terça-feira, 1 de março de 2011

Irregularidades no inquérito

 

Acórdão da Relação do Porto, de 09-02-2011

Processo: 70/10.3SFPRT-A.P1

N.º Convencional: JTRP000

Relator: LUÍS TEIXEIRA

N.º do Documento: RP2011020970/10.3sfprt-A.P1

Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/f79b40eadd5ff89e802578420036d245?OpenDocument

Sumário:

I - Constitui mera irregularidade a omissão, antes de se proceder a busca, da entrega de cópia do despacho que a determinou.

II - Constitui mera irregularidade a omissão, no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, da informação sobre os factos concretamente imputados ao arguido, ou a omissão dos elementos do processo que indiciam os factos imputados.

III - Constitui mera irregularidade a consideração, na fundamentação do despacho de aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial (à excepção do termo de identidade e residência), de quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição.

IV - Constitui nulidade a omissão, na fundamentação do despacho de aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial (à excepção do termo de identidade e residência), dos conteúdos referidos nas alíneas do n.º 5 do art. 194.º, do CPP.

Texto parcial:

“…Cumpre decidir:

1ª Questão: a nulidade da busca efectuada no domicílio do arguido recorrente por não ter sido observado o disposto artigo 176º, nº 1, do CPP no que respeita à entrega de cópia do despacho antes da realização da busca.


1. Dispõe efectivamente o n.° 1 do artigo 176° do CPP que, “ antes de se proceder à busca é entregue… a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar…por pessoa da sua confiança”.

Diga-se, antes de mais, que a ordem de realização da busca é legal, tendo obedecido a todos os pressupostos exigidos, tendo sido autorizada pela autoridade judiciária competente – Juiz – e devidamente fundamentada – v. despachos judiciais de fls. 227 e 238, correspondestes a fls. 976 e 987 dos autos principais.

E conforme os elementos que dos autos constam, a realização da busca no domicílio do arguido bem como a realização das buscas no domicílio dos outros arguidos, é o culminar de uma investigação que durava já algum tempo, com recurso a várias vigilâncias e “escutas telefónicas”.

Dada a natureza do crime em investigação, a personalidade dos arguidos envolvidos e a dificuldade da realização da busca sem perda das respectivas provas, foi esta autorizada, como é legalmente previsto e permitido, nomeadamente no período compreendido entre as 21 e as 7 horas, com recurso, se necessário, a arrombamento de portas….

Receios que se concretizaram como resulta do teor do auto de busca de fls. 369 a 371 – fls. 1169 a 1171 do processo principal.

Conferido o dito auto, consta deste que a busca foi efectuada pelas 6 horas e 30 minutos do dia 25 de Novembro de 2010, tendo sido arrombada a porta de entrada e, quando os agentes entraram, já o arguido B… – que entretanto se tinha apercebido da presença dos agentes e da sua intenção - tinha lançado para o interior da sanita da casa de banho, dois sacos em plástico e accionado o autoclismo.

Embalagens que acabaram por ser recuperadas, uma no interior da dita sanita e outra já na caixa de derivação de esgotos, contendo ambas estupefacientes – v. fls. 370 (1170 do processo principal).

Esta descrição dos factos e o modo como se iniciou a busca com certeza que não se coaduna com o cumprimento linear das formalidades supra-enunciadas.

No entanto, segundo o que se descreve no auto – fls. 369 -, depois de imobilizado o arguido B… e encontrando-se os residentes da habitação em segurança [1], foram ambos informados do propósito da busca, explicado o conteúdo do mandado e entregue cópia deste.

Ora, é nesta parte que a posição do arguido diverge do teor do auto, quando afirma que não lhe foi exibido nem entregue cópia do despacho que determinou a busca.

É certo que o arguido se recusou a assinar o respectivo auto, quer na parte referente à informação do conteúdo do despacho e entrega deste quer na parte referente ao resultado das diligências de busca. É certo também que não consta do auto o real motivo da recusa do arguido em assinar. A recusa em assinar não está vedada ao arguido. O que não significa que essa recusa impeça a normal produção dos efeitos da busca e sua legalidade. Não é já claro o auto se, para além da recusa do arguido em assinar, este também acabou por recusar a entrega da respectiva cópia. O que até seria normal acontecer, na sequência da dita recusa em assinar. Mas, não estando também esta hipotética recusa assinalada no auto, existe uma divergência entre o que se afirma no auto e o que afirma o arguido.

Não sendo objecto do recurso apurar da veracidade do que é afirmado no dito auto também o não é o apuramento da veracidade do que afirma o arguido.

O que neste momento se pode apreciar e releva para o recurso, é o seguinte:

- O arguido, até agora, não suscitou qualquer incidente de falsidade do respectivo auto de busca, de modo a impugnar o seu exacto teor e daí retirar as consequências que entender possíveis e úteis à sua defesa. E só com um incidente desta natureza, a força probatória do auto pode ser abalada.

- Mas, admitindo-se, por mera hipótese, que não chegou a ser entregue ao arguido B…, a cópia do dito despacho[2], a consequência legal desta omissão não é, conforme pretende o requerente, uma nulidade nem muito menos a nulidade da busca e consequentes efeitos desta.


Compulsado o regime das nulidades – artigos 118º a 122º, do CPP -, aí não cabe, manifestamente, esta omissão. Outrossim, esta eventual omissão[3] corresponde a uma mera irregularidade processual que, ao abrigo do disposto no artigo 123º, do CPP, deveria ter sido arguida, pelo menos no prazo de 3 dias após a sua verificação [4]. Neste sentido aponta a posição de Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª Edição, Universidade Católica, fls. 481, nota 7, em comentário ao artigo 176º, do CPP.


Significa, pois, que esta questão se encontra, neste momento, sanada.
E sendo assim, improcede a pretensão, nesta parte, do recorrente B….

2ª Questão: a não comunicação ou informação ao arguido, durante o interrogatório judicial, dos factos que lhe são concretamente imputados bem como dos elementos do processo (provas) em que se indiciam tais factos.

1. Sobre esta matéria diz expressamente o recorrente:

O despacho que decretou a prisão preventiva ao arguido não contém a descrição dos factos concretamente imputados, incluindo as circunstâncias de tempo, lugar e modo, assim como a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados,
Pelo que, nesta perspectiva, surge então, como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados, agora expressamente consagrada no dever de comunicação previsto no artº 141º nº4 do C.P.P.

Patenteia sem dúvida o legislador, com as recentes alterações, um particular cuidado na exigência da comunicação ao detido dos factos essenciais para a sua defesa, aqui englobando factos concretos e provas que lhe subjazem, bem como, no tocante à fundamentação do despacho que aplique medidas de coação.

Ora, no despacho que aplicou a prisão preventiva ao arguido o Mmº Juiz “a quo”
fez uma súmula dos factos indiciariamente imputados ao arguido e remeteu para os elementos de prova referidos no relatório/ promoção previamente elaborados pelo M.P.

Ora, tal remissão é insuficiente para o cumprimento do artº 194, nº4.

In casu, pelo menos quanto às intercepções telefónicas, mandado/ auto de busca e suportes fotográficos, resulta inequívoco do despacho recorrido que não foi cumprido o dever de informação quanto ao seu conteúdo.

Tal omissão de comunicação e confronto do arguido com o conteúdo das escutas
acarreta a nulidade do despacho recorrido nos termos do artº 194º, nº 4 do CPP.
2. Vejamos:

Dispõe o actual artigo 141º, nº 4 do CPP, dedicado ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que o juiz informa este:

a) Dos direitos referidos no nº 1 do artigo 61º, explicando-lhos, se isso for necessário.
b) Dos motivos da detenção.
c) Dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo.
d) Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime”.

Por sua vez, o actual nº 5, do artigo 194º do CPP[5] refere que a fundamentação do despacho que aplicar medida de coacção, à excepção do TIR, contém, sob pena de nulidade:

a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
c) A qualificação jurídica dos factos imputados;
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193º e 204º.

2.1. O “dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, artigo 2º da Constituição da República, ao menos quanto àquelas que tenham por objecto a solução da causa em juízo", cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3 ed. pág. 798.

Dever de fundamentação que tem consagração constitucional no artigo 205º nº 1 da CRP, ao afirmar que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Esta obrigatoriedade geral da fundamentação das decisões judiciais representa, no domínio do Código de Processo Penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos.

Daí que o Código de Processo Penal exprima no artigo 97º, n.º 5, o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos actos decisórios, dizendo que "os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
Para além da consagração deste princípio geral, o legislador reitera, quanto a actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos, este dever de fundamentação, como acontece na situação em apreço do artigo 194º, n.º4.
2.2. Que não deixa de ser um corolário do que se encontra consagrado igualmente na CRP, sobre as garantias e liberdades de qualquer arguido:

Artigo 32º, nº 1:
“O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.

Artigo 28º, nº 1:
“A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”.

