregularidade que só determina invalidade se for arguida no prazo de 3 dias do art.º 123.º, n.º 1 do CPP. (cf. Ac. TRC de 8-10-2008, CJ, 2008, T4, pág.51) Em idêntico sentido é citado o Ac. STJ de 17-05-2007 e também em sentido concordante veja-se o Ac. TRP de 17-01-2007 e o Ac. Tribunal Constitucional n.º 278/07.

No caso dos autos, saliente-se que, embora autorizados por despacho judicial prévio a efetuar a busca, foram dois inspetores da PJ quem a realizou, sendo certo que no auto de busca consta ter sido a mesma autorizada expressamente pela própria arguida C... nos termos do art..º 174.º n.º 5, al.ª b) do CPP, o que até seria desnecessário pois essa autorização apenas afastaria a aplicação das exigências do n.º 3 do art.º 174.º do CPP, a saber, relativas à autorização ou a ordem de autoridade judiciária.

Considerando pois que a apreensão da correspondência estava expressamente autorizada pela autoridade judiciária e cumprida por mandado desta, ainda por cima nem sequer com oposição da visada, antes pelo contrário, tendo a mesma anuído expressa e documentadamente na efetivação da busca e da apreensão, podemos concluir não ser propriamente um dos casos de necessidade de qualquer posterior validação “strictu sensu”, da dita apreensão pela autoridade judiciária.

Entendemos ainda que, por isso, também a apresentação em prazo de 72 horas a que o Mm.º JIC aludiu seria sempre uma falsa questão, espúria e sem qualquer necessidade processual, atentas as aludidas circunstâncias do caso e dado que a busca foi previamente ordenada e autorizada por aquele, visando sobretudo a sobredita apreensão de correspondência.

Dispõe o art.º 268.º n.º 1 al.ª d) do CPP que compete, exclusivamente, ao juiz de instrução, durante o inquérito, “tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do art.º 179.º n.º 3 do CPP”.

Por sua vez, o n.º 3 do art.º 179.º citado dispõe que: “O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.

Para os restantes casos de apreensão de correspondência por órgãos de polícia criminal, para além dos casos previstos no n..º 5 do art.º 174 do CPP [3], rege o art.º 252.º do CPP, que ao caso não se aplica visto que já havia prévia autorização judicial.

Da leitura conjugada dos preceitos citados, nomeadamente do art.º 179.º n.º 1 e 3 e 178 n.º3 do CPP, não vemos incompatibilidade alguma mas sim complementaridade e não nos parece que haja sido intenção do legislador, atendendo aos princípios e escopo subjacentes, fazer qualquer distinção nos sobreditos preceitos entre “correspondência aberta ou fechada”, mas apenas a salvaguarda jurisdicional, com respeito de direitos fundamentais, v.g o da reserva da vida privada, de meios de prova através dos quais se acede ou há o perigo de aceder com alto grau de probabilidade a informações de natureza íntima ou com ela conexas.

Daí que se exija que o juiz seja o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência (esteja ou não aberta e/ou lida), a analise, a julgue relevante ou não para a prova, faça juntar ao processo a que é relevante para a prova e, da que entenda não o ser, ordene seja devolvida a quem de direito (in casu, a arguida C....)

A jurisprudência e doutrina citadas pelo Mm.º JIC, com o devido respeito, pautam-se por uma visão desgarrada dos bens e valores em proteção (a reserva e intimidade da vida privada), plasmados a partir do art.º 34.º n.º1 da CRP descartando-se destes por via de argumentação centrada no facto de a correspondência estar ou não aberta, o que é completamente irrelevante, pois que o que se pretende é evitar sem controle judicial, em primeira mão, a devassa da vida privada ou de segredo profissional inerentes à correspondência apreendida através de acesso por terceiros ou mesmo por intervenientes processuais ao conteúdo daquela. Esse conteúdo deve ser sempre protegido e garantido, sempre que possível, por prévio controlo judicial,

