sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Crime Continuado - art. 30º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal

UM ACÓRDÃO E UMA ACUSAÇÃO ( CRIME DE LENOCÍNIO )



Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.11.2007
Processo: 07P3296
N.º Convencional: JSTJ000
Relator: Simas Santos

Sumário ( extracto ):


“…11 – Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
12 – O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior (ao agente) das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente. Na existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito».
13 – Dos requisitos do crime continuado resulta também que, tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se pode falar, como o exige o n.º 2 do art. 30.º citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido. Foi este entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o n.º 3 aditado ao art. 30.º do C. Penal pela Lei n.º 59/2007, quis integrar ao dispor: «o disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentes pessoais».
14 – Pode dizer-se que seria então desnecessário tal aditamento, com o que se concorda. Mas o mesmo não permite a interpretação preversa que já foi apresentada de que daí resultaria a imperatividade do crime continuado quando nos vários crimes fosse sempre a mesma vítima. É que, como se viu, a matriz do crime continuado reside na diminuição considerável da culpa, por razões exógenas e só respeitada essa matriz é que se pode afirmar a ocorrência de crime continuado.
15 – A outra decorrência dos requisitos do crime continuado é a de que, para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores, é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião.
16 – A circunstância de se verificar a repetição do modus operandi utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. «a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa». Na verdade, a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a perduração do meio apto que levou ao cometimento de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente, antes se pode afirmar que o esquema de realização do facto foi gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agrava a responsabilidade criminal.
17 – Nesse caso, o arguido não decidiu cometer novos crimes por dispor do esquema prático de execução que criara, antes está provado que construiu esse esquema para poder cometer múltiplos crimes, o que só por si, afastaria a unificação da sua conduta num crime continuado…”


**


ACUSAÇÃO


Inquérito n.º


Em processo comum e para julgamento com a intervenção do Tribunal Singular, por aplicação do art. 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o Ministério Público acusa:

M...

porquanto:

No período temporal compreendido entre Outubro de 2005 e Março de 2006, o arguido colocou Maria …, id. a fls. … dos autos, a ter relações de cópula com terceiros, na qualidade de clientes, junto de várias estradas nacionais, designadamente, na área de B…, C…, E…, A…, M…, L…, M… e M…
Para o efeito, transportava Maria … no veículo ligeiro de mercadorias, de caixa aberta, cor azul ou no veículo de marca Honda, cor cinzenta, deixando-a nos referidos locais, e efectuando, ao fim do dia, a recolha da mesma, altura em que lhe tirava o dinheiro resultante da prática das relações de cópula, que mantinha com os clientes, que aí se deslocavam para esse efeito, para seu benefício, deixando-lhe apenas a quantia de 15,00 Euros por dia.
Em contrapartida das relações de cópula praticadas recebia de cada cliente 20,00 Euros (vinte euros), preço que, por vezes, era reduzido para apenas 10,00 (dez) Euros.
O arguido, enquanto Maria … mantinha as referidas práticas, ficava próximo da mesma, controlando a sua actividade.
Sendo que há cerca de um ano que Maria … abandonou a referida prática.

No entanto, no dia 07 de Setembro de 2007, pelas 17h45m, no Largo …, sito em …, concretamente, na paragem de autocarros, o arguido abeirou-se de Maria … perguntando-lhe se esta se deslocava, na sua companhia, a Espanha, para que tivesse relações de cópula com clientes, sob a sua protecção.
Perante a referida proposta, que Maria …, de imediato, recusou, esta ausentou-se do local onde se encontrava.

O arguido agiu de forma livre, com o propósito reiterado no tempo de execução de um acordo estabelecido, que concretizou, de obter proventos económicos resultantes das relações de cópula praticadas por Maria …, controlando a sua actividade e assim enriquecendo o seu património, o que representou.

O arguido agiu de forma livre, propondo a Maria … que se dedicasse à referida prática, com o propósito de obter lucros resultantes da actividade por esta desenvolvida, deste modo, ofendendo a sua liberdade de autodeterminação sexual, o que representou.

Sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Cometeu, pelo exposto, em autoria material e em concurso efectivo real:

- um crime de lenocínio, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 70º, n.º1 e 30º n.º 2 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09; e,

- um crime de lenocínio, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 170º, n.º 1, 22º e 23º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09.


*


Atentas as respectivas molduras penais seria competente para o julgamento o tribunal de estrutura colectiva (artigo 14.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal).
No entanto, atendendo às circunstâncias do caso concreto e em especial à aceitação da vítima, bem como à não consumação de um dos crimes, se bem que por razões alheias à sua vontade, e de acordo com o princípio da proporcionalidade das penas, entende-se que, com razoabilidade, em concreto, não será de aplicar ao arguido pena superior a cinco anos de prisão, pelo que, nos termos do nº 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal, se deduz acusação para julgamento com intervenção do tribunal de estrutura singular.

*

PROVA:
a) TESTEMUNHAL:
1 – M…, id. a fls. ...;
2 – L…, id. a fls. …;

*

MEDIDA DE COACÇÃO:
(...)

*
Cumpra o disposto no nº 5 e 6 do art. 283º do Código de Processo Penal, notificando mediante via postal simples a ofendida, por via postal registada o defensor oficioso.

*

Nos termos do disposto no art. 64º n.º 3 do Código de Processo Penal, nomeia-se defensor oficioso ao arguido o Dr. … - que se encontra de escala na data da presente acusação -, notificando-o da presente nomeação nos termos do n.º 1 do art. 66º do Código de Processo Penal.
Ao abrigo do disposto n.º 4 do art. 64º do Código de Processo Penal, informe o arguido de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição do defensor mediante a constituição de advogado.

*

Notifique para os efeitos do disposto no artigo 77º nº2 do Código de Processo Penal.

*

Comunique superiormente de acordo com o ponto VI, n.º3 da Circular n.º 6/2002 de 11.03 da P.G.R..

*

(processei, imprimi, revi e assinei o texto, seguindo os versos em branco – art. 94º n.º 2 do Código de Processo Penal)


Local/Data


O Procurador-Adjunto


COMENTÁRIO:

Acusação por tentativa de crime de lenocínio, uma vez que no tipo legal de crime se exige o mero "fomentar", ou seja, promover, excitar ou provocar, conforme referido por Sénio Manuel dos Reis Alves, em anotação da página 68 de Crimes Sexuais - Notas e Comentários, Almedina, 1995, estando-se assim no caso referido na acusação perante verdadeiros actos de execução e não perante meros actos preparatórios.
A respeito do art. 30º, n.º 3, do Cód. penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 04.09, consulte-se a
DIRECTIVA
do Ex.mo Sr. Procurador-Geral da República,
de 09.01.08
in www.pgr.pt :

