sexta-feira, 24 de outubro de 2008

HOMICÍDIO QUALIFICADO: atipicidade...

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Data do Acordão: 23-10-2008
Processo: 08P2856
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Nº do Documento: SJ200810240028565

Texto parcial:

“…FACTOS PROVADOS

1 - No dia 6/8/07, pelas 4.00 horas, no interior do centro comercial denominado "Stop", situado na Rua do Heroísmo n.º 329 a 333, nesta cidade, o arguido empunhou a navalha descrita no exame de fls. 384 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, composta por um cabo de madeira e uma lâmina do tipo corto-perfurante, de um só gume, com o comprimento de 8,5 cm, de abertura manual por báscula.

2 - O arguido abriu a navalha, articulando e fixando a lâmina no cabo de madeira, este com 10 cm de comprimento.

3 - De seguida abordou o ofendido B, que também se encontrava no interior daquele centro comercial, e no decurso de uma contenda entre ambos, desferiu-lhe sete facadas:

- Uma que penetrou nos tecidos entre a 6ª e a 7ª vértebras cervicais e atingiu a porção superior do músculo trapézio direito;

- Uma que penetrou nos tecidos ao nível da omoplata direita e atingiu a porção média do músculo do trapézio e o bordo lateral do músculo rombóide maior direito;

- Uma que penetrou nos tecidos entre a 5ª e a 6ª vértebras torácicas atingiu a inserção medial da porção inferior do músculo trapézio direito e o músculo erector da espinha;

- Uma que penetrou nos tecidos ao nível do 5° espaço intercostal e atingiu o músculo peitoral maior, o músculo intercostal, face anterior do pericárdio, face anterior do ventrículo esquerdo e face anterior do fígado;

- Uma que penetrou nos tecidos ao nível do epigastro e atingiu a porção esquerda do músculo recto do abdómen, a face anterior do lobo esquerdo do fígado e a face posterior do lobo esquerdo do fígado;

- Uma que penetrou nos tecidos entre a transição entre a região dorsal e lombar sobre o músculo grande dorsal direito;

- Uma que penetrou nos tecidos na face lateral do cotovelo direito e que atingiu tecido celular subcutâneo;

4 - Em consequência da conduta do arguido sofreu o ofendido as lesões físicas descritas no relatório de autópsia de fls. 311 a 336 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, designadamente lacerações dos músculos trapézio direito, rombóide maior direito, erector da espinha, peitoral maior, intercostal, mediastino anterior, recto maior do abdómen, do pericárdio, da face esternal do diafragma, do peritoneu, das faces anterior e posterior do lobo esquerdo do fígado, e das faces anterior e posterior do ventrículo esquerdo do coração, as quais foram a causa directa e necessária da sua morte.

6 - O arguido agiu do modo descrito, conjugando e concertando a sua conduta, com a intenção de matar o ofendido, propósito que logrou alcançar.

7 - Momentos antes, o grupo de jovens de que fazia parte o arguido envolvera­se em agressões físicas com pessoa das relações do falecido, no interior da discoteca.

8 - Na sequência das mesmas, o C foi atingido com um copo na cara, por uma amigo do falecido - D, e em virtude de tal teve necessidade de receber tratamento hospitalar.

9 - Por essa razão, por mera vingança, o arguido esfaqueou-o e assim o matou.

10 - Para mais facilmente alcançar esse desígnio o arguido utilizou aquela navalha como instrumento de agressão, bem sabendo que deste modo este estaria perante si completamente indefeso e incapaz de defender a sua integridade física e a sua própria vida.

11 - Agiu livre, consciente e deliberadamente.

12 - Sabia que a sua conduta era proibida por lei.

Mais se provou que:

13 - O arguido foi criado no seio da sua família de origem, com uma irmã gémea, vivenciando o agregado familiar uma situação financeira positiva.

O pai trabalhava na Administração dos Portos do Douro Leixões e a mãe como funcionária administrativa da Santa Casa de Misericórdia do Porto. A relação familiar é caracterizada como positiva, assumindo, o pai na educação dos descendentes a figura de autoridade e a mãe caracterizada como a mais afectuosa.

Iniciou a frequência do ensino aos 5 anos, tendo até ao 9° ano de escolaridade frequentado o Colégio Nossa Senhora da Esperança, porque pertence à Santa Casa da Misericórdia do Porto, e a mãe, na qualidade de funcionária, tinha condições especiais de acesso e pagamento.

