segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Faca de cozinha/Concurso de crimes em caso de posse de diversas armas

 

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 8 Nov. 2011, Processo 92/10, Relator: ANA BARATA BRITO.

Sumário parcial:

1. Uma faca de cozinha, de um só gume, com 19 cm de lâmina e 31 cm no total, como arma branca originariamente afecta ao uso doméstico, mas em que a adaptação de bainha para lâmina a torna susceptível de ser utilizada como verdadeiro punhal, agrava o risco de letalidade ao seu detentor ao facilitar a posse e o uso clandestino com o fim exclusivo de ser utilizada como arma.

2. O detentor de duas armas uma faca e uma pistola, na mesma ocasião, de categorias diferentes, deverá ser punido apenas pelo crime mais grave. A eliminação de um dos crimes obriga, à reformulação do cúmulo jurídico, após prévia reapreciação da pena parcelar correspondente ao crime de detenção de arma que passa a integrar, também, a factualidade referente à detenção da faca.

Anotações:

1. O Tribunal da Relação de Coimbra, pelo Acórdão de 23 Jun. 2010, Processo 212/09, em que foi relatora a Desembargadora CACILDA SENA, decidiu, a respeito da detenção de uma faca de cozinha, que a mesma só será considerada uma arma branca proibida se estiver disfarçada, pelo que a detenção de uma faca de cozinha, dotada de uma lâmina de cerca de 13 cm, utilizada para rasgar um placar eleitoral, não integra o crime de detenção de arma proibida.

2. O Acórdão da Relação de Évora em causa diverge da anotação ao art. 86º da Lei das Armas de Artur Vargues (Org. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. I, p. 244), o qual defende que "a detenção de várias armas, na mesma ocasião, que se enquadrem na mesma alínea, integrará um único crime. Em diferentes ocasiões, integrarão tantos crimes quanto aquelas. Se na mesma ocasião alguém for detentor de uma arma elencada na al. a), de duas constantes da enunciação da al. c) e três outras da al. d) praticará, em concurso real, um crime do art. 86º, n.º1-a), um crime do art. 86º, n.º1-c) e um crime do art. 86º, n.º1-d)"

Texto Parcial do Acórdão:

«…- Da prática dos dois crimes de detenção de arma proibida:

Argumenta, neste ponto, o recorrente que,

"Da errónea apreciação da prova veio a decorrer uma incorrecta fundamentação de facto da decisão recorrida, que deve assim ser alterada no sentido de que de acordo com a prova efectivamente produzida e acima melhor explicitada, não pode concluir-se pela verificação e prova da factualidade referida em A) e B). De tal errónea apreciação da prova e relevância da matéria de facto considerada apurada, veio a decorrer a condenação do arguido pela prática de 2 crimes de detenção de arma proibida, um como co-autor material e outro como autor material, com violação, pelo Tribunal a quo, das disposições conjugadas dos artigos 2°, n.º 1, alínea m), 3º, n.º 2, alínea f), 86°, n.º 1, alínea d) e 2°, n.° 1, alínea p), 3º, n.º 4, alínea a), e 86, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições, na redacção da Lei n.º 17/2009, de 06.05. Alterada a matéria de facto deve, em consequência, absolver-se o arguido L… da prática dos 2 crimes de detenção de arma proibida que lhe foram imputados e por que foi condenado.

Como se vê, o recorrente não discute o enquadramento jurídico dos factos devido a erro de direito mas como mera decorrência da procedência do recurso da matéria de facto.

Da improcedência deste resultaria então, sem mais, a confirmação do enquadramento jurídico dos factos efectuado no acórdão.

Mas não será assim.

É certo que o comportamento do recorrente preenche o tipo de crime de detenção de arma proibida dos arts 2.º, n.º 1, alínea m); 3.º, n.º 2, alínea f) e 86.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, no caso da faca, e do crime de detenção de arma proibida, dos arts 2.º, n.º 1, alínea p); 3.º, n.º 4, alínea a) e 86.º, n.º 1, alínea c), no caso da arma de fogo.

Esta matéria não é sequer discutida em recurso.

Mas, deve o agente ser punido pela prática dos dois crimes, considerando-se para tanto que a sua conduta preenche um concurso efectivo de crimes?

As (duas) condutas estão previstas no mesmo tipo de crime - do art. 86º, de detenção de arma proibida - mas em diferentes alíneas - na c), a arma de fogo e na d), a faca) - e são puníveis com diferentes penas abstractas.

À matéria do concurso de crimes chamou Eduardo Correia "um dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal".

Em anotação ao art. 86º da Lei das Armas, Artur Vargues defende que "a detenção de várias armas, na mesma ocasião, que se enquadrem na mesma alínea, integrará um único crime. Em diferentes ocasiões, integrarão tantos crimes quanto aquelas. Se na mesma ocasião alguém for detentor de uma arma elencada na al. a), de duas constantes da enunciação da al. c) e três outras da al. d) praticará, em concurso real, um crime do art. 86º, n.º1-a), um crime do art. 86º, n.º1-c) e um crime do art. 86º, n.º1-d)" (Org. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. I, p. 244).

Com todo o respeito, discordamos desta solução.

Ela conduziria a que o detentor de cinco pistolas fosse punido por um crime e o detentor de uma pistola e de uma faca, o fosse por dois.

Figueiredo Dias propõe como solução do problema da unidade ou pluralidade de infracção, o "critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global". Refere que "o crime por cuja unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais - que integra um tipo legal - efectivamente aplicável ao caso.

A essência de uma tal violação não reside, pois, nem (por um lado) na mera "acção", nem (por outro) na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside (...) no ilícito-típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes."

E acrescenta que "será a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) da ilicitude, devendo reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa "a partir da consequência", a existência de dois grupos de casos:

- o caso normal, em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis - hipóteses de concurso efectivo (do art. 30º,n.º1), próprio ou puro;

- e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados - hipóteses de concurso aparente, impróprio ou impuro.

Com a consequência de que só para o primeiro grupo de hipóteses deverá ter lugar uma punição nos termos do art.77º, enquanto que para o segundo deverá intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida concreta da pena.

(...) Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente. Isto significa que o procedimento não pode em qualquer caso reduzir-se ao trabalho sobre normas, mas tem sempre de ser completado com um trabalho de apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto". (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, fls. 988-991).

Perante uma pluralidade de realizações típicas, a unidade de desígnio criminoso, a identidade de bem jurídico, a unidade temporal e/ou espacial, entre outros e consoante o caso, funcionarão como sub-critérios para definição do sentido fundamentalmente unitário do ilícito.

Nas circunstâncias constantes dos factos provados, a detenção, pelo mesmo agente e na mesma ocasião, de duas armas, se bem que de categorias diferentes, não permite descortinar dois sentidos materiais ou sociais de ilicitude, autónomos entre si, pelo que o recorrente deverá ser punido apenas por um crime, o da alínea c) do art. 86.º, n.º 1 do R.G.A.M. (o ilícito mais grave).

(…)

4. Face ao exposto, acordam os juízes da 2ª Secção do Tribunal da Relação de Évora em:

- Rejeitar o recurso do arguido J, por extemporâneo (arts. 420º, n.º1, al. b), 414º, n.º2 e 411º, n.º1, al. b) do CPP).

- Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido L, absolvendo-o do crime do art. 86º, n.º1 al. d) do R.J.A.M. e reduzindo-lhe a pena única para quatro anos e oito meses de prisão, confirmando no mais a decisão recorrida.

Fixo em 4UC as custas devidas apenas pelo recorrente J.

Évora, 8.11.2011

Ana Barata Brito

António João Latas