terça-feira, 29 de maio de 2007

Adolescência, Socialização e Delinquência

Adolescência, socialização e delinquência.


I .
1. A delinquência juvenil é o fenómeno mais importante dentro do mundo do delito. Senão vejamos:
- a quase totalidade dos reincidentes foram delinquentes juvenis;
- é raro iniciar-se uma carreira criminosa na idade adulta;
- para o delinquente juvenil o crime transcende o simples "carácter profissional" para se converter em modo de vida;
- a um incremento da delinquência juvenil corresponderá no futuro uma maior delinquência em termos gerais.
Por outro lado, denota-se hoje um incremento da delinquência juvenil (que tem vindo a fazer-se sentir desde as grandes guerras mundiais), tanto em volume como em gravidade. E o que é preocupante é que o autor se inicia cada vez mais com idade mais baixa.

2. Se para o direito o delinquente é apenas, por exigências do princípio da legalidade e de segurança jurídica, aquele que comete uma infracção à lei penal, já à simplicidade da definição jurídica corresponde uma complexidade de noções psicológicas, psiquiátricas e sociológicas utilizadas para compreender essa forma de inadaptação social.
Ora, o objecto deste trabalho é precisamente analisar os factores e as diversas manifestações da delinquência juvenil, cuja importância já se realçou.

II. Factores
1. Factores Individuais
1.1. É conhecida a teoria do criminoso nato, desenvolvida por César Lombroso no fim do século XIX. Para ele, uma grande parte dos delinquentes eram-no em consequência de uma constituição especial que os caracterizava desde o nascimento. Impregnado das ideias de Darwin sobre a selecção natural das espécies vivas, pensava ele, em razão das particularidades morfológicas minuciosamente estudadas em vários milhares de sujeitos, que esses malfeitores eram seres que ainda não tinham acabado a evolução para a humanização e que, por isso mesmo, eram necessariamente inaptos para obedecer a leis adaptadas a homens mais evoluídos do ponto de vista biológico e psíquico.
Essa ideia tem sido objecto de várias críticas.
Contudo, vários estudos estatísticos demonstram uma maior frequência nos delinquentes de uma anomalia cromossómica: a duplicação do cromossoma Y, que caracteriza o sexo masculino.
A fórmula genética destes sujeitos é 47 XYY ( sabe-se que a mulher normal possui em cada célula do seu organismo dois cromossomas sexuais idênticos – XX – ,enquanto no homem os dois cromossomas sexuais são diferentes – XY.
Repare-se que certas características são comuns aos delinquentes portadores desta anomalia cromossómica:
· são de estatura elevada ( mais de 1, 80 m );
· o nível intelectual deles é pouco inferior à média;
· o seu comportamento é sobretudo inibido e imaturo; e
· os actos delituosos que cometem estão muitas vezes marcados por forte agressividade e ligados à sexualidade.

Estas considerações foram tomadas em consideração por certos tribunais, no estrangeiro, para atenuar a responsabilidade de certos criminosos portadores desta anomalia, o que suscitou viva discussão. Com efeito, se parece quase certo que a frequência desta fórmula cromossomática é efectivamente superior em certos delinquentes, ainda não dispomos de trabalhos que estabeleçam, ao invés, a frequência da inadaptação nos sujeitos XYY.
Seja como for, estudos psicológicos – incidindo embora sobre um pequeno número de casos – indicam que o risco está muito longe dos 100 % , pois certo número desses indivíduos fazem uma vida inteiramente normal. A opinião que podemos avançar no estado actual dos nossos conhecimentos é que existem talvez uma ou duas constituições genéticas que favorecem a inadaptação social, mas não podemos considerá-las como fatalidades.
Por outro lado, não há uma perfeita coincidência entre delinquência e inadaptação social.
Interessante será referir que um estudo que se propunha despistar, por meio de exames sistemáticos, desde o nascimento, os sujeitos XYY, e seguir-lhes a evolução, foi interdito nos USA em 1979.
1.2. A patologia mental
A ideia de que a inadaptação e a delinquência são formas de patologia mental também não é nova e encontra-se com frequência. É habitual mencionar, a este respeito:
- a epilepsia;
- a debilidade mental;
- as perturbações da personalidade; e
- as psicoses.
Contudo, tais perturbações psicopatológicas ( cuja despistagem é importante em cada caso individual, tanto mais que existe a possibilidade de um tratamento apropriado ) nem sempre se encontram nos jovens inadaptados sociais. De facto, salvo no que respeita à atitude deles em relação à moral e à transgressão das regras estabelecidas, a maior parte não se diferencia psicologicamente da média dos indivíduos. Esta verificação deve ser, todavia, um pouco atenuada.
1.3. As rebeldias da insegurança
Parece-me que são estas que devem ocupar lugar de primazia entre os factores individuais que podem favorecer a delinquência.
As rebeldias da insegurança podem revestir diversas modalidades:
- rebeldia regressiva;
- rebeldia agressiva; e
- rebeldia transgressiva.
Trata-se de rebeldias defensivas ( defesa do “eu ameaçado” ), negativas e de simples recação, que nascem de sentimentos de auto-afirmação, de insegurança e de imaturidade.1.3.1.a). A atitude de auto-afirmação

A adolescência é um período de crescimento que se traduz, sobretudo, no nascimento da intimidade e descoberta do «eu». Neste período a consciência infantil, ligada ao colectivo, é substituída por uma consciência pessoal. Por outro lado, o adolescente adquire capacidades novas:
- o pensamento lógico; e
- o sentido crítico.
Ora, o adolescente está normalmente interessado em estrear as suas capacidades novas e em pô-las ao serviço das necessidades de «auto-realização»:
- «ser eu mesmo» ( identidade pessoal );
- «estar comigo mesmo » ( intimidade );
- «valer-me a mim mesmo» ( auto-realização );
- «poder escolher e decidir» ( autonomia ); e
- «amar e ser amado» ( aceitação ).
Esta atitude de auto-afirmação, que se aponta como estando na origem das rebeldias da insegurança, não é outra coisa que a afirmação da personalidade nascente.
Mas se a atitude de auto-afirmação é, em si mesma, necessária ao desenvolvimento da personalidade, contudo, corre o risco de crescer desmesuradamente e de radicalizar-se perante determinadas atitudes dos adultos ou certas influências do ambiente. Surgem então:
- a obstinação;
- o espírito de contradição;
- a busca de independência; e
- a rebeldia perante as normas estabelecidas.1.3.1.b). O sentimento de insegurança

Este sentimento de insegurança é característico da adolescência, para ele contribuindo:
- a enorme desproporção que existe entre a meta proposta e os meios disponíveis para alcançá-la ( dificuldade do objectivo); e
- por outro lado, o que é ainda um dos conteúdos possíveis da afirmação anterior, o adolescente debate-se com o problema de saber como comportar-se perante situações novas e mais difíceis, isto é, «como adaptar-se ao seu novo papel na vida».
Este sentimento de insegurança tem, pois, a ver com a falta de recursos e de experiência, com a ausência de metas claras e, em algumas ocasiões, a incompreensão dos mais velhos.1.3.1.c). A imaturidade

São suas manifestações:
- o conceito de liberdade como simples ausência de limitações ou condicionalismos externos;
- a falta de vontade: os adolescentes são mais pessoas de projectos do que de realizações – custa-lhes muito realizar o que decidiram e ser perseverantes nas tarefas que empreenderam;
- o radicalismo nos juízos; e
- a ausência de raízes.
Estes dois últimos aspectos são consequência tanto da pouca experiência prática da vida como da carga emocional que costuma acompanhar as suas acções.1.3.2. Caracterizemos agora as rebeldias da insegurança:

Elas estão relacionadas com a sensação de vazio ou carência de sentido da própria existência.
A rebeldia regressiva nasce do medo de agir e traduz-se numa atitude encolhida, de reclusão em si mesmo. Equivale muitas vezes a um regresso à vida despreocupada e livre de responsabilidades da infância – e ao abrigo deste refúgio adopta-se uma atitude de protesto mudo e passivo contra tudo.
Este tipo de rebeldia é próprio, sobretudo, da primeira fase da adolescência (puberdade ).
O púbere começa a deixar de ser menino, sentindo-se admirado e surpreendido com as mudanças do seu corpo e forma de ser.
Tudo isto pode levar ao medo de agir, com a consequente tentação de «regressar» psicologicamente ao mundo infantil que se converte agora num refúgio. A partir deste refúgio o púbere olhará o mundo dos adultos com uma hostilidade silenciosa.
A rebeldia agressiva expressa-se de forma violenta, sendo própria do fraco, daquele que não podendo suportar as dificuldades que surgem da vida diária, tenta aliviar o seu problema fazendo sofrer os outros.
Este tipo de rebeldia costuma aparecer na adolescência média, fase em que se produz a ruptura definitiva com a infância e a busca de novas formas de comportamento. Do «despertar do eu» passa-se à «descoberta consciente do eu». A análise de si mesmo será o ponto de partida para o redescobrimento e crítica do mundo que o rodeia. É a idade da impertinência ou fase negativa.
A rebeldia transgressiva traduz-se em arremeter contra as normas da sociedade, ou por egoísmo e entidade própria ou pelo simples prazer de quebrá-las.
No seu desenvolvimento podem ser decisivos certos problemas de personalidade, um clima ruim na família e determinadas influências negativas do ambiente.
Este tipo de rebeldia pode surgir também na adolescência média.2. Factores do meio

Os factores ligados ao meio sociológico e familiar desempenham um papel considerável. Ressalta esse facto dos inquéritos estatísticos que são, porém, de interpretação delicada, pois esses factos interpenetram-se muitas vezes de tal maneira que é difícil isolar um só que seja para estabelecer com precisão a sua influência. É ainda de acrescentar que as conclusões destes inquéritos nem sempre são concordantes.2.1. O nível sócio-económico

Numerosos estudos mostram que a inadaptação social e a delinquência dos jovens são mais frequentes nas classes sociais mais desfavorecidas. Esta diferença deve ser todavia matizada. Com efeito, ela não é tão marcante para todos os tipos de actividades delinquentes: se é clara para os delitos de violência e a para a delinquência de grupo, é menos clara e até inexistente para as toxicomanias, por exemplo. É possível também que um maior número de jovens delinquentes dos meios favorecidos escapem, graças à protecção da família, à acção policial e, por isso mesmo, às estatísticas.
A pobreza é um factor do crime. Não é, certamente, a causa do crime, pois há muitos pobres que não delinquem. A pobreza releva indirectamente, pelas condições frequentemente marginais que impõe, nomeadamente, a promiscuidade e a formação de grupos de “subculturas” nas zonas das barracas.2.2. A urbanização

A urbanização é acompanhada na maior parte dos países por um crescimento da inadaptação juvenil e delinquência.
Concorrem para este aumento vários elementos:
- a maior complexidade da vida urbana ( aumentaram as ocasiões de transgredir os múltiplos regulamentos );
- as exigências da sociedade industrial, que exclui dos circuitos económicos os sujeitos portadores de deficiências, por pequenas que sejam;
- as solicitações numerosas ( lojas de grande área, necessidades suscitadas por uma publicidade omnipresente, etc. ) associadas ao anonimato, que torna mais fácil a passagem ao acto;
- enfim, as deslocações de população, que fazem desaparecer os quadros tradicionais de vida e provocam a formação, na periferia das grandes cidades, de verdadeiras zonas “subculturais”, que diferem de maneira mais ou menos pronunciada do resto do grupo social, no seu modo de vida e, por vezes, também na adesão às regras morais;
- saliente-se ainda as condições de trabalho, sobretudo no que diz respeito às do transporte dos pais, que aumenta o distanciamento e a falta de tempo disponível.
2.3. As perturbações sociais

Observa-se geralmente um decréscimo da delinquência tanto adulta como juvenil, no início dos conflitos armados. Este decréscimo verificado nas estatísticas oficiais pode ser apenas um reflexo das perturbações administrativas habituais nesses períodos ( desorganização dos serviços de polícia, falta de registo dos delitos, etc. ). Por consequência, quando o estado de guerra dura ( como sucedeu com os conflitos mundiais de 1914-1918 e 1939-1945 ), a delinquência, e em especial a dos jovens, aumenta nitidamente.
Para os sociólogos, a síntese destes diferentes factores encontra-se na noção de anomia, que traduz a tendência para a desorganização social. A sociedade está com efeito marcada pela existência, no seu seio, de grupos diferentes do ponto de vista cultural e económico e, todavia, submetida a uma única regra de vida. Resulta destas distorções uma falta de coesão do corpo social, que será um dos factores essenciais da delinquência.2.4. O meio familiar

O papel desempenhado pela dissociação dos lares é confirmado por numerosos inquéritos. Mas mesmo fora da ruptura completa da célula familiar, a ausência da relação de boa qualidade entre os membros da família, o elitismo ou a patologia mental dos pais – todos eles factores bem conhecidos, que misturam mais ou menos carência afectiva e carência educativa – levam muitos adolescentes a procurar noutra parte compensações afectivas ou uma valorização.
Note-se que é grande a percentagem de delinquentes juvenis que não se sentem amados pelas suas famílias.
Tem-se observado também que muitos dos delinquentes provêm de famílias numerosas sem meios económicos, são filhos únicos ou filhos primogénitos.
As famílias desses jovens delinquentes têm, na sua maior parte, baixo nível de formação. Por outro lado, os seus planos para a progressão na carreira profissional não existem.
É frequente em famílias de delinquentes a punição corporal e severa, injustificada, utilizada muitas vezes como meio de “ensinar”.
O desemprego da mãe é um factor mais negativo do que o seu emprego: o emprego implica um melhor estatuto material e mentalidade mais aberta.
Contudo, o absentismo da mãe por razões de trabalho reforça o sentimento de insegurança e de abandono da criança.
As carências afectivas precoces são consideradas por um grande número de autores um factor essencial favorável. Elas são consequência de separações precoces dos pais, do mau comportamento da mãe ou do abandono da criança sem substituto materno válido.
Nas sociedades modernas tem-se observado a desvalorização progressiva do estatuto dos pais enquanto autoridade, desvalorização essa agravada pelo seu estatuto profissional muitas vezes pouco atraente e pela sua atitude muitas vezes demissionária perante os pedidos, exigências ou problemas da criança.
Os adultos são mais incitados ( pelas imagens impostas pelos mass media e publicidade ) a assemelharem-se aos filhos do que o inverso.
A incapacidade em que se encontram certos pais em assumirem plenamente o seu papel educativo, numa sociedade em que a moral é incerta, contestada, coincide com toda uma contestação do valores tradicionais, sem que um consenso se tenha ainda feito à volta de uma ética nova. Seja qual for a posição que se adopte a este respeito, temos de reconhecer que o desaparecimento das referências morais deixa um vazio que não favorece a estabilização dos jovens.
Diga-se ainda, repetindo, que as condições materiais de vida demasiadamente fáceis com carências afectivas e educativas podem favorecer a delinquência.
A falta de vigilância dos pais, sobretudo durante os tempos livres, é também apontada como sendo um factor negativo.
É grande também a percentagem de pais analfabetos com filhos delinquentes.
Permitimo-nos reproduzir aqui uma parte do estudo realizado pela equipa do Instituto de Reinserção Social do Círculo Judicial da Figueira da Foz, datado de 19.03.2001, sob o título “Contributos para a Avaliação das Situações de Delinquência e de Risco no Concelho da Figueira da Foz”:. “...Nos resultados do grupo em estudo, a estrutura familiar apresenta-se desorganizada e incapaz de fornecer aos menores modelos de referência adequados ao seu desenvolvimento harmonioso, ascendendo aos 87,7 % as famílias caracterizadas com padrões disfuncionais. Nestas famílias apesar de estarem quase sempre associadas problemáticas múltiplas procurámos evidenciar a problemática mais frequente e que se entendeu como relevante na sua incidência e intensidade. Assim a avaliação diagnóstica dos sistemas familiares, revelam-nos por ordem decrescente:
· Problemática alcoólica;
· Pobreza psicológica que se reporta às famílias com dificuldades sérias na gestão de recursos pessoais, sociais e económicos. Há, de uma forma geral, uma situação sócio-económica desajustada à satisfação das necessidades familiares básicas e logicamente às expectativas que os estímulos ao consumo geram. São famílias que traduzem dificuldades no desempenho dos papeis sociais e na assunção das responsabilidades/compromissos, mantendo uma dependência estrutural das prestações de acção social. Nestas famílias a coesão familiar não aparece prejudicada já que existem elos afectivos entre os seus componentes, todavia é relevante a falta de consistência na disciplina e controle parental.
· Práticas de prostituição – a singularidade festas famílias é que estão organizadas em sistema fechado e com dificuldade de responderem aos estímulos de mudança. De uma forma geral os progenitores estão associados a sub-culturas marginais e as crianças crescem isoladas socialmente.
Esta problemática tem por vezes contornos difusos passando as crianças despercebidas quando da sua frequência no 1º ciclo de escolaridade, já que em termos objectivos de uma forma geral as necessidades e bens básicos apresentam-se como bem preenchidos.
· Má qualidade na relação afectiva – que se traduz na privação total dos laços afectivos normais que toda a criança tem direito a receber duma mãe ou dum substituto materno. As situações de maus tratos estão associadas, numa fase precoce do desenvolvimento destas crianças, à incapacidade das mães em estabelecerem relações afectivas e calorosas, não conseguindo lidar com as situações de stress que a interacção da díade suscita.
· Toxicodependência – (...) Na intervenção efectuada nestas crianças tiveram de ser retiradas das famílias de origem (...). O comportamento toxicodependente encontra-se, por vezes, associado a mães com práticas de prostituição, contudo, nestes casos não se determinou esta variável como factor principal de disfuncionalidade.
· Reclusão do progenitor – a perda neste caso do pai associada à incapacidade materna ou outras figuras de substituição determinaram o internamento das crianças.
· Saúde mental onde estão presentes patologias psiquiátricas.
· Alcoolismo e saúde mental enquanto problemáticas associadas.
· Falta de controle parental. Este indicador apesar de estar associado à restantes famílias estudadas com padrões de disfuncionalidade, foi em dois casos isolado, já que apesar de estarem ultrapassadas outras problemáticas e nomeadamente não existindo deficiente enquadramento sociocultural estas famílias revelaram de uma forma determinante incapacidade na função reguladora/normativa.
· Fragilidade sociocultural respeitante a famílias detentoras de algum grau de coesão e socialmente integradas mas com precárias condições de vida e cujas preocupações estão orientadas para as necessidades de sobrevivência.
Trata-se assim de um indicador menos prevalecente, o que nos leva a concluir que de acordo com o diagnóstico da situação familiar a componente sócio-económica e cultural é a menos dominante, já que apesar de estar presente noutras famílias do estudo, ela não determinou por si própria o padrão de disfuncionalidade...”.
2.5. A influência dos mass media e de certo tipo de literatura

Por vezes, este tipo de influência pode ser negativa em jovens de espírito sugestionável. Com efeito, nota-se, por vezes, que os jovens não só copiam as façanhas dos personagens televisivos e do cinema, personagens que glorificam muitas vezes a violência, o erotismo e o desprezo pelas instituições sociais, como inclusivamente lhes adoptam os apelidos.
Certa espécie de literatura, sobretudo pornográfica, pode, ou melhor, exerce uma influência preocupante sobre os jovens, contestando toda a ideia de sexualidade em função do amor, para a converter em simples instrumento de prazer.
O cinema, a publicidade e a televisão contribuem também muitas vezes para a criação de um mundo jovem oposto ao dos adultos e que se traduz por modas no vestuário e tempos livres específicos, tendentes a deixar crer que os adolescentes possuem um estatuto à parte e que a juventude é um fim em si. Isto tem muito a ver com a exploração do poder de compra dos adolescentes.2.6. Outros factores ou consequências da inadaptação social relativos ao meio ou com ele relacionados

