quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Um acórdão interessante - declaração de extravio e crime de falsificação

( Acórdão Comentado )

Acórdão da Relação do Porto, de 04.10.06
Processo n.º 0614063
N.º Convencional: JTRP00039527

Sumário:
A comunicação de falso extravio de um cheque ao banco configura um crime de falsificação de documento previsto no artº 256º, nº1, al. b), do CP95.

Texto do Acórdão:

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

“B………., LDA”, assistente nos autos, recorreu para esta Relação do despacho que não pronunciou o arguido C………., formulando as seguintes conclusões:
1- A jurisprudência fixada no assento 4/2000, de 19/1/2000, restringe-se ao regime anterior à entrada em vigor do DL 454/91 e à vigência do C. Penal de 1982, não tendo aplicação nas situações posteriores à entrada em vigor daquele diploma e no domínio do art. 256º do C. Penal de 1995;
2- No domínio do art. 256º do C. Penal e do Dec. Lei 454/91, constitui facto juridicamente relevante a comunicação falsa de extravio de cheques às instituições de crédito sacadas por justificar a recusa de pagamento e por, se a conta não tiver fundos suficientes para o pagamento, obstar às consequências para o sacador da emissão de cheque sem provisão;
3- Nos autos há indícios suficientes da prática de dois crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. b) do C. Penal, decorrente das circunstâncias descritas, feitas pelo arguido ao D………., SA e à E………., SA, de falso extravio dos cheques, pelo que este deve ser pronunciado por eles;
4- O douto despacho recorrido ao decidir como decidiu violou o art. 256º, n.º 1 al. b) do C. Penal, bem como os artigos 1º, 1º-A, 2º, 3º, 8º, n.º 3, 11º, n.º 1, b) do Dec. Lei 454/91, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei 316/1997, de 19 de Novembro, Dec. Lei 323/2001, de 17 de Dezembro e 38/2003, de 24 de Abril, e violou o art. 308º, 1, 1ª parte e 2 do C. Penal.

O MP na 1ª instância respondeu à motivação, sustentando a validade da decisão de não pronúncia.

Nesta Relação, a Ex.ª Procuradora-geral Adjunta foi de parecer que o recurso não merece provimento, embora com fundamentação diversa da acolhida no despacho recorrido. “Na verdade (defende aquela Magistrada), após a vigência do DL 454/91, a questão de saber se a falsa declaração de extravio ou de furto constituía crime de falsificação, deixou de ter interesse, na medida em que a conduta consubstanciadora desse crime passou a integrar o crime de emissão de cheque sem cobertura p. e p. no seu artigo 11º, n.º 1, al. b) na redacção dada pelo Dec. Lei 316/97, de 19/11. Assim, o proibir à instituição sacada o pagamento de cheque passou a integrar crime de emissão de cheque sem cobertura, deixando de ser necessário convocar toda a jurisprudência até aí existente sobre qual o ilícito criminal que tal conduta integrava”.

Dado que os cheques em causa nos autos eram pós datados, a conduta do arguido está excluída da incriminação, por força do art. 11º, 3 do referido diploma.

Cumprido o disposto no art. 417º, 2 CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto

O despacho recorrido é do seguinte teor.
“Despacho de não pronúncia proferido nos autos de instrução n.º ../05 (inquérito n.º /05..TAMTS).
A assistente “B………., Lda.” veio requerer a abertura de instrução por não se conformar com o despacho de arquivamento dos autos pelo Ministério Público, alegando as seguintes razões de discordância: No dia 25 de Janeiro de 2005, a assistente participou criminalmente contra os legais representantes da sociedade “F………., Lda.”, imputando-lhes a prática de dois crimes de burla, p. p., pelo artigo 218°, n.º 1 e 2, e um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366°, todos do Código Penal.
Os factos constantes da referida participação criminal são os seguintes:
1°- A denunciante dedica-se à actividade de montagens de instalações eléctricas.
2°- A representada dos denunciados dedica-se à produção de eventos.
3° - No exercício das respectivas actividades, a denunciante, em Junho de 2004, a pedido dos denunciados, procedeu à montagem da instalação eléctrica do evento denominado "G……….", que decorreu nas antigas instalações da H………., sitas na zona vulgarmente conhecida por ………., no concelho de Matosinhos, tudo nos termos dos orçamentos nº 04102A3 e 04102TM1 (cfr. doc. 10 a 14).
4° - O preço desses trabalhos realizados pela denunciante ascendeu a € 53.051,51, com IVA incluído, conforme facturas n.ºs 2663A e 2668A, de 17 de Junho e 21 de Junho de 2004 (cfr. doc. de fls. 15 e 16).
5° - O pagamento desse preço, conforme o acordado, deveria ter sido efectuado nas datas das referidas facturas, o que não se verificou (cfr. doc. de fls. 17).
6.º - Para pagamento parcial do preço, os denunciados emitiram e entregaram à denunciante, em 18 de Junho de 2004, um cheque no valor de € 20.000 que, apresentado a pagamento, foi devolvido com a indicação de falta de provisão, em 18/06/2004 (cfr. documento de fls. 17).
7.º - Na sequência da devolução desse cheque, e das consequências daí decorrentes para o giro comercial da representada dos denunciados, a denunciante acordou, em 30/06/2004, a pedido daqueles, que o pagamento do valor integral dos trabalhos efectuados fosse feito em 4 prestações, sendo:- Uma no valor de € 12.500, em 30/06/2004;- Outra no valor de € 10.000, em 30/07/2004; - Outra no valor de € 10.000, em 31/08/2004;- E a última no valor de € 20.551,51, em 20/09/2004.
8° - Para titular aqueles montantes, os denunciados preencheram, assinaram e entregaram à denunciante quatro cheques, todos eles sacados sobre o “D………., SA”, apondo-lhes no local destinado à data, os dias de pagamento supra mencionados.
9° - O primeiro dos referidos cheques destinado ao pagamento daquela primeira prestação, no montante de € 12.500, depois de ter sido devolvido por falta de provisão, foi apresentado novamente a pagamento tendo sido pago pelo banco sacado.
10° - O segundo dos referidos cheques destinado ao pagamento da segunda prestação do acordo, no montante de € 10.000, datado de 30/07/2004, tendo sido apresentado a pagamento, foi devolvido pelo banco sacado, por falta de provisão.
11° - A pedido dos denunciados, para poderem justificar a regularização desse cheque devolvido por falta de provisão junto do banco sacado e do Banco de Portugal, a denunciante acordou em devolver-lho contra a entrega de um cheque, do mesmo valor, emitido com data de 08/12/2004.
12° - Na sequência desse referido acordo os denunciados preencheram, assinaram e entregaram à denunciante um cheque sacado sobre a E………., SA, daquele montante, tendo os denunciados aposto nesse cheque a data acordada para o seu pagamento.
13° - O terceiro cheque destinado ao pagamento da 3.ª prestação do acordo de pagamento referido no artigo 7.° supra, também no valor de € 10.000, datado de 31/08/2004, tendo sido apresentado a pagamento no balcão de Matosinhos do I………. foi devolvido por mandato do banco sacado, por falta de provisão (cfr. doc. de fls. 18).
14° - O quarto cheque destinado ao pagamento da 4.ª prestação do supra aludido acordo pagamento, no valor de € 20.551,51, datado de 20/09/2004, tendo sido apresentado a pagamento no mesmo balcão do I………., em 21/09/2004, foi devolvido por mandato do banco sacado, em 23/09/2004, com a menção de "Chq. Rev. Extravio" (cfr. doc. de fls. 19).
15° - O cheque sacado sobre a E………., SA, que foi emitido em substituição do cheque que titulou a segunda prestação do acordo de pagamento de 30 de Junho de 2004, datado de 8/12/2004, tendo sido apresentado a pagamento, em 13/12/2004, também junto do balcão de Matosinhos do I………., foi devolvido, em 14/12/2004, por mandato do banco sacado com a menção de "ch. Rev. Furto" (cfr. doc. de fls. 20).
16°- Os denunciados, ao dar instruções aos bancos sacados para a revogação das ordens de pagamento contidas naqueles dois cheques, comunicando-lhes que os mesmos haviam sido, um extraviado e outro furtado, quiseram, e alcançaram, que esses bancos devolvessem esses referidos cheques com essas indicações.
17° - Os denunciados bem sabiam que as razões invocadas junto daqueles bancos eram falsas, como sabiam que a denunciante era a legítima dona e possuidora desses cheques, por lhe terem sido entregues por eles, denunciados, para o pagamento da referida dívida da sua representada.
18° - Os denunciados com a sua conduta quiseram, e conseguiram, impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques pelos bancos sacados, com intenção de, deste modo, alcançar beneficio para si, ou para a sua representada, quer ao impedir o débito das quantias tituladas nos cheques, nas respectivas contas, quer ao evitar a devolução dos cheques por falta de provisão, e com isso, entre outras consequências, evitar a inibição do uso de cheque e a participação ao Banco de Portugal, benefícios que bem sabiam não lhes caber.
19°- Os denunciados, por outro lado, com essa descrita conduta causaram prejuízo patrimonial à denunciante, o qual é, pelo menos, de valor igual ao do montante titulado naqueles dois cheques.
20° - Os denunciados agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram, como são, proibidas.
“Registada, autuada e distribuída como inquérito, o Exmo Senhor Procurador-Adjunto, considerando que os factos não eram subsumíveis a ilícito criminal, determinou, com o devido respeito, mal, o arquivamento do inquérito, nos termos do artigo 277°, nº 1 do CPP. No que concerne ao denunciado crime de simulação de crime, p. p, pelo artigo 366° do Código Penal, o Ex.mo Procurador Adjunto, autor do despacho de arquivamento, não realizou qualquer diligência que sustente a sua conclusão, ou seja, não averiguou, como devia, se o arguido, por si ou a seu mando, denunciou criminalmente, ou não, à autoridade competente, ou a outra com o dever de a transmitir à autoridade competente (...), o furto do cheque. A omissão daquela diligência, que só ao Ex.mo Senhor Procurador-Adjunto cabia determinar, por ser o titular da acção penal, em conformidade com o que dispõe o artigo 48.° do CPP, constitui nulidade, por acarretar a insuficiência do inquérito, nos termos do artigo 120°, n.° 2, alínea d) do CPP, que aqui expressamente, e desde já, se argúi. Por outro lado, o arguido ao comunicar, por si, ou a seu mando, por escrito, às mencionadas instituições bancárias o extravio de um cheque e o furto de outro, o que constituem factos juridicamente relevantes, uma vez que os mesmos justificaram a recusa de pagamento dos referidos bancos, fê-lo falsamente, cometendo, assim, dois crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.°, n.° 1, alíneas a) e b) do Código Penal (neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12.05.2004, publicado em www.dgsi.pt). Acontece que, no inquérito, o Exmo Senhor Procurador-Adjunto não solicitou ao D………., SA e à E………., SA as referidas comunicações do arguido para a revogação das ordens de pagamento contidas naqueles cheques, diligências que só a ele cabia ordenar, ou, se fosse o caso, promover a sua busca e apreensão desses documentos naquelas instituições. Ora, essas omissões, que constituem também a nulidade estabelecida no artigo 120°, n° 2, alínea d), do CPP, que aqui também se argúem, já que redundam na insuficiência do inquérito, impediram o Exmo Senhor Procurador-Adjunto de averiguar da existência desses crimes, concluindo, de forma intempestiva, e sem se pronunciar sobre eles, pela sua inexistência.(...) Em face do inquérito em análise (ou da falta dele) podemos concluir que se verifica uma total falta de promoção do mesmo, que ao caso é obrigatório, o que constitui nulidade insanável, conforme preceitua as alíneas b) e d), do artigo 119° do CPP.”
Para cumprimento do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do CPP, a assistente reiterou no essencial os factos já constantes da denúncia, nos termos que melhor constam de fls. 38 a 42 dos autos.
Declarada aberta a instrução, foram tomadas declarações ao representante legal da assistente, cfr. fls. 82. Solicitou-se à E………., SA e ao “D………., SA” cópia das comunicações efectuadas pela “F………., Lda.” para a revogação das ordens de pagamento dos referidos cheques, documentos que se mostram juntos a fls. 103 e 111. Foram apresentados, pela assistente, os documentos de fls. 91 a 94 e foi inquirida uma testemunha a fls. 95. Não foi possível proceder ao interrogatório do arguido, por motivo de doença do mesmo cfr. resulta de fls. 112 a 123 e 142 a 145. Teve lugar o debate instrutório que decorreu com observância do legal formalismo. Não há nulidades ou quaisquer outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito e que ora cumpra conhecer salvo as alegadas nulidades da falta e da insuficiência de inquérito, e da falta da sua promoção pelo Ministério Público. Em relação à alegada nulidade da falta de inquérito, embora a questão não seja absolutamente líquida, afigura-se-nos que tal nulidade só deve ocorrer quando se possa ou deva concluir pela obrigatoriedade do inquérito em toda e qualquer denúncia. Nos termos do artigo 247.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público procede ou manda proceder ao registo de todas as denúncias que lhe forem transmitidas, o que não significa que todas as denúncias justifiquem e determinem a abertura de um inquérito. Como determina o artigo 262.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação. E o n.º 2 do mesmo artigo preceitua que “ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”. A expressão “notícia de um crime” tem o significado de notícia de factos que objectivamente preencham os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito criminal. Ou seja, o legislador, ao prever a “notícia de um crime” também previu “a contrario”, a “notícia de um não crime”, isto é a denúncia de factos que para o denunciante, numa interpretação pessoal subjectiva, constituem crime, mas que objectivamente, para o Ministério Público, obedecendo a critérios de objectividade, e seguindo a doutrina ou a jurisprudência dominantes, não preenchem qualquer ilícito de natureza criminal. Nessas situações, por razões de economia processual e de respeito pela dignidade da pessoa denunciada, não deve haver lugar à abertura de inquérito por factos que manifestamente não configuram crime. Mesmo tendo ocorrido o registo da denúncia, aliás obrigatório, e a sua autuação como inquérito, essa autuação não impede o Ministério Público de analisar a substância e o mérito da denúncia, bem como a prova documental apresentada, e determinar o arquivamento dos autos (e a não realização de inquérito) quando “a conduta dos denunciados – muito embora seja objectivamente ilícita – não integra ilícito penal, mas tão só ilícito de natureza civil, a dirimir em sede própria.”Porque assim o entendemos, e nos parece ser a melhor apreciação, consideramos improcedente a invocada nulidade por falta de inquérito, uma vez que em substância não estamos perante um arquivamento de inquérito, em sentido estrito, mas sim do arquivamento de uma denúncia, decisão que legalmente também compete ao Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 263.º n.º 2, do C.P.P. “a contrario”. Aliás, pode constatar-se que a assistente, na denúncia apresentada, concluía pelo cometimento, pelo denunciado, de dois crimes de burla e, eventualmente um crime de simulação de crime, mas no termo da instrução, em sede de debate instrutório, veio a reconhecer que não resultavam indícios suficientes da prática, pelo arguido, dos crimes de burla e de simulação de crime. Inexistindo lugar a inquérito, por decisão do Ministério Público, no exercício das suas competências como titular da acção penal, não existe fundamento legal para as alegadas nulidades da falta de promoção do processo pelo Ministério Público e da insuficiência do inquérito. Entrando na análise do objecto da instrução, nos termos do artigo 286.º do Código de Processo Penal, esta fase judicial visa a comprovação da decisão da acusação ou do arquivamento em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia – artigo 308.º do Código de Processo Penal.São suficientes os indícios quando deles resulta uma possibilidade razoável de condenação do arguido numa pena ou medida de segurança – artigo 283.º do Código de Processo Penal. Assim, a pronúncia do arguido só deve ter lugar quando a prova indiciária recolhida permita concluir ser mais provável uma condenação do que uma absolvição no caso de submissão dos autos a julgamento. Analisada e ponderada toda a prova produzida e documentada nos autos, afigura-se-nos suficientemente indiciados os seguintes factos:
A assistente “B………., Lda.” dedica-se à actividade de montagem de instalações eléctricas. O arguido C………. é o único gerente e legal representante da “F………., Lda”, empresa que se dedica à produção e realização de espectáculos, eventos desportivos e de lazer, publicidade aplicada, aluguer de equipamento desportivo e de lazer e importação e exportação de equipamento desportivo e de lazer. No exercício das respectivas actividades, a assistente, em Junho de 2004, a pedido da representada do arguido, procedeu à montagem da instalação eléctrica do evento denominado "G……….", que decorreu nas antigas instalações da H……….., sitas na zona vulgarmente conhecida por ………., no concelho de Matosinhos, tudo nos termos dos orçamentos n° 04102A3 e 04102TM1. O preço desses trabalhos realizados pela assistente ascendeu a € 53.051,51, com IVA incluído, conforme facturas nos 2663A e 2668A, de 17 de Junho e 21 de Junho de 2004. O pagamento desse preço, conforme acordado, deveria ter sido efectuado nas datas das referidas facturas, o que não se verificou. Para pagamento parcial do preço, o arguido emitiu e entregou à assistente um cheque no valor de € 20.000, datado de 18/06/2004, que, apresentado a pagamento, foi devolvido com a indicação de falta de provisão em 18/06/2004 (doc. reproduzido a fls.17). Na sequência da devolução desse cheque, a assistente acordou, em 30/06/2004, a pedido do arguido, que o pagamento do valor integral dos trabalhos efectuados fosse feito em 4 prestações, sendo a primeira no valor de € 12.500, em 30/06/2004, a segunda no valor de € 10.000, em 30/07/2004, outra no valor de € 10.000,00€, em 31/08/2004, e a última no valor de € 20.551,51, em 20/09/2004.Para titular aqueles montantes, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente, quatro cheques, todos eles sacados sobre o “D………., SA”, apondo-lhes no local destinado à data, os dias de pagamento supra mencionados. O primeiro dos referidos cheques destinado ao pagamento daquela primeira prestação, no montante de € 12.500, depois de ter sido devolvido por falta de provisão, foi apresentado novamente a pagamento tendo sido pago pelo banco sacado. O segundo dos referidos cheques destinado ao pagamento da segunda prestação do acordo, no montante de 10.000,00€, datado de 30/07/2004, tendo sido apresentado a pagamento foi devolvido pelo banco sacado, por falta de provisão. A pedido do arguido, para poder justificar a regularização desse cheque devolvido por falta de provisão junto do banco sacado e do Banco de Portugal, a assistente acordou em devolver-lho contra a entrega de um cheque, do mesmo valor, emitido com data de 08/12/2004. Na sequência desse referido acordo o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque reproduzido a fls. 20 dos autos, no montante de € 10.000. O terceiro cheque destinado ao pagamento da 3.ª prestação, datado de 31/08/2004, tendo sido apresentado a pagamento no balcão de Matosinhos do I………., foi devolvido por mandato do banco sacado, por falta de provisão verificada em 2/09/2004. O quarto cheque destinado ao pagamento da 4.ª prestação do supra aludido acordo de pagamento, no valor de € 20.551,51, datado de 20/09/2004, tendo sido apresentado a pagamento no mesmo balcão do I………., foi devolvido por mandato do banco sacado, em 23/09/2004, com a menção de "Chq. Rev. Extravio". O cheque sacado sobre a E………., SA, que foi emitido em substituição do cheque que titulou a segunda prestação do acordo de pagamento de 30 de Junho de 2004, datado de 8/12/2004, tendo sido apresentado a pagamento, em 13/12/2004, também junto do balcão de Matosinhos do I………., foi devolvido, em 14/12/2004, por mandato do banco sacado com a menção de "ch. Rev. Furto". O arguido comunicou, por escrito, ao D………., S.A e à E………., SA, o extravio daqueles dois referidos cheques. O arguido bem sabia que os factos que fez constar daqueles documentos que apresentou junto daqueles bancos eram falsos, pois sabia que a assistente era, como é, a legítima dona e possuidora desses cheques, por lhe terem sido entregues por ele arguido, para o pagamento da referida dívida da sua representada, não se coibindo, apesar disso, de o fazer. O arguido com a sua conduta quis, e conseguiu, impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques pelos bancos sacados, com intenção de, deste modo, alcançar benefício ou evitar inconvenientes para si, ou para a sua representada. O arguido, por outro lado, com essa descrita conduta quis causar, como efectivamente causou, prejuízo patrimonial à assistente, o qual é, pelo menos, de valor igual ao do montante titulado naqueles dois cheques. O arguido, por si e na qualidade de representante da referida sociedade “F………., Lda.” veio apresentar queixa junto do Ministério Público ou de autoridade policial, contra J………., alegado representante da aqui assistente, imputando-lhe o facto de se ter apropriado, contra a vontade dos queixosos, dos cheques datados de 31/08/2004, 20/09/2004 e 8/12/2004 que levou consigo, “aproveitando a confusão de papéis existentes em cima da secretária” apesar de se ter obrigado a devolvê-los à referida sociedade representada pelo aqui arguido. O inquérito …./04..TDPRT, relativo a essa queixa, veio a ser arquivado por despacho do Ministério Público, de 3/03/2005, reproduzido a fls. 92 a 93 dos autos. A “F………., Lda” emitiu a factura n.º ……, datada de 15/04/2005, em nome da Câmara Municipal de Matosinhos para pagamento da “vossa comparticipação obras de beneficiação do recinto da G………. em Matosinhos realizadas no ano de 2004”, no valor de € 90.000 mais € 17.100 de IVA. Não resultou suficientemente indiciado dos autos que o arguido, no momento da emissão daqueles cheques, todos eles pré-datados, já tivesse a intenção e o propósito de obstar ou impedir o seu pagamento, e de ter induzido em erro a ora assistente quanto a uma absoluta garantia do seu pagamento nas datas neles apostas. Também não resulta indiciado que o arguido tenha denunciado o furto dos cheques sem o imputar a uma pessoa determinada. Nesse sentido, segundo as declarações do representante legal da assistente, a fls. 82, “quando efectuaram o trabalho nada lhes dizia ou fazia prever que o arguido, como representante da F………., Lda, não pretendesse honrar o compromisso de pagamento desses serviços. Só vieram a assumir esse facto quando vieram a tomar conhecimento que o mesmo arguido tinha apresentado uma queixa pelo furto dos cheques” (a queixa apresentada contra o colaborador da assistente, J………., a que alude o despacho de arquivamento reproduzido a fls. 92 a 94). A emissão de cheques pré-datados para pagamentos em prestações está normalmente ligada a uma função de garantia, mas também a uma situação económica do devedor que não lhe permite pagar a totalidade no momento da emissão dos cheques. O arguido chegou a pagar € 12.500, quase ¼ do total da dívida, procedimento que normalmente não ocorre nos casos de utilização fraudulenta do cheque quando o devedor tem o propósito de enganar, de induzir em erro a contraparte e de obter com o não pagamento do cheque um enriquecimento ilegítimo à custa do prejuízo do credor, o que no caso dos autos não pode ser afirmado para além de uma dúvida razoável. Por sua vez, o artigo 11.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, exclui a incriminação, do cheque sem provisão, que considera não punível, nos casos em que o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador. E relativamente ao crime de falsificação de documento, cumpre-nos considerar que o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Assento n.º 4/2000, de 19 de Janeiro, fixou jurisprudência no seguinte sentido:“Se, na vigência do Código Penal de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982.” O S.T.J. fundamentou esse Assento nas seguintes e resumidas conclusões: “Depois de, regularmente, ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador, por escrito, solicitou ao banco sacado que o não pagasse porque se lhe tinha extraviado. Por essa razão, quando o tomador/portador lhe apresentou o cheque, para pagamento, dentro do respectivo prazo legal, o sacado recusou pagá-lo, lançando a correspondente declaração, com a menção «extraviado», no verso do título.(...) O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com a qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação. Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos imperfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacador ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado. Já se vê, portanto, que o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador. (...) A carta que o sacador remeteu ao banco sacado é (...) um documento particular. A invocação do extravio, contida em tal documento, consubstancia a descrição ou relato de um facto, na realidade, inexistente. Estamos perante um facto falso, juridicamente relevante, isto é, que faz nascer, modificar ou extinguir uma relação jurídica, ou, mais genericamente, que tem consequências jurídicas?«Artigo 21.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque: Quando uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de um cheque, o detentor a cujas mãos ele foi parar – quer se trate de um cheque ao portador, quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito pela forma indicada no artigo 19.º – não é obrigado a restituí-lo, a não ser que o tenha adquirido de má fé, ou que, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave.»Como flúi deste preceito, o extravio do cheque não é causa de extinção ou modificação dos direitos e obrigações dos que, antes, eram subscritores cambiários, nem, por si, faz nascer qualquer direito ou obrigação para quem quer que seja. Mas, dir-se-á, na medida em que não fica excluída a possibilidade de o título vir a ser adquirido, posteriormente, a non domino, o extravio terá, pelo menos, determinado a extinção do direito de propriedade daquele a quem se extraviou. Não é assim. Tal direito subsiste, apesar e para além do extravio, podendo o desapossado requerer, judicialmente, a sua reforma (artigo 1072.º do Código de Processo Civil) e reivindicá-lo do terceiro em cujas mãos aparecer (cf. Pinto Coelho, apud Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 2.ª ed., Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 99). (...) Na verdade, o direito daquele a quem o cheque se extraviou é sempre o mesmo, quer o actual detentor o tenha adquirido de boa fé ou com má fé ou culpa grave. O que é distinta é a eficácia da tutela que lhe é, legalmente conferida, numa situação e noutra, ou seja, no confronto com a protecção da posse do adquirente de má fé ou com culpa grave ou com a do adquirente de boa fé: no primeiro caso, a lei dá total prevalência ao seu direito; no segundo, porém, privilegia, antes, o do actual detentor. (...) O que interessa reter é que o que impede o desapossado de recuperar o cheque é a inexistência do dever legal de o restituir, por parte do detentor que o adquiriu de boa fé, e não o facto do extravio (que só de forma mediata ou indirecta se relaciona com tal impedimento). No âmbito que temos vindo a considerar, o extravio não se projecta, portanto, como facto juridicamente relevante. Assumirá essa relevância no domínio da revogação do cheque ou da oposição ao pagamento? A resposta, na sequência lógica do anteriormente exposto, é negativa. Com efeito: Por um lado, durante o prazo de apresentação, a irrevogabilidade do cheque é absoluta; portanto, não admite excepções, nem mesmo em casos de verificação de «justa causa», como, v.g., o extravio e o desapossamento ilícito. Por outro, após o prazo de apresentação, é absolutamente eficaz, independentemente de ter ou não ter justificação. O direito à revogação não nasce, assim, por efeito directo do extravio. Se assim é, se o extravio do cheque, em si e só por si, não tem consequência jurídica, então, o relato falso da sua ocorrência não basta para integrar a alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP de 1982. Logo, porque do documento que enviou ao sacado o sacador não fez constar, falsamente, facto juridicamente relevante, não cometeu ele o crime previsto pelos citados preceitos legais.” Esta jurisprudência é igualmente aplicável no domínio do artigo 256.º do Código Penal Revisto e no domínio do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, e apesar de ter tido dois votos de vencido, dos Srs. Conselheiros Hugo Afonso dos Santos Lopes e António Correia de Abranches Martins é considerada vinculativa para os tribunais, enquanto a norma interpretada não for alterada pelo legislador ou a jurisprudência não for modificada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Do exposto se conclui pela inexistência do crime de falsificação de documentos alegado pela assistente.
Por último e relativamente ao crime de simulação de crime, um dos seus pressupostos é o facto de a denúncia ou formulação da suspeita da prática de crime não ser imputada a pessoa determinada. Como resultou apurado na instrução e foi reconhecido pela assistente no debate instrutório, o arguido apresentou queixa pelo furto dos cheques imputando a responsabilidade a um determinado colaborador da assistente, o que é adequado a afastar a aludida incriminação por simulação de crime. A denúncia apresentada pelo arguido poderá configurar uma denúncia caluniosa que já estará a ser objecto de inquérito segundo o referido a fls. 96 dos autos. Pelo exposto, nos termos dos artigos 307.º, n.º 1, e 308.º do Código de Processo Penal, não pronuncio o arguido C………., ordenando o arquivamento dos autos.
Notifique e oportunamente arquive”.