Artigo 27º, nº4:
“Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”.
3. Centrando a atenção no interrogatório judicial de arguido detido, este, como acto jurisdicional que é, tem funções eminentemente garantísticas – já não de investigação ou de recolha de prova[6] - e está “subordinado ao princípio do contraditório, em que o arguido surge como sujeito processual e não como objecto da investigação e em que o juiz de instrução deve tentar minorar, na medida do possível, a desigualdade inicial de que partem Ministério Público e arguido quanto ao conhecimento dos factos investigados e da prova recolhida.
Nesta perspectiva, surge, então, como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados, agora expressamente consagrada no dever de comunicação previsto no artigo 141º/4 C P Penal”[7].

Mais se decide/afirma, de relevante, neste acórdão, que merece a nossa concordância:

“O direito de saber porque se foi detido é indubitavelmente um dos direitos primordiais do indivíduo”, pois “saber que não se pode ser detido sem conhecer as respectivas razões é a primeira condição da segurança pessoal, é o teste de que se vive numa sociedade democrática e num verdadeiro Estado de Direito”. Por outro lado, “conhecer os motivos da detenção é também a condição sine qua non de uma verdadeira “igualdade de armas”: para se poder defender, para se poder prevalecer das garantias de um processo equitativo, é preciso primeiro saber as razões pelas quais se foi detido”, sob pena de “não apenas ser negado o princípio da presunção de inocência mas também a faculdade de a pessoa detida contestar o bem fundado das suspeitas que pesam sobre ela e de recorrer para um tribunal superior a fim de ser apreciada a legalidade da sua detenção”, cfr. Régis de Gouttes, in Louis-Edmond Petiti e outros, La Convention Européenne des Droits de l’Homme – Commentaire article par article, ed. Economica, Paris, 1995, 203-210, …

Patenteia, sem dúvida, o legislador, com as recentes alterações, um particular cuidado na exigência da comunicação ao detido dos factos essenciais para a sua defesa, aqui englobando os factos concretos e as provas que lhes subjazem, bem como no tocante à fundamentação do despacho que aplique medidas de coacção.

Aqui se evidencia – como vimos já - que a pedra de toque da recente alteração legislativa, é o acentuar da defesa dos direitos processuais do arguido, donde ressalta, a consagração, por imperativo constitucional, da obrigação de comunicação dos concretos factos que lhe são imputados e elementos que os indiciam, informação cujo concreto conteúdo tem reflexos no subsequente despacho judicial, servindo de elemento delimitador deste, no sentido de que o que não foi comunicado, devendo tê-lo sido, não pode servir para fundamentar o despacho de aplicação de medidas de coacção, para além do TIR”[8] .
4. Aqui chegados, é altura de averiguar se, durante o interrogatório judicial, o Sr. Juiz de instrução informou o arguido ora recorrente nos termos do disposto no artigo 141º, nº 4 e se o despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva obedece aos requisitos do disposto no artigo 194º, nº 5 (redacção actual), ambos do CPP.
Não sem antes aqui expressarmos a nossa concordância com o afirmado no ac. do TRG de 22.3.2010, proferido no processo nº 371/09.3GCGMR-A.G1, consultável na base de dados do ITIJ – cujo teor o recorrente também reproduz, nas conclusões 15º e 16º -, quanto ao momento e oportunidade da informação a prestar ao arguido, numa conjugação lógica e correcta dos nºs 4 e 5[9] do artigo 141º, do CPP:
“Isto é, ao arguido são primeiro indicados todos os elementos que indiciam os factos imputados (salvo os casos previstos no n.° 4, que, como se disse, não estão aqui em causa). Só depois, perante as provas que lhe são apresentadas, ele disporá dos elementos necessários para um efectivo exercício do direito de defesa, decidindo, nomeadamente, se é do seu interesse prestar declarações e, em caso afirmativo, em que medida. São momentos distintos do interrogatório, sendo que o primeiro precede necessariamente o segundo.

Naturalmente, a informação sobre "os elementos do processo que indiciam os factos imputados", não se pode resumir à mera enumeração dos tipos de prova existentes. Sob pena de subversão dos fins visados com as alterações introduzidas pela Lei 48/2007 de 29-8, (na sequência, aliás, de decisões do Tribunal Constitucional), não pode o juiz limitar-se a informar o detido, por exemplo, que contra ele existem "vigilâncias", "escutas telefónicas" e "apreensões". Ninguém consegue defender-se de abstracções. Este dever de informação ao arguido abrange o «conteúdo» de cada um dos elementos de prova susceptíveis de virem a ser utilizados para fundamentar a decisão que irá ser proferida quanto às medidas de coacção”.
4.1. Compulsado o teor do auto de interrogatório de arguido de fls. 411 e 412 – fls. 1230 e 1231 do processo principal – verifica-se que do mesmo consta ter o arguido sido informado nos termos das alíneas b), c) e d), do nº 4, do artigo 141º, do CPP, da seguinte forma[10]:

“1- Motivos da detenção: - indícios da prática de um crime de tráfico de estupefaciente pp. pelo art. 21º. Nº 1, alínea a) do DL 15/93, de 22/01, em concurso com o crime de furto pp. pelo art. 203º, nº 1, do CP.
2- Factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, das circunstâncias de tempo, lugar e modo: - os constantes da promoção de fls. 1209 a 1221 que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
3- Elementos do processo que indiciam os factos imputados:
- auto de detenção de fls. 1048 e segs;
- auto de busca e apreensão/suportes fotográficos de fls. 1097 a 1189;
- autos de exame/teste rápido de fls. 1017 a 1075;
- escutas telefónicas a fls. 90/110; 231/252; 504/535; 476/567; 528; 884, 890 e 111/121.
Pelo arguido foi dito não pretender prestar declarações sobre os factos nem sobre a situação pessoal”.
4.2. O teor do auto é francamente parco e equívoco sobre a real e exacta informação/comunicação, ao arguido, quanto aos elementos do processo em que se apoiam os factos indiciados, ou seja, os elementos de prova que indiciam a prática, pelo arguido, dos factos que lhe são imputados.

Não está em causa que tenha sido feita ao arguido uma enumeração dos elementos de prova, conforme supra constam. Nesta medida, o auto deixa percepcionar que esta informação foi feita, tanto mais que estes elementos são ditados para o respectivo auto e este é assinado por todos os intervenientes, no final da diligência.

Mas, como supra já se assinalou, não é apenas esta a informação que deve ser prestada ao arguido. A informação deve ser mais precisa, pormenorizada, concreta:

- Quanto aos factos imputados, devem estes ser reproduzidos/comunicados, em alta voz, no acto do interrogatório, no momento processual indicado, lendo-os ou fazendo uma súmula fiel[11] dos mesmos, explicando-os, se necessário for.

- Quanto aos elementos do processo em que se apoiam os factos indiciados e imputados, para além da enumeração do tipo, como consta do auto, devem tais elementos ser igualmente lidos ou, ainda que igualmente por súmula, deve o seu conteúdo ser comunicado e explicado, se necessário, ao arguido.

Só com um procedimento desta natureza se cumprirá tal dever de informação.
Procedimento que resulta ou é imposto pela lei e que o Juiz tem o dever de cumprir, independentemente de qualquer pedido ou solicitação do arguido nesse sentido.
Sendo o auto só por si, insuficiente para dele retirar ou concluir sobre o exacto procedimento do tribunal no que respeita à comunicação sobre o conteúdo dos elementos probatórios - intercepções telefónicas, mandado/ auto de busca e suportes fotográficos, sendo certo que a impugnação do recorrente assenta nesta falha/falta de informação - existem, contudo, no processo, algumas referências que aqui se justifica apontar para uma melhor interpretação do próprio auto[13].

Restringe-se a apreciação a estes elementos probatórios porquanto no que respeita aos factos indiciados e imputados, o próprio recorrente admite na sua conclusão 11ª, que o Sr. Juiz lhe fez uma súmula dos factos indiciados.

Ora, esta súmula, conjugada com a remissão que consta do auto,”os constantes da promoção de fls. 1209 a 1221 que aqui se dão por integralmente reproduzidos”, sendo certo que nessa promoção se descrevem, no essencial e pormenorizadamente, os factos indiciados e imputados ao recorrente – v. fls. 396 a 399 e 401 (estes referentes ao crime de furto de uma bicicleta) (fls. 1215 a 1218 e 1220 do processo principal) -, satisfaz a exigência legal, pois como acaba de se anotar, é possível que esta informação seja feita por esta via.
4.3. Regressando aos elementos probatórios do processo, o arguido recorrente vem afirmar nas suas conclusões 18ª e 19º que “o arguido não foi confrontado com as supra citadas intercepções telefónicas, mandado/ auto de busca e suportes fotográficos, uma vez que não prestou declarações, relativamente ao produto estupefaciente apreendido[14].