Apoia-se o despacho recorrido, essencialmente, na jurisprudência do Ac. TRL de 2.3.2011 e na doutrina do Prof. Costa Andrade, segundo os quais e passamos a citar os segmentos mais expressivos: “

“(…) Como afirma COSTA ANDRADE (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 758, § 16) "é precisamente este facto - estar fechada - que define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos, em geral." E uma carta está fechada quando exista "um procedimento que estabeleça um obstáculo físico à tomada de conhecimento e que só seja ultrapassável à custa de uma atividade física que pode ou não (...) implicar uma rutura material (...) Não basta seguramente (...) a sua arrumação num dossier ou numa gaveta aberta." E para concluir: "uma carta que foi (ainda que indevidamente) aberta, deixa de ser uma carta fechada, mesmo que persista reservada."

Pela negativa: excluídas do conceito de correspondência estão as formas de comunicação que integrem as telecomunicações, ou seja, "os procedimentos técnicos de transmissão incorpórea à distância de qualquer espécie de informação (sinais, dados, sons, cores, imagens, etc.). E isto independentemente do sistema tecnológico de tratamento e transmissão da informação: com fios, por cabo, ondas hertzianas, via satélite (...). Assim, e a par das clássicas formas do telefone (...), cabem aqui telecomunicações como o telex, o telefax, a telefoto, etc. " (idem, pág. 758, § 18, sublinhado nosso).

Neste sentido se pronunciou também o supra referido acórdão de 18.5.06 deste Tribunal e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.3.06 (No proc.º 607/06, disponível em www.dgsi.pt), como se infere quando afirma “tal como acontece na correspondência efetuada pelo correio tradicional diferenciar-se-á a mensagem já recebida mas ainda não aberta da mensagem já recebida e aberta. Na apreensão daquela rege o art.º 179.º do Código de Processo Penal, mas a apreensão da já recebida e aberta não terá mais proteção do que as cartas recebidas, abertas e guardadas pelo seu destinatário”. Como se vê, a relevância dessa distinção entre correspondência fechada e aberta pode ser relevante mesmo para as comunicações eletrónicas (Para além do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra referido, Pedro Verdelho, A obtenção de prova no ambiente digital, RMP 99, pgs 117 e sgts; Apreensão de correio eletrónico em processo penal, RMP 100pg.s 153 e sgts, e também o supra referido estudo de Costa Andrade, embora o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.9.06, no proc.º 06P2321, disponível em www.dgsi.pt tenha posição diferente).

Ou seja, tem de se concluir que a correspondência já aberta pelo seu destinatário passa a ter a natureza de documento e goza apenas da proteção que todos os documentos merecem. A correspondência é por definição fechada – assim que é aberta deixa de o ser e passa a ter natureza documental. Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, consequentemente goza da proteção constitucional que o art. 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.

Por outro lado, as regras relativas à proibição de apreensão de correspondência, mesmo aberta, entre o advogado e aquele que lhe tenha cometido ou pretendido cometer mandato, constantes do art. 71.º do EOA deriva da tutela do segredo profissional e só ocorre quando a apreensão tenha lugar no escritório de advogado ou em qualquer outro lugar onde este faça arquivo (art.70.º n.º 3 do EOA), gozando assim da mesma proteção que a lei processual penal já confere a todos os “documentos abrangidos pelo segredo profissional” no art. 180.º do Código de Processo Penal.

Consequentemente, a nulidade da apreensão de correspondência cominada pelo art. 179.º n.º 2 do Código de Processo Penal apenas ocorre em relação a correspondência fechada. A correspondência é por definição fechada – assim que é aberta deixa de o ser e passa a ter natureza documental. Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, logicamente goza da proteção constitucional que o art. 34.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.

2.3.2 – Não nos revemos nesta perspetiva. Desde logo, como já aludimos, o código de processo penal não define o que é “correspondência” nem lhe atribui por definição ter natureza como sendo apenas a que é tradicionalmente fechada deixando de o ser depois de aberta e eventualmente lida. Depois, não distingue em lado algum procedimentos de dispensa de garantia de controle jurisdicional em função da sobredita alegada artificial distinção. Acima de tudo, não percebemos como é que uma carta (ou várias) de natureza indiciariamente sigilosa (por serem relativos a conteúdos muito provavelmente de reserva íntima entre duas pessoas, in casu amantes) deixa de o ser (sigilosa) para além da esfera jurídica do remetente e do (a) destinatário (a) apenas porque o envelope que a(s) encerraria teria sido aberto e o seu conteúdo lido pelo (a) último (a) ainda que guardado em espaço também ele de reserva (a habitação)

Cremos que se trata de uma distinção artificial, já que o que está em causa é evitar a devassa da dita correspondência por terceiros dada a natureza privada e íntima do seu conteúdo independentemente da forma como ela se apresente protegida (envelope, selagem, etc).

Tem pois toda a razão o M.ºP.º no entendimento sufragado no recurso.

Efetivamente, a inviolabilidade da correspondência é um direito fundamental que só pode ser coartado nos casos previstos na lei, cf. art.34.º n.º 1 da CRP, e, dentro dos limites legais, só o Juiz de Instrução Criminal pode praticar atos que contendam diretamente com direitos fundamentais, cf. art. 32.º, n.º 4, da CRP

Nem a norma constitucional do art. 34.º n.º 1 da CRP nem as normas processuais penais fazem qualquer distinção entre correspondência fechada e correspondência aberta. Tal distinção não tem qualquer suporte na letra da lei. Não há uma diminuição de exigências garantísticas entre correspondência fechada e correspondência aberta.

Independentemente de a correspondência ter sido ou não aberta ou de ter sido ou não lida, a pessoa a quem é dirigida tem sempre o direito de não ver essa correspondência devassada por terceiros.

Constituindo a leitura da correspondência um atentado ao direito da inviolabilidade da mesma, só o juiz de instrução criminal pode, verificando-se os requisitos legais, determinar a apreensão de correspondência, validar a apreensão de correspondência, ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, e, ser quem decide se a mesma é ou não relevante.

Cabe assim ao Mmo. J.I.C. a competência para a validação da apreensão dos 28 envelopes e do seu conteúdo encontrados na residência da arguida, e, impõe-se que o mesmo tome conhecimento do conteúdo da correspondência e aprecie e decida o que é ou não relevante para a prova.

Ao declarar-se incompetente materialmente - e, desse modo, não tomar conhecimento do conteúdo da apreensão dos 28 envelopes, nem apreciar e decidir o que dele é ou não relevante para a prova -, o Mmo. J.I.C. interpretou erradamente e violou as normas constantes dos arts. 34.º, n.º 1 e n..º 4, e 32.º, n.º 4, da CRP, 179.º, n.º 3, 268.º, n.º 1, al. d), e 178.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.

III- DECISÃO

3.1.- Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, revogando-se o despacho recorrido, julga-se o Mm.º JIC materialmente a autoridade judiciária competente para os fins solicitados pelo M.ºP.º nos termos do art.º 179.º, n.º 3, do CPP.

3.2- Sem Taxa de justiça por dela estar isento o M.ºP.º

Lisboa, 20 de dezembro de 2011

Relator: Agostinho Torres;

Adjunto: Luís Gominho;

----------------------------------------------------------------------------------------

[1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95

[2] vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, pág.ª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, proc.º 416794, 3.ª sec., tb cit.º em anot. ao art..º 412.º do CPP de Maia Gonçalves 12.ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Proc.º Penal ,III, 2.ª ed., pág.ª 335; e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.

[3] O n.º 5 do art.º 174.º do CPP refere que: “ Ressalvam-se das exigências contidas no n..º 3 as revistas e as buscas efetuadas por órgão de polícia criminal nos casos:

a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;

b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou

c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.”