2.2. Matéria de direito

A questão objecto do presente recurso é, em suma, saber se a conduta do arguido, comunicando por escrito aos bancos sacados (D………., SA e E………., SA) o extravio de dois cheques que tinha entregue à assistente, para pagamento de uma dívida da sua representada (“F………., Lda.”), visando assim impedir o pagamento das quantias tituladas nesses cheques, integra o crime previsto no art. 256º do C. Penal (falsificação de documentos).
Sobre o eventual enquadramento dos factos indiciados no crime de emissão de cheque sem provisão, a recorrente conforma-se com a decisão, pois os dois cheques em causa foram “pós datados”, o que afasta a incriminação da sua emissão – cfr. art. 11º, n.º 3 do Dec. Lei 454/91, de 28 de Dezembro.
Também não está em causa o comportamento do arguido, traduzido na queixa de que os cheques tinham sido furtados, pois tal matéria é objecto de outro inquérito – cfr. fls. 96 dos autos.
Em causa, repete-se, está apenas a questão acima referida, ou seja, saber se a informação falsa dada aos Bancos sacados de que os cheques foram extraviados, visando desse modo evitar o pagamento, configura ou não o crime de falsificação de documento.

O despacho recorrido apelou ao Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2000, de 19/1, cujo teor é o seguinte:
“Se, na vigência do Código Penal de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal de 1982 - D.R. I-A, n.º 40, de 17-02-2000”.