Ora, no caso das intercepções telefónicas, mandado/ auto de busca e suportes fotográficos, por não ter sido devidamente comunicado ao arguido, não podia constar da fundamentação, em virtude de não ter sido praticado um acto legalmente obrigatório”.
Por sua vez, o recorrido MP vem dizer na sua resposta – conclusão nº 8 -, que “como resulta do auto de interrogatório de fls. 1230 a 1231, o arguido foi informado de todos os elementos de prova indicados no requerimento a que alude o artigo 141º, nº 1, parte final, do CPP, tendo sido explicado o conteúdo dos mesmos, sucintamente, face à imediata declaração do arguido, B… de “não pretender prestar declarações””.
Por esta breve amostra já resulta que não existiu uma comunicação/informação por parte do Sr. Juiz, do exacto teor dos elementos de prova como legalmente é exigível.

Repare-se que este dever de informação existe e deve ser observado, independentemente de o arguido pretender prestar declarações ou não. Aliás, a questão de prestar ou não declarações sobre os factos só se coloca (deve colocar), depois de observadas todas as comunicações do artigo 141º, nº 4, do CPP. É perante elas ou depois delas que o arguido deve manifestar a sua vontade sobre se pretende falar ou não sobre os factos que lhe são imputados.
Mas se se reparar no teor de todos os autos referentes não só ao arguido recorrente mas também referentes aos outros arguidos que foram ouvidos em primeiro interrogatório, na mesma data, existe uma coincidência em todos eles: são do mesmo teor no que respeita à informação sobre os factos e elementos do processo sobre as provas.

Compulsando o processo, verifica-se que os autos de busca são diferentes para cada um dos arguidos, com conteúdos diferentes, o mesmo se passando com os elementos fotográficos e intercepções telefónicas. Assim sendo, deveria para cada arguido, ser discriminado o auto de busca, os suportes fotográficos e as concretas escutas telefónicas que lhe dizem respeito e informá-lo do seu conteúdo.

Mas, mesmo que houvesse uma referência genérica para todos os arguidos quanto ao tipo dos elementos de prova, como resulta no auto, deveria relativamente a cada arguido serem individualizados e explicados os elementos que lhe dizem respeito. Não consta que esta tarefa tivesse sido feita.

Existe ainda um elemento no próprio auto que elucida no sentido da comunicação/informação do Sr. Juiz não ter sido efectuada, concretamente ao arguido recorrente[16], nos termos ou com o âmbito exigidos:

Trata-se do tempo dedicado pelo Sr. Juiz ao interrogatório de cada um dos vários arguidos e a constatação de que o referido tempo é, segundo as regras da experiência e prática judiciária, manifestamente insuficiente para cumprir/observar todas as formalidades legalmente exigidas.

Segundo os dados do processo, o primeiro interrogatório da arguida H… iniciou-se pelas 15 horas e 54 minutos do dia 26.11.2010 – v. fls. 405 (fls. 1224 do processo principal).
O interrogatório do arguido C… iniciou-se no mesmo dia 26.11.2010, pelas 15 horas e 58 minutos, ou seja, 4 minutos depois – v. fls. 407 (fls. 1226 do processo principal).
O interrogatório do arguido I… iniciou-se no mesmo dia 26.11.2010, pelas 16 horas e 01 minutos, ou seja, 3 minutos depois – v. fls. 409 (fls. 1228 do processo principal).
O interrogatório do arguido B…, ora recorrente, iniciou-se no mesmo dia 26.11.2010, pelas 16 horas e 03 minutos, ou seja, 2 minutos depois – v. fls. 411 (fls. 1230 do processo principal).
O interrogatório da arguida G… iniciou-se no mesmo dia 26.11.2010, pelas 16 horas e 04 minutos, ou seja, 1 minuto depois – v. fls. 413 (fls. 1232 do processo principal).
O interrogatório da arguida F… iniciou-se no mesmo dia 26.11.2010, pelas 16 horas e 06 minutos, ou seja, 2 minutos depois – v. fls. 415 (fls. 1234 do processo principal).
O interrogatório do arguido D… iniciou-se no mesmo dia 26.11.2010, pelas 16 horas e 07 minutos, ou seja, 1 minuto depois – v. fls. 417 (fls. 1236 do processo principal).
Seguiu-se a promoção do MP – fls. 419 e 420 – a resposta dos defensores dos vários arguidos – fls. 420 e 421 – e finalmente o despacho judicial – fls. 421 a 423 -, tendo o acto sido encerrado pelas 17 horas e 15 minutos.
Ora, esta sequência cronológica da prática dos actos quanto aos diferentes arguidos é para nós elucidativa que, pese embora nenhum dos arguidos tenha prestado declarações sobre os factos, não seria possível dar cumprimento integral à informação, para cada um deles, dos elementos do processo sobre os elementos probatórios respectivos, lendo-os ou explicando-os, ainda que por súmula – note-se que estão em causa diferentes mandados de busca com várias apreensões de estupefacientes, dinheiro e objectos e escutas telefónicas várias, com diferentes conteúdos sobre cada um dos arguidos.

Concretamente quanto ao arguido B…, ora recorrente, foi-lhe dedicado apenas 1 (um) minuto, o que não chega para comunicar ou informar do que quer que seja, sobretudo quando se tem que reproduzir ainda em auto, o teor de duas páginas, que são as correspondentes às fls. 1230 e 1231. O que também só é possível com o recurso às actuais tecnologias, pois basta (bastou) copiar o teor do auto anterior e proceder à alteração da identificação do arguido e outros elementos cirúrgicos, pois o demais teor, como se disse, é exactamente o mesmo para todos os arguidos ouvidos.
E não se justifique ou fundamente a observância desta informação com o facto de no despacho judicial que aplicou a medida de coação, o Sr. Juiz ter afirmado que foram feitas as comunicações dos elementos probatórios.

A fundamentação de um despacho avalia-se não pelo poder da força do que afirma mas sim pela força do que esclarece, motiva, convence, permitindo perceber no que efectivamente o julgador se apoiou e deduziu o raciocínio lógico que o levou a decidir de determinada maneira. E a fundamentação com estas exigências, inexiste simplesmente no despacho recorrido.
5. Dando, pois, como assente, pelos fundamentos apontados, que o Sr. Juiz não informou o arguido recorrente dos ditos elementos do processo nos termos legalmente exigidos, cumpre agora averiguar qual o vício cometido.

De uma breve recolha de jurisprudência sobre a questão (que ainda não é muita) e doutrina, podemos desde já constatar duas posições diferentes.

- Uma que considera existir nulidade, embora dependente de arguição no próprio acto ou antes de terminado este – ac. do TRP de 2010.2010, proferido no processo nº 760/09.3PPPRT-A.P1, consultável na base de dados do ITIJ[17]; e CPP, Comentários e notas práticas, Magistrados do MP do Distrito Judicial do Porto, Coimbra editora, 2009, fls. 379[18].

- Outra, de que se está perante uma mera irregularidade dependente de arguição no acto - v. supra citado ac. deste TRP de 23.9.2009, proferido no processo nº 221/08.8JAPRT-F.P1, consultável na base de dados do ITIJ[19]; e também Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição, em anotação ao artigo 141º, fls. 389 e 390, notas 8 e 9, ao pronunciar-se sobre a omissão da informação sobre os motivos da detenção e dos factos concretamente imputados ao arguido, concluindo que tal omissão constitui irregularidade arguível no acto. Embora nas notas seguintes, ao abordar a informação sobre os elementos do processo não refira qual o vício de tal omissão, não pode entender-se outra coisa que não seja o mesmo, ou seja, a irregularidade.

5.1. Da nossa parte, entendemos tratar-se de mera irregularidade, que deve ser arguida no acto, pelo seguinte:

O interrogatório judicial, como já se deixou expresso e como deve ser entendido, é um acto jurisdicional com funções garantísticas e não de investigação ou de recolha de prova, subordinado ao princípio do contraditório, que deve seguir todas as formalidades enunciadas nos artigos 141º e 194º, do CPP.

O primeiro interrogatório tem lugar quando existe um arguido detido, que não deva ser julgado de imediato – artigo 141º, nº 1, do CPP. O interrogatório destina-se a ouvir o arguido sobre os motivos da sua detenção, permitindo-lhe exercer a defesa quanto aos factos que lhe são imputados e quanto aos elementos probatórios que existem nos autos que indiciam tais factos, culminando eventualmente e quase sempre com a aplicação de uma medida de coação requerida pelo MP. A intervenção do juiz destina-se ainda a apreciar todos os actos de legalidade e validação ou não da detenção.

Para atingir todo este desiderato ou objectivo, o legislador impõe ao Juiz de instrução a obrigação de informar o arguido de todos aqueles elementos que existem no processo e que, de resto, determinaram a sua detenção. É perante aqueles elementos que o arguido vai exercer a sua defesa, falando ou abstendo-se de o fazer, tudo nos termos do disposto no artigo 141º, nº 5, do CPP[20]. Sendo certo que é obrigatória a assistência do arguido, por defensor, advogado, logo, técnico do direito, que pode intervir quer arguindo nulidades – e com certeza, por maioria de razão, irregularidades -, quer suscitando pedidos de esclarecimento das respostas dadas pelo arguido, sugerindo perguntas a fazer ao arguido, pelo Juiz – tudo ao abrigo do artigo 141º, nº 6, do CPP -, quer consultando os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coação, quer durante o interrogatório judicial quer durante o prazo de interposição de recurso – artigo 194º, nº 7 (anterior nº 6) .

