terça-feira, 1 de março de 2011

Crime de dano: bem comum do casal

 

Acórdão da Relação de Coimbra, de 02-02-2011

Processo:157/08.2GEACB.C1

Relator: ALBERTO MIRA

Sumário:

1. No crime de dano a destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrange todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa.

2. Se os cônjuges são, os dois, titulares do direito de propriedade sobre os bens que integram a comunhão, então tais bens não podem, enquanto a comunhão persistir, ter a natureza de coisa alheia, em relação a qualquer cônjuge e, por isso, a sua danificação por um dos cônjuges não preenche em relação a este o elemento constitutivo do tipo legal de crime de dano “coisa alheia”.

Texto parcial:

“…Daí que seja chegado o momento de indagar a verificação do crime de dano.
Dispõe o artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal:
«Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
As modalidades de acção configuradas na norma traduzem-se em destruir, danificar ou tornar não utilizável coisa alheia.
A destruição determina a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância. Neste sentido “destruir” consiste em deitar abaixo, demolir, devastar, derrubar, arrasar, fazer desaparecer, arruinar, ou seja, traduz o caso que determina a imprestabilidade da coisa.
Quanto à danificação, abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente. Configura, deste modo, um acto que causa uma “destruição parcial” da coisa. Constitui exemplo marcante de danificação riscar ou amolgar um automóvel ou arrancar-lhe o emblema.
Por seu lado, “inutilizar” abarca as acções que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função. O que se exige sempre é a referência à corporeidade da coisa. Esta conduta típica pode consubstanciar uma lesão da substância ou da integridade física (neste caso, confunde-se com a acção “danificar”), ou em retirar uma parte ou peça da coisa ou acrescentar uma coisa ou substância perturbadora. Quanto ao critério definidor da função da coisa a posição actual assenta numa solução eclética, ou seja, no “primado do critério do proprietário, temperado pela exigência da generalização”.
Em síntese conclusiva, a destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrangem todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa.
Revisitando os factos dados como provados, dúvidas não existem de que o arguido, ao amolgar a porta traseira do veículo automóvel de matrícula 89-14-FV, pertencente ao património colectivo do arguido e da assistente, preencheu a modalidade típica “danificar”.
O punctuns saliens da questão está, no entanto, em saber se a coisa danificada constitui (ou não) coisa alheia.
Como esclarece Mota Pinto, o património colectivo não se confunde com a compropriedade ou propriedade em comum. «Na propriedade em comum ou compropriedade (…) estamos perante uma comunhão por quotas ideais, isto é, cada proprietário ou consorte tem direito a uma quota ideal ou fracção do objecto comum.
(…).
O património colectivo pertence em bloco, globalmente, ao conjunto de pessoas correspondente. Individualmente nenhum dos sujeitos tem direito a qualquer quota ou fracção; o direito sobre a massa patrimonial em causa cabe ao grupo no seu conjunto.
(…)
Um caso em que parece divisar-se a figura do património colectivo no nosso direito é a comunhão conjugal».
No mesmo sentido, discorre Manuel de Andrade que, nos patrimónios colectivos, de que é exemplo a comunhão conjugal, várias pessoas são titulares de um património que globalmente lhes pertence. Trata-se de “uma comunhão de mãos reunidas” “ou de mão comum”. A massa patrimonial pertence em bloco e só em bloco a todas essas pessoas, à colectividade por ela formada.
Também Pereira Coelho manifesta igual posição, quando escreve sobre o assunto em análise:
O património colectivo define-se como «um património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas em quotas ideais, como na compropriedade.
Enquanto, pois, esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas.
Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito,  o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum. Esta particular fisionomia do património radica no vínculo pessoal que liga entre si os membros da colectividade; por isso, o património colectivo deve subsistir como tal enquanto durar aquele vínculo.
(…)».
Já o Professor Pires de Lima considerava a comunhão de bens como uma forma de propriedade colectiva, e nesta há um só direito de propriedade de que são titulares vários indivíduos.
No domínio da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem prevalecido maioritariamente a posição de que os bens que compõem o património colectivo do casal não podem ser considerados “alheios” para o preenchimento dos tipos de crime de dano, furto ou abuso de confiança.
Os fundamentos invocados – que merecem a nossa inteira razão – radicam nos conceitos já apresentados. Se os cônjuges são, os dois, titulares do direito de propriedade sobre os bens que integram a comunhão, então tais bens não podem, enquanto a comunhão persistir, ter a natureza de coisa alheia, em relação a qualquer cônjuge e, por isso, a sua danificação por um dos cônjuges não preenche em relação a este o elemento constitutivo do tipo legal de crime de dano “coisa alheia”.
Pelo exposto, o arguido tem de ser absolvido do imputado crime de dano, prevalecendo, tão só, a condenação do mesmo, pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 220 dias de multa, à razão diária de € 5…”

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