Devemos afastar liminarmente a aplicação da doutrina do referido Assento, já que o mesmo se reportava expressamente às situações ocorridas antes da entrada em vigor do Dec. Lei 454/91. A situação em causa ocorreu no domínio de vigência do Dec. Lei 454/91, a qual regulamentou a punição da emissão de cheques sem provisão de modo radicalmente diferente.

A mudança do quadro legal exige uma nova ponderação da questão e, por isso, não se pode continuar a aplicar a doutrina do assento.

Sobre idêntica questão, pronunciou-se o acórdão desta Relação, de 12-05-2004, proferido no processo 0411700, nos seguintes termos:
“O recorrente defende estar suficientemente indiciada a prática por parte da arguida de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº 256º, nºs 1, alínea b), e 3, do CP. Esta menção do nº 3 do artº 256º parece significar que o recorrente entende que a falsificação é do próprio cheque. Se assim é, defende agora coisa diferente do que sustentou no requerimento de abertura de instrução, onde escreveu: “(...) o crime de falsificação foi apreciado pela Digna Magistrada do Mº Pº, numa primeira análise, como tendo sido cometido no próprio cheque. Ora, não é esse o correcto enquadramento factual. A arguida cometeu um crime de falsificação porque produziu uma declaração escrita dirigida ao banco em que afirmava que o cheque havia sido extraviado, quando, como resulta demonstrado, foi livre e espontaneamente que a arguida emitiu e entregou o cheque ao assistente. Esta é que á falsificação!”. Mas, não houve falsificação do cheque. O banco recusou o pagamento, indicando como motivo o “extravio” do cheque. Porém, ao lavrar no verso do cheque a declaração de que recusava o pagamento do cheque por “motivo de extravio”, o banco não afirmou ele próprio que o cheque era extraviado, até porque ele não pode saber se houve extravio. Quem sabe se isso aconteceu é o titular da conta. Por isso, aquela declaração exarada no verso do cheque apenas quer dizer que o banco não pagou o cheque porque este havia sido dado como extraviado pela titular da conta. E isso não é falso, antes corresponde à verdade: o cheque havia sido dado como extraviado pelo titular da conta respectiva. É isso que se diz no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/01/2000, publicado no DR I Série-A de 17/2/2000, a propósito de situação idêntica, embora no domínio do CP de 1982: “O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com o qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação. Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos perfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacado ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado. Já se vê, portanto, que o que sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador. Mas, se assim é, se o declarado coincide com o realmente acontecido, então, da declaração do sacado não consta nenhum facto falso e, portanto, pelo facto de este a ter exarado no verso do título, o sacador não cometeu o crime previsto e punido pelo artigo 228º, nºs 1, alínea b), e 2”.O que é falso é o facto comunicado pelo arguido ao banco; não o cheque. E é no relato do facto falso de extravio do cheque na carta enviada pela arguida ao L………. que a falsificação se concretiza. Essa carta é um documento particular e declara um facto que não corresponde à verdade. É, pois, na declaração de extravio do cheque que reside a falsidade.”.

Estamos plenamente de acordo com esta análise.
No presente caso, o arguido fez um relato falso, comunicando por escrito aos bancos sacados o extravio dos cheques entregues à assistente, visando assim evitar o seu pagamento. A carta enviada aos bancos é um documento particular, onde se declarou um facto que se sabe não corresponder à verdade, com intenção de prejudicar o titular do cheque. Estão assim preenchidos os elementos do tipo de ilícito previsto no art. 256º do C. Penal (Falsificação de documento). Por outro lado, a doutrina do assento não é transponível (já vimos acima que não era directamente aplicável), por ter havido uma alteração substancial do respectivo regime legal. O argumento essencial do assento, segundo o qual a menção de extravio era um facto juridicamente irrelevante, hoje não é sustentável. Tal situação modificou-se com o Dec. Lei 454/91, de 28 de Dezembro, uma vez que, como sublinha o acórdão acima citado, “o extravio do cheque comunicado ao banco sacado pelo titular da conta é um facto juridicamente relevante, na medida em que esse facto justifica a recusa de pagamento do cheque por parte do banco, nos termos do artº 8º, nº 3, do DL nº 454/91”.

Finalmente, do mesmo modo julgamos que o argumento da Ex.ª Procuradora-geral Adjunta nesta Relação, segundo o qual a comunicação do extravio faz parte da incriminação do cheque sem provisão, também não é decisivo. Se é verdade que a proibição do pagamento, à instituição sacada, integra o crime de emissão de cheque sem provisão, tal não afasta a verificação do tipo da falsificação. Pode, quando muito, justificar apenas a não punição da falsificação, por estarmos perante um concurso aparente (consumpção). Contudo, se não se verificarem os demais elementos do crime de emissão de cheque sem provisão, fica por punir não só o cheque sem provisão, como a falsificação. Daí que, como se diz no acórdão acima citado, não tem sentido argumentar, como também se faz na decisão recorrida, que, integrando a conduta da arguida um dos elementos do crime de emissão de cheque sem cobertura - “proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque” (artº 11º, nº 1, alínea b), do DL nº 454/91) - haveria violação do princípio ne bis in idem, se houvesse punição pela falsificação, na medida em que no caso não há procedimento pelo crime de emissão de cheque sem provisão, por se ter entendido não estarem presentes todos os seus elementos constitutivos.”.

Nestes termos, verifica-se que a assistente tem toda a razão, pois os autos contêm indícios suficientes da prática de dois crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. b) do C. Penal, decorrente das comunicações de falso extravio dos cheques (acima descritas), feitas pelo arguido ao D………., SA e à E………., SA. Impõe-se, assim, a revogação do despacho recorrido.

3. Decisão

Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, se nada mais obstar, pronuncie o arguido nos termos requeridos.
Sem custas.

Porto, 4 de Outubro de 2006

Élia Costa de Mendonça São Pedro
António Eleutério Brandão Valente de Almeida
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves


Comentário:

Propendemos para considerar que a matéria de facto não é susceptível de integrar o tipo legal em causa.

Com efeito, tal é tanto assim que a este propósito inclusive já foi uniformizada jurisprudência, é certo que visando o anterior regime jurídico do cheque, mas que, face ao actual, não perdeu a sua pertinência e, acrescentamos, obrigatoriedade.

