segunda-feira, 17 de novembro de 2008

DECLARAÇÕES ESCUTADAS POR MEIO DE “ALTA-VOZ” /Prova Proibida

DECLARAÇÕES ESCUTADAS POR MEIO DE “ALTA-VOZ” /Prova Proibida
Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-10-2008
Processo: 103/06.8GAAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. VASQUES OSÓRIO


Sumário:

I. - O acesso a uma conversação telefónica através do sistema técnico de audição designado por “alta voz” integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) no conteúdo de telecomunicações (cf. Ac. do STJ de 07/02/2001, processo nº 2555/00, 3ª secção, acessível na jurisprudência do STJ, do site da Procuradoria Distrital de Lisboa).

II. - O depoimento prestado por uma testemunha, sobre factos jurídico-penalmente relevantes e obtidos através da função de “alta voz”, quando efectuado sem o conhecimento e o consentimento do emissor de voz, constitui-se como uma intromissão em telecomunicações e deve ser taxado como prova nula.


Texto ( parcial ):

Da prova proibida (conclusão 12)
7. Pretende o recorrente que é prova nula, nos termos dos arts. 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa e 125º e 126º, nº 3, do C. Processo Penal, o depoimento da testemunha …. Para tanto alega que a testemunha tomou conhecimento da ameaça imputada e praticada através de chamada telefónica, através da activação pela assistente do sistema de alta voz do seu telemóvel, activação que não foi consentida pelo recorrente, o que tipifica o crime previsto no art. 194º, nº 2, do C. Penal.Vejamos se assim é.

7.1. Competindo ao Estado assegurar o interesse constitucional da realização da Justiça, nele se incluindo, como é óbvio, a punição dos autores de crimes, a busca da verdade na realização desta tarefa não pode ser obtida a qualquer preço, havendo que ponderar sempre os direitos fundamentais e a medida da sua afectação.A este propósito, doutrinam os Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros, «A eficácia da Justiça é também um valor que deve ser perseguido, mas, porque numa sociedade livre os fins nunca justificam os meios, só é aceitável quando alcançada lealmente, pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degradam quem os sofre, mas não menos quem os usa.» (ob. cit. 361).

Por isso a lei estabelece proibições de prova que constituem limites à descoberta da verdade isto é, são obstáculos ao apuramento dos factos que constituem o objecto do processo (cfr. Prof. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 83).«A coberto dos métodos proibidos de prova proscreve a lei processual os atentados mais drásticos à dignidade humana, mais capazes de comprometer a identidade e a representação do processo penal como processo de um Estado de Direito e, por vias disso, abalar os fundamentos daquela Rechtskultur sobre que assenta a moderna consciência democrática.» (Prof. Costa Andrade, ob. cit. 209).

O art. 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa dispõe que são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.Trata-se de uma interdição relativa, devendo considerar-se abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial, quando desnecessária ou desproporcionada, e ainda quando destruidora dos próprios direitos (cfr. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. 524). Ao nível da lei ordinária, estabelece por sua vez, o art. 126º, nº 3, do C. Processo Penal que ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

Dispõe o art. 34º, nº 1, da Lei Fundamental, que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, proibindo o seu nº 4, a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Naturalmente que a referência constitucional à ingerência das autoridades públicas não significa que seja legítima tal ingerência a entidades provadas (cfr. Armando Veiga e Benjamim Rodrigues, Escutas Telefónicas, 1ª Ed., 57).

Os arts. 187º a 190º do C. Processo Penal dão corpo à excepção indicada na parte final deste último preceito constitucional, regulando as escutas telefónicas nos seguintes aspectos: estabelecimento de um regime de autorização e controle por um juiz (arts. 187º, nº 1 e 188º, nº 4, do C. Processo Penal); reserva das escutas para a investigação de certos tipos de ilícito, quer em função da sua gravidade, quer em função das suas características que tornam as escutas meio de recolha de prova particularmente adequado à sua investigação (art. 187º, nº 1, do C. Processo Penal); limitação do universo de pessoas sujeitos às escutas (art. 187º, nº 4, do C. Processo Penal); e exigência da indispensabilidade da diligência para a descoberta da verdade ou para a obtenção da prova (art. 187º, nº 1, do C. Processo Penal).

Desta forma, acautelou e atenuou o legislador a danosidade social que as escutas acarretam, na medida em que, quando não consentidas, constituem sempre lesão irreparável do direito à palavra falada (cfr. Prof. Costa Andrade, ob. cit. 284).

7.2. Incluído no Capítulo VII – Dos crimes contra a reserva da vida privada, do Título I, do Livro II, do C. Penal, o crime de Violação de correspondência ou de telecomunicações, previsto no art. 194º do código citado, tem, numa primeira linha, como bem jurídico tutelado a privacidade. Mas, como adverte o Prof. Costa Andrade, não se trata da privacidade em sentido material mas da privacidade em sentido formal, pois é indiferente o conteúdo das missivas ou telecomunicações, não exigindo o preenchimento do tipo que versem coisas privadas ou brigue com segredos. Numa segunda linha e, portanto, reflexamente, a incriminação tutela ainda um bem supra-individual, a confiança da sociedade na integridade dos serviços postais e das telecomunicações (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 754).

Releva apenas para a concreta questão a decidir a violação de telecomunicações e, por isso, a conduta típica prevista no nº 2, do art. 194º, do C. Penal.

São elementos constitutivos desta modalidade de cometimento do crime:- [elemento objectivo] que o agente, sem consentimento, se intrometa no conteúdo de telecomunicações ou dele tome conhecimento; - [elemento subjectivo] o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.

Não é isenta de dificuldades a determinação do titular do bem jurídico, sendo que esta qualidade releva para efeitos de legitimidade para consentir que um terceiro possa tomar conhecimento.

A este respeito diz-nos o Prof. Costa Andrade (Comentário, 756) que, no que às comunicações telefónicas concerne, pressupondo estas a intervenção simultânea de, pelo menos, duas pessoas, deve entender-se que todos os interlocutores são, a igual título, portadores do bem jurídico, o que determina que não assiste «a qualquer deles a legitimidade para, só por si, e sem a concordância do outro, consentir que um terceiro tenha acesso, escute, registe ou grave a comunicação.».

Mas não deixa este Mestre de notar que a solução proposta não é unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência, esclarecendo ser maioritária na Alemanha a tese de que o acordo de um dos interlocutores bastará para legitimar a intromissão de terceiros (Comentário, 764).

Fixando agora a conduta típica em análise, cabe dizer que só é típica a conduta que envolva o recurso a meios técnicos de captação, audição e registo.

Assim, não será típica a conduta de quem, escondido, houve uma conversação telefónica, mas já será típica a conduta de quem, com um segundo auscultador, ouve uma conversação telefónica, se tal é desconhecido pelo ofendido (cfr. Prof. Costa Andrade, Comentário, 763).

7.3. Diz o recorrente que a testemunha tomou conhecimento da ameaça que lhe é imputada, praticada através de conversação telefónica havida entre si e a assistente, por ter esta activado o sistema de alta voz do seu telemóvel, activação que não foi consentida pelo recorrente.

Ouvido o depoimento da testemunha … produzido em audiência – cassete 3, lado B – dele resulta ter a testemunha afirmado que ouviu as palavras dirigidas pelo recorrente à assistente porque esta, depois de repetidas chamadas feitas pelo recorrente que não atendeu, decidiu atender uma, e activou então a função de alta voz [viva voz, referiu inicialmente a testemunha] do aparelho, para que todos pudessem ouvir.

Afirmou também a testemunha que o recorrente, vendo rejeitadas as chamadas feitas para o telemóvel da assistente, ligava então para o próprio telemóvel da testemunha, pois sabia que a assistente estava consigo, mas também não atendia as chamadas, a pedido desta.

Posto isto.Na conversação telefónica de que cuidamos, eram simultaneamente emissores e receptores, a assistente e o recorrente.

E apenas estes o eram, na medida em que cada um detinha o meio apto a manter a conversação isto é, os respectivos telemóveis, em ligação.

A testemunha … não praticou qualquer acto de intromissão naquela conversão, utilizando ela mesma um qualquer meio técnico.

Pelo contrário, de forma absolutamente passiva, limitou-se a ouvir o que recorrente e assistente diziam.

E foi precisamente o teor desta conversa o que, através do seu depoimento e na qualidade de testemunha, declarou em audiência.

A testemunha, enquanto terceiro, não se intrometeu na conversação, antes foi intrometida pela própria assistente que era um das interlocutoras e também uma das titulares do bem jurídico tutelado pelo art. 194º, do C. Penal.

Por isso se entende não estarem verificados em relação à testemunha, os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime de violação de correspondência ou de telecomunicações.

De facto, foi a assistente quem, sem o consentimento do recorrente – este o afirma, e é normal que assim tenha sido, atento até o depoimento da testemunha – manteve a conversação com o sistema de alta voz do aparelho que utilizava accionado, proporcionado a sua audição por terceiros.

A função alta voz, que hoje vulgar até nos telemóveis menos sofisticados, é um meio técnico de audição. Por esta razão, o acesso a uma conversação telefónica através dela, integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) no conteúdo de telecomunicações (cfr. Ac. do STJ de 07/02/2001, processo nº 2555/00, 3ª secção, acessível na jurisprudência do STJ, do site da Procuradoria Distrital de Lisboa).

A lei pressupõe que o emprego destes meios técnicos parta de um terceiro que os usa para obter uma informação que, de outro modo, não obteria.

Nos autos, se ingerência existiu, ela não foi de um terceiro – da testemunha – mas do próprio, ainda que não único, titular do bem ou seja, da assistente.

A actuação da assistente, tendo em consideração as palavras que lhe foram dirigidas pelo recorrente – dando corpo a ameaças – e as repetidas tentativas de estabelecer com ela contactos telefónicos no contexto de um desentendimento grave entre o casal, sempre estaria a coberto da causa de justificação da legítima defesa ou mesmo, do direito de necessidade (cfr. Prof. Costa Andrade, Comentário, 767 e 841).

Justificada a esta luz, a conduta da assistente, não se vê que a testemunha possa ter preenchido o tipo do nº 3, do art. 194º, do C. Penal, ao produzir em audiência o depoimento que produziu.

Por outro lado, a conversação ouvida pela testemunha não respeita à vida íntima do recorrente não se colocando por isso, e agora numa outra perspectiva, a devassa da sua vida privada (art. 192º, do C. Penal).

Apesar da conduta da testemunha não se revelar ilícita, certo é que as proibições de prova não têm, necessariamente, que ter tal natureza.

Por outro lado, não é o depoimento da testemunha, em si mesmo, que se mostra afectado, mas antes a razão do conhecimento dos factos que são o seu objecto.

Dito de outra forma: a testemunha teve conhecimento dos factos que relatou em audiência porque, passivamente, os ouviu, mas tal audição apenas foi possível porque uma outra pessoa – a assistente – com o propósito de o permitir, activou, sem o consentimento do recorrente, um meio técnico de audição – alta voz do telemóvel usado na comunicação – que constitui uma intromissão em telecomunicações.


Assim, atento o disposto nos arts. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa e o art. 126º, nº 3, do C. Processo Penal, o depoimento prestado pela referida testemunha é prova nula.Tendo o depoimento que constituiu prova nula, contribuído para a formação da convicção do tribunal recorrido, relativamente ao crime de ameaça pelo qual foi o recorrente condenado – na fundamentação de facto da sentença, este depoimento é qualificado de muito importante – a procedência de tal nulidade determina a invalidade dos actos subsequentes (art. 122º, nº 1, do C. Processo Penal).

Desta forma, sendo inválida a sentença recorrida, deve o tribunal produzir nova sentença, agora sem considerar a prova considerada nula por proibida.

A procedência da nulidade da prova proibida prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões do recurso, e que atrás se deixaram enunciadas.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar procedente a invocada nulidade da prova relativamente ao depoimento da testemunha K… e, em consequência, declaram a invalidade da sentença recorrida, e determinam a sua repetição, agora sem que seja atendida e ponderada a prova proibida.