Com o fim deste ciclo, iniciou de imediato, na Escola Profissional do Comércio Externo do Porto, o curso de desenho gráfico, que lhe deu a equivalência ao 12° de escolaridade e que concluiu cerca de mês e meio antes dos factos de que está indiciado.

O arguido beneficiou ao longo do seu percurso escolar do acompanhamento muito próximo do progenitor que se reformou na altura em que os filhos frequentavam o ensino básico.

À data dos factos, A vivia com os pais e a irmã e encontrava-se em período de férias após a conclusão do 12° ano. Ponderava nessa altura se iria dar início a actividade profissional, ou se continuaria a estudar, sendo esta última, a vontade dos progenitores.

O agregado familiar subsiste com a reforma do pai no valor de €1200 e ainda do vencimento da mãe de igual montante. Pese embora, desde que ocorreram os factos de que o arguido vem indiciado, esta encontra-se de baixa médica psiquiátrica, e, por essa razão, apenas aufere €900.

A habitação onde residem é propriedade da Santa Casa, pagando uma renda de €340.

O dia a dia do arguido é passado a jogar jogos de computador ou a ver televisão, sendo que toda a família tem procurado apoiá-lo, os avós maternos, o tio materno solteiro, um tio paterno, a ex-mulher deste tio, uma prima. Todos tentam apoiá-lo, a si, aos progenitores e irmã, deslocando-se habitualmente a casa do arguido, o que permite que este tenha companhia diária e permanente.

O arguido, encontra-se, no âmbito deste processo, com Obrigação de Permanência na Habitação sujeito a Vigilância Electrónica, há cerca de 7 meses, estando a medida de coação a decorrer de forma positiva.

14 - O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos não provados:

Que o arguido tenha abordado o ofendido pelas costas.

Que o ofendido, sentindo-se esfaqueado nas costas, virou-se para o arguido para assim o ver e se defender de novas facadas, colocando o seu braço direito à sua frente para proteger o tórax e o abdómen.


HOMICÍDIO QUALIFICADO OU HOMICÍDIO SIMPLES

A primeira instância considerou que o arguido cometeu um crime de homicídio simples, apesar de vir acusado de homicídio qualificado:
«O M.P. acusou o arguido da prática de um crime de homicídio qualificado por se ter verificado a circunstância do nº 2, al. e) do art. 132° do Código Penal, ou seja "ser determinado por avidez, pelo prazer de matar, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil".
Do modo como se encontra estruturada a acusação, o caso em apreço seria especialmente censurável por ter sido determinado por motivo torpe ou fútil, já que as demais hipóteses não se enquadram no caso em apreço.
Nas palavras exaustivamente repetidas de Figueiredo Dias "qualquer motivo torpe ou fútil" significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (...) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, pág. 32).
Como actualmente refere o Ac. STJ de 5/12/2007, in proc. 07P3879, in www.dgsi.pt, sobre motivo fútil, "esta circunstância qualificativa destina-se a tutelar aquelas situações em que ao agente se determina por mesquinhez, frivolidade ou insignificância, ou seja, por motivo gratuito"
Sobre o motivo torpe, referia já Nelson Hungria (citado por Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anotado ao artigo em análise) que "é o motivo que mais vivamente ofende a moralidade média ou o sentimento ético-social. É o objectivo abjecto, ignóbil ou repugnante, que imprime ao crime um carácter de extrema vileza ou imoralidade. Tais são, in exemplis, o fim de lucro ou cupidez, o prazer do mal, o desenfreio da lascívia, a vaidade criminal, o despeito da imoralidade contrariada".
Cremos que no caso nenhum destas características se verifica, ou seja, nem existe uma particularidade que implique aos factos uma maior censurabilidade do que o crime de homicídio simples.
Na verdade, temos um clima de confronto dentro de uma discoteca, com grupos que se confrontam e que transitam para o exterior tal confronto.
É evidente que a reacção do arguido é totalmente desproporcional às ofensas e mesmo ao clima de confronto entre grupos de jovens.
No entanto, ser desproporcionada, excessiva não significa que a mesma seja carecida de motivo, gratuita ou repugnante.
A conduta é sempre censurável, apenas não se verificando a especial censurabilidade.
Aqui chegados e uma vez que nenhuma causa exista que exclua a ilicitude ou a culpa relativamente aos actos praticados pelo arguido, deverá este ser condenado pelo crime de homicídio simples.»