- É frequente observar-se nos delinquentes juvenis um coeficiente de inteligência indicativo de deficiência;
- O delinquente juvenil geralmente alimenta-se mal e não tem hábitos de higiene;
- É frequente observar-se nos delinquentes juvenis: medo do futuro, completa indecisão, imaturidade, imediatismo, sugestibilidade, falta de resistência a estímulos criminógenos e presença de neurose de ansiedade, traumas infantis, traços paranóicos e esquizóides,
- Muitos delinquentes desconhecem o fim da mãe, não conhecem os pais ou são órfãos;
- A um aumento da religiosidade do jovem corresponde uma conduta melhor, regra geral;
- A insuficiência da frequência escolar contribui para lançar crianças na rua, onde vivem em bandos ou grupos marginais, muitas vezes dirigidos por um chefe mais velho[1];
- As faltas e a vagabundagem podem levar o jovem à delinquência de necessidade ( furtos e roubos de subsistência ) e, por outro lado, não raro estes jovens procuram refúgio em comunidades marginais e, por vezes, fazem nelas a sua primeira experiência de toxicomania;
- O trabalho a tempo parcial tem consequências nefastas sobre os projectos de carreira a longo prazo.
- Factores importantes são também a droga, o álcool, a instabilidade laboral e a atracção pela vida fácil.2.7. As amizades nocivas

As amizades nocivas têm sido apontadas como o factor principal, segundo inquéritos feitos a delinquentes juvenis, da delinquência juvenil.
Elas assumem particular relevo quando o jovem delinquente se encontra inserido num bando ou num grupo de delinquentes.
Este é um factor difícil de combater, pois é muito difícil e problemático afastar os jovens dos seus companheiros.III. Associações para delinquir

Dada a sua especial importância, cabe agora falar das associações para delinquir.
Elas são de duas espécies: o bando e o grupo.
Quando as instituições sociais não podem satisfazer a necessidade que o adolescente tem de aceder à virilidade ( “ser ou não ser homem” ), ele elabora substitutos psicológicos da condição de adulto que lhe é barrada.
Entre esses substitutos, o bando é um dos mais significativos. Verdadeira contra-sociedade, com os seus ritos, as suas leis, os seus interditos, o bando traz ao adolescente que dele faz parte uma segurança psicológica e a garantia de um estatuto valorizado por aqueles mesmos cujo julgamento ele forma, os seus pares.
Uma vez que o bando esteja formado entra em competição séria com outras instituições, a título de factor dominante na vida do rapaz. A importância do bando está em relação com a qualidade do mundo social cívico da mesma idade do rapaz que ele representa e com o facto de o bando ser criação de si mesmo. Todas as outras organizações pertencem aos mais velhos; o bando pertence aos rapazes.
Contrariamente a certas ideias correntes, segundo as quais este fenómeno de agrupamento de jovens delinquentes remonta a tempos imemoriais, temos de ver nos bandos de adolescentes das nossas sociedades industriais um fenómeno específico e que se vai acentuando.
Atrás do fenómeno do bando encontra-se a dificuldade em que a sociedade industrial está para responder ao problema que lhe é posto por uma adolescência cada vez mais longa, cada vez mais disponível, cada vez mais impaciente.
Foi sobretudo na década de 50 que se viu formarem-se, nos arredores das grandes cidades, bandos que reúnem jovens dos treze aos vinte ou vinte e dois anos. Se esses grupos só raramente tiveram a organização que os literatos ou cineastas lhes atribuíram, é verdade que se observa neles uma certa estruturação que se exprime essencialmente em regras impostas aos recém-vindos. Nesses bandos a violência e os actos delinquentes são a expressão da vida do grupo – para a coesão do qual contribuem – e não a sua finalidade primitiva. Reside aí a diferença com os bandos delinquentes adultos, que se juntam com o fim de realizar certos actos, tais como roubos.
Entra os factores que mais contribuem para a constituição de bandos encontra-se a urbanização, quando esta leva a más condições de vida e, paralelamente, se verifica a dissociação da vida familiar.
Os jovens de hoje têm uma consciência de grupo muito marcante, uma forte solidariedade quando colocados em face dos adultos. Fala-se até em consciência de classe. Nos grupos de adolescentes, a adolescência não é só um período de transição, uma simples situação de passagem, mas uma forma de viver e um mundo com sentido próprio.
Os jovens estão a formar a sua própria sociedade à margem da sociedade dos adultos, de tal modo que muitas vezes não há conflito de gerações, mas vidas justapostas que se ignoram mutuamente.
Disse-se atrás que o bando delinquente e grupo delinquente são coisas distintas. Na verdade:
a) Os bandos delinquentes formam-se pela união de três ou mais sujeitos, são dirigidos por um deles, constituem-se por um período de tempo relativamente definido e com finalidade delituosa.
Quando falta algum desses elementos não existe bando, mas grupo criminal. Contudo, repare-se que o bando pode surgir para a comissão de um só acto criminoso – pense-se na organização para cometer um delito que necessita de certa preparação, como, por exemplo, um assalto a um banco; uma vez cometido o delito, o bando pode continuar ou dissolver-se.
b) Os rasgos mais importantes que diferenciam o grupo delinquente do bando delinquente são os seguintes:
- os grupos têm menor período de gestação, podendo até nem existir, pois, basta a proposta de um para cometer um delito, configurando-se o grupo com a aceitação dos outros;- nos grupos o chefe – caso exista – tem menor relevo; por outro lado, nem sempre é o sujeito mais inteligente ou de maior capacidade criminal;
- no bando os interesses individuais são subalternizados, enquanto que no grupo eles assumem lugar de relevo;
- ao bando é inerente maior independência, considerando-se por vezes auto-suficiente, não necessitando do apoio da família, amigos ou do próprio trabalho;
- o grupo pode ser constituído por apenas dois sujeitos; do bando exclui-se a parelha criminal, pois apesar de ser o grupo onde existe maior concentração, contudo, na parelha criminal não é possível falar-se de uma estrutura hierárquica do género atrás descrito – as tarefas dividem-se por igual e com grande autonomia de execução;
- o delinquente profissional dá-se melhor no bando do que no grupo;
- os comportamentos do grupo costumam variar com frequência, o que não acontece no bando;
- o bando apresenta maior perigosidade e prepara melhor os seus delitos;

Note-se, porém, que a maior parte dos bandos são evoluções de grupos criminosos.
Repare-se ainda que a participação dos jovens em associações para delinquir é elevada.
Por outro lado, a tendência para a constituição de grupos e bandos é mais elevada nas zonas urbanas.IV. Manifestações da delinquência

A delinquência juvenil é mais forte nos rapazes do que nas raparigas; mas também é verdade que é de natureza diferente, na maior parte dos casos.
Por outro lado, as formas mais correntes de “delinquência” são o furto para o rapaz e a prostituição para a rapariga ( repare-se que a prostituição não é constitutiva de um tipo legal de crime em muitos países; sempre se dirá, porém, que é uma situação que favorece a delinquência ).1. Manifestações da delinquência juvenil

1.a). Crimes contra o património:
Ocupam um lugar cimeiro entre as formas de delinquência juvenil.

1.a).1. Furto e roubo
Entre os crimes contra o património, o furto e o roubo ocupam lugar cimeiro.
O furto é muito banal na criança e pode revelar uma situação conflitual. Nestes casos a apropriação de um objecto em si mesmo tem uma importância muito secundária e o produto do furto é muitas vezes destruído, distribuído pelos outros e até entregue ao dono; o que conta aqui é a vítima, simbolicamente enfraquecida pela perda daquilo que lhe foi tirado – não é de admirar observarem-se tais furtos, por vezes até repetidos, em crianças submetidas a constrangimentos educativos excessivos.
Outras formas de furtos e certos roubos de adolescentes aproximam-se do que acaba de ser descrito. Trata-se de pequenos furtos feitos por jovens, a maior parte das vezes em grupo e num momento em que estão afastados do seu meio habitual ( em férias, por exemplo ). Estes roubos e furtos, que tomam o ar de brincadeira, quase de desporto, têm também uma dimensão de provocação, de libertação das pulsões agressivas em relação à “boa sociedade” dos adultos.
São elementos essenciais do roubo e do furto praticados por delinquentes juvenis:
- a dificuldade em deferir a satisfação dos desejos;
- a atitude agressiva para com os adultos identificados como possuidores; e
- muitas vezes, a droga.
A reincidência é cada vez mais frequente.
Os objectos subtraídos podem ser revendidos ou bem utilizados pelo próprio sujeito com a finalidade de se prestigiar junto dos outros adolescentes. Temos de lembrar a este respeito o valor simbólico que podem Ter os roubos ou furtos de motas ou carros que correspondem evidentemente a desejos de posse e de afirmação viril.
Este tipo de furto ou roubo pode, aliás, integrar-se na actividade de bandos organizados: é um dos aspectos da delinquência de grupo.
Constata-se um ligeiro aumento da tendência para utilizar um veículo furtado para cometer outro delito.

1.a).2. Estragos materiais

Representam outra forma, mais recente e cada vez mais frequente, de ataque à propriedade. São muitas vezes cometidos por grupos de adolescentes que atacam casas desabitadas ( residências secundárias ) ou lugares públicos ( cafés, locais de baile, etc. ), que devastam de maneira gratuita. Neste caso a dimensão da agressividade para com a sociedade adulta é particularmente evidente.
Saliente-se aqui a actividade de “hooligans” ligados a equipas desportivas que lhes servem de protesto para exercerem violência ou destruição – atrás deles observa-se em certos países o renascimento de ideais nazis ( cfr. neonazismo ).

1.b). Os delitos de violência

Os delitos de violência têm aumentado de forma acentuada. Trata-se de agressões físicas, de golpes e ferimentos cometidos produzidos por adolescentes já crescidos, por vezes acompanhados de jovens adultos. Estes actos são inteiramente gratuitos ou verificam-se por ocasião de pretextos menores, tais como acidentes de circulação. Os estudos psicológicos feitos a este propósito insistiram na presença latente de um estado de frustração na origem de uma agressividade maior susceptível de se revelar à menor causa. É de assinalar, de passagem, que o álcool ou certas drogas excitantes podem ter um papel estimulante sobre esses delitos.
Estas agressões físicas podem igualmente fazer parte da actividade de bandos; então tomam, por vezes, o ar de verdadeiros confrontos organizados entre grupos adversários e as suas consequências são por vezes graves.

1.c). O homicídio

É um facto excepcional nas crianças e adolescentes.
Importa salientar como elemento associado a posse de armas, sem segurança, por parte dos pais, que, por vezes, ensinam a criança ou o jovem a manuseá-las.

1.d). Infanticídios

São frequentes os infanticídios cometidos por raparigas muito jovens que conseguiram dissimular até ao fim a gravidez.

1.e). Parricídios

Foi notado que, em especial no caso de parricídio, o próprio acto é muitas vezes cometido num clima de desrealização, de semi-incosnciência.

1.f). Delitos sexuais

Este tipo de delitos dizem respeito a jovens em fase pubertária: as idades em que são mais frequentes situam-se entre os 14 e os 16 anos; mas o número de menores de 13 não é de desprezar – a frequência reduz-se consideravelmente depois dos 17 anos, o que se explica em parte pela maturação da personalidade, que permite um maior controle da pulsões, mas também, sem dúvida, pelo facto de que, cada vez mais, os jovens desta idade terem relações sexuais de tipo adulto.
Os delitos registados são diversos:
- atentados ao pudor;
- exibicionismo neurótico, em subtenção por uma forte carga ansiosa ( de certa frequência nos adolescentes masculinos );
- violações, muitas vezes colectivas; e
- prostituição.
A toxicomania é um factor importante de passagem à prostituição. Nas grandes toxicomanias – em particular a heroinomania – que são praticamente incompatíveis com um trabalho regular, quase não há outro modo de conseguir o dinheiro necessário á compra das drogas que não seja o tráfico e a prostituição.
Ainda sobre a prostituição são de salientar factores que a ela podem levar:
- a atracção pelo dinheiro face à indigência do meio familiar;
- nível intelectual muitas vezes medíocre;
- imaturidade, muitas vezes grosseira, de uma personalidade passiva e sugestionável; e
- tendências depressivas ligadas a componentes neuróticas, conducentes à busca masoquista da punição.
Relações sexuais precoces, realizadas de maneira ostensiva, com diversidade de parceiros e frequência, que lhes confere um carácter espectacular e até provocador, são o modo de expressão da inadaptação de certas raparigas. Todavia, tal comportamento pode ter apenas o significado de uma tentativa de se ver reconhecer mais depressa um estatuto de adulto.

1.g). Toxicomanias

Contrariamente aos intoxicados de outrora, que permaneciam fieis ao mesmo produto, os jovens toxicómanos de hoje utilizam múltiplos produtos.
Tem-se observado um aumento acentuado de consumidores de drogas. Por outro lado, há cada vez mais crianças e mais jovens no grupo dos consumidores de drogas.

1.g).1. Motivações que conduzem à toxicomania

As motivações sociológicas desempenham um papel determinante nos primeiros ensaios de consumo de drogas. Além da busca dos estados psíquicos artificiais ( sobre os quais uma publicidade um tanto suspeita tem sido feita pela imprensa ), a toxicomania inscreve-se numa tentativa de integração num universo especial.
Esta “subcultura”, como lhe chamam os sociólogos americanos, que se define em oposição com a sociedade actual, possui as suas próprias normas, os seus costumes vestimentários, a sua música e até a sua própria linguagem.
Entre as motivações individuais podem referir-se:
- o desejo de experimentar;
- o desejo de apaziguar a angústia ou os sentimentos de vazio;
- a pretensão de encontrar uma forma de passar por cima da incapacidade de viver;
- a descoberta de si próprio; e
- a procura de prazeres novos.
Mas, para além da motivações mais ou menos conscientemente exprimidas, existe, na maior parte das toxicomanias importantes um desejo inconsciente de autodestruição, que se exprime especialmente na escalada das doses – nem sempre justificada pela habituação – e pelo ensaio de cocktails de drogas cada vez mais perigosas.
Em relação às toxicomanias é de salientar que as mulheres se iniciam em idades mais baixas. Por outro lado, do consumo facilmente se passa à revenda de droga.
Os assaltos a farmácias têm muitas vezes a ver com as toxicomanias.

1.h). Actos incendiários

Estes actos são pouco frequentes.
O que parece ressaltar do exame de crianças que cometeram tais actos é que se tarta de um modo de expressão entre outros de uma agressividade ligada a dificuldades familiares ou até a frustrações encontradas no domínio escolar.
O incêndio surge sobretudo como meio de agressão fácil e ao mesmo tempo espectacular, e por isso mais facilmente utilizado por seres fracos ou diminuídos.

IV. Prevenir e curar a delinquência juvenil

IV.1. É fácil compreender que a prevenção da delinquência implica todas as medidas que favoreçam uma boa higiene mental da infância. Estas medidas respeitam ao meio de vida da criança, familiar, escolar, profissional ou de tempos livres. Importa, portanto, despistar precocemente as primeiras manifestações de desequilíbrio ( fugas, mentiras, agressividade, vagabundagem, furtos, roubos, perturbações de comportamento e do carácter, fracassos escolares, etc. ) e favorecer as medidas de ordem social que permitam um melhor desenvolvimento ou desabrochar familiar ( protecção maternal e infantil, educação dos pais, melhoramento geral das condições de vida, luta contra o alcoolismo e as barracas ou pardieiros, intervenção de assistentes sociais, médicos de ordem educativa e psicológica no quadro dos institutos médico-profissionais e médico-psicopedagógicos de diagnóstico e de tratamento ).
A melhor prevenção da delinquência é constituída pelo próprio meio familiar. Os casais desunidos, sem harmonia, ou simplesmente desequilibrados mostram-se com frequência incapazes de criar filhos correctamente.
As famílias demasiado rígidas, ou alternando os dois tipos de comportamentos, vão impedir a criança de adquirir uma personalidade estável e adaptada às circunstâncias exteriores.
A ideia do bem e do mal deriva dos sistemas de interdições dos pais. Punir a criança com lucidez e proporcionalmente à falta cometida, desculpabiliza-a, dá-lhe os limites das suas possibilidades pulsionais e diminui a sua angústia.
No período pubertário o grupo paternal vê com frequência a sua autoridade contestada e criticada. Assim, a demissão do pai enquanto representante simbólico da ordem favorece o desvio para o comportamento associal e para a delinquência; mas uma atitude despótica dá o mesmo resultado. A tendência para se fixar electivamente na mãe, tendência apresentada por muitos jovens delinquentes, não traduz a maior parte das vezes senão a desunião do casal e a desvalorização da imagem do pai pela mãe.

IV.2. É bom insistir contra os perigos de um certo “activismo” que se encontra, por vezes, nos serviços de assistência social. É tentador, na verdade, perante um meio familiar deficiente ou considerado patogénico, propor que a criança dele seja separada. Mas trata-se de uma decisão grave em que é preciso pesar os possíveis inconvenientes. Mesmo se a qualidade dos serviços melhora, raras são ainda as instituições que reúnem as condições educativas e afectivas ideais. É também de Ter em conta, na escolha de um eventual internamento, as influências que pode sofrer um jovem em “perigo moral”, mas ainda não delinquente, posto em contacto com outros jovens mais gravemente atingidos na inadaptação.
Todas estas observações reforçam ainda o interesse que se deve consagrar ao outro tipo de medidas que, mesmo quando são de execução mais difícil, mantêm a criança no seu meio natural (educação em meio aberto ) ou procuram reconstituir uma inserção familiar estável ( colocação familiar ).
Muitos dos jovens delinquentes abandonam o mundo do delito de forma espontânea – alguns logo após a primeira experiência; outros após algum tempo de delinquência; outros quando se tornam adultos. São muitos os factores que levam ao abandono da delinquência:
- encontrar trabalho;
- medo de ser detido;
- dissolução do grupo de delinquentes;
- incorporação no serviço militar;
- não querer problemas familiares; etc.
Ora, por vezes, com o internamento em algum centro, está-se a colaborar para a consolidação de uma carreira criminal.
Com isto não se quer dizer que não se deva combater a criminalidade juvenil; quer-se apenas dar preferência ao sistema de tratamento em liberdade, à educação em meio aberto e à colocação familiar.
A confirmar aquela preferência está a constatação da falta de estabelecimentos adequados e a resistência das famílias ao trabalho dos centros.
Note-se, contudo, que o sistema de tratamento em liberdade ainda não existe em muitos países. Por outro lado, mesmo quando funciona, sucede, por vezes, que se limita a um simples encontro periódico com o jovem delinquente em que se lhe pergunta se se tem mantido afastado dos problemas, da criminalidade. Ora, as mentiras são inevitáveis, por parte do jovem delinquente, entregue a si mesmo.

IV.3. Acções preventivas e ressocializadoras de iniciativa privada têm um papel interessante. Certas equipas procuram estabelecer um contacto permanente, por meio de actividades de tempos livres, com jovens de sectores geográficos em que a delinquência está particularmente espalhada. É de salientar o empenho de certos grupos cristãos.
Mas uma acção preventiva em grande escala, que necessita de mobilização de equipamentos socioculturais e educativos consideráveis, paralelamente à luta contra os factores sociais não pode ser empreendida senão ao nível do próprio Estado.