Assim, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Assento n.º 4/2000, de 19 de Janeiro, fixar jurisprudência no sentido de que:
“Se, na vigência do Código Penal de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982”.

O S.T.J. fundamentou-se nos seguintes considerandos:

“Depois de, regularmente, ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador, por escrito, solicitou ao banco sacado que o não pagasse porque se lhe tinha extraviado. Por essa razão, quando o tomador/portador lhe apresentou o cheque, para pagamento, dentro do respectivo prazo legal, o sacado recusou pagá-lo, lançando a correspondente declaração, com a menção «extraviado», no verso do título.(...) O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com a qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação. Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos imperfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacador ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado. Já se vê, portanto, que o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador. (...) A carta que o sacador remeteu ao banco sacado é (...) um documento particular. A invocação do extravio, contida em tal documento, consubstancia a descrição ou relato de um facto, na realidade, inexistente. Estamos perante um facto falso, juridicamente relevante, isto é, que faz nascer, modificar ou extinguir uma relação jurídica, ou, mais genericamente, que tem consequências jurídicas? «Artigo 21.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque: Quando uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de um cheque, o detentor a cujas mãos ele foi parar – quer se trate de um cheque ao portador, quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito pela forma indicada no artigo 19.º – não é obrigado a restituí-lo, a não ser que o tenha adquirido de má fé, ou que, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave.» Como flui deste preceito, o extravio do cheque não é causa de extinção ou modificação dos direitos e obrigações dos que, antes, eram subscritores cambiários, nem, por si, faz nascer qualquer direito ou obrigação para quem quer que seja. Mas, dir-se-á, na medida em que não fica excluída a possibilidade de o título vir a ser adquirido, posteriormente, a non domino, o extravio terá, pelo menos, determinado a extinção do direito de propriedade daquele a quem se extraviou. Não é assim. Tal direito subsiste, apesar e para além do extravio, podendo o desapossado requerer, judicialmente, a sua reforma (artigo 1072.º do Código de Processo Civil) e reivindicá-lo do terceiro em cujas mãos aparecer (cf. Pinto Coelho, apud Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 2.ª ed., Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 99). (...) Na verdade, o direito daquele a quem o cheque se extraviou é sempre o mesmo, quer o actual detentor o tenha adquirido de boa fé ou com má fé ou culpa grave. O que é distinta é a eficácia da tutela que lhe é, legalmente conferida, numa situação e noutra, ou seja, no confronto com a protecção da posse do adquirente de má fé ou com culpa grave ou com a do adquirente de boa fé: no primeiro caso, a lei dá total prevalência ao seu direito; no segundo, porém, privilegia, antes, o do actual detentor. (...) O que interessa reter é que o que impede o desapossado de recuperar o cheque é a inexistência do dever legal de o restituir, por parte do detentor que o adquiriu de boa fé, e não o facto do extravio (que só de forma mediata ou indirecta se relaciona com tal impedimento). No âmbito que temos vindo a considerar, o extravio não se projecta, portanto, como facto juridicamente relevante. Assumirá essa relevância no domínio da revogação do cheque ou da oposição ao pagamento? A resposta, na sequência lógica do anteriormente exposto, é negativa. Com efeito: Por um lado, durante o prazo de apresentação, a irrevogabilidade do cheque é absoluta; portanto, não admite excepções, nem mesmo em casos de verificação de «justa causa», como, v.g., o extravio e o desapossamento ilícito. Por outro, após o prazo de apresentação, é absolutamente eficaz, independentemente de ter ou não ter justificação. O direito à revogação não nasce, assim, por efeito directo do extravio. Se assim é, se o extravio do cheque, em si e só por si, não tem consequência jurídica, então, o relato falso da sua ocorrência não basta para integrar a alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP de 1982. Logo, porque do documento que enviou ao sacado o sacador não fez constar, falsamente, facto juridicamente relevante, não cometeu ele o crime previsto pelos citados preceitos legais”.

Ora, apesar de existir quem sufrague o oposto (cfr. Acs. R.P. de 12.05.2004, processo 0411700, e de 4.10.2006, processo 0614063, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt/), entendemos que esta jurisprudência vinculativa é igualmente aplicável no domínio do artigo 256.º do Código Penal Revisto e no domínio do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12.

Sustenta aquele entendimento que o aludido assento não tem já aplicação devido à substancial alteração do regime do cheque, nomeadamente o constante do “novo” art.º 8º, sendo que o extravio do cheque comunicado ao banco sacado pelo titular da conta é um facto juridicamente relevante, na medida em que esse facto justifica a recusa de pagamento do cheque por parte do banco, nos termos do art.º 8º, n.º3 do DL n.º 459/91.

Ora, dispõe o n.º 3 do art.º 8º do supra-aludido diploma legal que “Para efeitos do previsto no número anterior, constitui, nomeadamente, justificação de recusa de pagamento a existência de sérios indícios de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque”.

A este respeito, escreve Tolda Pinto (Cheques sem provisão – Regime jurídico anotado, Coimbra Edt.ª, 1998), que “As causas consideradas justificadas de recusa de pagamento são enumeradas de forma exemplificativa. No entanto, exige-se da instituição de crédito sacada uma preocupação acrescida no momento da devolução do cheque pois é necessário que existam indícios sérios de que se verificam, no caso concreto, alguma daquelas causas. Assim, a instituição de crédito sacada deve providenciar pela obtenção junto do cliente de prova documental que fundamente a sua decisão em recusar o pagamento do cheque”.

Daqui se pode já antever como controverso que a mera declaração de extravio seja susceptível de, integrando o conceito de sérios indícios, justificar a recusa de pagamento do cheque (veja-se, neste sentido, o recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, proferido no proc. 06A542, de 28.02.2008, disponível in http://www.dgsi.pt/).

A isto acresce o facto de o disposto no art. 8º, n.º 3, supra-aludido respeitar a situações que ficam aquém do tipo legal de crime do art. 11º do mesmo diploma legal, atento o valor aí pressuposto.