O interrogatório judicial decorre, pois, de acordo com um formalismo e dinâmica processual que, se o Juiz deixar de praticar um acto que a lei diga que deve ser praticado, como é a situação da informação em apreço, pode e deve ser logo sindicado, no acto, quer pelo MP quer pelo defensor do arguido, com vista à reposição ou cumprimento de todo esse formalismo.

Caberá a cada um destes intervenientes – MP e defensor – avaliar, no momento, da relevância que eventual omissão de formalidade, se repercutirá no desenvolvimento da diligência, sendo certo que esta tem o seu culminar com o despacho judicial a apreciar as questões já referenciadas e, de entre elas, a medida de coação[21]. Tendo o primeiro interrogatório judicial esta natureza e dinâmica e não visando nem podendo visar o mesmo, qualquer tipo de investigação ou recolha de prova – a não ser a que resultar, evidentemente, das próprias declarações do arguido -, vemos com alguma, senão toda, dificuldade, em enquadrar esta omissão no disposto no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP[22].

Outrossim, percepcionamos melhor estar perante uma irregularidade que afecta ou pode afectar a forma de o arguido exercer a sua defesa. Nomeadamente pode ser determinante para o mesmo prestar ou não declarações.

O legislador, para o primeiro interrogatório, impõe o cumprimento de determinadas obrigações – as do nº 4 do artigo 141º -, sem as qualificar ou tipificar de nulidades, se não observadas. E impõe, no mesmo acto do interrogatório, a fundamentação do despacho segundo determinados requisitos, qualificando a sua não observância, como de nulidade. Com certeza que estamos perante um tratamento diferenciado quanto aos vícios da omissão, nas duas situações em apreço. Se o legislador pretendesse que a omissão do disposto no nº 4, do artigo 141º, do CPP, fosse uma nulidade, tê-lo-ia referido expressamente.

Importa, no entanto, desde já esclarecer ou desfazer um eventual equívoco:

O facto de se entender que a omissão de qualquer formalidade do n.º 4 do artigo 141º, não constitui nulidade mas sim irregularidade [23], em nada interfere com o vício que possa afectar o despacho judicial proferido ao abrigo do artigo 194º, n.ºs 5 e 6, do CP, nomeadamente se aquele levar em conta/considerar, na fundamentação, factos ou elementos do processo que não lhe tenham sido comunicados durante a audição, ou seja, os do nº 5 do artigo 141º, do CPP[24].

Mas esta matéria será assunto a tratar na questão seguinte.

3ª Questão: a nulidade resultante da não informação/comunicação legal e prévia destes elementos probatórios -intercepções telefónicas, mandado/auto de busca e suportes fotográficos - conjugada com a consideração dos mesmos na fundamentação do despacho que decretou a medida de coação de prisão preventiva.

1. Chegou o momento de apreciar a vexata quaestio que mais não é do que a supra-indicada mas que o recorrente coloca nestes termos:

“Ora, no caso das intercepções telefónicas, mandado/ auto de busca e suportes fotográficos, por não ter sido devidamente comunicado ao arguido [25], não podia constar da fundamentação, em virtude de não ter sido praticado um acto legalmente obrigatório”.
Compulsado o teor do despacho judicial posto em crise, verifica-se que o mesmo prima essencialmente pelas “remissões” aí feitas:

- remete para os elementos probatórios comunicados aos arguidos com particular destaque para o que resulta dos autos de busca e das comunicações telefónicas transcritas.
- remete para os factos que lhes foram igualmente comunicados.
- dá por reproduzida essa comunicação.
- refere que os elementos de prova que sustentam esta imputação de factos são os mesmos que já lhes foram comunicados.

A que se podem/devem somar as remissões já antes feitas no auto de interrogatório na parte respeitante às comunicações ou prestação da informação a que se refere o nº 4 do artigo 141º, do CPP, supra transcritas.

Ou seja, o Sr. Juiz de instrução procede a um primeiro interrogatório de arguidos detidos a quem são imputados inúmeros factos indiciadores de integrarem o crime de tráfico de estupefaciente pp. pelo art. 21º. nº 1, alínea a) do DL 15/93, de 22/01, e outros - de detenção de arma proibida (fls. 410) e furto (fls. 412) – e em momento algum, quer no momento em que deve efectuar essa comunicação ao arguido, quer no próprio despacho que apreciou e aplicou a medida de coação de prisão preventiva, descreve, discrimina, referencia ou concretiza no auto ou despacho, qualquer facto integrador desses mesmos crimes.

Por sua vez, referencia/tipifica, no despacho, os elementos probatórios do processo como de autos de busca e escutas telefónicas (os mais relevantes), mas em momento algum é descrito, concretizado ou referido qualquer conteúdo desses autos de busca – que são vários – e das escutas – que também são várias. E não efectua a necessária análise e crítica quer de uns (factos) quer de outros (elementos probatórios), com o estabelecimento do respectivo nexo, para legitimamente poder concluir pela bondade da medida aplicada, que é apenas a de prisão preventiva!
Não estando directamente agora aqui em causa esta forma de fundamentação remissiva que, apesar de aceite deve ter os seus limites [26], não poderíamos deixar de lhe fazer esta referência, pois entende-se que o Sr. Juiz de instrução levou demasiado longe esta fórmula de fundamentação, com evidente prejuízo para a clareza, inteligibilidade, força argumentativa e convencimento da razão decisória.

Pelo que se relembra aqui o que diz Vinício Ribeiro no Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, fls.309 [27]:

“O auto de primeiro interrogatório de arguido detido é uma peça chave, fundamental, fulcral, de todo o processo.
Tal interrogatório, maxime nos casos complexos (v. g. no tráfico de droga) onde a prova, com frequência, é muito complicada e específica, deve ser exaustivo e pormenorizado. E, na prática, isso muitas vezes não acontece”.

2. Da fundamentação do despacho recorrido consta ainda:

“Considerando os elementos probatórios comunicados aos arguidos, com particular destaque para o que resulta dos autos de busca e das comunicações telefónicas transcritas a fls. 90 a 110, 231 a 250, 504 a 567 e 884 a 890, consideramos fortemente indiciados os factos que lhes são concretamente imputados conforme comunicação que supra lhes foi efectuada e que aqui se dá por reproduzida.

Os elementos de prova que sustentam esta imputação de factos são os mesmos que já lhes foram comunicados”.

Dos exactos termos desta fundamentação retira-se que o julgador fundamentou a sua decisão para imputar ao arguido recorrente os factos indiciados, com elementos do processo - autos de busca e comunicações telefónicas -, que não lhe foram efectivamente comunicados durante a audição mas que na decisão se afirma o terem sido.

Ora, esta fundamentação ou consideração daqueles elementos probatórios viola frontalmente o disposto no artigo 194º, nº 6 do CPP[28] (anterior nº 5), pois a comunicação que aqui se refere, é exactamente a comunicação do artigo 141º, nº 4, alínea d), do mesmo diploma legal.

A admitir-se, por hipótese, a consideração ou fundamentação da decisão com os elementos probatórios que, durante a audição do arguido não lhe foram regular e legalmente comunicados/informados, seria com certeza estar a deixar entrar pela janela o que se proíbe que pela porta entre.

Daqui resulta que, embora o arguido não tenha invocado, no momento certo, durante a sua audição, a verificada irregularidade por falta daquela informação, que deve considerar-se sanada, não significa que o mesmo não possa já, concretamente quanto ao despacho recorrido, invocar este vício.

3. Tendo-o feito, cumpre agora averiguar qual a exacta natureza deste vício e se tal alegação pode ser feita em fase de recurso para este tribunal da relação.

Quanto à exigência, na fundamentação, dos elementos referidos nas alíneas do n.º 5 (anterior n.º 4), do artigo 194º [29], o legislador é claro na qualificação do vício: nulidade.

Será que este vício de nulidade é extensivo ao disposto no n.º 6?

Sobre este aspecto decidiu-se no ac. do TRG nº 371/09.3 GCGMR-A.G1, supra citado:

“Ou seja, a norma do n.° 5 é indissociável da cominação de nulidade prevista no número 4. No caso, se o conteúdo das escutas telefónicas, por não ter sido comunicado ao arguido, não podia constar da fundamentação, então deve considerar-se como não escrita a referência a tal conteúdo. O que gera a nulidade do despacho recorrido, por falta de "indicação dos elementos do processo que indicam os factos imputados". Em todo o caso, a omissão em causa sempre implicaria a nulidade prevista no art. 120 n.° 2 al. d) do CPP, por não ter sido praticado um acto legalmente obrigatório”.
Em contrapartida, sobre esta mesma questão decidiu-se no acórdão do mesmo Tribunal da relação de Guimarães de 18.1.2010, proferido no processo nº 758/09.1JABRG-H.G1, consultável na base de dados do ITIJ, o seguinte:
“Conforme resulta do n.º 5 do citado preceito legal, ressalvadas as excepções ali previstas, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção quaisquer factos ou elementos do processo que não tenham sido comunicados durante o interrogatório judicial.
Mas, contrariamente ao que sucede com a violação do dever de fundamentação consagrado nas alíneas a) a d) do n.º4, a qual é cominada com nulidade [Trata-se de uma nulidade dependente de arguição e, por isso, sanável (cfr. Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Coimbra, 2008, pág. 412), a qual deve ser arguida nos termos do artigo 120º, n.º2, al. d), antes que o acto esteja terminado – al. a) do n.º 3 do art. 120º (cfr. Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código de Processo Penal, Coimbra, 2009, pág. 379 e Ac. da Rel. do Porto de 3-6-2009, proc.º n.º 1324/08.47PPRT-A.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias). A cominação com nulidade da inobservância daquela disposição tem como consequência não se poder recorrer directamente da decisão que aplica a medida de coacção, havendo que arguir o vício perante o tribunal de 1ª instância, só havendo recurso da decisão que desatender a arguição da nulidade (cfr. neste sentido o estudo do actualmente Conselheiro Dr. Manuel Joaquim Braz, As medidas de Coacção no Código de Processo Penal revisto, Algumas notas, in Col. de Jur. ano XXXII, tomo 4, pág. 6, a propósito da nulidade cominada no n.º 2 do citado art. 194º)], a inobservância do n.º 5, porque não cominada de nulidade, apenas gera mera irregularidade, a arguir nos termos dos artigos 118º, n.º2 e 123º, ambos do CPP[30} [ cfr. neste sentido Teresa Pizarro Beleza, Prisão preventiva e direitos dos do arguido, pág. 683, in Mário Monte (coord.), Que Futuro para o Direito Processual Penal, Coimbra, 2009, pág. 683, onde a autora confrontando as sanções cominadas para o n.º4 (nulidade) e os n.ºs 5 e 6 (mera irregularidade) alude a uma “aparente brecha no sistema criado”]”.
4. Pelos fundamentos que supra se expuseram no tratamento da questão da não comunicação/informação ao arguido dos elementos do processo sobre os meios probatórios que indiciam a prática dos factos – v. 2ª questão, nº 5.1 -, com as devidas adaptações, também aqui nos parece mais coerente, numa interpretação sistémica, existir uma mera irregularidade, pelo facto de o legislador simplesmente não ter qualificado este vício como de nulidade, quando o fez relativamente às alíneas do anterior nº 4, do artigo 194º.

Não querendo ou não qualificando o legislador a fundamentação do despacho nos termos do anterior n.º 5, do artigo 194º, como de nulidade, pensamos que será levar longe demais uma interpretação que assim o considere, quando é certo que no mesmo preceito, exactamente no número anterior, o faz expressamente.

Pegando na fundamentação do acórdão da Relação de Guimarães de 22.3.2010, supra citado, quando refere que “a norma do n.º 5 é indissociável da cominação de nulidade prevista no número 4”, não se afigura uma afirmação inabalável ou sempre correcta ou verificável, pelo seguinte:

A alínea b), do n.º 5 (anterior n.º 4), do artigo 194º do CPP exige, sob pena de nulidade, que o despacho contenha a enumeração dos ditos elementos do processo.

O que pode acontecer e com certeza acontece, como é o presente caso, que o despacho contenha a enumeração desses elementos, mas que não correspondam integral ou parcialmente, aos elementos comunicados ao arguido.

Portanto, a diferença entre as ditas disposições consiste na falta de enumeração – tipificada expressamente como nulidade -, ou numa enumeração diferente daquela que a lei prevê ou se espera que seja, que terá de estar limitada aos elementos comunicados ao arguido.

Ora, se a diferença de enumeração é apenas parcial, contendo elementos que foram comunicados e outros não comunicados, estes não poderão ser considerados para efeitos de fundamentação do despacho.

Se os elementos considerados foram, todos eles, não comunicados, existe uma verdadeira falta de fundamentação neste aspecto, pois não podendo ser considerados os enumerados, automaticamente se fica sem qualquer enumeração.

Mas então o vício reconduz-se não à discrepância dos elementos invocados pelo tribunal mas sim à pura inexistência de elementos, já que os enumerados ou invocados não contam. Ou seja, existirá uma nulidade não por se considerarem elementos que não o podiam ser mas por não se enumerarem os elementos que o deveriam ser. Daí a recondução à nulidade do n.º 5 (anterior n.º 4).

E existem diferenças neste enquadramento. Pode acontecer que, no despacho, o Juiz considere não só elementos comunicados como elementos não comunicados. Mas, retirando ou eliminando estes por inadmissíveis face ao disposto no actual n.º 6 (anterior n.º 5), do artigo 194º, o despacho pode continuar a estar fundamentado porque enumera elementos probatórios suficientes que suportam os factos indiciados. Logo, o efeito é nulo, mesmo não considerando tais “novos”elementos.

Mas pode acontecer que os únicos elementos enumerados sejam elementos não comunicados ou que sejam estes e alguns comunicados mas que estes, só por si, não fundamentem os factos indiciados.

De onde se pode concluir que, se o Juiz enumerar no despacho elementos que previamente não comunicou ao arguido, das duas, uma:

- Ou os elementos acrescentados, que a lei diz que não podem ser considerados, não afecta, no essencial, a fundamentação do despacho e então trata-se de uma mera irregularidade;

- Ou os elementos acrescentados, que a lei diz que não podem ser considerados, afectam, no essencial, se retirados, a fundamentação do despacho e então trata-se de uma nulidade por remissão para o nº 5 (anterior nº4), do artigo 194º.
5. Mas, quer tratando-se de nulidade quer de mera irregularidade, o vício deve ser alegado no acto ou antes que este termine[31] – artigos 120º, nº 3, alínea a) e 123º, nº 1, respectivamente, ambos do CPP – se o interessado estiver presente ou no prazo de 10 ou 3 dias, se não estiver presente – mesmos preceitos.

No caso, quer o arguido recorrente quer o seu defensor, estavam presentes no acto de interrogatório, a ele assistindo e participando, tendo sido notificados do teor do despacho. O que significa que a presente nulidade – entendemos tratar-se de nulidade porque todos os elementos probatórios enumerados pelo Sr. Juiz, foram considerados não regular e legalmente comunicados ao arguido – deveria ter sido invocada logo no imediato ou antes de findo o acto judicial interrogatório. Não o sendo, a mesma tem de considerar-se sanada.

Aceita-se este regime – embora se considere porventura demasiado formal -, sob pena de, não aplicando estas regras, praticar-se um acto porventura nulo como é o caso, o interessado nada fazer ou dizer e só muito depois, mais tarde, vir alegar a dita nulidade.

Ora, sendo esta nulidade alegada antes de findo o acto, tem o Juiz a possibilidade de o reparar, de proceder às diligências omissas ou de fundamentar o acto como lhe é legalmente imposto. Não o fazendo, com certeza que fica ressalvado ao interessado, o uso do recurso.

E quando a lei exige e quer assegurar a presença de defensor ao arguido, como técnico do direito que é e conhecedor deste e das respectivas formalidades e exigências do acto em curso, tem o mesmo dever legal e processual de efectivar um controlo sobre o que é praticado, arguindo ou invocando as irregularidades ou nulidades praticadas, como diz a lei – v. artigo 141º,nº 6, do CPP.

6. Por todo o exposto, embora se reconheça que foi praticada uma nulidade, a mesma encontra-se sanada, não afectando, pois, os efeitos normais do despacho recorrido.

4ª Questão: a inadequação e desproporção da medida de coação aplicada à gravidade dos factos e situação pessoal do recorrente.


1. Esta questão remete-nos inevitavelmente para a verificação ou não, no presente caso, dos pressupostos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, nomeadamente quanto aos indícios, adequação, proporcionalidade e outros.

E podemos ainda dizer que nos merecem concordância, em abstracto, as referências doutrinais e legislativas do recorrente quanto à necessidade ou não da aplicação da medida de prisão preventiva.

Referimo-nos concretamente ao afirmado:

“ Daqui que, a prisão preventiva, deve constituir a última ratio ou extrema ratio das medidas de coacção, apenas se podendo aplicar quando se demonstre que todas e cada uma das restantes medidas cautelares se revelem inadequadas ou insuficientes a cumprir os fins a que se destina ( cfr arts 193º, nº2 e 202º nº1do C.P.P. e o artº 28º nº 2 da CRP).

A Constituição Consagra como Princípio fundamental a natureza excepcional da prisão preventiva ao determinar expressamente a excepcionalidade de qualquer privação da liberdade (art. 27º., n.º1, 2 e 3, al. b) conjugado com o artigo 5º da CEDDH e o art. 9º DUDH) e a impossibilidade de a mesma se manter sempre que possa ser substituída por caução ou por medida de liberdade provisória prevista na lei (art. 28º, n.º 2).

Como diz Castro e Sousa, in Jornadas de Direito Processual Penal, pag. 151: “a natureza excepcional, não obrigatória e subsidiária da prisão preventiva é reconhecida nomeadamente, pelo pacto Internacional dos Direitos Cívicos e Políticos de 16.12.1966, pela Convenção Europeia dos Direitos do homem e por resoluções e recomendações do Comité de Ministros do Conselho da Europa”.

Finalmente,

E como escreve, Cavaleiro de Ferreira citando Carrara, “A prisão preventiva é uma imoralidade necessária e o reconhecimento desta verdade impõe a criação de sucedâneos da prisão, sempre que possível”.
Acontece que, como se verá, in casu, verificam-se os pressupostos legalmente exigidos e justifica-se, efectivamente como última ratio, a aplicação desta medida.
2. Na verdade, para que possa ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, exige o artigo 202º, nº 1, alíneas a) a e) [32], do CPPenal, a existência de “fortes indícios”, da prática de crime doloso punível naquelas alíneas previsto.
Não é definido, no entanto, naquela disposição legal, o conceito normativo de “fortes indícios”.

Sem prejuízo de mais adiante se estabelecer uma correlação entre “fortes indícios” e “indícios suficientes”, a lei processual penal, quanto a estes, já se refere, a propósito de ser ou não deduzida acusação, definição que nos é dada pelo artigo 283º, nº 2, do Código de Processo Penal ao considerar suficientes os indícios, “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Em fase de instrução, para efeitos de pronúncia ou não pronúncia, a lei volta a usar a terminologia de “indícios suficientes”, ao dizer no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, o seguinte:

“Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

2.2. Quer a doutrina quer a jurisprudência defendem, de perto, aquele conceito, embora com maior ou menor exigência quanto ao grau de probabilidade de ao agente vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, em julgamento.

Assim, Castanheira Neves[33] defende para a acusação “a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final”.

Para Figueiredo Dias[34], “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável que a absolvição”.
Esta é a posição seguida igualmente pela jurisprudência [35].

Desta Relação do Porto, ver Ac. de 29.7.1997, proferido no processo de recurso n.º 9740816 (in www.dgsi.pt/jtrp.), onde se sumariou: “Há fortes indícios da prática de um crime se o conjunto de provas oferece um " maior " grau de probabilidade de o agente vir a sofrer a respectiva pena do que ser absolvido”.
A problemática dos indícios e a forte probabilidade de o agente vir ou não a ser condenado em julgamento, suscita ainda, nesta fase processual onde tem plena aplicação, a questão de apreciação dos indícios à luz da presunção de inocência consagrada no artigo 32º, n.º 2, da CRP/76, de onde emana o princípio de in dubio pro reo.
Para F. Dias [36], “…perante casos de dúvida persistente sobre factos relevantes para a admissibilidade do processo, deve em princípio preferir-se o seu arquivamento à sua prossecução, em homenagem ao conteúdo material do sentido ínsito no princípio da legalidade de toda a repressão penal”.
Também Jorge Noronha e Silveira [37] entende que “o princípio da presunção de inocência deve, por isso, ter também incidência directa na formulação do juízo de probabilidade. Do princípio da presunção de inocência deve decorrer a proibição de submeter uma pessoa a julgamento penal imputando-lhe factos relativamente aos quais persistem dúvidas razoáveis. Só quando essas dúvidas sejam ultrapassadas de forma demonstrada, é que será legítimo afirmar a suficiência dos indícios”.

2.3. Transpondo o conceito de indícios para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, também a doutrina aborda esta temática na correlação indícios/prova indiciária, nos seguintes termos:

Para Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, 1993, pp. 209 e 210:

«A indiciação do crime necessária para aplicação de uma medida de coacção significa “probatio levior”, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação. (...) não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime».

E a fls. 210, mesmo autor e obra:

«Embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos da prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição».

Por sua vez,

«Na correlação de “indícios suficientes” com a de “fortes indícios” – e ainda noções “afins” (v.g. “prova bastante” ou “prova indiciaria) – é de considerar que se trata de categorias ou grandezas equiparáveis, embora não coincidentes na sua revelação fenoménica e contingencial. Neste plano, a noção de “indícios fortes” afirmada, muitas vezes, em primeiro interrogatório judicial, mostra-se inacabada, imediata e antecipadora de um juízo de culpa, em razão de exigências cautelares, enquanto que a noção de “indícios suficientes” requer uma prova mais sustentada, já que alicerçada num juízo de prognose sobre o comportamento da prova que é legítimo esperar em julgamento.» - Carlos Adérito Teixeira, “Indícios suficientes”: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação…, Revista do CEJ, n.º 1, p. 163.

Também equiparando os dois conceitos, cfr. Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pp. 173 e ss..
3. Subsumindo este conceito de “fortes indícios” aos elementos existentes nos autos e fornecidos pelos meios de prova entretanto recolhida nesta fase, somos de concluir pela verificação destes indícios.

Para tanto basta compulsar a transcrição das escutas telefónicas de fls. 66 e seguintes destes autos de recurso[38] bem como o teor do auto de busca de fls. 369 a 371[39] e os fotogramas de fls. 375 a 383[40], para concluir pela existência dos “fortes indícios2 legalmente exigidos.
2. Assente que está a existência dos “fortes indícios”, importa ponderar agora a verificação dos demais pressupostos justificativos da necessidade da medida de prisão preventiva.

Verificando-se o da medida abstracta da pena máxima eventualmente a aplicar, a questão passa a centralizar-se no disposto no artigo 204º, do mesmo código.

Pegando no conjunto dos factos indiciados e todo o circunstancialismo que rodeia a sua prática, pode afirmar-se que o crime indiciado e imputado ao recorrente é grave[41].

É grave na censura social que lhe é feita e é grave nos resultados ou malefícios que causa.

É um meio de obtenção de lucros fáceis mas é sobretudo um meio de destruição da saúde e vida de seres humanos – os consumidores. E concomitante com a destruição do próprio consumidor, destrói-se geralmente todo um agregado familiar e tecido social.

Trata-se ainda de crime de acentuada repercussão social, que gera sempre sentimentos de insegurança e exigência da defesa dos direitos da comunidade bem como a obrigação das instituições/Tribunal em assegurar esses valores.

O processo exige ainda algumas diligências de prova. Dada a natureza e número de arguidos envolvidos, impõe-se um não contacto entre si, de modo a melhor viabilizar a investigação. A fuga ou receio justificado de perigo de fuga do recorrente, é sempre um dado presente a considerar pela gravidade do crime e consequente pena previsível.
Mas o perigo de continuidade da actividade criminosa pelo recorrente não é afastado senão pela medida de prisão preventiva.

Com efeito, qualquer uma das outras medidas, incluindo a obrigação de permanência no domicílio, não impedem ou afastam, de todo, esta actividade, sabendo-se os meios de comunicação e contactos que actualmente existem ao dispor de qualquer cidadão e nomeadamente também do arguido.

A medida de permanência na habitação com vigilância electrónica apenas pode garantir ou controlar os movimentos físicos do recorrente em não se afastar desta. Não garante a não efectivação de telefonemas e outros contactos, não garante a ida de quem quer que seja visitá-lo a casa, quer para levar quer para buscar estupefaciente. É um crime que com bastante facilidade é praticado a partir de casa, usando ou recorrendo a muitos meios actualmente disponíveis para o recorrente. A vigilância electrónica não obsta a todas estas eventuais condutas do recorrente.
Este perigo é tanto mais real se se atender a que o arguido já foi condenado e cumpriu pena pela prática de crime idêntico e de crime de roubo.

A facilitar esta eventual prática existe o facto de outros arguidos, que não ficaram detidos, integrarem a “rede” em que se inclui o recorrente e, de algum modo, proporcionarem-lhe os meios necessários.
3. Importa ainda dizer que é certo que vigora no nosso Direito Constitucional o princípio da presunção da inocência – artigo 32º, nº 2, da CRP/76 – e o princípio do direito à liberdade, de todo o cidadão – artigo 27º, nº 1, também da CRP.

Mas este último princípio é logo excepcionado pelo nº 3, alínea b), deste preceito da CRP, no que respeita à possibilidade de prisão preventiva por fortes indícios da prática de crime doloso.

E por todo o circunstancialismo já apontado – natureza e gravidade dos factos, antecedentes criminais, integração e desempenho em no grupo, perturbação da paz pública e sentimento de insegurança da comunidade e receio ou perigo de fuga, – entendemos que a medida de prisão preventiva se afigura como a necessária e mostra-se adequada e proporcionada à situação, verificando-se todos os pressupostos da sua aplicação e consequente manutenção – artigo 193º, do Código de Processo Penal.

VI

Decisão
Por todo o exposto, decide-se:
Negar provimento ao recurso do arguido ora recorrente B…, confirmando-se a decisão recorrida de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, pelo que se determina a sua manutenção.
Custas a cargo do recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) UCs, sem prejuízo da isenção, se for caso disso, nos termos do artigo 4º, n.º 1, alínea j), do actual Regulamento das Custas Judiciais, aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro.
Porto, 9.2.2011
Luís Augusto Teixeira
Artur Daniel Tarú Vargues da Conceição
______________________
[1] Sendo tais residentes o arguido B… e a companheira G…, também arguida.
[2] Não por mera recusa deste em recebê-la mas simplesmente porque nem sequer lhe foi oferecida.
[3] Reafirma-se que se está a raciocinar no campo da mera hipótese, face à alegação do recorrente e não na base de um facto adquirido.
[4] Entende-se que poderia/deveria ser arguida no prazo de 3 dias e não no próprio acto, como a disposição legal também refere, uma vez que, no momento em que decorreu a busca, o arguido não estava assistido por defensor ou mandatário, técnico do direito. Como tal, não lhe seria exigível, a alegação da eventual irregularidade, no acto.
[5] Correspondente ao anterior nº 4, antes da redacção dada pela Lei nº 26/2010, de 30 de Agosto.
[6] Atribuídas ao Ministério Público enquanto titular do inquérito, da investigação e do exercício da acção penal.
[7] Ac. deste TRP de 23.9.2009, proferido no processo nº 221/08.8JAPRT-F.P1, consultável na base de dados do ITIJ.
[8] O que expressamente se afirma no artigo 194º, nº 6 (redacção actual), do CPP.
[9] Dizendo este:
"Prestando declarações, o arguido pode confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indi­car as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam revelar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sua sanção".
[10] Transcreve-se o teor do auto sobre esta matéria.
[11] Anotando-se que a reprodução de todos os factos é a fórmula que melhor corresponde à intenção do legislador.
[12] Acrescenta-se que não está propriamente em causa o facto de o tribunal dar cumprimento a esta obrigação de informar, remetendo, quer quanto aos factos quer quanto aos elementos probatórios, para a promoção do MºPº. Nada dizendo a lei sobre este concreto aspecto, à partida, não será proibido, logo legal, fazê-lo. O importante é que, com essa remissão para os factos ou elementos constantes da promoção do MP, se dê efectivo cumprimento à informação: que os factos ou elementos sejam perfeitamente identificados e identificáveis no processo e que durante o acto do interrogatório o arguido deles tenha efectivo conhecimento, através do Juiz. Sobretudo quando se entende que os factos a informar são apenas os descritos pelo MP e os elementos são também, à partida, os indicados pelo MP – v. neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição, fls. 390, nota 15. Diz-se, “à partida”, porque também se entende que o juiz pode revelar elementos diferentes dos indicados pelo MP, ponderando e fundamentando esta decisão – v. mesmo autor e obra, fls. 390 e ss, notas 16 e ss..
[13] E desde já se diz, também, que o auto deveria ser inequívoco e expresso sobre tudo o que se passou durante o interrogatório, nomeadamente sobre o cumprimento destes deveres de informação pelo Sr. Juiz. Com prejuízo da transparência e da clarificação, nem sempre é assim, sendo muitos destes autos umas meras “minutas” que não são sequer “adaptadas” ao interrogatório em concreto.
Quando é certo que estas dúvidas facilmente se dissipariam com uma transposição para o auto, de todos os actos que se passam no interrogatório, descrevendo-os de uma forma dinâmica e cronológica. De onde resulta que o presente auto em análise é um “mau exemplo” sobre a prática judiciária em actos tão relevantes, que contendem com as mais elementares garantias do arguido.
[14] Repare-se que não está em causa o arguido ser ou não confrontado, em termos efectivos e práticos, com a informação dos elementos de prova do processo, uma vez que este de livre vontade e no exercício de um direito legítimo, não prestou declarações sobre os factos. O que está em causa, independentemente de o arguido não ter prestado declarações, é a comunicação/informação dos elementos ao arguido, ter sido feita antes do momento daquele decidir se queria ou não falar sobre os factos e sobre os elementos que os corroboram ou suportam.
[15] Sublinhado nosso.
[16] Tudo indicando que o procedimento quanto aos restantes arguidos foi idêntico. Mas essa é matéria que não está aqui em apreciação.
[17] Aí se decide:
“No primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a inobservância do dever de informar o arguido dos elementos do processo que indiciam os factos imputados [art. 141.º, n.º 4, al. d), do CPP] constitui nulidade dependente de arguição e deve ser arguida/suscitada antes que o acto esteja terminado [art. 141.º, n.º 6 e 120.º, n.º 3, al. a), do CPP]”.
[18] Onde se afirma:
“A omissão destas informações no auto de interrogatório é cominada com nulidade dependente de arguição nos termos do artigo 120º, nº 2, alínea d) – nova redacção, uma vez que se trata de acto legalmente obrigatório que não foi praticado. A arguição da nulidade deve ser feita antes que o acto esteja terminado, de acordo com o disposto na alínea a), do nº 3, do artigo 120º”.,
[19] Onde se decide:
“Resta, então, determinar qual a consequência para a falta de informação do detido sobre os factos ou elementos que lhe são imputados. Qual a concreta invalidade, que aquela omissão é susceptível de desencadear e com a qual agora somos confrontados e, por arrastamento, qual a consequência para o facto de no despacho se recorrer a tais factos ou elementos para fundamentar a aplicação da medida de prisão preventiva.
As questões relativas, quer à informação imediata e de forma compreensível das razões da prisão que a Constituição impõe que seja prestada à pessoa privada da liberdade, artigo 27º/4, quer a comunicação do juiz ao arguido das causas que determinaram a detenção, quando se procede ao interrogatório, artigo 28º, quer, por fim, a comunicação a parente ou pessoa de confiança do detido, por esta indicada, da decisão judicial que ordene ou mantenha uma medida de privação de liberdade, artigo 28º/3, são comandos que nada têm a ver com a fundamentação do acto judicial que decreta a medida de coacção, a justificar, assim, um tratamento diverso, menos rigoroso e gravoso, a apontar, assim, para a verificação de mera irregularidade, artigo 123º C P Penal.
[20] Que diz o seguinte:
“Prestando declarações, o arguido pode confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida de coação”.
[21] Sem prejuízo de entendermos que o melhor método e momento de alegar a irregularidade será o de o fazer de imediato, não se pode olvidar que a lei faculta essa possibilidade no próprio acto. Ora, sendo o acto, o acto de interrogatório, globalmente considerado, nada impedirá que a irregularidade possa ser arguida antes de terminar este dito acto.
[22] Diz este preceito que constitui nulidade dependente de arguição “ a insuficiência do inquérito ou da instrução por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios…”.
[23] De resto, quer para quem entende que se trata de mera irregularidade que deve ser arguida no acto ou para quem entende que se trata de nulidade, também arguível no acto, o efeito ou consequência jurídica é o mesmo, quer em caso de arguição quer de não arguição:
Se arguidas, têm como efeito imediato, o seu cumprimento, ou seja, obriga a que a informação seja feita ou prestada.
Se não arguidas, ficam sanadas.
[24] As referências numéricas têm em conta a actual redacção, sendo certo que à anterior corresponderiam os nºs 4 e 5.
[25] Sublinhado nosso.
[26] V. entre outros, os acs. do TC nºs 189/99 e 147/2000, com destaque, neste, do voto de vencido e Paulo Pinto de Albuquerque in ob. citada, fls. 553, onde se pronuncia pela admissibilidade da fundamentação do despacho com remissão para os motivos da promoção do MP ou para peças processuais, desde que nele (despacho) transpareça que o Juiz ponderou e assumiu pessoalmente os ditos motivos.
[27] Embora se deva levar em conta que no presente processo os arguidos não prestaram declarações.
Mas o que se pretende realçar é essencialmente a clareza e plenitude do despacho quanto aos elementos e fundamentação que o de3vem integrar.
[28] Que diz o seguinte:
"…não podem ser considerados para funda­mentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial (...) quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o nº 3".
[29] Aí se incluindo o disposto na alínea b), que diz o seguinte:
"a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coac­ção ou de garantia patrimonial (...) contém, sob pena de nulidade a indicação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados...".
[30] Sublinhado nosso.
[31] V. os acs. deste Tribunal da Relação do Porto de 3-6-2009, e 10.10.2010, proferidos nos processos n.º 1324/08.47PPRT-A.P1 e 760/09.3.PPPRT-A.p1, respectivamente , consultáveis na base de dados do ITIJ.,
[32] Com a nova redacção do artigo 202º do CPP dada pela Lei 26/2010, de 30 de Agosto, já em vigor.
[33] In Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra, 1968, fls. 39.
[34] In Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, 1º volume, página 133.
[35] V. Ac. Rel. Coimbra de 10.1.1990, in CJ., ano XV, Tomo 1º, página. 274 e SS. e Ac. Rel. Lisboa de 24.1.1990, in CJ, ano XV, Tomo 2º, página 181 e SS..
[36] In Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, 1º volume, página 215.
[37] Sobre “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais (coordenação de Fernanda Palma), realizadas na FD de Lisboa, entre 3 e 6 de Novembro, Almedina, Coimbra, 2004 (uma das referências do parecer do Exmº Sr. P.G.A., supra mencionado),
[38] Onde são referenciadas várias conversas entre o recorrente e os arguidos H…, C… e D… sobre a necessidade ou o arranjar da “branca” e “castanha”, sendo que a fls. 78 um desconhecido (comprador), reclama para o arguido B… da qualidade da do dia anterior (ontem), garantindo-lhe o recorrente outra de melhor qualidade – que o comprador iria buscar a cada do recorrente. E poder-se-ia continuar com a referência a outras situações relatadas nas transcrições.
[39] Onde se relata e descreve o modo como decorreu a busca e as embalagens de estupefaciente – heroína e cocaína – encontradas, balança de precisão com vestígios de estupefaciente, vários telemóveis, várias notas de euros, sendo certo que já supra se apreciou a conduta do recorrente ao atirar para a sanita as duas embalagens de estupefaciente que lançou
[40] Referentes às várias embalagens de estupefaciente, ao local onde foram encontradas, incluindo a sanita e caixa de esgotos e dos objectos.
[41] Qualificado actualmente de “criminalidade altamente organizada” – artigo 1º, alínea m), do CPP.”

Falta de fundamentação de autoridade administrativa

 

Acórdão da Relação do Porto, de 09-02-2010

Processo: 266/10.8TPPRT.P1

N.º Convencional: JTRP000

Relator: JOAQUIM GOMES

Nº do Documento: RP20110209266/10.8TPPRT.P1

1ª SECÇÃO

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/1111e9d7408ede808025783b004dd8be?OpenDocument

Sumário parcial:

“I - A falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa constitui mera irregularidade, que só pode ser arguida perante a autoridade que a proferiu….”

Extracto:

“…temos que distinguir, pelas razões anteriormente enunciadas em proémio, as decisões administrativas, das decisões judiciais, no âmbito do processo de contra-ordenação, muito embora este procedimento esteja sujeito ao princípio da legalidade [43.º RGCOC], sendo o processo penal subsidiário daquele processo [41.º, n.º 1 RGCOC].

Como o RGCOC não estabelece qualquer regime para a infracção ou inexecução dos actos processuais contra-ordenacionais, convém ter presente o princípio da legalidade dos actos processuais penais e da tipicidade dos seus vícios, que se encontra consagrado no art. 118.º do Código de Processo Penal.

Assim e segundo o seu n.º 1 “A violação ou inobservância das leis do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.

Daí que os casos de falta ou deficiente motivação de uma sentença ou de um acórdão correspondam a uma nulidade [379.º; 420.º, 4 C. P. P.], mas o mesmo já não se passa, por mero efeito de ricochete, com qualquer outra decisão judicial que seja afectada por semelhante vício, havendo a necessidade que tal consequência esteja expressamente contemplada [vg medidas de coacção ou de garantia patrimonial (194.º, n.º 4 C. P. P.); decisão instrutória (308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3; 309.º C. P. P.)].

Por maioria de razão, o vício da falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa corresponde a uma irregularidade e não a uma nulidade.

Por sua vez, a nulidade das sentenças ou acórdãos, por não integrar o catálogo das insanáveis do art. 119.º C. P. P. e não estando especificadamente prevista como tal, está dependente de ser suscitada, podendo o sê-lo, em sede de recurso [120.º, n.º 1 e 379.º, n.º 2 C. P. P.].

O mesmo ocorre com aquelas outras nulidades que não se encontrem sanadas [410.º, n.º 3 C. P. P.], como sucede com as nulidades absolutas ou insanáveis.

Mas se se tratar de um outro vício, como a nulidade relativa ou a irregularidade, seja de uma decisão judicial, seja de uma decisão administrativa, a mesma tem que ser previamente suscitada perante a autoridade judicial ou administrativa que a praticou, não podendo ser, desde logo, fundamento de recurso, sob pena de se considerarem tais vícios sanados, por não terem sido atempadamente suscitados [120.º, 121.º e 123.º C. P. P.].”

Crime de dano: bem comum do casal

 

Acórdão da Relação de Coimbra, de 02-02-2011

Processo:157/08.2GEACB.C1

Relator: ALBERTO MIRA

Sumário:

1. No crime de dano a destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrange todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa.

2. Se os cônjuges são, os dois, titulares do direito de propriedade sobre os bens que integram a comunhão, então tais bens não podem, enquanto a comunhão persistir, ter a natureza de coisa alheia, em relação a qualquer cônjuge e, por isso, a sua danificação por um dos cônjuges não preenche em relação a este o elemento constitutivo do tipo legal de crime de dano “coisa alheia”.

Texto parcial:

“…Daí que seja chegado o momento de indagar a verificação do crime de dano.
Dispõe o artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal:
«Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
As modalidades de acção configuradas na norma traduzem-se em destruir, danificar ou tornar não utilizável coisa alheia.
A destruição determina a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância. Neste sentido “destruir” consiste em deitar abaixo, demolir, devastar, derrubar, arrasar, fazer desaparecer, arruinar, ou seja, traduz o caso que determina a imprestabilidade da coisa.
Quanto à danificação, abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente. Configura, deste modo, um acto que causa uma “destruição parcial” da coisa. Constitui exemplo marcante de danificação riscar ou amolgar um automóvel ou arrancar-lhe o emblema.
Por seu lado, “inutilizar” abarca as acções que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função. O que se exige sempre é a referência à corporeidade da coisa. Esta conduta típica pode consubstanciar uma lesão da substância ou da integridade física (neste caso, confunde-se com a acção “danificar”), ou em retirar uma parte ou peça da coisa ou acrescentar uma coisa ou substância perturbadora. Quanto ao critério definidor da função da coisa a posição actual assenta numa solução eclética, ou seja, no “primado do critério do proprietário, temperado pela exigência da generalização”.
Em síntese conclusiva, a destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrangem todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa.
Revisitando os factos dados como provados, dúvidas não existem de que o arguido, ao amolgar a porta traseira do veículo automóvel de matrícula 89-14-FV, pertencente ao património colectivo do arguido e da assistente, preencheu a modalidade típica “danificar”.
O punctuns saliens da questão está, no entanto, em saber se a coisa danificada constitui (ou não) coisa alheia.
Como esclarece Mota Pinto, o património colectivo não se confunde com a compropriedade ou propriedade em comum. «Na propriedade em comum ou compropriedade (…) estamos perante uma comunhão por quotas ideais, isto é, cada proprietário ou consorte tem direito a uma quota ideal ou fracção do objecto comum.
(…).
O património colectivo pertence em bloco, globalmente, ao conjunto de pessoas correspondente. Individualmente nenhum dos sujeitos tem direito a qualquer quota ou fracção; o direito sobre a massa patrimonial em causa cabe ao grupo no seu conjunto.
(…)
Um caso em que parece divisar-se a figura do património colectivo no nosso direito é a comunhão conjugal».
No mesmo sentido, discorre Manuel de Andrade que, nos patrimónios colectivos, de que é exemplo a comunhão conjugal, várias pessoas são titulares de um património que globalmente lhes pertence. Trata-se de “uma comunhão de mãos reunidas” “ou de mão comum”. A massa patrimonial pertence em bloco e só em bloco a todas essas pessoas, à colectividade por ela formada.
Também Pereira Coelho manifesta igual posição, quando escreve sobre o assunto em análise:
O património colectivo define-se como «um património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas em quotas ideais, como na compropriedade.
Enquanto, pois, esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas.
Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito,  o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum. Esta particular fisionomia do património radica no vínculo pessoal que liga entre si os membros da colectividade; por isso, o património colectivo deve subsistir como tal enquanto durar aquele vínculo.
(…)».
Já o Professor Pires de Lima considerava a comunhão de bens como uma forma de propriedade colectiva, e nesta há um só direito de propriedade de que são titulares vários indivíduos.
No domínio da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem prevalecido maioritariamente a posição de que os bens que compõem o património colectivo do casal não podem ser considerados “alheios” para o preenchimento dos tipos de crime de dano, furto ou abuso de confiança.
Os fundamentos invocados – que merecem a nossa inteira razão – radicam nos conceitos já apresentados. Se os cônjuges são, os dois, titulares do direito de propriedade sobre os bens que integram a comunhão, então tais bens não podem, enquanto a comunhão persistir, ter a natureza de coisa alheia, em relação a qualquer cônjuge e, por isso, a sua danificação por um dos cônjuges não preenche em relação a este o elemento constitutivo do tipo legal de crime de dano “coisa alheia”.
Pelo exposto, o arguido tem de ser absolvido do imputado crime de dano, prevalecendo, tão só, a condenação do mesmo, pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 220 dias de multa, à razão diária de € 5…”