IV.4. No que diz respeito à delinquência juvenil em particular, é fundamental a investigação científica da personalidade do delinquente, na fase da instrução do inquérito tutelar crime. Esse exame criminológico permitiria o conhecimento integral do homem, sem o qual não se poderá vislumbrar uma justiça eficaz e apropriada.
A personalidade do delinquente juvenil é o factor mais importante para o estudo da sua perigosidade.
Esse exame criminológico reclama a participação de sociólogos, médicos, psicólogos e assistentes sociais.
Até ao século XIX o ponto de vista jurídico dominava amplamente o estudo da criminalidade: “o crime não é uma acção, mas uma infracção”, dizia-se.
O estudo do crime ficava limitado pelas disposições do direito penal.
Já no final do século XIX, com o desenvolvimento das ciências da observação, sobretudo as directamente ligadas à biologia e á medicina, a pessoa do delinquente chamou a atenção dos pesquisadores e, como era um século do cientismo determinista, foram os traços fisiológicos e os dados hereditários ( dos criminosos submetidos a análise ) considerados como pedra de toque da personalidade criminógena.
Mais tarde, já no século XX, surgem as correntes colectivas - todos os crimes são resultantes das condições individuais e sociais e a influência desses factores tem a ver na sua intensidade e importância, com as posições particulares do corpo social: a cada fase da evolução e a cada estágio de uma sociedade corresponde um “dossier” dos factores individuais e sociais da delinquência (princípio da saturação criminal ).
Quanto ao que fica dito, teremos, porém, de dizer sucintamente que os fundamentos hereditários e as estruturas biológicas do indivíduo não têm, à vista da criminalidade, o verdadeiro significado, pois o crime não é frequentemente o resultado de uma falta de inteligência, mas um defeito da vontade.
Em Portugal só com muito custo se poderia afirmar a existência nos processos de menores de um verdadeiro exame criminológico.
Não queremos terminar sem salientar os seguintes pontos:
- é premente evitar um intervalo prolongado entre a detenção de menores e a aplicação de medidas;
- o comportamento antisocial atinge o estado de cristalização em diferentes idades a partir do qual o tratamento se torna particularmente difícil;
- um dos aspectos fundamentais é a integração social do jovem delinquente: é aqui que tudo acaba ou recomeça;
- observa-se hoje a tendência ( que nasceu nos anos 50 ) para substituir a repressão da delinquência juvenil pela reeducação.
- Permitimo-nos reproduzir aqui outro segmento do estudo atrás referido do Instituto de Reinserção Social da Figueira da Foz:. “...É portanto prioritário o destaque para a prevenção primária e para formas de intervenção em idades mais precoces do desenvolvimento. Todavia a extensão do problema contrasta flagrantemente com a exiguidade dos meios de prevenção e concretamente deverá apontar em especial para a organização e reorganização dos serviços e instituições desde os primeiros anos do ensino básico e mesmo pré-escolar. É escasso o trabalho individual que se faz com as crianças e a vertente escolar não é dimensionada numa linha de desenvolvimento.
A partir de uma avaliação diagnosticada das situações de forma individual mas abrangente ao nível dos diversos domínios de funcionamento as actividades devem ser planificadas de forma a melhorar as competências sócio-afectivas e morais, as competências físicas e motoras e as cognitivas. O trabalho com as famílias deve ser convergente à função educativa, ensinando os pais a identificar as variáveis da família que possam ser responsáveis pelo comportamento anti-social da criança e ensinar-lhes como alterar o padrão de interacções muitas vezes inadequadas e de contornos coercivos.
Os comportamentos de agressividade em meio escolar devem ser alvo de intervenção nos níveis de ensino mais precoce – 1º ciclo. É no 2º ciclo que eclodem os fenómenos de indisciplina e de violência com a agravante de não existirem técnicos de apoio psicossocial. Torna-se necessário diversificar os espaços de escuta e de informação. Tendo como referência a vocação indusiva da escola urge criar equipas especializadas de apoio psico-pedagógico e com o reforço da colaboração entre os diversos agentes educativos.
Importa reunir competências múltiplas que favoreçam o desenvolvimento de acções inovadoras, sendo exemplo o desporto escolar e a animação social.
Todavia a promoção de actividades só tem sentido se estiverem sustentadas num projecto concertado e coerente.

PROPOSTA:

· Criação de um centro de informação e divulgação dos recursos existentes que facilitem a articulação entre os serviços e entidades tendentes à sua operacionalização, a exemplo as actividades a nível de ocupação de tempos livres e desportivas.”.

[1] A escola é um lugar privilegiado para as primeiras manifestações da inadaptação social. Quase não há jovem delinquente em que não se encontre um longo passado de inadaptação escolar.
Os insucessos constituem frustrações que o jovem mal tolera. Uma indisciplina que toma cada vez mais o ar de provocação procura, pela fanfarronice, compensar a imagem desvalorizada que de si próprio dão os insucessos. Paralelamente, o meio escolar tende a rejeitar esse perturbador.

Estes elementos atrás referidos, associados ao absentismo escolar, às faltas esporádicas e vagabundagem convergem para a delinquência do jovem.

Regulação do Exercício do Poder Paternal

A REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL

Se a formação do casal é geralmente precedida de um processo de namoro, de aconselhamento familiar, de aconselhamento de amigos, de um curso de preparação para o matrimónio, se a gravidez da mulher é acompanhada dos carinhos acrescidos, se depois do casamento vem a lua de mel, que faz parecer que tudo é fácil, o certo é que regra geral os casais não estão preparados para a crise da relação, quando ela surge, e isto porque a crise surge muitas vezes de forma inesperada.
Mesmo quando a relação se vem deteriorando há muito, os membros do casal raramente estão preparados para o período que se segue à ruptura do matrimónio.
E é precisamente nessa altura que muitos dos casais vão ter o seu primeiro contacto com o aparelho judiciário.
O ambiente das conferências de pais é muitas vezes marcado por estes factores, pela animosidade entre o casal, pelo ressentimento decorrente de agressões e traições, pela fome, desemprego e abandono e pela vergonha.
“Ela saiu de casa, vive com um estranho para o menor e a mim nem me deixa ver o filho”.
“Anda vestida com roupas caras, anda no automóvel do amante e ainda tem a lata de me pedir alimentos. Ainda se fosse para o meu filho ...”
“Dou o que for preciso, mas não lhe dou a ela. Que trabalhe.”
Qual a melhor postura dos magistrados, pergunta-se.
Em primeiro lugar, tem de haver tempo e este aspecto é por demais importante.
Em segundo lugar, não podemos encarar as conferências de pais como meras diligências a despachar antes dos julgamentos.
É importante procurar estimular o diálogo entre o casal, pois muitas vezes não tiveram oportunidade de falar um com outro até à conferência de pais.
Não se devem forçar as vontades, mas deve-se chamar a atenção.
Os advogados devem desempenhar aqui um papel tão ou mais importante que o do tribunal.
É importante não esquecer, por outro lado, que na maior parte das vezes a instância judicial não é solicitada a intervir como árbitro de uma disputa, mas sim como instância formalizadora de uma determinada situação previamente definida.
Não existindo ainda, na prática, nas comarcas a mediação familiar, importa aqui salientar que muitos dos processos de regulação do exercício do poder paternal se iniciam por requerimento do Ministério Público, na sequência de atendimento ao público.
A importância do atendimento ao público é de salientar, pois aí se estabelece o primeiro contacto com o tribunal. Por outro lado, regra geral, só um dos pais vem ao tribunal, pelo que há que ter o cuidado de não adoptar desde logo uma perspectiva parcial, isto no que diz respeito ao Ministério Público.
Na verdade, são frequentes as mentiras para se obter desde logo a confiança provisória, conhecendo nós um caso de uma senhora que chegou a engessar um braço para alegar maus tratos e pedir a confiança imediata do menor.
Deve o Ministério Público, nesses casos, procurar dotar-se de alguns elementos de prova, como, por exemplo, informação discreta de técnico de serviço social, relatório social urgente, ainda que abreviado, não devendo logo pedir a entrega do menor a um dos progenitores, salvo situações justificadas, devendo antes descrever a versão que obteve, mas pedindo antes a realização de conferência de pais urgente.
O requerimento do Ministério Público deve ser imparcial, sob pena de suscitar a desconfiança do outro progenitor e violar a igualdade de armas.
O atendimento ao público por parte do Ministério Público é um espaço privilegiado, que poderia ser rentabilizado como espaço de mediação, em situações justificadas.
Mas o certo é também que a mediação não é papel do Ministério Público, nem se vê que o mesmo esteja habilitado a tal. Poderia era encaminhar os casais para a mediação familiar.
A nosso ver, porém, a organização judiciária actual encontra-se ultrapassada. É incrível que ainda se imponha a intervenção em primeira linha do tribunal, na ausência de acordo. O tribunal, por diversas razões, não é um espaço adequado para o efeito.
Solução interessante é a que resultou do art. 14º do Dec. Lei n.º 272/01, de 13.10.
Recebido o processo de divórcio por mútuo consentimento da conservatória de registo civil, o Ministério Público pode propor diferente regime de regulação do exercício do poder paternal, que, a ser acolhido, impede a remessa dos autos ao juiz.
Importante é que a proposta do Ministério Público seja feita no confronto de ambos os progenitores, procurando, até onde lhe for possível, o consenso dos pais. Tal deverá ser feito em processo administrativo interno e não na própria acção de divórcio, pois nesta só há lugar a formalização da proposta do Ministério Público.
Deve é procurar evitar-se que com as sucessivas propostas se crie morosidade processual.
Deve existir uma única proposta, para o que se pressupõe uma recolha, rápida, embora suficiente, de elementos que habilitem o Ministério Público a elaborar tal proposta.
Em caso de incumprimento já o juiz intervém em primeira linha, devendo a questão ser decidida em acção a instaurar para o efeito, instruída com certidão do acordo relativo ao regime de regulação do exercício do poder paternal – não é necessário nem conveniente requisitar o processo de divórcio á Conservatória de Registo Civil.
Quanto ao regime de regulação do exercício do poder paternal, são três as questões a decidir:
o destino do menor;
o regime de visitas; e
a fixação de alimentos devidos ao menor e a forma de serem prestados
( arts 1911º, 1878º e 2003º e segs do Cód. Civil ).
Tais questões deverão ser decididas à luz do interesse superior do menor, princípio este que tem consagração no art. 69º da Constituição da República Portuguesa, art.s 1878º, nº 1, 1905º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil e art.s 3º, 9º, 18º, 20º, 21º, 37º, alª c), e 40º, n.º 2, alª iii), da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
A pedra de toque fundamental em matéria de regulação do exercício do poder paternal é precisamente o interesse superior do menor.

I. O destino do menor
Regra geral, os requeridos neste tipo de acções encontram-se separados, não vivendo nem pretendendo viver juntos.
Põe-se assim a questão de saber quem, em tal situação, deve ficar com a guarda do menor.
Existindo acordo entre os requeridos nesta matéria, afigura-se-nos que se deverá respeitar tal acordo, desde que conforme ao superior interesse da criança ou menor.
Seguindo o critério preconizado, o menor deve ser entregue ao progenitor que mais garantias dê de valorizar o desenvolvimento da sua personalidade e lhe possa prestar maior assistência e carinho.
O menor deve ser entregue ao progenitor que ofereça melhores garantias de assegurar o crescimento no meio social e familiar em que o menor se encontra bem inserido, proporcionando-lhe o desenvolvimento harmonioso, o que não tem necessariamente a ver com conforto, comodidade e acesso a tecnologias ou outros recursos.
Tem-se seguido o critério quase objectivo, no que respeita a crianças em idade de amamentação, de que devem ser as mesmas confiadas à mãe. Tem-se entendido que não devem, salvo circunstâncias excepcionais, ser separadas da mãe – diz-se: o bom relacionamento afectivo da criança com o pai e família deste não se sobrepõe, por si só, aos benefícios normalmente resultantes da assistência materna em termos regulares.
Ultrapassada que seja a fase de amamentação, em que, por razões fisiológicas, a figura paterna se apaga perante a materna, esbate-se, na situação actual, em que o homem e a mulher repartem entre si os encargos do lar e o tratamento dos filhos, o entendimento de que a mulher cuida sempre melhor do que o homem dum filho de tenra idade.
E a situação a considerar é aquela que se verifica no momento em que o tribunal é chamado a pronunciar-se, embora não seja de pôr totalmente de parte os factos anteriores que poderão intervir como coadjuvantes a uma correcta decisão.
É, porém, por vezes muito complexo na sociedade actual, em permanente mutação, definir em cada caso qual é e onde se situa o interesse do menor que se encontra sujeito ao poder paternal.
Podemos aqui perguntar se existe uma ética dominante e a existir se o interesse em causa deve atender ao que tal ética preconiza.
Podemos perguntar também se não deve intervir aqui uma ideia de necessário respeito pela diferença, de pluralismo democrático.
Ou, afinal, estamos numa sociedade do desenrasca, não havendo propriamente uma nova ética, aliás, não existe é ética nenhuma.
Diga-se o que se disser, há princípios fundamentais, constitucionalmente consagrados.
E o interesse superior do menor não é algo que deva ser só visto à luz da ética, seja ela qual for. A ciência é certa e segura e ela deve ser aqui chamada a intervir, quando necessário.
Não devemos confundir a discussão a respeito de uma nova ética com a questão a decidir nestas acções de regulação do exercício do poder paternal.
Não devemos impor uma nova ética, mas não podemos ser acríticos.
Parece-nos que há aspectos que são manifestamente prejudiciais aos menores e tais riscos devem ser combatidos com determinação e, se necessário for, com coerção.
É importante a intervenção na família, por forma a reabilitá-la, mas a tal pretexto não se deve procurar impor uma visão própria do mundo. Tem de haver um espaço de liberdade de decisão.
Muitas vezes, porém, é difícil isolar a questão do interesse superior do menor de outras questões, de que se deu exemplo.
Em Portugal não há casamento de homossexuais e estes não podem adoptar em conjunto. Mas invocar tais argumentos para denegar uma confiança de um filho a um pai, mais idóneo que a mãe ou havendo acordo dos progenitores, é um erro.
Não podemos esquecer, porém, que a comunidade ainda lida mal com tais realidades. Mas a comunidade não tem direitos sobre o menor, apenas um interesse... Penso, no entanto, que aqui, como noutros “sítios”, se podem encontrar situações que ultrapassam o direito à diferença para se converterem em motivo de intervenção, para o que basta recordar os inúmeros casos de pedofilia que têm surgido.
Pergunto se a confiança a um membro de casal homossexual de um menor seu filho é ou não, em abstracto, consentida por lei. Note-se que se tem relevo legal a união de facto independentemente do sexo, já não é admitida a adopção conjunta por homossexuais.
Penso que não existe obstáculo legal a tal confiança. Mas também penso que não existe um direito a educar para a homossexualidade ( com o que não defendemos que a homossexualidade se deva analisar segundo a perspectiva conhecida de “homossexualidade por tendência – homossexualidade por perversão”, que nos parece limitada ).
E nessa medida, penso que importará fazer um estudo da situação, até pelo seu melindre objectivo. Não digo que se deva intervir necessariamente, através de processo de promoção e protecção. O que digo é que o tribunal deve decidir de forma esclarecida e esclarecedora.
Podemos aqui referir um caso que conhecemos de uma menor confiada a uma mulher prostituta de estrada, sua avó, menor essa que foi educada exemplarmente, frequentou a catequese da sua paróquia, chegou a chefe de acólitos e tirou curso universitário, sendo cidadã exemplar. Isto para concluir que o tribunal não deve cair na tentação de impor qualquer ética, mas antes e apenas deve preocupar-se em fazer vingar o interesse superior do menor.
Mais uma vez sublinho, para terminar, os benefícios da guarda conjunta do menor, solução esta, porém, que pressupõe alguma estabilidade relacional.

II. O direito de visitas
O exercício do poder paternal por parte do progenitor que detém a guarda do menor não é exclusivo - porque deve respeitar o direito de visita do outro progenitor -, nem totalmente discricionário - porque é por este fiscalizado.
O regime de visitas é estabelecido no processo de regulação do poder paternal, determinando-se os períodos de tempo em que o progenitor, que não detém a guarda do filho, poderá estar com ele.
Quanto a este particular aspecto, importa salientar a importância de que o progenitor que não tem a guarda comparticipe no processo de desenvolvimento do seu filho, não devendo o outro levantar qualquer obstáculo ao exercício do direito de visitas.
É também importante a interacção do menor com os seus irmãos, que só através do direito de visitas muitas vezes se pode alcançar.
Dever-se-á estimular o progenitor que não tem a guarda a assumir as suas responsabilidades parentais, o que terá de passar pelo seu envolvimento no processo de crescimento do menor, designadamente estimulando-o a levá-lo consigo e a apresentá-lo aos seus irmãos, se estiverem separados.
O não exercício do direito de visitas é um verdadeiro incumprimento. Na verdade, estamos perante um direito-dever.
Por vezes, porém, o seu exercício é demasiado oneroso, como será o caso de o progenitor que tem a guarda residir no estrangeiro e o outro não dispor de capacidade económica para poder suportar os custos da viagem e estadia.
Nestes casos, na ausência de apoios de outro género, deve o tribunal, se necessário, intrometer-se na forma como são agendadas as férias do progenitor que detém a guarda, por forma a permitir o convívio do menor com o outro progenitor. Como fazê-lo, perguntar-se-á. A nosso ver, em certos casos poder-se-á falar de verdadeiro incumprimento por parte do detentor da guarda, a apreciar em sede de incidente de incumprimento, com todas as consequências legais aí previstas.
Na maior parte das vezes, conseguem-se regular estes casos através da entrega do menor ao pai, nas férias daquele ou em parte das mesmas, custeando ambos os progenitores metade das despesas de viagem ou ficando tais despesas a cargo do progenitor que tem o direito de visitas. Outras vezes, estabelece-se que sempre que o progenitor que tem a guarda venha a Portugal deverá disso dar conhecimento ao outro progenitor, para que exerça o seu direito.
E, na verdade, só excepcionalmente, quando do relacionamento do menor com o progenitor resultar um irreparável ou grave prejuízo para o primeiro, poderá deixar de se fixar o regime de visitas.
“Não pode lá ficar porque a casa do pai não tem um mínimo de condições de habitabilidade, pois é uma barraca que nem quarto de banho tem”, dizia a mãe do menor num processo que tivemos. Nestes casos é importante que o tribunal não só sensibilize o pai para que obtenha melhores condições de vida como também que tome a iniciativa de despoletar os mecanismos de apoio necessários, como por exemplo através da Segurança Social.
A problemática do alcoolismo está também muitas vezes presente nos incidentes de incumprimento em sede de visitas. E, na verdade, assiste à mãe o direito de recusar a entrega do menor constatando que o pai se encontra embriagado.
Havendo rejeição de um dos progenitores por parte do menor, como acontece em casos de anos de abandono e ausência, ganha todo o relevo a realização de exames médico-psicológicos, pois no seu âmbito serão melhor equacionadas as razões daquela atitude e a possibilidade de as superar.
Neste ponto não podemos deixar de referir aqui o douto Acórdão da Relação do Porto, de 26-03-1998, in CJ 1998, T. 2, p. 218, segundo o qual não deve o pai, separado de facto de sua mulher, apesar de se encontrar em prisão preventiva por factos relacionados com a morte do seu sogro, ser privado da visita do filho menor, com quem mantinha boa relação. Segundo tal arresto, as visitas, a acertar com o Director do Estabelecimento Prisional, serão acompanhadas por técnico do Instituto de Reinserção Social, que lavrará relatório, para processo, do que se considerar relevante para eventual alteração do seu regime.
O regime de visitas não pode, pois, ser visto à luz de um pretenso direito dos pais ou dos seus interesses, mas antes numa perspectiva de satisfação do interesse real do filho. O direito de visita é, fundamentalmente, um direito subjectivo clássico do menor, seu único titular activo, um verdadeiro direito de personalidade, com assento no art. 36º, n.º 6, da Constituição da República.
Assim, será de manter a convivência diária entre o pai e o filho, à hora do almoço, no intervalo da escola primária, com condução a cargo do pai, designadamente quando a mãe, a cuja guarda o filho se encontra, sai de casa de manhã só regressando pelas 22 horas.
Fala-se hoje em “responsabilidades parentais acrescidas” em caso de separação ou divórcio e recomenda-se aos progenitores:
.que não envolvam os filhos nas disputas que têm;
.que estimulem a relação do filho com o outro progenitor e ambas as famílias alargadas;
.que entreguem o filho ao outro progenitor no caso de férias ou ausências e não a terceiros;
.que facilitem o contacto telefónico do filho com o outro progenitor;
.que seja entregue ao menor toda a correspondência e prendas do outro progenitor;
.que se valorize sempre ( ou, pelo menos, que não se desvalorize ) o outro progenitor;
.que não se permitam críticas na presença dos filhos em relação ao outro progenitor;
.que se facultem ao outro progenitor todas as informações escolares e de saúde;
.que haja participação conjunta dos pais nas idas ao médico e às reuniões da escola;
.que se avise o outro progenitor do evoluir das situações (ex.: novas consultas, resultados de exames médicos, etc. );
.que se consulte o outro antes de se decidir;
.que se facultem informações ao outro progenitor a respeito da escola, desporto, etc.; e
.que não se marquem actividades nos fins-de-semana em que o menor vai para o outro progenitor.