“A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que alterou o Código Penal, introduziu significativas modificações não apenas no que se refere à definição de novos tipos legais de crime e à reformulação de incriminações já existentes, mas também no que respeita a normas fundamentais da Parte Geral do Código.
Apesar deste seu carácter inovador, a específica natureza destas alterações do direito penal substantivo não tem suscitado, em geral, o nível de controvérsia que foi gerado por algumas modificações introduzidas, simultaneamente, no Código de Processo Penal.
Ocorreu, porém, uma modificação na “Parte Geral” do Código Penal que provocou polémica, inclusive nos meios de comunicação social e por parte do público em geral, afigurando-se, no entanto, que as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado, ao longo de décadas, pela jurisprudência.
Referimo-nos ao novo n.º 3 do art.º 30º do Código Penal, que veio possibilitar, expressamente, a utilização da figura do crime continuado, em casos de prática plúrima de crimes contra bens eminentemente pessoais, estando em causa a mesma vítima, desde que, obviamente, se verifique o pressuposto fundamental daquele instituto – acentuada diminuição da culpa do autor.
Ora, sem entrar aqui em elaborações doutrinais mais aprofundadas, no âmbito duma matéria que integra os próprios princípios estruturais do sistema punitivo, há que reconhecer que a mera possibilidade da atenuação da punição em casos que poderiam ser punidos de acordo com as regras do concurso de crimes, justificará um particular cuidado na avaliação e valoração das circunstâncias factuais cuja verificação, no caso concreto, poderá implicar a punição a título de crime continuado.
Face ao exposto, cabendo ao Ministério Público um papel essencial na conformação do objecto do processo, tendo em vista o julgamento dos factos apurados e a aplicação do regime punitivo que se mostre mais adequado ao caso concreto, determina-se, nos termos do art.º 12º , n.º 2, alínea b), do Estatuto do Ministério Público revisto e republicado pela Lei n.º 60/98, de 27.08, que sejam adoptadas as seguintes orientações:
1 A eventual subsunção jurídica dos factos apurados à figura do crime continuado, prevista pelos n.º s 2 e 3 do art.º 30º do Código Penal, quando se verifique a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, dependerá sempre, nos termos da lei, da verificação de circunstâncias de facto que, em concreto, devam considerar-se como aptas a justificar um juízo de considerável diminuição da culpa do arguido;
2 Sendo assim, quando no inquérito se suscite a eventual verificação de uma situação de continuação criminosa, deverá proceder-se ao rigoroso apuramento, em concreto, dos pressupostos de facto de que depende a imputação da prática de crime continuado, quer no que se refere à exigível “homogeneidade da actuação” do arguido quer no que respeita à existência de uma “mesma situação exterior”, susceptível de diminuir consideravelmente a respectiva culpa;
3 Subsequentemente, se tais pressupostos estiverem inequivocamente apurados, os factos integradores da “continuação criminosa” deverão ser rigorosamente descritos na acusação, não podendo esta limitar-se à afirmação conclusiva da sua alegada verificação;
4 Caso não se revele possível, no momento do encerramento do inquérito, fundamentar, em factos concretos, a imputação da prática de crime continuado, nos termos atrás expostos, deverão os senhores Magistrados do Ministério Público abster-se de invocar esta figura jurídica, no âmbito das acusações que vierem a ser deduzidas”.

Jurisprudência Obrigatória do S.T.J.

Acórdão n.º 1/97

Apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo - mesmo que após o prazo previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal de 1982.
19.12.1996
Proc. n.º 48 713
Augusto Alves (relator)
DR 8/97 SÉRIE I-A, de 1997-01-10


Assento n.º 1/97

Requerida a instrução por um só ou por alguns dos arguidos abrangidos por uma acusação, os efeitos daquela estendem-se aos restantes que por ela possam ser afectados, mesmo que a não tenham requerido.A final, a decisão instrutória que vier a ser proferida deve abranger todos os arguidos constantes da referida acusação, por não haver lugar, neste caso, a aplicação posterior do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal.
19.10.1995
Proc. n.º 41 250
Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira (relator)
DR 242/97 SÉRIE I-A, de 1997-10-18

Nota:Este Assento foi objecto da Declaração de Rectificação n.º 21/97, de 14 de Novembro de 1997, a qual não alterou o indicado texto do Assento, consignando tão-só que “sobre a matéria deste acórdão veio a ser proferido, em via de recurso, pelo Tribunal Constitucional, em 12 de Março de 1997, o Acórdão n.º 225/97, no processo n.º 96/96, que se publica a seguir, como parte complementar do mesmo”.
DR 275/97 SÉRIE I-A, de 1997-11-27

Acórdão n.º 13/97

A declaração ‘devolvido por conta cancelada’, aposta no verso do cheque pela entidade bancária sacada, equivale, para efeitos penais, à verificação da recusa de pagamento por falta de provisão, pelo que deve haver-se por preenchida esta condição objectiva de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro.
08.05.1997
Proc. n.º 837/96
Florindo Pires Salpico (relator)
DR 138/97 SÉRIE I-A, de 1997-06-18


Assento n.º 4/2000

Se, na vigência do CP de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 82.
19.01.2000
Proc. n.º 43 448 - 3.ª
Leonardo Dias (relator)
DR 40 SÉRIE I-A, de 2000-02-17


Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008, D.R. n.º 63, Série I de 2008-03-31
Supremo Tribunal de Justiça
Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo