quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Valor elevado/Bens patrimoniais de considerável valor: dano e ameaça (clique para consultar o acórdão na DGSI)

Acórdão da Relação de Coimbra, de 07.11.2007
( processo 568/05.5TAAVR.C1; relator: Jorge Raposo )

Sumário:

1. O valor de referência para efeito de qualificação do crime de dano é o valor do prejuízo causado no bem visado.
2. A expressão “considerável valor”, utilizada no art. 153°, nº 1 do Código Penal (crime de ameaça) deve ser interpretado como sendo um conceito objectável por referência às alíneas a), b) e c) do artigo 202° do Código Penal e que apenas exclui o “valor diminuto” definido na alínea a).


Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO.

1.No processo em epígrafe, findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida A...por crime de ameaça do art. 153º, nº2, ex vi dos art.s 202º al. b) e 213º nº 2 al. a) do Código Penal.Inconformada com a acusação pública, a arguida requereu abertura de instrução. Após realização de diligências instrutórias, foi proferido despacho de não pronuncia da arguida A...pela prática do crime de ameaça do art. 153º, nº2, ex vi dos art.s 202º al. b) e 213º nº 2 al. a) do Código Penal. O Sr. Juíz de Instrução fundamentou da seguinte forma a sua decisão instrutória de não pronúncia que se reproduz parcialmente: “Vem descrito na acusação pública que a arguida, na sequência de uma discussão com a ofendida Jorgelina Arede Bastos, proferiu a seguinte expressão “que quando lhe apanhasse o carro a jeito, lhe riscaria o carro”. Diz-se ali também que a ofendida é dona de uma viatura que havia adquirido em 17 de Maio de 2002, pelo preço de 20.824,81€. Mas, será que só isto chega para preencher o elemento objectivo do crime porque a arguida vem acusada? Uma primeira observação se impõe, desde logo, pois que a ameaça de riscar o carro da ofendida não pode ser aferida através do valor patrimonial do mesmo pois a ameaça não foi da sua destruição integral mas apenas e tão só do valor da sua pintura e mão de obra correspondente e tal não vem referido na acusação pública. Depois, seguindo o entendimento do Prof. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense..., Tomo I., Pág. 346, “Quando a ameaça tiver por objecto a prática de crime contra bens patrimoniais, poder-se-á dizer que, em geral, embora não necessariamente, ou haverá crime de ameaça qualificada (art. 153º - 2) ou pura e simplesmente não haverá crime de ameaça. Isto, porque, se o bem patrimonial não for de considerável valor (art. 153º - 1), não há sequer crime de ameaça; e se o bem patrimonial for de considerável valor (=valor elevado do art. 202º a), então já haverá ameaça qualificada (art. 153º - 2), uma vez que, na generalidade dos casos, os crimes contra o património, em que esteja em causa um valor considerável ou elevado (p. ex. furto qualificado: art. 204º-1 a); dano qualificado: art. 213-1 a)), são puníveis com pena de prisão superior a três anos.” Seguindo este entendimento, temos, in casu, que a ameaça só ocorreria se o valor patrimonial da pintura do automóvel da ofendida e correspondente mão de obra, fosse de montante superior a 50 unidades de conta, valor que, à altura dos factos, se cifrava em 3.990,50€ (50X79.81€). Para tal efeito, deixando de parte a questão de saber se o veículo que possuía a queixosa era um Fiat Punto ou um novo Peugeot 307, apurou-se que o valor de pintura deste último veículo, a que se faz referência na acusação (cfr. doc. de fls. 97) importa em 1.494,35€, conforme informação de concessionário oficial da marca Peugeot - fls. 303. Assim, e sem necessidade de mais considerandos, impõe-se concluir que não se encontram nos autos elementos que possam sedimentar a acusação pública, concluindo-se, ao invés, que a conduta da arguida, mesmo a ter acontecido, nunca consubstanciaria a prática pela mesma do crime de ameaça, atento o “valor da ameaça” proferida. Em conclusão, não se torna muito provável a futura condenação da arguida pelo crime de que vem acusada ou esta seja mais provável que a sua absolvição, pelo que se entende que não existem indícios, reputados de suficientes, para pronunciar a arguida”.

2.Da decisão de não pronúncia que veio a ser a final proferida, interpôs recurso o Ministério Público, sustentando a pronúncia da arguida e apresentando as seguintes conclusões:

1º A decisão instrutória recorrida merece a nossa discordância, em especial, pela interpretação do conceito de considerável valor contido no artº153º nº 1 do C. Penal.
2º No art° 153° n° 1 do C.Penal o legislador utilizou o conceito indeterminado de "considerável valor" - sendo certo que, no mesmo Código Penal foram definidos outros conceitos legais com significado patrimonial diverso.
3° No art° 202° do C.P., o legislador optou por definir os conceitos legais de "valor elevado", "valor consideravelmente elevado" e "valor diminuto" - e se tais conceitos foram definidos, tal só se compreende tendo em vista a sua utilização, no mesmo Código Penal, para todos os casos em que se pretendesse aludir ao seu significado.
4° Como tal, não obstante o respeito devido à interpretação de que "considerável valor" é igual a "valor elevado" não pode com a mesma concordar-se, pois seria totalmente irrazoável que o legislador, para aludir a um valor superior a 50 unidades de conta, fosse utilizar outro conceito diverso da terminologia do seu próprio "dicionário".
5° Pelo contrário: das definições legais do art° 202° se retira o inequívoco sentido de que a utilização de um conceito diferente (considerável valor) tem como clara intenção referir uma realidade patrimonial diferente das aí contempladas (valor diminuto, elevado ou consideravelmente elevado).
6° "Considerável valor" será, pois, independentemente da sua quantificação, um valor importante ou relevante - para um homem médio, será, sem dúvida, o valor de um automóvel ou mesmo o valor da pintura do dito automóvel no montante de 1.494,35€.
7° Acresce que não é legítimo fazer distinção entre o valor do bem visado e o valor do prejuízo causado no bem visado - e não é legítimo fazer essa distinção porquanto a mesma não é feita pelo próprio tipo de crime.
8° Assim, o tipo exige a ameaça de prática de crime contra bens patrimoniais de considerável valor e não a ameaça da prática de crime patrimonial com prejuízo de considerável valor ...
9º O crime de dano pode consistir em destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar, ou tomar não utilizável coisa alheia -mas nem o tipo de crime de dano nem o tipo de crime de ameaça exigem a destruição, ainda que parcial, para a verificação do crime;
10º Sendo imputada à arguida a ameaça com a prática de crime (de dano = desfigurar = riscar) contra um bem patrimonial (automóvel adquirido pelo preço de 20.824,81 €), tal há-de ser bastante para ser proferido despacho de pronúncia.
11º O despacho recorrido violou o disposto no art° 153° n° 1 e 2 do Código Penal.

3. A arguida respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso e concluindo: Quando a ameaça tiver por objecto, como é o caso dos autos, a prática de um crime contra bens patrimoniais, só existirá crime de ameaça, se o bem patrimonial sobre o qual promete a prática de um crime for de considerável valor, sendo que tal considerável valor corresponde ao valor elevado a que alude o art. 202º alínea a) do Código Penal, isto é, aquele que exceda cinquenta unidades de conta, no momento da prática do facto, ou seja, 3.990,5 Euros (50X79,81 Euros)

4. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso. Sustenta tese diversa que merece ser aqui transcrita na sua parte mais relevante:…os conceitos que, como é o caso das alíneas do citado 202°, quantificam os valores dos bens a ter em conta nos crimes contra a propriedade ou contra o património em geral, são naturalmente aqueles que deverão servir também de referencial para a definição ou precisão do conteúdo de conceitos afins, ou não inteiramente coincidentes, usados igualmente como elementos da ilicitude noutros tipos legais de crime, como é caso do também citado artigo 153°, n°1. Sendo assim, o que daí parece decorrer é que a expressão "valor considerável”, ainda que não acolhida como tal na economia daquele primeiro preceito, nele releva todavia em associação e como acréscimo expressivo ao conceito de "valor elevado”, estando assim acoplada na fórmula "valor consideravelmente elevado". É pois algo mais do que aquilo que é tido como padrão mínimo ou como normalmente relevante, que está portanto para além de um determinado valor de referência ou de partida. E este pode assentar tanto naquilo que foi pensado como valor mínimo atendível para efeitos penais e que se expressa no conceito de valor diminuto (valor este - artigo 202° al. c) - que deve ser assim considerado de referência e, como tal, genericamente acolhido como decisivo elemento interpretativo na precisão de conceitos afins, como o ora em questão), como também noutros valores mais significativos e legalmente qualificados e quantificados, como é o caso da alínea b). Vale isto por dizer que uma tal expressão está assim balizada pelos conceitos de "valor diminuto" e "valor consideravelmente elevado", podendo assim ir além ou ficar aquém do conceito de "valor elevado". Ponto é que a sua quantificação exceda sempre aquilo que é considerado valor diminuto.

5. Foi cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP. Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

6. Conforme jurisprudência constante e pacífica (por todos, Ac. STJ 24.03.1999, CJ VII-I-247), o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do CPP e Ac do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).

7. O tema decidendum traduz-se, in casu, na tipificação jurídica dos factos constantes da
acusação. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a decidir são duas:

Primeiro, importa saber se o valor de referência para efeito de qualificação do crime de dano “prometido” é o do valor do bem visado ou o valor do prejuízo causado no bem visado (conclusões 7ª a 10ª);

Depois, há que analisar a questão do significado da expressão “considerável valor”, utilizada no preceito incriminador do artigo 153°, nº 1 do Código Penal (crime de ameaça): se corresponde ao conceito "valor elevado" previsto no artigo 202° alínea a) do mesmo Diploma, como sustenta a decisão de não pronúncia e a arguida, na esteira do entendimento do Prof. Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense... Tomo I, pag 346); se, constitui uma realidade patrimonial diferente, que não depende propriamente da quantificação do seu valor, mas do que ele revela de importante e relevante segundo os padrões do homem médio reclamado pela ordem jurídica, como afirma o Recorrente (conclusões 1ª a 6ª); ou se o “considerável valor” é um conceito objectivo que apenas exclui o “valor diminuto” definido no artigo 202° alínea a) do Código Penal, na tese defendida pelo D. Procurador-Geral Adjunto.

Apesar da sistematização das conclusões do recurso, as questões serão apreciadas de forma inversa à apresentada porque a definição do valor relevante (do bem ou dos prejuízos) é prévio à discussão sobre o significado da expressão “considerável valor”. Acresce que não sofre contestação (em nenhuma das teses sustentadas) que valores elevados e consideravelmente elevados integram sempre o conceito de “considerável valor”. Por isso, só faz sentido discutir o significado do “considerável valor” se o valor relevante não for sequer “elevado” na definição da al. a) do art. 202º do Código Penal. Ou seja, a discussão só faz sentido se o valor relevante for o dos prejuízos que poderiam ser causados (indiciariamente 1.494,35€) e não o do veículo (indiciariamente 20.824,81€).

8.
1ª questão: significado dos referentes do valor elevado ou consideravelmente elevado no crime de dano

No Acórdão da Relação de Coimbra de 6.12.06 no proc. 61/04.3TAFIG.C1A (no site da DGSI) sustenta-se que “a circunstância qualificativa do nº. 1 do artigo 213º do C. Penal, em caso de destruição parcial, opera atendendo ao prejuízo causado e não ao valor da coisa danificada”, com argumentos assim sintetizados: “A jurisprudência maioritária, que também sufragamos, aponta no sentido de considerar que, face ao estatuído pelo artigo 9.º do Código Civil [CC], a lei deverá ser interpretada de forma não literal, o que implica que, atendendo ao seu espírito, se possa afirmar que “uma coisa danifica-se quando, sem perder totalmente a sua integridade, sofre um estrago substancial com a consequente diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica” (cfr. Código Penal, de Leal-Henriques e Simas Santos), apenas se podendo falar em identidade do valor da coisa e do prejuízo quando haja destruição da coisa, e não, como no caso dos autos, nos casos de destruição parcial. Isto é, a jurisprudência mostra-se praticamente unânime no sentido de que o teor estritamente literal do citado art. 213.º, n.º 1, alínea a), apenas se coaduna com a destruição total da coisa, impondo-se, nos casos de destruição parcial, a interpretação correctiva...” No mesmo sentido se pronunciou também o Acórdão da Relação do Porto de 9.5.01 (proc. 0110269 no site da DGSI) assim sumariado: “Para efeitos de determinação, no crime de dano, de coisa alheia de valor elevado (artigo 213 n.2 alínea a) do Código Penal), só assume relevância típica o dano directamente infligido à coisa, aferindo-se o valor do dano pelos custos da reparação e da desvalorização da coisa”. Também Costa Andrade, Comentário Conimbricense, T. 2, pg. 245 sustenta, relativamente ao valor elevado e valor consideravelmente elevado no crime de dano, que “as expressões assumem aqui o sentido que lhes é dado no art. 202°, respectivamente, valor superior a 50 e a 200 unidades de conta, avaliadas no momento da prática do facto. Mas as coisas colocam-se no domínio do Dano em termos diferentes do que se passa em matéria de Furto ou de Abuso de Confiança. Ao contrário do que o teor literal parece linearmente sugerir, nem todo o dano que atinge coisa alheia de valor elevado ou consideravelmente elevado determina a punibilidade nos termos do art. 213°. O problema não se coloca, naturalmente, para a modalidade de conduta destruir (no todo). Mas já se coloca nas demais modalidades de conduta e, particularmente, na de danificação, Brevitatis causa, nem toda a lesão de uma coisa de valor elevado ou consideravelmente elevado configura um caso de Dano qualificado: um simples risco na pintura de um valioso automóvel não configura necessariamente um Dano qualificado. Significa isto que o referente do valor elevado ou consideravelmente elevado há-de ser não a coisa-objecto-da-acção mas o prejuízo causado pela acção. É o que expressamente prevê o dispositivo homólogo da lei austríaca (§ 126 do OStGB). E é a interpretação correctiva de que se mostra carecida a lei portuguesa”.

Efectivamente, existem diversas modalidades de conduta típica no crime de dano:
A destruição total;
A destruição parcial;
A danificação;
A desfiguração;
A inutilização, redução da utilidade da coisa segundo a sua função (tornar não utilizável).

E, a redacção do Código Penal resultante da reforma de 1995 coaduna-se na sua análise literal com as condutas de destruição e inutilização totais mas exige um esforço interpretativo no sentido de, nos outros casos (destruição parcial, danificação…), fazer corresponder o valor da coisa destruída ou danificada ao valor do prejuízo directamente causado. A dita interpretação correctiva é, aliás, a única que se mostra consentânea com elementos históricos, sistemáticos e teleológicos de interpretação. Já no Código Penal de 1886 (art. 472º) é o valor do prejuízo causado e não o valor da coisa que agrava a pena.O Código Penal, na sua versão de 1982, consagra a possibilidade de agravação da pena do crime de dano em algumas circunstâncias por referência a “um prejuízo particularmente grave”, ou seja, tendo por referente o valor do prejuízo e não o valor da coisa (art. 310º nº 1 do Código Penal de 1982). Com a revisão do Código Penal (Decreto-Lei 48/95 de 15.3) o que se pretendeu foi, tão somente, “harmonizar o sistema com as soluções adquiridas quanto ao furto e ao roubo” no dizer do Prof. Figueiredo Dias (“Código Penal –Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Min. Justiça, 1993, pg. 338) e não operar uma profunda alteração na tradição jurídica portuguesa. Por isso, impõe-se a interpretação da norma no sentido de que o valor referente para efeitos de qualificação do crime de dano é o do prejuízo sofrido e não o do valor da coisa na sua totalidade. Os argumentos supra aduzidos mantêm-se válidos e impõem essa mesma interpretação no que respeita ao segmento do art. 153º nº 1 do Código Penal, quando se refere a crime contra bens patrimoniais de considerável valor se o crime em apreço for de dano, como no caso dos autos. Ou seja, no caso da ameaça com um crime de dano, o que releva é que a ameaça seja de um dano que cause prejuízo de considerável valor. Desta forma, bem andou o MMº Juiz a quo ao afirmar que a ameaça de riscar o carro da ofendida não pode ser aferida através do valor patrimonial do veículo pois a ameaça não foi da sua destruição integral mas apenas e tão só do valor da sua pintura e mão de obra correspondente. Esse valor, seria indiciariamente fixado em 1.494,35 € de acordo com o despacho de não pronúncia (tendo em atenção que essa alteração não substancial dos factos deriva directamente de factos e requerimento probatório constantes do requerimento de abertura de instrução, a fls. 287 a 289 dos autos). Tal montante não pode ser considerado elevado, por referência ao art. 202º al. b) do Código Penal e, consequentemente, em causa estaria somente uma ameaça de um crime de dano simples p. e p. pelo art. 212º do Código Penal. Consequentemente, importa analisar a

9.

2ª questão: significado do conceito “considerável valor” do art. 153º nº 1 do Código Penal.

No Acórdão da Relação de Coimbra de 12.12.01 (recurso 2880/2001, sumariado no site do Tribunal da Relação de Coimbra) sustenta-se que “o crime objecto da ameaça tem que ser um crime contra a vida (131º e ss); um crime contra a integridade física (143º e ss); um crime contra a liberdade pessoal (153º e ss.); um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual (163º e ss); bens patrimoniais de considerável valor, que equivale a "valor elevado" do artº 202º a)”. Também Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense”, T. 1, pg. 346, sustenta que “quando a ameaça tiver por objecto a prática de crime contra bens patrimoniais, poder-se-á dizer que, em geral, embora não necessariamente, ou haverá crime de ameaça qualificada (art. 153°-2) ou pura e simplesmente não haverá crime de ameaça. Isto, porque, se o bem patrimonial não for de "considerável valor" (art. 153°-1), não há sequer crime de ameaça; e se o bem patrimonial for de "considerável valor" (="valor elevado" do art. 202° a), então já haverá ameaça qualificada (art. 153°-2), uma vez que, na generalidade dos casos, os crimes contra o património, em que esteja em causa um "valor considerável" ou "elevado" (p. ex., furto qualificado: art. 204°-1 a); dano qualificado: art. 213°-1 a), são puníveis com pena de prisão superior a 3 anos”.Esta posição, sustentada pelo MMº Juiz de Instrução no despacho de não pronúncia e pela arguida na sua resposta limita-se a afirmar a correspondência entre os conceitos de "considerável valor" e de "valor elevado" sem, no entanto, demonstrar essa similitude. Ora, essa correspondência não existe como se procurará demonstrar. Vejamos. O art. 155º do Código Penal, na sua versão de 1982 estatuía:
1. Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até 1 ano ou multa até 100 dias.
2. No caso de se tratar de ameaça com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.
3. O procedimento criminal depende de queixa.

Nota-se que não existia qualquer limitação em relação à tipologia dos crimes com os quais o agente pode ameaçar outrem. Foi com a revisão do Código Penal (Decreto-Lei 48/95 de 15.3) que se limitaram os tipos de crimes determinantes do crime de ameaça, entre os quais os crimes contra bens patrimoniais de considerável valor, no art. 153º do Código Penal:
1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3. O procedimento criminal depende de queixa.