Já o M.º P.º na 1ª instância, na qualidade de recorrente, entendeu que o homicídio era qualificado:
«Em nossa opinião atendendo à factualidade dada como provada e à conduta do arguido é possível afirmar a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do mesmo e condená-lo pela prática de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelo art.º 132.° n.º 1 do CP.
Na verdade, o arguido manifestou um profundo desprezo pelo valor da vida humana, movido por motivos de vingança, afirmação no interior do seu grupo e vaidade criminal.
O facto de existir um clima de confronto dentro da discoteca, não torna compreensível o comportamento do arguido nem muito menos o justifica.
O comportamento do arguido é desproporcionado e inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime e traduz um egoísmo intolerante, prepotente e mesquinho, que vai até à insensibilidade moral.
O arguido revelou uma total ausência de sentimentos bem como uma grande insistência em tirar a vida à vítima espetando-lhe a faca por sete vezes, todas na região torácica, atingindo-a no coração e no fígado.
Estas circunstâncias estão abrangidas na fórmula exemplificativa do n.º 2 do art.º 132.º do CP, atendíveis por as circunstâncias qualificativas deste preceito serem elementos da culpa e não do tipo.»

Como os autores notam (1), o legislador português optou por determinar que o homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada do homicídio simples previsto no art.º 131.º do C. Penal (“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”).
Não há, pois, diversos tipos criminais de crimes contra a vida, mas apenas um, que é o crime base, sendo que há circunstâncias que especialmente o agravam (crime qualificado) e outras que especialmente o atenuam (crime privilegiado). Por isso, também está fora de questão que se considere o crime base o de homicídio qualificado, não sendo o homicídio simples mais do que uma forma atenuada daquele.
A qualificação do crime vem prevista no art.º 132.º e aí o legislador não quis organizá-la de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta, embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito legal de homicídio qualificado.
Isso é feito pela afirmação genérica de um especial tipo de culpa, que vem assim descrito no n.º 1: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”.
Mas aliou-se essa formulação genérica à “chamada técnica dos exemplos-padrão («Regelbeispieltechnik» (2)), em que a cláusula geral seria constituída por um tipo de culpa (art.º 132.º, n.º 1) combinado com uma exemplificação não definitiva e facultativa (art.º 132.º n.º 2)” (3).
Alguns desses exemplos padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132.º deste modo:
«É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político;
f) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;...».
Que estas circunstâncias estão enunciadas a título meramente exemplificativo, é uma afirmação inequívoca, pois resulta directamente da lei, quando refere que são essas «entre outras». E, como não podia deixar de ser, é essa a Jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal (4).
Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132.º, leva a que possa ocorrer um homicídio em que se verifica alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e, contudo, não se trata de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância não revela “especial censurabilidade ou perversidade” (n.º 1), como pode suceder o contrário, a circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga (5), e integrar-se no tipo especial de culpa do n.º 1. (6)
Vem a doutrina entendendo, embora dividida (7), que os exemplos-padrão prendem-se essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa (8).
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. referida, págs. 63 a 65).
«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores...Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor, Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente...Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».