Por outro lado, a ter-se tal comunicação como integrante daquele tipo legal estar-se-ia em confronto com jurisprudência assente, segundo a qual “a falsa comunicação, ao banco sacado, do extravio do cheque, feita com o propósito de obstar ao pagamento, integra o crime de emissão de cheque sem provisão da alínea c) do n° 1 do artigo 11° do Decreto-Lei n° 454/91, de 28 de Dezembro, e não o crime de falsificação”, cfr. Ac. R.P. de 30.04.1997, in Bol. do Min. Da Just., 466, 587.

De facto, mal se compreenderia que, só pelo facto do cheque dos autos ter uma função de garantia (na medida em que é pós-datado) gozasse de uma tutela decorrente desta incriminação excluída aos demais (sem referir as condicionantes decorrentes do valor do cheque enquanto condição de punibilidade, dificilmente conjugáveis com um crime de perigo abstracto como é o de falsificação).

A isto a cresce o facto de entre nós ser relativamente pacífico que, quanto ao desvalor da acção de comunicação falsa de extravio em cheques destinados a pagamentos, a mesma integrar o crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11º, n.º 1, al. b), do DL n.º 454/91, no qual se estatui, na redacção actual, que “Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro: (…) b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque ...” ( cfr. entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Sá Nogueira), de 1991.10.23, Boletim do Ministério da Justiça, 410, pág. 382.
O legislador, à semelhança do que veio a fazer também no art. 104º, n.º 3, do R.G.I.T. ( Lei n.º 15/01, de 05.06), quis esgotar a previsão penal de tal conduta no tipo legal de crime em apreço, com exclusão do de falsificação, liberdade de conformação essa que o legislador penal pode e deve ter, desde que almejando um fim justo. A relevância da declaração de extravio, afinal, não é a que lhe é atribuída, como aqui se demonstra, mas antes e apenas a de uma declaração falsa em documento particular sem outro efeito que não o aqui indicado. Não há, desde logo, possibilidade de integração do crime de falsificação, pelo que não estamos perante qualquer situação de concurso aparente de crimes.

A não ser assim, o resultado seria o de os cheques pós-datados voltarem a receber tutela penal, em sede de crime de falsificação, pela via da incriminação, a esse título, das declarações de extravio.

Assim vistas as coisas, tal-qualmente resultam da matéria provada, será que tal declaração incorpora um falso facto, juridicamente relevante, isto é, que faz nascer, modificar ou extinguir uma relação jurídica, ou, mais genericamente, que tem consequências jurídicas?

Ora, cremos que o AUJ ( Acórdão de Uniformização de Jurisprudência ) responde à questão da relevância jurídica dessa declaração com perfeita actualidade na medida em que: “o extravio do cheque não é causa de extinção ou modificação dos direitos e obrigações dos que, antes, eram subscritores cambiários, nem, por si, faz nascer qualquer direito ou obrigação para quem quer que seja.

Mas, dir-se-á, na medida em que não fica excluída a possibilidade de o título vir a ser adquirido, posteriormente, a non domino, o extravio terá, pelo menos, determinado a extinção do direito de propriedade daquele a quem se extraviou. Não é assim. Tal direito subsiste, apesar e para além do extravio, podendo o desapossado requerer, judicialmente, a sua reforma (artigo 1072.o do Código de Processo Civil) e reivindicá-lo do terceiro em cujas mãos aparecer (cf. PintoCoelho, apud Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 2.a ed., Atlântida Editora, Coimbra, 1977,p. 99).
É certo, porém, que a reivindicação não conduzirá, necessariamente, à recuperação do título, já que, se o tiver adquirido de boa fé, o actual detentor não está obrigado a restituí-lo. Mas, mesmo nesse caso, a não recuperação do cheque não é consequência da extinção ou modificação do conteúdo do direito do desapossado que tenha sido efeito directo do extravio.
Na verdade, o direito daquele a quem o cheque se extraviou é sempre o mesmo, quer o actual detentor o tenha adquirido de boa fé ou com má fé ou culpa grave. O que é distinta é a eficácia da tutela que lhe é, legalmente, conferida, numa situação e noutra, ou seja, no confronto com a protecção da posse do adquirente de má fé ou com culpa grave ou com a do adquirente de boa fé: no primeiro caso, a lei dá total prevalência ao seu direito; no segundo, porém, privilegia, antes, o do actual detentor. Porquê? Talvez, também, por se partir do princípio de que o desapossado poderia mais facilmente evitar o extravio do que o adquirente impedir a aquisição a non domino; seguramente, porque, atentas as condições de transmissibilidade do cheque, não se mostra curial fazer depender a protecção do adquirente da verificação de um facto negativo — não ter sido roubado ou não se ter extraviado ao proprietário (neste sentido, Vaz Serra, «Títulos de crédito», Boletim do Ministério da Justiça, n.o 61, p. 130). De qualquer modo, o que interessa reter é que o que impede o desapossado de recuperar o cheque é a inexistência do dever legal de o restituir, por parte do detentor que o adquiriu de boa fé, e não o facto do extravio (que só de forma mediata ou indirecta se relaciona com tal impedimento).

No âmbito que temos vindo a considerar, o extravio não se projecta, portanto, como facto juridicamente relevante.

Assumirá essa relevância no domínio da revogação do cheque ou da oposição ao pagamento?

A resposta, na sequência lógica do anteriormente exposto, é negativa.

Com efeito:
Por um lado, durante o prazo de apresentação, a irrevogabilidade do cheque é absoluta; portanto, não admite excepções, nem mesmo em casos de verificação de «justa causa», como, v. g., o extravio e o desapossamento ilícito.
Por outro, após o prazo de apresentação, é absolutamente eficaz, independentemente de ter ou não ter justificação.
O direito à revogação não nasce, assim, por efeito directo do extravio”.
Pelo exposto, estamos em crer que o AUJ em questão se mantém perfeitamente actual na medida em que sustenta que “…o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador.
Mas, se assim é, se o declarado coincide com o realmente acontecido, então, da declaração do sacado não consta nenhum facto falso e, portanto, pelo facto de este a ter exarado no verso do título, o sacador não cometeu o crime…” de falsificação.