Um dos propósitos da alteração foi, confessadamente, “estreitar-se a sua aplicação pela indicação dos bens ameaçados” (Prof. Figueiredo Dias, no“Código Penal –Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Min. Justiça, 1993, pg. 232).Porém esta alteração ocorre simultaneamente com “a definição quantificada de conceitos como valor elevado, consideravelmente elevado e diminuto, enquanto fundamentos de qualificação ou privilégio” e com o “abandono do modelo vigente de recurso a conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais de valor enquanto critérios de agravamento ou privilégio, de modo a obviar as dificuldades que têm sido reveladas pela jurisprudência e a que o legislador não se pode manter alheio” como afirma o preâmbulo do diploma que procede à alteração. Ora, o art. 153º do Código Penal então revisto é a única norma em que se refere o conceito de “considerável valor” e uma das poucas normas em que se refere um conceito de valor diferente dos contidos no art. 202º al.s a), b) e c) dessa lei -sendo os dois outros casos o do emprego da expressão “valor apreciável” a propósito do peculato de uso no art. 376º e “grande valor” na al. h) do nº 1 do art. 241º do Código Penal (crimes de guerra contra civis). Há que extrair as necessárias ilações do emprego de uma fórmula diferenciada. A tese de que para efeitos do Código Penal “considerável valor” é igual a “valor elevado” peca por presumir que o legislador usou uma técnica pouco apurada e descuidada: Primeiro porque usou expressões diferentes com significado igual; Depois, porque prevê a punição pelo nº 1 do art. 153º de condutas (ameaça com crime contra bens patrimoniais de considerável valor) que, a admitir-se a tese da identidade de significado, como bem observa Taipa de Carvalho, são punidas pelo nº 2 da aludida norma “uma vez que, na generalidade dos casos, os crimes contra o património, em que esteja em causa um "valor considerável" ou "elevado", são puníveis com pena de prisão superior a 3 anos” (cfr. supra). Também a tese sustentada pelo Digno Magistrado do Ministério Público Recorrente de que o “valor considerável” constitui uma realidade patrimonial diferente, que não depende propriamente da quantificação do seu valor, mas do que ele revela de importante e relevante segundo os padrões do homem médio reclamado pela ordem jurídica, não pode colher porquanto recorre exactamente aos conceitos indeterminados e cláusulas gerais de valor que, declaradamente, a lei penal pretendeu abandonar com a reforma de 1995. A lei impõe que se presuma que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º nº 3 do Código Civil).Ambas as interpretações discutidas se mostram inaceitáveis exactamente por se fundarem no pressuposto de que o legislador não usou de rigor conceptual e que o sistema introduzido não é harmónico (considerável valor = valor elevado; introdução de um conceito indeterminado num sistema que abandona esses conceitos). Sustentamos, pois, que o conceito de "valor considerável” do artigo 153°, n°1 do Código Penal se há-de definir, na harmonia do sistema, como um conceito quantificado e objectivamente determinável, tendo por referencial as alíneas do art. 202° do Código Penal, mas diferente de qualquer desses conceitos. Seguindo de perto a posição do Sr. Procurador-Geral Adjunto, o "valor considerável” é algo mais do que aquilo que é tido como padrão mínimo e que está para além de um determinado valor de referência ou de partida (tal como o "valor consideravelmente elevado" releva em associação e como acréscimo expressivo ao conceito de "valor elevado”). Na ausência de outro critério, deve assentar naquilo que foi pensado como valor mínimo atendível para efeitos penais e que se expressa no conceito de valor diminuto (valor este - artigo 202° al. c) - que deve ser assim considerado de referência e, como tal, genericamente acolhido como decisivo elemento interpretativo na precisão de conceitos afins, como o ora em questão). Concluindo, o conceito de “considerável valor” abrange todos os valores que excedam o “valor diminuto”. O sentido que a assim se dá ao vocábulo “considerável” tem correspondência com o seu significado comum, “do que excede as proporções habituais ou normais” (“Dicionário de Morais”, vol. 3, pg. 428), é distinto do significado da palavra “elevado” (alto, ob. Cit. vol 4, pg 236) e tem correspondência com o significado comum de ambas as expressões.A solução é, além do mais, equilibrada do ponto de vista da realidade social, ainda permitindo a censura de condutas como a indiciariamente ocorrida nos autos, com manifesta relevância jurídico-penal se considerarmos (como Faria Costa, “Direito Penal Especial –Contributo a uma Sistematização dos Problemas “Especiais”da Parte Especial”, pg.s 56 a 59) “que a actuação do legislador no âmbito da definição da moldura penal abstracta não pode ser imotivada, antes tem de atender a critérios materiais, desde logo, ao critério da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a pena”. Por outro lado, compreende-se que o conceito de “considerável valor” não seja definido numa das al.s do art. 202º do Código Penal, já que o 153º (única norma que utiliza essa terminologia) não prevê um crime contra o património.10.Como se afirmou supra, uma das poucas normas em que também se refere um conceito de valor diferente dos contidos no art. 202º al.s a), b) e c) do Código Penal é o art. 376º que usa a expressão “valor apreciável” a propósito do crime de peculato de uso. Neste caso trata-se de uma expressão que já vem da versão originária do Código Penal de 1982 (art. 425º) e será apenas o diferente momento de elaboração das normas que explica o uso de vocábulos diferentes com o mesmo sentido.De facto, não se descortina qualquer critério jurídico ou linguístico pertinente que permita distinguir de forma evidente o “considerável valor” do “valor apreciável”, sendo certo que o dicionário supra citado (vol. 1, pg. 1032) refere considerável e apreciável como sinónimos.Curiosamente, o “Comentário Conimbricense” (T III, pg.s 708 e 709), no que respeita à concretização do valor apreciável, afirma que “estará algo abaixo do valor elevado, mas bastante além do valor diminuto” na esteira de Simas Santos e Leal Henriques (“Código Penal Anotado”, 1996, 2º vol., pg. 1200). Sustenta, portanto, posição marcadamente distinta da explanada a propósito do “considerável valor”...Ora, 1.494,35 € é um valor abaixo do valor elevado, mas bastante além do valor diminuto. Por isso, mesmo que se acolhesse esta tese, aplicando-a ao “considerável valor” e ponderando o valor indiciário (1.494,35 €) dos prejuízos que poderiam resultar da concretização da ameaça a que os autos se referem, ter-se-ia de concluir pela verificação indiciária de uma ameaça com a prática de crime contra bens patrimoniais de considerável valor juridico-penalmente relevante.