III. Sustento
Os pais devem prover ao sustento dos seus filhos menores.
Isso implica que os progenitores são responsáveis por todas as despesas ocasionadas pela educação, alimentação, saúde, vestuário e instrução dos seus filhos menores, ou, melhor dizendo, pelas despesas ocasionadas pelo crescimento e desenvolvimento dos mesmos, em todos os seus aspectos.
Essa é, aliás, a noção que a lei dá de «alimentos» no art. 2003º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil.
O termo corrente na doutrina e na jurisprudência é de «obrigação alimentar». No entanto, nota-se a tendência para substituir essa expressão por outra, com um significado mais semelhante ao de sustento: assim, na doutrina francesa fala-se de «obligation d’entretien» e as publicações do Conselho da Europa sobre o assunto aconselham a mudança da terminologia, nesse sentido.
Parece indubitável que os pais devem proporcionar aos seus filhos condições de conforto e um nível de vida idêntico aos seus.
Devem, além disso, os pais, porfiar, na medida do possível, por terem uma situação económica estável, não só por eles próprios, mas também pelos seus filhos.
Compreende-se que o critério do julgador seja mais apertado em relação aos alimentos devidos aos filhos, onde repugna menos estimular mais fortemente a capacidade de trabalho dos pais, forçá-los à alienação de bens ou a apertar o cinto conjuntamente com os filhos ( cfr. Antunes Varela, Direito da Família, p. 341 ).
Os alimentos encontram-se sujeitos a actualização, devendo fixar-se o critério respectivo na sentença.
Por vezes fixa-se o aumento por indexação à taxa de inflação, outras vezes por indexação aos aumentos da função pública e outras vezes em função dos aumentos no vencimento.
A indexação aos aumentos da função pública tanto pode ser um bom critério como um mau critério, tudo dependendo do facto de os aumentos compensarem ou não a taxa de inflação, o que nem sempre sucede.
A aplicação da fórmula:
Salário ( do devedor ) de Janeiro do ano a actualizar : salário de Janeiro do ano anterior x pensão de alimentos do ano anterior = pensão actualizada
pode a dada altura tornar-se demasiado onerosa para o devedor de alimentos.
O critério da fixação da actualização em função da taxa de inflação também esquece certos produtos que não entram no cabaz para cálculo de tal taxa.
De qualquer das formas, deve sempre procurar-se um critério que seja o mais adequado à situação dos pais.
Assim, não faz sentido o critério da actualização da pensão em função do aumento dos salários da função pública quando o pai trabalha numa empresa privada que lhe aumenta o salário de forma mais generosa.
Por outro, lado, pode o pai trabalhar no estrangeiro, devendo então o critério ser o mais conforme ao nível de vida em tal país.
E poder-se-ão peticionar juros de mora em execução de alimentos se no acordo de regulação do exercício do poder paternal não foi fixada a obrigação de os pagar em caso de mora ? Tem-se defendido duas teses, uma negativa e outra afirmativa. Por exigências de tempo não abordaremos tal questão, até porque não é uma questão propriamente dita de direito de menores. Todavia, é recomendável, face à tese mais restrita, fixar tal obrigatoriedade nos acordos mediados pelo tribunal.
Já os juros compulsórios são líquidos, à luz do art. 829-A, n.º 4, do Cód. Civil, o qual estabelece que «Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos...».
Nesta sede importa desde já advertir para o facto de que não se deve recorrer à Associação Portuguesa para o Serviço Social Internacional só para apurar a situação económica do devedor de alimentos. Outras soluções existem, como por exemplo as convenções bilaterais e a Convenção de Nova Iorque, sendo também possível solicitar a elaboração de relatório social ao Consulado competente, o qual, porém, só o poderá fazer com a anuência do visado.

III. a). Medida dos alimentos
Decorre do art. 2004º do Cód. Civil que a medida dos alimentos será determinada pelas seguintes condições:
1º. necessidade do alimentando;
2º. possibilidade do obrigado; e
3º. possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.
Nos termos da lei, é necessário que o obrigado tenha excedentes dos seus rendimentos sobre as suas despesas necessárias para que seja condenado a pagar uma pensão alimentícia até ao montante daquele excedente ( cfr. Vaz Serra, in B.M.J., 108, pág. 105 a 106 ). Todavia o obrigado à prestação de alimentos deve sacrificar, na medida do razoável, o seu próprio capital, se for necessário ( cfr. Vaz Serra, artigo citado, pág. 112 ).
Em caso de doença do menor, deverá o requerido contribuir para o pagamento de metade das despesas de saúde, desde que devidamente comprovadas.
Na determinação das necessidades do menor deverá atender-se ao seu padrão de vida, ao ambiente familiar, social, cultural e económico a que está habituado e que seja justificável pelas possibilidades de quem está obrigado a prestar os alimentos.
Também aqui deve intervir o princípio do interesse superior do menor, que poderá, em situações extremas, impor ao menor uma contenção de gastos...

III.b). Modo de prestar os alimentos
Em regra os alimentos devem ser fixados em prestações pecuniárias mensais (art.º 2005º, n.º 1, do Cód. Civil ). Mas não há que fixar a prestação alimentícia em mais de 12 ( doze) prestações anuais ( cfr. Acórdão in Colectânea de jurisprudência, Ano IV, 1979, T. 3, págª 779). Além do mais, é na fixação dos alimentos que se devem levar já em consideração as despesas acrescidas que o progenitor que pagará os alimentos terá de suportar nos períodos em que tenha o menor consigo, não fazendo sentido isentá-lo depois do pagamento no período de férias do menor em que fica com tal progenitor.
Afigura-se-nos também conveniente que os alimentos sejam prestados por meio de cheque, vale postal ou contra recibo até ao dia 8 de cada mês, por forma a evitar conflitos no que respeita à prova do seu pagamento. O desconto no salário, pelo seu caracter estigmatizante, em princípio só deverá ser ordenado em situações que o justifiquem, designadamente após o incumprimento.

III. c). A garantia de alimentos
Recentemente foi criado o regime de garantia de alimentos, regime este que consta da Lei n.º 75/98, de 19.11, e Dec. Lei n.º 164/99, de 13.05, diplomas estes que pressupõem ainda o que fixa anualmente o valor do salário mínimo nacional, que neste momento é de 348, 01 €.
Quanto a este regime, várias questões têm surgido:
Pode ou não fixar-se uma prestação a suportar pelo fundo de garantia de alimentos quando o progenitor que não tem a guarda, por ser indigente, não pode ser condenado a prestar alimentos ?
Deve ou não demonstrar-se a impossibilidade de demanda prévia dos obrigados subsequentes referidos no art. 2009º do Cód. Civil ?
Sendo demandados estes devê-lo-ão ser em acção de alimentos apensa à Acção de Regulação do Exercício do Poder Paternal ou poderão ser citados nesta última acção para uma conferência nos termos do art. 177º da OTM ?
Pode ou não fixar-se uma prestação superior à fixada ao progenitor que não tem a guarda quando a mesma prestação deva ficar a cargo do referido fundo ? E existirá depois sub-rogação legal também nessa parte ?
Pode o Fundo ser condenado a suportar os alimentos depois da maioridade do menor, designadamente nos casos do art. 1880º do Cód. Civil ?
Quando no art. 3º, n.º 3, do Dec. Lei n.º 164/99, de 13.05, se diz que as prestações a que se refere o n.º 1 são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC, quererá mesmo dizer por cada devedor ? E se o mesmo devedor tiver 10 ( dez ) filhos em situação de necessitarem de apoio do Fundo ?
Assiste ou não ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social direito de queixa pelo crime de violação da obrigação de alimentos p. e p. pelo art. 250º do Cód. Penal, quando fique sub-rogado ?

Quanto à primeira questão invoca-se a letra da lei, pois que, o art. 1º da Lei n.º 75/98, de 19.11, refere-se, de forma expressa, a pessoa judicialmente obrigada e utiliza-se a expressão até ao início do efectivo cumprimento da obrigação. Acrescenta-se ainda que no art. 3º, n.º 1, da mesma Lei se refere de forma expressa o requerer nos respectivos autos de incumprimento, sendo ainda acrescentado o facto de a sub-rogação legal só existir dentro dos limites da condenação do progenitor e o facto de para os excluídos do regime se poder aplicar outro tipo de regimes, como por exemplo o do rendimento mínimo garantido.
Não temos esta perspectiva, pois a vingar a mesma ter-se-ia de considerar tal interpretação inconstitucional por violação do princípio da igualdade de tratamento ( cfr. Art. 13º da Constituição da República ).
Na verdade, seria um absurdo excluir do âmbito de aplicação da lei os casos em que mais se justifica a sua aplicação, como são os casos dos indigentes, que não podem ser condenados a pagar uma prestação de alimentos.
Além do mais, no art. 2º da lei n.º 75/98, de 19.11, manda-se tão-só atender à prestação de alimentos fixada, o que tira o carácter determinante à sua fixação prévia.
Aliás, se o judicialmente obrigado a pagar alimentos vier provar a sua impossibilidade futura, pedindo a cessação da obrigação de pagar os alimentos, ficará, só por força daquele argumento formal, arredada a possibilidade de recorrer ao regime em causa ? Pensamos que não, até porque no preâmbulo do diploma se refere expressamente que “De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais”.
Além do mais, por força de tal princípio da igualdade dever-se-á interpretar a lei de forma que atenda ao seu espírito e não apenas com base no argumento literal da interpretação.
Já não consideramos, porém, que seja violadora do princípio da igualdade a norma do art. 3º, n.º 3, do Dec. Lei n.º 164/99, de 13.05, dado que não se exclui ninguém do regime, apenas se limita o valor a pagar. Porém, em situações de famílias verdadeiramente numerosas pode gerar-se uma desigualdade flagrante, que deverá impor uma correcção da lei, pelo menos no sentido de que o legislador pressupôs uma família média ou ideal.
Também entendemos que a Segurança Social só é obrigada a pagar alimentos devidos a menor por progenitor com rendimento não superior ao salário mínimo nacional até que este perfaça os 18 anos, estando fora os casos de alimentos devidos a maiores de 18 anos previstos no art. 1880º do Cód. Civil – neste sentido o douto Ac. Rel. Porto, de 02.04.2001, in CJ 2001, t. 2, p. 195.
Quanto à demanda prévia dos obrigados do art. 2009º do Cód. Civil, afigura-se-nos a mesma imperiosa, até porque a família deve responder em primeira linha e a obrigação do Estado é residual.
Estes devem ser demandados em acção de alimentos ou a regulação do exercício do poder paternal pode prosseguir em relação aos alimentos contra eles nos termos do art. 325º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil.
A acção de alimentos pode ser intentada, correndo por apenso.
Quanto à fixação de uma prestação superior à judicialmente fixada, pensamos que quando a lei manda tão-só atender à prestação fixada permite que sendo o Estado a pagar se fixe uma prestação, dentro do limite estabelecido, mais consentânea com o princípio da dignidade humana. Não haverá é sub-rogação nessa medida.
Quanto ao direito de queixa, afigura-se-nos que manifestamente não é o mesmo consentido pelo disposto no art. 113º do Cód. Penal.
CONTRIBUTO PARA UMA DOGMÁTICA DO DIREITO PENAL FISCAL

( documento elaborado na vigência do R.J.I.F.N.A. )



Relatório de pós-graduação em direito penal económico e
europeu – ano de 1999/I.D.P.E.E./Universidade de Coimbra


“A obtenção de resultados positivos na punição e prevenção do ilícito fiscal depende essencialmente da eficácia dos serviços de fiscalização tributária(...).Assim, resulta claro que de um reforço quantitativo e qualitativo dos recursos técnicos e humanos na área da fiscalização tributária, resultará uma mais eficiente detecção da fraude fiscal. É sabido que, mais do que o aumento da medida abstracta das sanções ou a criação de penas de prisão(...), é fundamental que a actuação da Administração seja rápida e, tanto quanto possível, permanente”.
( Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, pág. 265 )





Com esta exposição visa-se proceder a uma análise do direito penal fiscal à luz da ideia de bem jurídico, detectando e abordando nódulos problemáticos e aventando hipóteses explicativas, as quais poderão pelo menos servir de base de reflexão sobre uma área do direito sobre a qual se têm debruçado tão pouco os penalistas, pelo menos em Portugal.
Mas para isso importa perceber o que seja o bem jurídico.
Ele é todo o interesse da vida comunitária ou individual que, em homenagem ao seu significado social, é protegido juridicamente, podendo, segundo o seu substracto, revestir formas distintas:1)um valor psico-físico ou espiritual-ideal (ex: a vida ou a honra, respectivamente);2)um estado real (ex: o respeito pelo domicílio);3)um vínculo familiar (ex: relações conjugais ou de parentesco);4)uma relação de direito (ex: propriedade);5)ou até um comportamento de terceiro (ex: o cumprimento de deveres por parte dos funcionários públicos).
Revela-se o bem jurídico como todo o estado socialmente desejado que o direito quer pôr a coberto de agressões.
A soma destes bens jurídicos não constitui um agregado atomístico, mas integra a ordenação social, pelo que não deve apreciar-se o significado de um bem jurídico isolado, mas só em conexão com toda a ordenação social.
Num Estado de Direito material, em que a função do direito penal só pode ser a protecção de bens jurídicos (e não a tutela de qualquer moral), já se não pode ter do bem jurídico, nem uma visão liberal – que fazia dele o «monólito jurídico corporizado» em que se consubstanciavam os direitos subjectivos individuais merecedores de tutela penal -, nem muito menos uma visão formal-metodológica (de raiz neo-Kantiana), que o reduzia a fórmulas interpretativas capazes de exprimir o «sentido e o fim dos preceitos penais», mas sim uma visão funcional, que o vê como unidade de aspectos ônticos e axiológicos através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso «valioso».
No entanto, se se quer tornar esta noção político-criminalmente útil, é preciso afirmá-la como transcendente ao sistema jurídico-penal e, só assim, seu padrão crítico (o bem jurídico é, a esta luz, um elemento trans-sistemático) .
Mas como ganhará materialidade e concreção ?
Se, num Estado de Direito material, toda a actividade estadual se submete à Constituição (art.º 3º, n.º 2, da C.R.P.) e, sobretudo, se afirma a «necessidade social» (art.º 18º, n.º 2, da C.R.P.) como critério decisivo da intervenção do direito penal – temperada por um limite de proporcionalidade -, então, também a ordem dos bens jurídicos há-de constituir uma ordenação axiológica como aquela que preside à Constituição, ou seja, substancialmente análoga à constitucional, com base numa essencial correspondência de sentido. Ora, isto permite afirmar que a ordem de valores jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo e delimitativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva estadual.
Importante é, pois, sublinhar que bens jurídicos há que se relacionam com o livre desenvolvimento da personalidade de cada homem como tal, designadamente os do direito penal de justiça, que são concretizações dos valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, enquanto outros se relacionam com a actuação da personalidade do homem enquanto fenómeno social, em comunidade e em dependência recíproca dela, designadamente os do direito penal secundário, que são concretizações dos valores ligados aos direitos sociais e à organização económica contidos na Constituição.
Com base em tais considerações fácil se torna entender que, se não há ilícitos eticamente neutros, condutas existem, designadamente as do direito das contra-ordenações, que são axiologicamente neutras, as quais, em si mesmas, não podem ofender tais bens jurídicos nem tão-pouco ser referenciadas a uma ordem axiológica constitucional.
Estamos, pois, a operar com a noção de bem jurídico como princípio material de distinção, distinção esta que, sendo de algum modo discricionária, não é arbitrária – recorrer ao direito penal para tutelar bens ou fins organizatórios, de mera ordenação social, portanto, cujas condutas violadoras são, em si, eticamente neutras, seria violar o princípio do art.º 18º, n.º2, da C.R.P., o princípio da proibição do excesso, na sua vertente de princípio de necessidade.
Quando se considera que a protecção de determinados bens jurídicos é a pedra de toque da própria ordem e aqueles valem em perfeita autonomia, não se pode pedir, nem sequer atribuir, grande unidade ao resultado normativo de tais escolhas. O que sempre aparecerá como unitária é a escolha e não necessariamente o resultado normativo da própria escolha. Ao analisarmos tal unidade, no âmbito do direito penal, desde logo nos saltam à vista os fins que lhe presidem e os princípios que lhe fornecem solidez normativa. E, a este respeito, têm desde logo relevo fundamental os princípios da proporcionalidade, em sentido amplo, e da igualdade, sendo interessante notar como a discussão ideológica do direito gira cada em vez mais em torno deste último princípio.
É com base em tais princípios que a fragmentaridade que se revela como característica fundamental do direito penal e do direito constitucional, não põe em causa o seu sentido de unidade, unidade essa, no entanto, que só pode ter o significado de uma autonomia-dependente da ordem jurídico-penal.
Implicará tal fragmentaridade a impossibilidade de pensar uma valoração hierarquicamente estruturada? A honra, a dignidade, o património, a integridade física, ao perfilarem-se como bens jurídicos, com protecção constitucional, estão todos no mesmo nível de ponderação axiológica? Entendemos que não. Que sentido faria punir a violação do património se se despenalizasse a vida? E neste caso ainda existiria razão de existir para o direito penal? Não existiria aqui uma desproporcionalidade do direito penal que o tornaria não substancialmente análogo à Constituição? Note-se que a alternativa superadora estaria em, do mesmo jeito, não punir penalmente as condutas violadoras, quer dos bens patrimoniais, quer de um outro qualquer bem jurídico. Por outras palavras: a desproporcionalidade desapareceria, é óbvio, com o desaparecimento ou abolição de todo o direito penal incriminador.
Numa tal situação ter-se-ia violado o princípio da igualdade, o da proporcionalidade e o da tendencial coincidência material protectora.
O facto de o legislador punir mais fortemente as violações contra a vida quando comparadas com as violações que ofendem os bens patrimoniais não pode ser olhada como um acaso ou uma arbitrariedade; corresponde, antes, a um sentido, a uma intencionalidade que une , deve unir, todos os crimes definidos na parte especial do Código Penal. Corresponde uma tal forma de perceber à aceitação de que entre as diversas infracções da parte especial intercede, não só uma específica valoração de proporcionalidade que parte, primacialmente, da correspondência entre a gravidade da infracção e a gravidade da pena, mas também um juízo de perequação quanto aos mínimos e aos máximos das diferentes molduras penais abstractas.
A parte especial do Código Penal não é expressão de um conglomerado, antes nela se detecta uma coerência, quer ao nível da ordenação dos bens jurídicos – no que se traduz também aquela analogia substancial à Constituição do direito penal -, quer no âmbito – indissociavelmente ligado à anterior ordenação através de uma mútua reciprocidade - da definição das molduras penais abstractas.
A actuação do legislador ao nível da definição da moldura penal abstracta não pode ser imotivada, antes tem de atender a critérios materiais, desde logo, ao critério da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a pena.
Mas a relação de proporção ou de desproporção só pode ser compreendida dentro de um determinado quadro de valoração ou horizonte normativo.
É o próprio ordenamento jurídico existente que indicia, nomeadamente no âmbito do Código Penal, uma formulação sobre a hierarquização axiológica pressuposta pelo legislador.
Existem diferenças de valoração dentro do horizonte normativo no qual se realiza a operação normativa de aferição da proporcionalidade. E só assim, acrescente-se, se pode conceber. Pois só na diferença é que é concebível uma proporcionalidade.
Mas o problema da proporcionalidade, entre a infracção e a pena, não se pode ver exclusivamente através de um único segmento de valoração, nem, muito menos, arrancando da ideia simplista de que se está perante um juízo global de proporção ou de desproporção. Julgamos que a questão da proporcionalidade tem de ser olhada, fundamentalmente, a partir de dois princípios: de um princípio de perequação dos mínimos e de um princípio de perequação dos máximos.
Porém, para que tais princípios possam ser operatórios há que descobrir uma função para aqueles limites.
Assim, pensamos dever atribuir-se aos mínimos legais uma função de limiar abaixo do qual o legislador entende não ter sentido, logo desnecessária, a intervenção do direito penal, isto é: eles representam na arquitectura normativa o último grau ao qual pode descer a tutela jurídico-penal, enquanto os máximos se perfilam como o limite extremo até onde o ordenamento penal está disposto a assegurar a eficácia concreta da tutela.
Para nós, porém, é necessário ir mais longe ainda. É necessário entrar fundamentalmente em linha de conta com a ideia de bem jurídico e com o facto de que é também função da lei penal a prevenção, ou seja, não se pode esquecer a ressonância que qualquer Código Penal adquire no seio da comunidade e que lhe advém do impacto que a chamada «Parte Especial» provoca na consciência colectiva e, muito particularmente, na consciência individual dos membros daquela específica e precisa comunidade jurídica – o valor simbólico que o Código Penal desencadeia nas actuais sociedades coincide ponto por ponto, com a definição dos próprios tipos legais de crime.
Assim, se na fixação do limite de 25 anos do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal intervém um princípio de humanidade das penas, ou seja e no fundo, a ideia de dignidade humana, a crença na capacidade de ressocialização da pessoa humana, e também uma ideia de prevenção, na fixação do limite mínimo vale antes uma ideia de benefício/prejuízo que possa daí resultar para a pessoa e comunidade, ou seja, vale uma lógica de custos e prejuízos ligados ao cumprimento da pena – ex. não faria sentido impor um limite mínimo de um dia de prisão em vez dos trinta dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que a prisão tem inerente um estigma e um prejuízo que ofuscam por completo as vantagens para o delinquente e sociedade que derivariam do cumprimento de tal dia de prisão ( o que não invalida o disposto no art.º 49º, n.º 1, parte final, do Código Penal, pois que aí não existe alternativa senão a prisão ).
Mas entre o limite de 25 anos de prisão do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal e o limite de 30 dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do mesmo código a graduação far-se-á, na construção das molduras dos tipos legais de crimes, em função da importância do bem jurídico. E sendo os bens jurídicos protegidos pelo direito penal escassos ( no sentido de importantes ), então, actua aqui fundamentalmente uma ideia de necessidade do bem jurídico para a pessoa e para a comunidade.
Nesta sede haverá que perceber o modo de superação individual e/ou social das consequências negativas do crime. Dito de outro modo, haverá que considerar os efeitos possíveis da agressão ao bem jurídico.
Se se quisesse resumir, dir-se-ia que na fixação das molduras abstractas haverá aí também que respeitar o princípio da proibição do excesso do art.º 18º da Constituição da República Portuguesa.
Numa outra vertente, entendemos que, muito embora sem esquecer que o que legitima a incriminação é a ideia de bem jurídico e que a moldura abstracta das penas se liga antes à ideia de carência de tutela penal, a equiparação das penas abstractas da fraude fiscal às do homicídio simples seria inconstitucional, e desde logo por violação da ideia de bem jurídico como princípio material de distinção, do princípio da proporcionalidade (art.º 18º, n.º 2, da C.R.P.), e, no fundo, daquela ideia de analogia substancial entre o direito penal e a Constituição (cfr. a sistemática desta, de onde resulta manifestamente uma preferência pelos direitos, liberdades e garantias, porque mais directamente ligados à ideia de dignidade humana – há aqui bens jurídicos sem os quais a comunidade não é sequer pensável - e porque aos direitos económicos, sociais e culturais estará sempre inerente uma certa ideia de sistema).
Numa determinada óptica, talvez se pudesse afirmar que o direito penal secundário visa a protecção de bens jurídicos que, se comparados com os que iluminam o direito penal clássico, estão num nível mais baixo na escala da valoração axiológica, no sentido de que a menor gravidade penal deriva do «défice de legitimidade».
Todavia, para nós, a validade de tal ideia deve ser compaginada com o facto de que sendo tais bens jurídicos assumidos pela Constituição, então não há verdadeiramente «défice de legitimidade», porque tais novos bens jurídicos foram historicamente sedimentados. Em vez de «défice de legitimidade», conceito este de duvidoso alcance prático para o aplicador da lei constituída, mais correcto será recorrer ao binómio constitucionalidade/inconstitucionalidade.
Aliás, não se vê que défice de legitimidade exista no crime de fraude fiscal ( art.º 23º do R.J.I.F.N.A) quando confrontado, por exemplo, com o crime de burla p. e p. pelo art.º 220º do Cód. Penal. O carácter mutável dos factos ilícitos do direito penal secundário não vale para os crimes fiscais, uma vez que o bem jurídico respectivo se foi sedimentando e ganhou mesmo tutela directa na Constituição da República ( art.ºs 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa ).
Em sede de direito penal secundário, onde o tipo legal de crime se constrói amiudadas vezes como tipo legal de crime de perigo, fundamental é que o nexo de perigo seja minimamente densificado, pois não o sendo violar-se-á o principio da proporcionalidade em sentido amplo e assim o da intervenção mínima do direito penal.
Por outro lado, no que respeita ao modo de o legislador definir as condutas proibidas no âmbito do direito penal mais directamente ligado à tutela do sistema social em sentido amplo, não existe tanta legitimidade neste âmbito para recorrer à técnica da «descrição vazia» ( ex. matar ), impondo-se uma exacta definição das condutas proibidas. É, pois, de censurar a previsão de uma cláusula geral de evasão fiscal, até pela duvidosa constitucionalidade subjacente a tal violação do princípio da tipicidade, sendo de louvar o recurso no R.J.I.F.N.A, na redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24.11 ( o qual entrou em vigor a 01.01.1994 – cf. art.º 6º deste diploma ) à técnica dos exemplos-padrão – a este respeito é importante salientar a diferença entre o dizer-se «condutas susceptíveis de criarem perigo de diminuição de receitas» (crime de perigo concreto de protecção antecipada ), «condutas que criem perigo de diminuição de receitas» ( crime de perigo concreto ) e «condutas susceptíveis de diminuir as receitas» ( expressão que é utilizada nos crimes de perigo concreto e que é coadjuvada, no R.J.I.F.N.A actual, por exemplos-padrão, como sucede no R.J.I.F.N.A, com manifesta vantagem em termos de princípio da legalidade ).
Mesmo que a necessidade da pena se perfile como inquestionável e mesmo que se entenda que a sua concretização não fere o chamado núcleo essencial, mesmo assim há que compaginá-la com a ideia força inerente à proporcionalidade restrita. Sem dúvida que, se para punir uma fraude fiscal for cominada uma brutal pena de prisão, pode essa realidade justificar-se, eventualmente, através de uma ideia de necessidade; mas o que, com certeza, não honra é o princípio da proporcionalidade. Ao desvalor do facto objectivamente considerado há que fazer corresponder um desvalor no efeito (pena) também ele objectivamente proporcionado.
A essencialidade do bem jurídico pode justificar a incriminação, mas já não justificará penas desproporcionadas ou a violação do princípio da irrectroactividade da lei penal desfavorável
Numa outra linha de análise, afigura-se-nos que, por atenção ao bem jurídico tutelado na fraude fiscal (art.23º do R.J.I.F.N.A.), as penas abstractas desta deviam merecer equiparação às da fraude na obtenção de subsídio (art.36º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01), inexistindo razão para uma desconformidade como a que existe no nosso direito. E tal desproporcionalidade é tão ou mais evidente quando se tenha em consideração a economia portuguesa de hoje, em que o cumprimento dos critérios de convergência se revelam um interesse público essencialíssimo, para cuja convergência concorrem, afinal, as políticas sectoriais. Com o que estamos numa área de neo-criminalização, o que não é novidade para o direito penal secundário, a que indiscutivelmente ainda pertencem hoje aquelas normas. Pensamos que assim se restabelece a unidade da ordem jurídica penal à luz do bem jurídico, visto no seu ângulo funcional de elo de relacionamento entre o direito penal e o direito constitucional (note-se que não vemos, porém, o primeiro como direito penal «constitucionalizado» - para nós o direito constitucional tem o sentido supra-exposto, sendo bom recordar o seu sentido negativo, por exemplo, face ao princípio da legalidade do direito penal).
Um outro aspecto importante, é a iminente incorporação do direito penal fiscal no Código Penal (cfr. art.º 52º, n.º 1, alª b), da lei n.º 87-B/98, de 31.12). Quanto a isto importa dizer que, em termos de hierarquia valorativa, a incorporação no Código Penal de um ou vários tipos legais de crime – correspondentes a uma área unitária de matéria proibida e de proibição – arrasta um valor acrescentado, não só ao nível do símbolo, mas fundamentalmente na correspondência do seu tratamento dogmático. Se se perde espaço de manobra, o que não é líquido, ganha-se no reforço do princípio da tipicidade, inexistindo até obstáculo à previsão da punibilidade das pessoas colectivas (cfr. art.º 11º do Cód. Penal). A passagem do direito penal secundário a direito penal comum é, sob o ponto de vista estritamente dogmático, a muitas luzes, coisa secundária. E uma vez que falamos de crimes fiscais, diga-se que a relação de cuidado-de-perigo que se detecta no direito penal comum que é susceptível de uma fundamentação material está também por detrás do chamado direito penal secundário, mesmo quando este se afasta do real verdadeiro e entra inconsistentemente no mundo do «real construído».
Com tal decisão legislativa, com tal passagem, descobre-se ainda uma outra realidade, por vezes incompreendida e que tem impedido uma boa visão das relações de concurso de normas, qual seja, a de que não há uma diferença de grau ou de qualidade ( e nisto não existe qualquer contradição com o afirmado em cima a respeito de uma valoração hierarquicamente estruturada).
Não obstante, entendemos que seria preferível a elaboração de uma Lei da Criminalidade Económica, onde se incorporassem os tipos legais de crime que se refiram a bens jurídicos mais consolidados, como os crimes fiscais, posto que tal tipo de diploma é mais apto a soluções de consenso, a concessões à oportunidade ou a ideias de reparação. É esta, aliás, a nossa tradição de que é bom exemplo o Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01, diploma este a necessitar de urgente reforma.
Com base em tal noção de bem jurídico como princípio material de distinção também afirmaremos a impossibilidade de tributar a actividade lucrativa da prostituta, impondo-lhe o dever de declarar rendimentos e de pagar imposto e de a incriminar pelo abuso de confiança fiscal (imagine-se uma casa de passe que funcionasse, na ficção da lei, como uma empresa). É que, não só existe o crime de lenocínio (art.º 170º do Cód. Penal) como também existe a norma do art.º 280º do Cód. Civil, o que aponta no sentido da impossibilidade de o Estado, no fundo, ser de algum modo beneficiário de tal actividade ( ainda que não criminalizável – cfr. prostituição atípica ), sendo certo que não pode valer aqui a mesma racionalidade que se encontra subjacente ao disposto nos art.ºs 2º, n.º 1, alª c), e 19º, n.º 3, do Cód. do I.V.A. e 10º da Lei Geral Tributária (Dec. Lei n.º 398/98, de 17.12), visto que aí se trata de normas-sanção, que visam tributar a aparência de legalidade nos negócios fraudulentos, mas não a actividade fraudulenta como profissão (a nossa análise, como é óbvio, pelas limitações a que estamos sujeitos nesta exposição, ter-se-á de limitar a uma análise no plano das ideias e do direito penal).
Mas a noção de bem jurídico, como princípio material que é, importa ainda uma outra ideia em sede de crimes fiscais, dir-se-á até de direito penal secundário, designadamente a inconstitucionalidade de uma qualquer interpretação que, em abstracto, exclua as regras gerais do concurso, e isto quer no sentido de afirmar o mesmo à revelia da noção de bem jurídico ou de excluí-lo à mesma revelia.
A interpretação do art.º 13º do R.J.I.F.N.A. no sentido da afirmação de um qualquer princípio de especialidade à revelia da noção de bem jurídico configura uma manifesta violação do princípio da igualdade e da proibição do excesso (art. 13º e 18º da C.R.P), bem como do princípio da culpa e do “ne bis in idem”.
Não existem para nós especialidades ao nível de qualquer direito penal secundário que imponham uma tal derrogação às regras do concurso. E sinal manifesto disto mesmo no que respeita aos crimes fiscais é a remissão do art.º 107, n.º 2, da Lei Geral Tributária para o Código Penal e o disposto no art.º 52º, n.º 1, alª b), da Lei n.º 87-B/98, de 31.12 .
Antes, porém, da análise de tal questão, importa fazer uma análise do que seja a fraude fiscal no nosso ordenamento jurídico, à luz da ideia de bem jurídico.
O crime de fraude fiscal as­sume-se no nosso ordenamento jurídico como crime de resul­tado cortado e, por isso, também como um crime de perigo concreto.
É um crime de perigo concreto porque o resultado é an­tecipado para um momento anterior ao dano material, mais concreta­mente, para o momento em que o património fiscal do Estado é colocado numa insegurança tal que a respectiva le­são fica dependente tão-só do acaso.
Nos crimes de perigo abstracto ( ex: art.º 275º, n.º 2, do Cód. Penal ) o perigo não surge expressamente descrito no tipo de ilícito, constitui apenas o fundamento político le­gislativo da incriminação.
Nos crimes de perigo concreto o legislador incrimina uma conduta e associa a esta, na descrição típica, como um evento autónomo, um perigo para um bem jurídico tutelado. O perigo tem de ser efectivo e não mera­mente presumido.
No fundo, ao configurar a fraude fiscal como crime de perigo concreto, o que o legislador fez foi rejeitar a construção das infracções em causa como crimes de mera de­sobediência à administração fiscal, de omissão de colabora­ção com esta, de simples actividade ou de perigo abstracto.
Esclareça-se ainda que os crimes de perigo (concreto ou abstracto) podem surgir-nos ou como crimes de perigo comum ou como crimes de perigo singular.
Para que um crime de perigo tenha a natureza de crime de perigo comum ( Ex. art.ºs 272º e segs. do Código Penal ) tem de ser susceptível de causar um dano incontrolável (difuso), com potência expansiva, sendo apto a causar alarme social ( em sentido material que não processual).
Os crimes de perigo comum visam uma «defesa prévia», que só «a posteriori» e acessoriamente defende os interesses particulares e individuais.
Se os crimes de perigo comum visam proteger em geral o conjunto de condições garantido por um determinado ordenamento jurídico sempre que exista uma ameaça potencial a poder pairar ( em abstracto ) sobre uma grande quantidade de vidas ou de bens alheios de valor significativo, certo é que para a respectiva responsabilização e penalização basta que o perigo potencial se possa repercutir ou incidir sobre uma só pessoa ou coisa alheia, o que resulta numa contradição, pelo menos aparente, que levanta dificuldades à justeza do conceito de «perigo comum», e, ainda mais, à de «perigo colectivo».
Estamos, porém, convencidos de que a fraude fiscal é con­figurada no RJIFNA como um crime de perigo concreto sin­gu­lar, no sentido de que pela mesma não é colocada em perigo uma diversidade não determinável de bens jurídicos ( cfr. vida, integridade física, património, ambiente – cfr. art.º 272 do Cód. Penal, que é um crime de perigo concreto co­mum), mas sim e apenas um determinado interesse jurídico-penal, ainda que multifacetado, mas cujo núcleo se pode reconduzir às receitas tributárias.
Os valores públicos em confronto na fraude fiscal podem enquadrar-se numa dicotomia em que se veja, por um lado, o bem jurídico tutelado como a pretensão do Estado na deter­minação exacta dos factos fiscalmente relevantes ou, dife­rentemente, se identifique o valor protegido com a pre­tensão do Estado em obter integralmente as receitas fiscais que por lei lhe são devidas.
A primeira perspectiva associa o valor tutelado pelas normas penais a outras condutas fiscalmente relevantes dos cidadãos perante o Estado; o segundo entendimento acentua o interesse do Estado na obtenção de certos resultados ( a percepção das receitas tributárias) e as condutas criminal­mente valoradas deverão ser ponderadas em função das suas consequências. Em termos mais sintéticos, o valor tutelado na incriminação legal da fraude fiscal é, na primeira pers­pectiva, a ordem fiscal ( em sentido amplo - ou seja, o in­teresse na concreta determinação dos factos fiscalmente re­levantes) e , na segunda, o erário público.
Para nós, é do debate sobre a tensão entre estes dois valores que se pode determinar com rigor o bem jurídico tutelado pela incriminação da fraude fiscal.
A primeira das vias apontadas é de rejeitar. Um bem jurídico dessa natureza sempre será, por um lado, demasiado difuso, não resistindo, noutro plano, aos diversos elementos argu­mentativos que se podem carrear para o debate. Em termos históricos, resulta da autorização legislativa que suportou o Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, uma evidente preocupação em construir o crime por referência a um resul­tado lesivo no erário público ( V. o disposto no art.º 2, n.º 2, al. a), 1º da Lei n.º 88/89, de 11 de Se­tem­bro), não se bastando com meras condutas em abstracto peri­gosas por parte dos contribuintes ou com a omissão de deve­res de colaboração para com as autoridades fiscais. Preo­cupação essa igual e expressamente referida doutrinariamente nos anteprojectos que deram origem ao diploma em causa (atente-se nas passagens do anteprojecto Figueiredo Dias/ Faria Costa, invocado por Alfredo José de Sousa, In­fracções Fiscais Não aduaneiras, Anotado e documentado, Al­medina, Coimbra, 1990, paginas 60, 80-81).
Saliente-se ainda que a identificação do bem jurídico tutelado pela incriminação de fraude fiscal com a " ordem fiscal", em sentido amplo, é contrariado por diversos ele­mentos de carácter sistemático.
Desde logo pela construção do crime como de perigo concreto, pois se o legislador quisesse tutelar a ordem fiscal lato sensu deveria ter construído a incriminação como infracção de perigo abstracto.
Além do mais, a dicotomia infraccional " cri­­­­­­­­­­­mes/contra-ordenações" perderia sentido, pois se o propósito do le­gislador fosse o de tutelar a "ordem fiscal" não se justi­ficaria que sancionasse como meras contra-ordenações os fac­tos previstos nos artigos 28º a 40º do Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15.01 - estes sim, ilícitos destinados a zelar por certos aspectos da ordem fiscal em sentido amplo. Finalmente, é de reter a importância dada pelo legislador às condutas repa­ra­doras que permitem o arquivamento do processo e a isenção da pena prevista no art.º 26º do RJIFNA: o funcionamento do preceito depende de ser reparada a lesão no erário público.
Ora, se os valores tutelados pela incriminação da fraude fiscal fossem genericamente aspectos da regularidade da ordem fiscal, não se poderia aceitar que o agente fiscal visse arquivado o processo ou ficasse isento de pena por, apesar de ter violado esses valores, reparar o "erário pu­blico".
Por outro lado, se se considerasse que o bem jurídico-criminal em causa na fraude fiscal era a segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico com documentos ( cf. neste sentido: o Ac. do S.T.J., de 28.04.1999, no Processo n.º 302/97-3ª Secção ), sem atentar na especificidade de nos movermos numa área particular que é a da prática fiscal, o simples acto de introduzir uma «factura falsa» (cf. sobre este conceito, Nuno Sá Gomes, em Relevância Jurídica, Penal e Fiscal e Respectivos Fluxos Financeiros, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 337, págs. 10 e segs., Ac. Tribunal Judicial de Loulé no Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, e Patrícia Noiret Silveira da Cunha, em “A Fraude Fiscal no Direito Português”, in Revista Jurídica, 22, págs. 281 segs. ) na contabilidade não lesava o bem jurídico, mas colocava-o em perigo de lesão, pelo que a fraude fiscal estaria consumada nessa data, o que é verdadeiramente absurdo, uma vez que é o próprio legislador a admitir a fase da tentativa no art.º 23º do R.J.I.F.N.A. ( cfr. redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24.11 ).
A este respeito e fazendo aqui um parêntesis, diga-se que a tentativa de fraude fiscal é possível porque tais crimes fiscais do art.º 23º do R.J.I.F.N.A. admitem a possibilidade ou até exigem vários actos de execução, podendo por isso realizar-se uma execução incompleta.
O crime de fraude fiscal exige para a consumação um certo acontecimento e por isso admite a possibilidade de uma execução completa, sem que o resultado se siga.
A tentativa liga-se não à actividade de lesão ou ao resultado-lesão, mas sim à actividade de perigo ou ao resultado-perigo. A tentativa de fraude fiscal não é uma «tentativa de tentativa» nem um acto preparatório punível, pois que se incrimina directamente a tentativa como crime consumado.
Não existe nem pode existir tentativa de tentativa, «prática de actos de execução» de uma tentativa. Juridicamente a tentativa de tentativa é uma figura impossível de conceptualizar. A tentativa exige necessariamente uma referência a um crime de consumação, a outra «forma» de facto punível.