Indo agora ao encontro do caso concreto, o M.º P.º na 1ª instância não dá como verificado algum dos exemplos padrão referidos no art.º 132.º, n.º 2, do CP, mas entende que ocorre o chamado “homicídio qualificado atípico”, que não se reconduz a uma circunstância tipicamente prevista como especialmente censurável, mas a um conjunto de factores negativos, cuja consideração global determina uma avaliação do acto como especialmente censurável.
O STJ tem considerado possível a existência de homicídio qualificado atípico nestes termos (ou equivalentes):
«Um caso especialmente grave pode ser admitido como incluso no critério orientador ou cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade quando a gravidade do facto equivalha à gravidade dos casos mencionados nos exemplos típicos, devendo o julgador orientar-se a partir dos sinais fornecidos na exemplificação da norma constante de cada alínea, ou seja, perspectivar os factos através das diversas alíneas do n.º 2 do art. 132.º e, através da ponderação do pleno das circunstâncias enformadoras do facto e da personalidade do agente, definida que seja a imagem global do facto, averiguar e avaliar se se está ou não perante um especial e acentuado desvalor de atitude, que se encontra dentro das fronteiras marcadas pela estrutura de sentido que modela o exemplo, ou se o caso se reconduz a uma situação análoga, paralela ou equivalente, se estamos perante circunstâncias de estrutura análoga, que exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de um dos exemplos-padrão, que marquem uma diferença, distanciamento e dissociação, relativamente ao padrão normal de actuação, ao tipo matriz, no sentido de um maior ou acentuado desvalor de atitude, na forma de especial censurabilidade ou perversidade e que possa, por isso, ser valorada em termos de conformar especial juízo de censura e especial tipo de culpa, agravada.» (Ac. STJ de 02/04/2008, proc. 4730/07-3).
Mas, tem o STJ entendido que o homicídio qualificado atípico «há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, “é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados...sobretudo na base da pirâmide normativa, onde actua o juiz, confrontado com o caso concreto e sem a legitimação (...) parlamentar em última instância, que tem o legislador penal”, não é menos verdade que “a exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado” e, que, “com tais exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico” (Ac. do STJ de 29/03/2007, proc. 647/07-5).
Ora, o M.º P.º na 1ª instância entende que “o arguido manifestou um profundo desprezo pelo valor da vida humana, movido por motivos de vingança, afirmação no interior do seu grupo e vaidade criminal. O facto de existir um clima de confronto dentro da discoteca, não torna compreensível o comportamento do arguido nem muito menos o justifica.”
Mas, o tipo especial de culpa, característico do homicídio qualificado, não se define pela negativa, como faz o M.º P.º ao constatar que o clima de confronto “não torna compreensível” o homicídio e “muito menos o justifica”, pois se o homicídio fosse “compreensível” seria, eventualmente, um homicídio privilegiado e se fosse justificado, possivelmente não seria punível.
É preciso recordar que o crime base neste domínio é o de homicídio simples, no qual o agente manifesta, quase sempre, o tal “profundo desprezo pela vida humana”, já que, por definição, age com dolo (na maioria das vezes directo, isto é, pretende e tem o desejo de matar) e fá-lo por um motivo qualquer, que quase nunca se pode avaliar positivamente, por exemplo, por vingança, por vaidade ou por afirmação de grupo. O homicídio qualificado há-de ter, por isso, algo que se deva acrescentar a essa culpa já intensa, que a torne especialmente censurável.
O que importa ao caso presente é que houve uma luta entre dois grupos de jovens no interior de uma discoteca, um onde se enquadrava o arguido e outro ao qual, de algum modo, estava ligada a vítima. Sabe-se que essas lutas de jovens, em determinados locais onde se bebe álcool e, às vezes, onde se consomem outras substâncias, geram situações de grande emoção e em que, portanto, os contendores não agem com frieza, calculismo e determinação, antes com gestos excessivos, descontrolados e perturbados.
Daí que não concordemos com as afirmações de que “o comportamento do arguido é desproporcionado e inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime” e de que o “arguido revelou uma total ausência de sentimentos bem como uma grande insistência em tirar a vida à vítima”. O arguido agiu no elevado “calor” de uma luta entre rivais e com dolo directo de tirar a vida à vítima, mas não está provado o tal “mais”, a tal circunstância ou circunstâncias que fariam recair sobre si um grau especial de culpa.
A matéria de facto, a este respeito, deixa margem para alguma dúvida, que deverá ser resolvida num sentido favorável ao arguido, pois se, por um lado, parece que o móbil deste foi a vingança dirigida contra um familiar de pessoa que agredira um seu amigo, apenas por ser familiar (o que poderia ser encarado como motivo “fútil”), por outro, os golpes foram desferidos “no decurso de uma contenda entre ambos” (arguido e vítima), o que inculca a ideia de que algo mais se passou que não foi possível apurar. O número de golpes desferidos terá, então, resultado de uma luta com a vítima, desigual é certo, pois o arguido estava armado e o outro não, mas não foram desferidos à traição pelas costas da vítima, como constava da acusação.
Daí que, por falta de esclarecimento cabal sobre os factos, o pedido do M.º P.º, como recorrente, de se imputar ao arguido um homicídio qualificado, deva improceder…”