11.Face ao supra exposto, conclui-se:

- O valor de referência para efeito de qualificação do crime de dano é o valor do prejuízo causado no bem visado.

- A expressão “considerável valor”, utilizada no art. 153°, nº 1 do Código Penal (crime de ameaça) deve ser interpretado como sendo um conceito objectivável por referência às alíneas a), b) e c) do artigo 202° do Código Penal e que apenas exclui o “valor diminuto” definido na alínea a).

12.

Como se afirmou supra, o valor dos prejuízos que riscar o carro podem causar (1.494,35) deriva directamente de factos alegados no requerimento de abertura de instrução e requerimento probatório então formulado (fls. 287 a 289 dos autos), pelo que não há necessidade da prévia comunicação ao arguido a que alude o art. 358º do CPP. Por outro lado, os factos devem ser juridicamente qualificados como integrando um crime de ameaça do art. 153º nº1, ex vi do art. 212 do Código Penal, face ao entendimento que supra se deixou expresso. Ora, “no caso de alteração in mellius não se justifica qualquer comunicação prévia, incluindo ao arguido” (ac. STJ de 14.6.06, proc. 06P1415, no site da DGSI). Assim, não existe qualquer obstáculo processual a que o MM Juiz a quo substitua o despacho de não pronúncia por outro em que pronuncie a arguida, com o aditamento do facto atinente ao valor dos prejuízos que riscar o carro provoca e subsumindo os factos à autoria material de um crime de ameaça p. e p. no art. 153º nº1, ex vi do art. 212 do Código Penal.

III.

DECISÃO.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:
Conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, determinando a sua substituição por outro que pronuncie a arguida nos termos definidos supra.
Sem custas