Nos crimes de perigo concreto, o resultado ( cortado ) não é um perigo não traduzido em qualquer facto tipicamente determinado. Não se pode afirmar a inexistência de uma descrição objectiva de uma acção e/ou de um resultado que propicie a determinação clara das fronteiras entre a plena realização do comportamento incriminado e um seu começo de execução. Há um ponto de referência para se sustentar a admissibilidade da tentativa. É possível distinguir um momento em que há tentativa de outro momento em que há consumação ( cfr. fraude consumada ) e de um outro em que há já dano consumado, sendo certo que, se há áreas de intercessão, é porque se pretendeu reforçar a protecção do bem jurídico tutelado, o que, porém, não invalida o necessário recurso às regras gerais do concurso.No caso da fraude fiscal, o ponto de referência para uma distinção entre o tentar e o consumar é um termo, uma data limite fixada por lei.
Mas a consumação não deixa de ser um tentar algo, uma intenção de obter outro resultado.
É para este tipo de crimes que vale o disposto no art.º 24º, n.º 1, parte final, do Código Penal, ou seja, para os crimes em que o resultado é exterior ao tipo legal de crime e, portanto, indiferente à afirmação da sua consumação, mas não indiferente à valoração do ilícito. Constitui ao fim e ao cabo o resultado que o legislador pretendeu evitar, ao estabelecer, por razões determinadas e que têm a ver com a necessidade sentida de reforçar a protecção de um bem jurídico a antecipação da consumação, por relação à lesão efectiva do bem jurídico tutelado.
No fundo são razões de política criminal que terão levado o legislador a formalmente considerar consumados delitos em que a conduta incriminada apenas cria uma situação de perigo para o bem jurídico, que induziram o legislador a, evitada ( voluntariamente ) a produção daquilo que, afinal, ele pretendeu impedir, decidir-se pela impunidade do agente.
Mas o resultado não é de forma alguma uma condição objectiva de punibilidade, pois a consumação não depende da sua ocorrência, mas sim do perigo.
Resultado não compreendido no tipo de crime não será, pois, outra coisa que «o resultado que a lei quer evitar se verifique», expressão possivelmente mais feliz utilizada no art.º 382º do Código Penal de 1982, e que não difere, aliás, das outras que no seio da Comissão Revisora foram sugeridas para substituir a fórmula originária do art.º 25º do Projecto ( cfr. Actas, Parte Geral, pág. 187 ).
Retomando a nossa argumentação, refira-se também que não é qualquer conduta de simula­ção, ocultação ou alteração dos factos fiscalmente relevan­tes que integra o tipo, mas apenas aquelas que sejam diri­gidas " a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado" (redacção inicial do art.º 23º, n.º 1) ou, como refere hoje o preceito, «que visem a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias». Ou seja, exige-se um plus em relação à conduta ilícita.
Igual ideia é corroborada pelo facto de existir, na redacção inicial do art.º 23º do R.J.I.F.N.A, uma agravante em função da vantagem patrimonial indevida, em princípio o re­verso do prejuízo causado, recorrendo hoje o preceito à técnica dos exemplos-padrão ( cf. sobre este conceito, Teresa Serra, “Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, 1990, págs. 58 e segs. ).
As referências da al. a) do n.º 2 e do n.º 4 do art.º 23º do Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15.01, e da al. a) do n.º 3 e do n.º 5 do art.º 23º do mesmo diploma, com a redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24/11, a um determinado quantitativo de vantagem patrimonial indevida é considerado por determinado sector doutrinal em Espanha (cfr. Muñoz Conde, Bacigalupo e Bus­tos) como a previsão de condições objectivas de punibilidade por parte do legislador. Já outro sector doutrinal ( cfr. Martinez Perez e Bajo) entende que tais quantias têm a na­tureza de resultado do delito.
A nosso ver não se pode falar de condição objectiva de punibilidade, dado que não se trata de qualquer facto futuro e incerto, nem a quantia com que se defrauda a Fazenda Pú­blica se encontra causalmente desvinculada da conduta de­litual, devendo estar compreendida no dolo a vontade de de­fraudar efectivamente nesse montante ( cfr. neste sentido, as Sentencias del Tribunal Supremo de 2 de Marzo de 1988 y de las Audiencias Provinciales de Madrid de 27 de Marzo de 1989 y de Las Palmas de 14 de Diciembre de 1987).
A este respeito é interessante salientar o esforço de Augusto Silva Dias para demonstrar que a expressão «que visem» do n.º 1 do art.º 23º do R.J.I.F.N.A se refere às «condutas ilegítimas», não sendo elemento subjectivo do tipo. Ou seja, para A. Silva Dias trata-se aí de um elemento objectivo que designa a aptidão ou tendência das acções descritas no n.º 2 para a não liquidação, não entrega ou não pagamento do imposto ou para a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais. Para tal autor, na acentuação da especial idoneidade para influir em qualquer das operações mencionadas, pretende afastar-se da tipicidade as condutas de ocultação ou alteração de dados que não tenham qualquer interferência no cálculo do imposto ( «Crimes e contra-ordenações fiscais», Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinais, Vol. II, págs. 439 e segs.).
Para A. Silva Dias a substituição da expressão «intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida», que constava da redacção inicial do art.º 23º, n.º 1, do R.J.I.F.N.A, pela expressão «que visem», retira ao crime em análise a natureza de crime de resultado cortado, ou seja, dado que esta expressão apenas traduz a adequação necessária das condutas, não se está perante um crime de tendência interna transcendente.
Chega mesmo ao ponto de sustentar que, se o agente do crime tem sérias dúvidas sobre os efeitos que, por exemplo, a ocultação de um determinado dado tem para a liquidação ou obtenção de benefícios, se ele quase desacredita da idoneidade da acção para obter aquele resultado, mas apesar de tudo age conformando-se com o que vier, não haverá dolo eventual de fraude fiscal porque escapa à representação do agente a especial aptidão exigida pelo tipo.
Ou seja, com esta afirmação, com a qual não concordamos, não obstante a formulação demasiado vaga para ser objecto de crítica, tal autor contradiz tudo o que havia dito, reconhecendo, afinal, que na expressão «que visem» está presente não só um momento de adequação objectiva da conduta mas também um momento subjectivo.
Aliás, é óbvio que na fraude fiscal se procura um resultado de enriquecimento ilegítimo, que existe uma tendência interna transcendente.
Repare-se ainda que o crime de fraude fiscal foi configurado como crime de intenção, prescindindo-se do prejuízo efectivo, não porque o legislador português tivesse aderido à chamada “Escola de Bona” (cf. Demuth, H.,Gelfabrbegrift, pág.145), para a qual o que é relevante, em termos jurídico-penais, em sede de comportamento típico, é o desvalor de acção sendo o resultado (o desvalor de resultado ) uma mera condição objectiva de punibilidade . O resultado é totalmente irrelevante para a determinação do conteúdo do ilícito típico.
Para esta escola tanto monta estarmos perante um resultado danoso como perante um resultado perigoso: ambos serão ou desempenharão uma função de condição objectiva de punibilidade.
Da redacção do art.º 26º do RJIFNA poderia, apa­rente­mente, retirar-se um conclusão algo diferente quanto ao bem jurí­dico tutelado, na medida em que reporta a conduta do agente à “reposição da verdade fiscal", o que levaria a identifi­car o valor tutelado com este conceito ( neste sentido, Alfredo José de Sousa, ob. cit. pág. 80). Contudo, o argu­mento, radicando no citado art.º 26º, não pode colher, já que não basta a reposi­ção da verdade fiscal, sendo antes necessária uma efectiva reparação de carácter patrimonial.
A este respeito também nos parece laborar em erro quem considera tal dispositivo de aplicação automática, à luz do R.J.I.F.N.A., afirmando que neste artigo se operou a consagração de uma condição objectiva de punibilidade. Ora, parece-nos que assim não será, pois, caso contrário, teria o legislador escrito “deve” onde se lê “ pode”.
Convém aqui recordar o disposto no art.º 9º, n.º 3, do Cód. Civil.
Repare-se , por outro lado, na inconstitucionalidade subjacente à redacção inicial do artº26º, nº1, do R.J.I.F.N.A., ao retirar ao Ministério Público o monopólio da acção penal, confiando a perseguição penal a uma autoridade não sujeita a quaisquer critérios de estrita objectividade, violando-se assim a Constituição. Queremos referirmo-nos à parte de tal norma em que se dizia que “ ...o processo poderá ser enviado ao Ministério Público para efeitos de eventual arquivamento...”, esquecendo aí o legislador o disposto no art.º 248º do C. P. Penal, aplicável por força do art.º 41º do aludido Regime Jurídico ( a este respeito remetemos para o douto despacho de 17.10.1996 de Sua Excelência o Conselheiro Procurador-Geral da República - Circular n.º 6/96 da P.G.R. de 21.10.1996 ).
Para nós, o arquivamento está condicionado às exigências de prevenção geral e especial e ao grau de gravidade da conduta do agente, tendo, aliás, a redacção actual natureza interpretativa, por força da inconstitucionalidade referida.
No sentido exposto depõe também o facto de que a isenção de pena ( cfr. art.º 26º do R.J.I.F.N.A.) apenas se aplica aos casos de pouca importância do crime (insignificante conteúdo do injusto e/ou da culpabilidade).
À luz do disposto no art.º 26º citado, o perigo revela-se no entender do legislador como uma noção gradativa, mas não num sentido quantitativo ( esse sentido foi também acolhido, mas de forma ainda mais marginal, designadamente no que respeita às referências a valores previstas no art.º 23º do R.J.I.F.N.A, desiderato, aliás, parcialmente frustrado por força da necessária interpretação ab-rogante que se terá de fazer do art.º 23º, n.º 5, do R.J.I.F.N.A, por incompatibilidade lógica com a alª a) do n.º 3 do artigo ).
Não faria sentido falar-se aqui em «perigos fortes e fracos», à semelhança de Artz/Weber.
Também não faz sentido dizer-se que o art.º 26º corresponde, no fundo, à possibilidade de prova de inexistência de perigo, retirando daí a conclusão de que se está na fraude fiscal em face de um crime de perigo abstracto-concreto. Todavia, regimes como o aí consagrado não fazem sentido em relação a perigos comuns. Sinal manifesto de que se está perante um bem jurídico individual, cuja natureza pública confere uma densidade acrescida ao nexo de perigo e permite dar ao bem jurídico em causa uma dimensão funcional especial.
A prova da inexistência do perigo concreto para o bem jurídico protegido já é admitida no âmbito do disposto no art.º 23º do R.J.I.F.N.A, isto é, em momento anterior ao do recurso ao disposto no art.º 26º do mesmo diploma legal, o que resulta da utilização da expressão «...susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias...».
Faz sim sentido é perceber que o legislador pretende, por razões de política criminal, prescindir, dentro dos condicionalismos impostos pela assunção do princípio da legalidade como matriz, da perseguição de casos de pequena monta, porque o que interessa é concentrar esforços nos que geram a injustiça fiscal, nos que violam a igualdade.
Entender o art.º 26º do R.J.I.F.N.A. com aquele sentido automático ( cf. neste sentido, o Acórdão do Tribunal Judicial de Loulé e do Supremo Tribunal de Justiça de 28.04.1999, citado, formulados no Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, daquele primeiro tribunal ) seria perder a prevenção geral e conceder razão a quem vê na quantidade a verdadeira distinção entre crimes e contra-ordenações. Ora, como queremos demonstrar, o critério quantitativo, no âmbito da fundamentação dos crimes de perigo, é para nós marginal, servindo para excluir a incriminação ou graduá-la, mas não para explicar o quid materialmente diferenciador que legitime uma proibição e que ilegitime outra.
Para nós, não é também numa ideia de «reparação», ou seja, de direito penal reparador, uma espécie de terceira via, que se encontra fundamento para a inserção do «deve» no art.º 26º do R.J.I.F.N.A. . O punir apenas quando não se arrecadar o imposto é, no fundo, retirar a legitimidade ao direito penal fiscal, convertê-lo num mero sistema de cobrança impostos, que não é. O fundamento material deste direito é aquilo que procuramos demonstrar neste trabalho, sob diversos nódulos problemáticos e sempre norteados pela ideia de bem jurídico, com aquele sentido trans-sistemático já aludido.
Defendemos assim uma oportunidade limitada.
No art.º 26º estabeleceu-se, até à remessa dos autos para a fase de julgamento, uma causa pessoal de exclusão da punição, como refere Faria Costa, na página 46 do Parecer da sua autoria junto ao Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, do Tribunal Judicial de Loulé.
A ideia de reparação aludida já terá utilidade para fundamentar o disposto no art.º 39º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01. .
Note-se ainda que do art.º 26º não resulta qualquer concessão à tese que sustenta que a gravidade mínima exigida para se construir uma infracção penalmente relevante deve ser tanto mais elevada quanto menor for o valor do bem jurídico tutelado na hierarquia axiológica do ordenamento constitucional.
Do que se trata no art.º 26º não é de uma questão de valor do bem jurídico, mas tão-só da gravidade da ofensa ao mesmo. O valor do bem jurídico resta intocável.
O mesmo se diga do estatuído na Lei n.º 51-A/96, de 09.12.
Por esta via se contestam os que vêm neste preceito uma manifestação da «artificialidade» do bem jurídico protegido com a incriminação da fraude fiscal. Tal modo de encarar as coisas mais não traduz do que uma incapacidade de encontrar um critério material de distinção entre crimes e contra-ordenações e dentro dos crimes entre os diferentes tipos de perigo.
Mas já admitimos uma certa «atipicidade» do tipo legal de crime de fraude fiscal no âmbito dos crimes de perigo concreto, mas que não lhe retira esta natureza.
A tese da elevação da gravidade mínima em função da menor valia do bem jurídico conduziria a um radicalismo estático que determinaria a impossibilidade de um combate consequente a todas as novas formas de criminalidade. Tem de haver um espaço livre de incriminação do legislador, aquela imprescindível margem que permite que os ataques ou violações a novos bens jurídicos, historicamente sedimentados, sejam sancionados criminalmente.
Tal tese nega a autonomia/dependente do direito penal, a que já aludimos.
Não se nega, porém, que tem de haver, como já sustentámos supra, uma proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a definição do componente sancionador. E o art.º 26º vem no fundo trazer um reforço da proporcionalidade na incriminação da fraude fiscal, não se compreendendo porque razão não se introduz tal lógica no âmbito do art.º 36º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01., prevendo-se uma atenuação da pena abstracta para casos de pequena gravidade, à semelhança do que sucedia com o disposto no art.º 228º, n.º 4, do Código Penal de 1982, dispositivo este sem paralelo, infelizmente, no Código Penal actualmente em vigor e porque, mais uma vez, se entendeu que a abstracção deste crime de perigo não seria compaginável com uma ideia de menor gravidade. Tal lógica, porém, não é de funcionalização do direito penal, mas sim de o reforçar através da ideia de proporcionalidade.
Ora, isto abre uma outra linha de discussão, qual seja, a de saber qual a verdadeira fundamentação dos crimes de perigo abstracto, aspecto este que abordaremos mais à frente e que permitirá compreender o que agora se afirma.
O valor que em última linha parece orientar o legislador, no R.J.I.F.N.A. é, efectivamente, a protecção patrimo­nial do "erário público".
Em relação à tutela do erário público a "verdade fis­cal" tem uma natureza instrumental. Não se nega que seja também um valor tutelado, mas sê-lo-á em termos instrumen­tais e não finais, tal como acontece com a relação peri­­­­­­­­­­go/dano. Em termos imediatos, a reposição da verdade fiscal é a forma idónea de impedir ou neutralizar o perigo que con­suma o tipo de ilícito. Já a reposição das quantias de­vidas traduz-se no impedimento do dano efectivo.
O bem jurídico teleológicamente protegido pela norma é, pois, o erário público nos termos descritos, importando agora salientar que o mesmo deve ser visto no R.J.I.F.N.A. na sua dimensão funcional: encontra-se funcionalmente vinculado a fins de interesse geral, à consecução de objectivos de política económica, apoiados constitucionalmente.
Porém, não se protegem no R.J.I.F.N.A., contrariamente a outros delitos económicos ( cf. art.º 37º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01 ), fins concretos, fixados por determinado organismo estadual e de acordo com um determinado plano ( ex.: subvencional ). E, assim sendo, não é legítimo concluir que a danosidade da conduta supera o nível do prejuízo da funcionalidade dos recursos públicos.
O facto de o crime ser de perigo concreto não prejudica tal conclusão, pois tal apenas significa uma antecipação da tutela penal e não que se esteja perante outro valor tute­lado. Ilustre-se o que se acaba de dizer com os crimes con­tra a integridade física previstos nos art.ºs 142.º e segs. do Código Penal de 1982: o bem jurídico protegido é sempre a integridade física, mas as incriminações tanto podem ser de lesão ( Art.º 142), de perigo abstracto-concreto ( art 146, nº 1) ou de perigo concreto (art 144, nº 1).
Sobre a natureza do crime de fraude fiscal em Espanha são elucidativas as sentenças de 12.03.1986 ( Ar. 1462 ) e de 12.05.1986 ( Ar. 2449 ) do Supremo Tribunal de Espanha ( publicadas em “El Delito Fiscal”, Introducción y selección, de António Aparicio Pérez, Tecnos, págs 24 e segs e 28 e segs ), onde se diz que no que respeita à natureza jurídica da infracção estudada, com anterioridade à Lei de 1977, estimava-se que se tratava de um facto punível contrário à fé pública, tese que abonava a sua colocação dentro do capítulo dedicado às falsidades; mas, após tal lei, entende-se que se trata de um delito sócio-económico que atenta contra os interesses patrimoniais do Estado e das entidades locais ou autonómicas.
A doutrina alemã, de maneira expressa, diz-nos que o bem jurídico protegido é «das Steueraufkommen» ( cf. LAMMERDING/HACKEN BROCH/SUDAU, Steuersfrafrecht, 6ª edição, Achim: Fleischer, 1993, ( N. 21 ), P. 13 ), vale por dizer: o bem jurídico defendido são as receitas dos impostos ( cf. Faria da Costa, Parecer, nota 37 da pág. 39 ).
Por aqui se vê que não podemos concordar com a tese do concurso efectivo entre burla e fraude fiscal seguida nos Acórdãos do STJ de 04-10.1995 e 11.10.1995, proferidos res­pectivamente nos processos nº 47.891 e 47.938.
A obtenção de dados estatísticos não é, por si só, su­ficiente para legitimar a criação de um tipo legal de crime, sob pena de violação do princípio da necessidade e da in­tervenção mínima do direito penal.
Por outro lado, o argumento de que no Código Penal só se punem os crimes comuns, mas não os crimes “especiais”, como o de fraude fiscal, parte de uma premissa viciada: a da fragmentação do sistema penal em compartimentos estanques, com características e regras incomunicáveis.
Mas não é isso o que acontece, pois o sistema jurídico-penal é necessariamente uno, tendo como peça estrutural o Código Penal, e apenas admite certas especializações, ditadas pela especificidade de certos tipos de ilícito ( crimes aduaneiros, crimes económicos, tráfico de estupefacientes, etc. ). Mas essas especializações têm que ser expressamente previstas na lei para derrogarem o regime geral. De outra forma o Código Penal, com a sua vocação globalizante, aplicar-se-á a todo o sistema jurídico-penal.
Não negamos o efeito indício gerado pelo facto do R.J.I.F.N.A constituir uma região normativa especial, isto é, não pomos em causa que o legislador, ao instituir uma nova área normativa incriminadora quer, segundo as mais elementares regras da interpretação jurídico-hermenêutica, que, essa precisa zona jurídico-normativa seja vista como lei especial.
Só que, para nós, tal especialidade não é senão sistemática, não interferindo nunca nas regras gerais do concurso ( em sentido inverso, vide o Ac. S.T.J. de 28.04.1999, citado ). Ou seja, de um ponto de vista sistemático o direito penal fiscal é um ramo especial do direito penal, mas não há qualquer razão, nem tal seria possível, à luz dos princípios enunciados, para derrogar as regras gerais do concurso, sendo certo que o legislador ordinário se encontra submetido à Constituição e não podia afastar as regras em apreço.
Na verdade, com base naquela especialidade sistemática não é possível afirmar-se uma especialidade ratione materiae, alegando-se ter sido essa a intenção do legislador e ser essa a intenção do legislador e ser essa a tradição legislativa e até jurisprudencial e até a vontade de um saudoso mestre de direito.
Se assim fosse, seria a concessão ao caos, à arbitrariedade, pois que a especialidade em direito penal é um conceito bem definido e só funciona nos termos indicados neste texto, ou seja, embora em abstracto ( contrariamente à consunção, que funciona em concreto ), por referência a tipos legais de crime.
Como ensina Cavaleiro Ferreira, em Direito Penal Português, volume I, ed. 1981, Capítulo II, ponto 44-II, fundamentalmente opõem-se duas correntes doutrinárias quanto ao sentido da interpretação da lei: uma que propugna uma interpretação subjectiva, consonante com a vontade do legislador e o fim por ele expresso ou impresso à vontade, e outro que propugna uma interpretação objectiva e teleológica.
Na primeira orientação, que é, no fundo, a que tem sido seguida pela maior parte dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em sede de processos por crimes fiscais, predomina a utilização dos meios de interpretação gramatical, do elemento histórico e da finalidade originária da lei.
Na interpretação objectiva, teleológica, predomina o pensamento objectivo da lei, que se sobrepõe ao pensamento do legislador e é susceptível, para além de atentar nas circunstâncias em que foi elaborada e que a determinaram, de ter em atenção a adaptação do espírito objectivo da lei a novas circunstâncias, às circunstâncias específicas do tempo em que é aplicada.
Justifica-se assim uma interpretação ou pretende-se uma interpretação que não é inovadora mas é, de alguma sorte, progressiva, enquanto a lei, com vida autónoma relativamente ao legislador, é susceptível de alteração quanto ao seu sentido em função do elemento sistemático e da conexão do sentido objectivo da lei com as novas circunstâncias da vida real.
É por isso que não conseguimos entender a jurisprudência portuguesa em sede de crimes fiscais e também não conseguimos perceber como se possa afirmar que o regime jurídico das infracções fiscais «...não é «um mais», algo que acresça, ao Direito Penal comum...», retirando daí não só a conclusão de que não só não existe concurso efectivo ( com o que concordamos ) entre burla, falsificação e fraude fiscal, mas também a conclusão ( com a qual não concordamos ) de que a fraude fiscal afasta sempre o recurso ao tipo legal de crime de burla e de falsificação, quando é certo que não se contesta que o bem jurídico protegido na fraude fiscal é «...em última instância a defesa da prestação tributária...» ( cf. neste sentido, o Ac. S.T.J., de 01.10.1997, ainda inédito, onde se invoca também a natureza institucional do direito penal fiscal para afirmar tal especialidade, o que já contestámos supra).
Mas, como procuramos demonstrar, as regras do concurso afastam a aplicabilidade simultânea do tipo do art.º 23º do R.J.I.F.N.A , do tipo de falsificação e do tipo de burla.
Interessante é notar que, para Alfredo José de Sousa, o bem jurídico tutelado é a Fazenda Pública como sistema di­nâmico de obtenção de receitas e realização de despesas, isto é, mais do que o património estático do Estado. É um bem jurídico diverso daquele de que são titulares os membros da comunidade, já que a não arrecadação dos impostos devidos ou a realização incorrecta da despesa pública se repercute negativamente sobre os benefícios que cada cidadão espera obter do estado na sua actuação sobre a vida social ( In­fracções Fiscais Não Aduaneiras, Almedina, pág. 98).
Afigura-se-nos porém que, numa ordem jurídica democrática, a possível discrepância do cidadão a respeito das diversas funções assinaladas à Administração é elemento ine­rente à mesma, de sorte que a mera desobediência, o inc­um­primento de obrigação formais, não pode erigir-se em con­teúdo do injusto penal. Nem tão pouco as consequências ma­teriais que daí derivem, quando não se afecta outro bem.
Por outro lado, a teoria da função do imposto, como exclusivo objecto de protecção, suporia uma não pouca in­segurança jurídica pelo inabarcável dos seus limites e, portanto, ante a impossibilidade de conformar taxativamente o injusto típico.
Torna-se assim ilegítimo o recurso à via alternativa da construção de crimes de desobediência em detrimento da opção pela construção de crimes de perigo abstracto. Nenhuma destas soluções é fundada e pelas razões expostas.
Refira-se ainda que tutelando o crime de burla também o património público, necessariamente tutela, por via me­diata ou reflexa, os valores a ele associados de igualdade e jus­tiça social ( ex: imagine-se uma burla a uma instituição de caridade - com o tipo legal de crime de burla tutela-se o património de tal instituição, mas também, por via reflexa, os fins a que o mesmo se destinava ).
Só existindo fraude fiscal a ocorrência do resultado ( não entrega do imposto devido ou recebimento de reembolso indevido) deve relevar como medida de avaliação do perigo causado. Nessa medida, a produção do resultado deve ser va­lorada em sede de medida concreta da pena a título de agra­vante geral.
Mas, existindo burla, então o dolo imputável à activi­dade que cria o perigo tutelado pela fraude fiscal está contido no dolo imputável ao crime de lesão (burla).
Toda a conduta de lesão do bem jurídico supõe uma tran­sição pelo perigo dela; daqui que a lesão do interesse contenha já em si, e que por isso a sua punição consuma, o conteúdo criminal das actividades que no caso concreto a põem em perigo.
Ponto é que o dolo à base do qual se imputa a activi­dade de perigo seja o necessariamente contido na imputação dolosa do dano ( cfr. Prof. Beleza dos Santos, RLJ, ano 67, págs. 242 a 243) ou que, de qualquer maneira, se possa afirmar entre as diversas actividades numa unidade resul­tante de continuação criminosa. Só pressupondo isto se pode na verdade dizer que a punição da lesão de um bem jurídico consome o conteúdo das situações que concretamente o põem em perigo.
Para que a consunção possa ter lugar é, porém, sempre necessário investigar também cuidadosamente se o círculo de bens jurídicos, cujo perigo de lesão uma determinada norma prevê, coincide com aquele cujo dano uma outra proíbe.
Só quando se trata do mesmo interesse mas diferente­mente valorado se pode considerar a existência de consunção.
Assentam os doutos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.1995 e de 11.10.1995, supra-citados, na tese de que os bens jurídicos são distintos na fraude fiscal e na burla, com o argumento de que na primeira está em causa o desvalor da acção e na segunda o desvalor do resultado.
Tal fundamentação é incorrecta, salvo o devido res­peito, pois aquilo a que se referem tais Acórdãos é aos modos de tutela de um bem jurídico.
Vejamos o caso do bem jurídico "vida":
Tal bem jurídico reveste uma dignidade penal tal que se pode descortinar ao longo do Código Penal uma verdadeira " protecção plural" do mesmo. Na verdade, não só se pune a tentativa de homicídio, como o crime de homicídio consumado, como, inclusive, se tutela a mesma vida através de crimes de perigo.
Tal é a prova mais evidente de que a fundamentação uti­lizada por tais acórdãos confunde medidas de tutela com diversidade de bens jurídicos.
Não me parece, pois, que o bem jurídico protegido por uma norma deva ser identificado por recurso a tal critério.
O verdadeiro critério a utilizar terá de ser aquele que procura no tipo legal de crime a verdadeira intenção do le­gislador, tipo esse que deve ser visto na sua máxima signi­fi­cância, ou seja, não só em si mas também no contexto em que foi gerado e em que se insere. No fundo, valem também aqui as regras gerais de interpretação, que nos dizem que é ne­cessário atender:
ao elemento literal da norma,
ao elemento histórico,
ao elemento racional e
ao elemento sistemático.
Pode mesmo dizer-se que a tarefa de aplicação de uma norma penal passa em primeira linha pela tarefa da sua in­terpretação. E o que o intérprete do direito penal deve desde logo procurar, sobretudo quando se depara perante um crime de perigo, é o bem jurídico protegido pela norma pe­nal.
Na verdade, uma acção é perigosa, não porque carrega em si mesma o modo-de-ser perigoso - conclusão a que levará a singeleza do critério do STJ.-; uma acção é perigosa porque efectivamente pôs em perigo um determinado bem jurídico.
Mesmo em sede de crimes de perigo abstracto, estes só se podem verdadeiramente justificar quando, se bem que uni­camente através de um cuidado-de-perigo, se quer ainda pro­teger um bem jurídico com dignidade penal - o critério não é, pois, o da probalidade do pôr-em-perigo: uma acção não é perigosa porque carrega em si mesma o modo-de-ser perigoso.
Vale nesta sede o princípio da ofensidade, que liga o momento relacional de cuidado-de-perigo fundante dos crimes de perigo abstracto com a mediação de um concreto bem jurí­dico.
Podem, na verdade, descortinar-se tipologias de "agressão" ao bem jurídico:
a) Para Grasso a distinção far-se-ia entre:
- dano;
- perigo:
. directo - crimes de perigo concreto;
. indirecto - crimes de perigo abstracto;
b) Para Faria Costa a distinção faz-se por apelo a um princípio de ofensidade:
- dano/ violação;
- concreto/pôr-em-perigo
( crimes de perigo concreto);
- cuidado-de-perigo
( crimes de perigo abstracto).
Note-se que para nós o perigo não é um dano para o direito penal, embora o possa ser para outros efeitos. O perigo é um resultado, mas não é um dano.
Assim, não distinguimos entre dano e lesão para tal efeito.
Admitimos, porém, que a riqueza da linguagem possa surpreender outras terminologias.
Este autor critica a subdistinção entre perigo directo e indirecto, porque no fundo o perigo tem de ser sempre efec­tivo, mas não no sentido da acção ilícita se ter de ma­teri­alizar num qualquer prejuízo, antes sim no sentido de o pe­rigo para o bem jurídico ter de ser efectivo.
Já a idoneidade que transparece do juízo que assenta na capacidade de pôr-em-perigo baseia-se na aceitação de constantes que enformam e conformam o quotidiano analí­tico-compreensivo no seio da normatividade que anali­samos.
O perigo não pode ser visto em termos naturalísticos, mas sim fazendo apelo a um juízo que radicará em investigar se, aparentemente e segundo as regras da experiência comum, a actividade do agente, no conjunto das circunstâncias que o rodeiam e do objecto a que se dirige, é ou não adequada a preencher um certo tipo legal de crime – vale ainda aqui um critério subjectivo mitigado, que permite a construção de um conceito unitário de tentativa, devendo, porém, dizer-se que não é o perigo que caracteriza a tentativa, mas sim a existência de actos de execução, que podem estar ausentes nos crimes de perigo, maxime abstractos.
Quer se entenda que o perigo é a situação que faz aparecer como possível a realização de uma dano contrário aos interesses juridicamente protegidos( Schröder), quer se entenda que o perigo é a situação invulgar e anormal, que, segundo um juízo prudente ( dadas as circunstâncias existentes em concreto ) funciona como meio provável de produção de um dano ( Jeschek ), quer se afirme que o perigo concreto se verifica quando exista uma possibilidade, não negligenciável, de vir a ser causado um dano, o certo é que a teoria da causalidade adequada ( art.º 10º, n.º 1, do Cód. Penal ) tem aqui pleno emprego, havendo que notar que se o perigo se concretizou, ainda que, em abstracto, a conduta ou o comportamento em causa não possuísse idoneidade para o produzir, não deve ser afastada a incriminação.
Como ensina Costa Andrade, em " Consentimento", pág. 340, nota 167, e Faria Costa, " O Perigo em Direito Penal"; nota 177, pág. 644, o concreto pôr-em-perigo que se vislumbra nos crimes de perigo concreto invoca, em primeira linha, a defesa de bens jurídicos individuais. Na verdade, a especial natureza do bem jurídico que se quer proteger "determina" o "modus" da sua protecção.
No caso das receitas tributárias é a referência ínsita na Constituição da República às mesmas que impõe uma sua tutela antecipada através de um crime de perigo concreto.
A idoneidade refere-se no art.º 23º do R.J.I.F.N.A não ao pilar normativo que o perigo representa, mas sim ao dano e o juízo de idoneidade tem que se fazer directamente para com ele, o que constitui um sinal manifesto de que estamos perante um crime de perigo concreto singular.
O princípio da ofensividade neste caso apenas permite dois níveis de estruturação da tutela penal:
- dano/violação: burla;
- concreto-pôr-em-perigo: fraude fiscal.
Note-se que não fundamentámos os crimes de perigo na singela afirmação de que existe uma linha de continuidade entre o perigo e a violação, pelo que o pôr-em-perigo merece proibição penal, como estádio lógico anterior.
Ao afirmarmos a possibilidade de tais dois níveis de estruturação fazemo-lo por força da conclusão que tirámos a respeito de qual o bem jurídico protegido na fraude fiscal.
Sabemos, na verdade, que pode haver incriminações de perigo a que não correspondem incriminações de resultado. Porém, se concluirmos que a fraude fiscal é um crime de resultado, isto é, de resultado cortado, então, é natural que se procure tal linha de continuidade, que encontrámos no tipo «supletivo» de burla, posto que o perigo é sempre subsidiário do dano ( lesão ), até mesmo nos casos de consunção impura, onde o dano aparece sempre como referente estruturante da solução jurídica final (neste ponto se revela a grande fragilidade argumentativa do Ac. S.T.J., de 01.10.1997).
Mas avancemos no nosso raciocínio, que vai muito para além desta vexata questio, ou seja, manterá validade ainda que se afirme uma total exclusão do crime de burla, o que, diga-se, não defendemos.
O terceiro nível de estruturação do princípio da ofen­sividade , designadamente o cuidado-de-perigo (cfr. crimes de perigo abstracto), não se justifica senão sob a forma de tutela contra-ordenacional e isto porque as condutas a que aludem os art.ºs 28º a 40º do RJIFNA tutelam interesses que se en­contram num nível mais baixo da escala da valoração axiológica.
A criação de um tipo legal de crime de perigo ab­stracto será, a nosso ver, inconstitucional por violação do princípio da ofensividade ou, o que é o mesmo, dos princí­pios da intervenção mínima do direito penal ( este só deve in­tervir e a escolha dos meios de punição deve reger-se por uma lógica de graduação de instrumentos), da necessidade , da adequação e da proporcionalidade.
O interesse pela obtenção de dados estatísticos não permite a criação de um tipo legal de crime, posto que se­ria o mesmo inconstitucional por falta de densificação bas­tante do perigo que merece a reacção penal, isto é, por vio­lação do princípio da ofensividade.
Além do mais, a presunção absoluta inerente aos crimes de perigo abstracto seria deveras discutível, na sua cons­ti­tucionalidade, pela sua manifesta desproporcionalidade. Além do mais, cair-se-ia em contradição com a consagração em simultâneo de um princípio de auto-liquidação e de auto-lançamento.
Concordamos que a fundamentação dos crimes de perigo abstracto ainda se pode reconduzir à protecção de um qualquer bem jurídico, não obstante a inexistência de um concreto e cristalizado bem jurídico. A perversão da matricial e originária relação de cuidado-de-perigo suscita não um dano, não um perigo, mas um cuidado-de-perigo relativamente a valores essencialíssimos do viver comunitário. A relação de cuidado-de-perigo, mesmo sem a recorrência imediata do bem jurídico, é ainda suporte material suficiente para legitimar a incriminação de condutas violadoras dessa relação originária.
Nos crimes de perigo abstracto terá de detectar-se sempre um «halo» no bem jurídico a proteger ou protegido, halo esse que é referenciável ao bem jurídico e ao qual a comunidade jurídica concede a dignidade da protecção penal.
Ora, para nós, não é detectável tal «halo» nesta sede.
Não reconhecemos à verdade fiscal a qualidade de bem essencialíssimo, capaz de fundamentar a construção de um tipo legal de crime de fraude fiscal.
O bem jurídico no crime de fraude fiscal não é, pois, uma realidade etérea e metafísica, descoberta pelo intérprete na confiança fiscal depositada pelo Estado nos contribuintes. Se o legislador quisesse tutelar esse valor teria de antecipar radicalmente o momento da intervenção penal e criar uma incriminação de desobediência – o que, de acordo com os elementos preparatórios, não fez – e transformar inúmeras irregularidades fiscais em crimes, já que qualquer acto de desobediência fiscal ou irregularidade da mesma natureza é idónea a fazer perigar a referida confiança do Estado nos contribuintes...» ( Parecer de Tereza Beleza junto ao Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, do Tribunal Judicial de Loulé ).
Por outro lado, sendo os crime de perigo abstracto uma forma típica ajustada à protecção de bens jurídicos supra-individuais, o certo é que tal supra-individualidade não exclui que se tenha de identificar, pelo menos, o halo dos bens essencialíssimos que se querem proteger, ou seja, a supra-individualidade não é critério material de fundamentação dos crimes de perigo abstracto e muito menos dos crimes de desobediência.
A questão da fundamentação dos crime de perigo abstracto não é uma questão de proporcionalidade/desproporcionalidade, mas sim de um fundamento à luz da ideia de bem jurídico, pois se o valor a proteger não for essencialíssimo para a vida em comunidade, não há neles um verdadeiro e materialmente fundado desvalor, violando-se o princípio da ofensividade, cujo fundamento legal reside, afinal, no princípio da intervenção mínima do direito penal e da proibição do excesso.
A controlabilidade do meio empregue representa também um particular critério de aferição no que toca à violação das condutas proibidas. A perigosidade dos crimes de perigo abstracto liga-se à incontrolabilidade do meio empregue.
No caso da fraude fiscal, o agente é punido não por perverter uma relação de cuidado, mas antes por perverter uma relação de concreto pôr-em-perigo.
Assim, afirmar a verdade fiscal como bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime de fraude fiscal, dando-lhe uma «essencialidade» tal que converta tal crime em crime de perigo abstracto, seria absolutamente ficcional.
Seria absolutamente ficcional sancionar criminalmente comportamentos cuja ligação matricial à protecção de um bem jurídico ultrapassa a relação de cuidado que pressupõe, pelo menos, uma motivação ligada a um nexo de perigo minimamente densificado. Assim, não se verificando estes pressupostos, a conduta só poderá ser punida, quando muito, pelo direito de mera ordenação social.
Mas ao falar-se em valores essencialíssimos não queremos com isto aderir a uma construção que vê no bem jurídico aspectos nucleares, periféricos e irrelevantes. Tal maneira de ver não corresponde em nada ao nosso modo de ver as coisas. Tal teoria dos três círculos não tem capacidade para servir de critério material de fundamentação em sede de crimes de perigo.
A verdade fiscal não é fundamento autónomo da tipici­dade nem razão da antecipação da tutela penal. A razão de tal antecipação da tutela penal reside, antes, na necessidade inelutável de o Estado cobrar impostos, isto é, numa ideia de prevenção.
Mas se o bem jurídico já se encontra protegido pela construção de um tipo legal de crime de resultado - burla- e se este se mostra mais facilmente interiorizável na consciência ético-jurídica da comunidade, o que é que fundamenta a passagem para esse plus de protecção por meio da criação de um crime de perigo, quando este, por seu turno, tem mais dificuldades em ser mediatizado por aquela mesma consciência ético-jurídica?
Em termos de pura prevenção a tipificação de condutas de pôr-em-perigo em nada se diferencia de uma qualquer outra tipificação.
A legitimidade do alargamento da punibilidade resultante da criminalização de condutas desencadeadoras de situações de pôr-em-perigo não pode vir da valoração político-criminal que quer cumprir a finalidade da diminuição da criminalidade .
A nosso ver, é por atenção ao valor do bem jurí­di­co tutelado e por uma razão de prevenção que se antecipa a tutela penal.
Atendendo ao valor que as receitas tributárias repre­sentam para o Estado, a antecipação da tutela protec­­­­­­­­­tora, prescindindo-se de elementos do tipo de resultado, de­signadamente do artifício fraudulento e do próprio benefi­cio/prejuízo, nada tem a ver com o efeito intimidativo da pena ao nível do desvalor do resultado. Tal antecipação está sim relacionada com o juízo político-criminal que se baseia no facto singelo de que é insustentável, logo ético-social­mente ilegítima, a fuga ao fisco, porque a mesma tem ine­rente um ataque aos valores da justiça, da igualdade, da solidariedade e do progresso social.
Não seria, na verdade, possível a realização do ideal constitucional sem a cobrança de impostos. O Estado não subsistiria. Muitos direitos constitucionais deixariam de fazer sentido, na prática.
No fundo e de outra maneira, a criação de um tipo legal de crime de fraude fiscal corresponde a uma forma de su­pri­mento da tutela " lacunosa" do tipo legal de crime de burla, onde se perfilam como condições necessárias o arti­fício frau­dulento e o benefício/prejuízo, as quais podem estar ausentes no primeiro.
A fraude fiscal foi configurada como um crime de perigo porque, no fundo, o Estado reconhece a sua incapacidade de controlo dos sujeitos passivos de impostos, a qual é tanto mais evidente quando em sede de IRC vigora o princípio da auto-liquidação e em sede de I.V.A. o princípio do auto-lan­çamento.
É certo que ao instituir um princípio de auto-liquidação em sede de IRC o Estado criou um risco calculado.
Porém, não existe no regime da fraude fiscal qualquer lógica de punição de excessos de risco calculado. O ónus de controlo das finanças do Estado não deve ser deferido ao cidadão, o qual só pode responder por uma culpa concreta ( e não abstracta) - há um limite até ao qual, em sede de fraude fiscal, o cidadão pode responder pelo engano em que fez in­correr o Estado.
Assim se perceberá também a impossibilidade de a acusação do Ministério Público se fundar tão-só nos métodos indiciários para imputar um crime de abuso de confiança fiscal ( art.º 24º do R.J.I.F.N.A ), pois que as presunções em direito penal têm um campo de actuação muito limitado, ou seja, só são de admitir as presunções naturais e a título meramente acessório, não podendo fundar uma incriminação por si só. A culpa não se presume, prova-se.
Com tudo isto estamos habilitados a compreender porque razão a descriminalização da fraude fiscal seria inconstitucional. É que a lei descriminalizadora, sujeita a reserva de lei, aliás, violaria o princípio da igualdade ( art.º 13º da C.R.P. ) e o próprio princípio do Estado de Direito democrático (art.º 2º da C.R.P.).
Neste sentido valem também considerações de segurança e paz social. O «contrato social» não subsistiria sem as receitas tributárias.
Chegados a este momento, convém recordar a afirmação que fizemos e pensamos ter deixado até demonstrada, designadamente a de que não existem especialidades ao nível do direito penal fiscal que imponham uma derrogação às regras gerais do concurso, assim como convém recordar que não acompanhamos a tese do concurso entre a burla, a falsificação e a fraude fiscal, sustentada no douto Acórdão do Tribunal Judicial de Loulé, formulado no Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, com base na singela conclusão de que na fraude fiscal se protege algo mais que o erário público. É que tal tese viola o princípio da proibição da dupla valoração, do «ne bis in idem» e da culpa, assim como se detecta a mesma contradição ao sustentar-se que o desvalor de resultado da fraude fiscal não é na mesma valorado, mas tão só na burla, misturando-se os tipos, num exercício interpretativo para nós inovador a todos os títulos e em manifesta violação do princípio do «ne bis in idem», cujo alcance não admite a limitação inerente a tal construção, já que de um princípio se trata, o qual impõe, em casos extremos a própria consunção impura, pois sofre menos o direito deixando de aplicar-se o tipo a consumir do que truncando-o por forma a que dele reste o (aparentemente ) compatível ( a este título parece-nos de todo elucidativo o caso de consunção impura mais célebre do Código Penal de 1886, designadamente o que foi criado pelo Decreto n.º 20146, de 01 de Agosto de 1931, o qual criou, por mero lapso, uma penalidade superior para o furto – art.ºs 421º, n.º 5, e 428º - do que para o roubo – art.º 435º e seus parágrafos -, o que levou o ilustre mestre Prof. Eduardo Correia a deixar-nos o seguinte esclarecimento: «...conduzirá isto a que se apliquem os dois cumulativamente ? De maneira nenhuma. Na verdade, ainda que em certa medida diferentes, certo é que coincidem na sua maior parte os bens jurídicos que protegem e, para que não se viole o princípio «ne bis in idem», só um deles poderá ser aplicado...», concluindo depois pela aplicabilidade do mais extenso, do que conduz a uma punição mais completa e perfeita, ou seja, do art.º 428º, n.º 3, do Código Penal de 1886 ).
Mas, no que respeita à consunção impura, importa salientar que esta opera em concreto, isto é, com as penas a aplicar em concreto, e não no confronto das molduras abstractas. Não basta o simples confronto dos tipos legais de crime, havendo que, num primeiro momento, encontrar a pena dos tipos em confronto e só depois escolher o tipo que confere a tutela mais completa e perfeita.
Por outro lado, pode haver aqui casos de «consunção imperfeita», ou seja, em que a fraude fiscal só seja afastada pela aplicação, em cúmulo jurídico, de, pelo menos, dois tipos legais de crime.
No Ac. S.T.J., de 08.10.1998 ( C.J., Ano IV, T.III-1988, págs. 189 e segs. ) afirmou-se um concurso aparente entre o crime de falsificação e o de fraude fiscal, no sentido de se aplicar tão-só este último crime. Contestamos a justeza da fundamentação do Acórdão e cumpre notar que não se discutiu aí a possibilidade de existência de um crime de burla, que, a admitir-se, levaria também a conclusão diferente.
Esquecendo o crime de burla e fixando a nossa análise na relação existente entre o crime de falsificação do Código Penal ( art.º 257º ), o crime de fraude fiscal do art.º 23º, n.ºs 1-2-3, alªs e) e f), do R.J.I.F.N.A, na redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24.11, e a contra-ordenação fiscal do art.º 33º deste último diploma legal, parece-nos existir aqui uma relação de alternatividade entre tais tipos.
Como refere Binding, o criador do conceito, tal relação existe “quando dois tipos de crimes se relacionam como dois círculos que se cortam um ao outro, ou, quando precisamente o mesmo tipo de crime é previsto em vários preceitos”.
As hipóteses que Binding tem ante os olhos «...são v.g. aquelas em que a lei, enunciando uma circunstância qualificativa, não toma na devida atenção a pena do crime descrito no preceito fundamental e fixa para o crime qualificado por aquela circunstância uma pena inferior à do não agravado – e ainda aquelas em que, por puro desconhecimento de outra lei, o legislador descreve um crime já naquela previsto» ( Eduardo Correia, Tese, citado, págs. 149 a 150 ).
Na construção dos tipos referidos cometeu-se um erro técnico-legislativo, fruto da errónea convicção de que era permitida ao legislador a derrogação das regras gerais do concurso, a criação de uma especialidade à revelia de tal conceito em direito penal.
O legislador acabou por se trair, ao transformar no R.J.I.F.N.A. a falsificação de qualificativa em atenuante, ao ponto de a desgraduar até ao nível de contra-ordenação.
Para tal terá contribuído o facto de no R.J.I.F.N.A. se ter consagrado a responsabilidade criminal das pessoas colectivas ( art.º 7º ), contrariamente ao que acontece no Código Penal ( art.º 11º ).
Curioso é notar que face ao novo Código Penal, na redacção do Dec. Lei n.º 48/95, de 15.03, o Supremo Tribunal de Justiça já entendeu que o crime de burla consome o crime de falsificação, quando aquele seja cometido através desta, conclusão que nos parece acertada, embora nos pareça insuficiente a fundamentação do Acórdão em apreço, designadamente o de 03.12.1998 ( C.J., Ano IV, TIII-1998, págs. 231 e segs. ). Para tal conclusão ter-se-ia de colocar em crise, ainda que parcialmente, a tese de Hönig em sede de concurso de crimes, designadamente a tese da «identidade dos bens jurídicos» protegidos como critério do concurso. Só que, nesse caso, colocar-se-ia em crise o acerto do Acórdão do STJ de 19/02/92, in DR, I-A, n.º 84, de 09.04.92, o qual fixou ju­risprudência ( embora não vinculante no âmbito do Código Penal actual ) no seguinte sentido:« No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228º, n.º 1 alínea a) e do artigo 313º, n.º1, respectivamente , do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de cri­mes".
Anote-se ainda que não defendemos a existência de burla apenas nos casos em que se comprove o recebimento de reembolsos, como se entendeu no Ac. do S.T.J., de 15.12.1993 ( anotado por Helena Isabel Gonçalves Moniz e publicado em «Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários», vol. II, págs. 363 e segs. ), e de algum modo no Ac. do Pleno do S..T.J., de 16.10.1997, onde se rejeitou o recurso de fixação de jurisprudência, mas onde «a latere» se afirma que até 01.01.1994, data da entrada em vigor da nova redacção do R.J.I.F.N.A, a burla ( só ) era possível existindo reembolsos de I.V.A, mas que, «...Desde 1 de Janeiro de 1994, mediante a inclusão expressa dos reembolsos na fraude fiscal, quando ocorram todos os elementos constitutivos do crime de burla, passou a existir, incontestavelmente, entre a fraude fiscal e o crime de burla, um concurso aparente, predominando a lei fiscal, como lei especial, sobre o Código Penal, Lei Geral ou comum», acrescentando-se aí o argumento de a fraude fiscal ter passado a ser punida com pena de prisão.
Pensamos ter deixado já demonstrado o erro deste entendimento. Todavia, importará dizer ainda que pode existir burla mesmo não existindo reembolso, pois que, para que a burla se configure basta que o artifício fraudulento seja causa adequada de limitação à liberdade de disposição e troca de bens patrimoniais – essencial é que exista benefício ilegítimo da parte do sujeito passivo e prejuízo patrimonial para o Estado.
O prejuízo patrimonial corresponderá então à soma do que não se entregou a título de imposto devido com o que se obteve a título de reembolso indevido, se este existiu.
Este aspecto tem uma importância fundamental no que respeita, por exemplo, à questão de saber em que casos a burla é agravada pelo valor consideravelmente elevado do prejuízo patrimonial.
O tipo legal de crime de burla não exige a deslocação patrimonial, em sentido restrito.
A exigência da prática de actos pela vítima substituiu a alusão à entrega de «dinheiro ou móveis, ou quaisquer fundos ou títulos», constante do art.º 415º do Código Penal de 1852-86.
A maior amplitude da fórmula de que se prevalece o legislador penal de 1982-95 supera as dúvidas com que se debatiam a doutrina e a jurisprudência, na vigência do antigo Código Penal, a respeito da entrega indirecta.
Por outra parte, a lei não se reporta agora a actos de disposição, contrariamente, por exemplo, ao art.º 222º do Código Penal de 1995 ( a que corresponde o art.º 317º do Código Penal de 1982 ), onde se refere expressamente o «constranger (...)a uma disposição patrimonial...». E se o legislador não utilizou idêntica expressão - «disposição patrimonial» - não foi por acaso. É que tal limitaria o âmbito do tipo legal de crime de burla, retirando-lhe o seu carácter algo supletivo no seio dos crimes contra o património.
A este respeito, curioso é notar no seguinte exemplo de «burla triangular de créditos»: burla quem surpreende a boa fé do devedor, persuadindo-o falsamente de que é credor, e obtendo assim a extinção da obrigação daquele em prejuízo do credor ( por exemplo, obtém do devedor a satisfação de um crédito que anteriormente cedera a terceiro ), extinção essa que pode verificar-se por qualquer das formas previstas no Código Civil, como por exemplo, por compensação ( art.º 847º ).
Aliás, a defender-se que só existe burla consumada existindo reembolso cair-se-ia no paradoxo de alguém ser punido por crime de burla tentada quando deixou de pagar uma elevada quantia, e outrem ser punido por crime de burla consumada quando apenas recebeu de reembolso uma quantia muito inferior.
E tal paradoxo é tanto maior quando resulta da natureza dos pagamentos por conta que a obtenção indevida de reembolso de IRC mais não é do que um não pagar. É que não existe em Portugal o chamado imposto negativo - só se obtém de reembolso o que se entregou por conta - , o que nos parece resultar de modo explícito da natureza do I.R.C., que perspectivámos como imposto continuado.
E o mesmo se diga do reembolso de IVA, pois também aqui não existe a figura do imposto negativo e a obtenção de tal reembolso também configura um verdadeiro não pagar imposto devido.
Para além do mais, não se exige no tipo de burla mais do que a simples intenção de enriquecimento e não o efectivo enriquecimento, sinal manifesto de que pode existir burla sem deslocação patrimonial.
O interesse protegido pelo crime de burla não é o enriquecimento ilegítimo do agente, mas o empobrecimento do lesado.
E por enriquecimento ilegítimo deve entender-se aquele que não corresponde, objectiva ou subjectivamente, a qualquer direito. E a ninguém neste país assiste o direito de não pagar impostos, se para tanto tiver capacidade contributiva.
O enriquecimento dá-se na justa medida em que se verifica uma não diminuição do património, por não se ter pago o imposto devido.
Discordamos, por outro lado, dos que sustentam que, pelo facto de existir auto-liquidação e ter desaparecido a categoria da liquidação provisória, então fica desde logo arredada a possibilidade de burla, já que a liquidação do contribuinte pode ser corrigida, alterada, modificada, enquanto não decorrer o prazo de caducidade para tributar, mas não se destina a servir de base a qualquer outro acto da Administração cujo conteúdo possa eventualmente falsear.
Na verdade, uma coisa é afirmar-se que a eficácia da liquidação não depende de posterior verificação e conformação dos serviços da administração fiscal, com o que se concorda, e outra é dizer o supra-referido. É que aderir a tal afirmação implicaria o ficar sem explicação o porquê do pagamento de reembolsos. Se tal se passa e é imposto por lei no prazo máximo de três meses é porque afinal se praticam actos.
Para que se configure o tipo legal de burla basta a prática de actos pelo fisco com vista ao exame das declarações tributárias, exame esse de que resulta um juízo viciado à partida devido ao erro que resulta para a administração fiscal do artifício fraudulento utilizado ( cf. a este respeito, a anotação de Mário Ferreira Monte ao Ac. S.T.J., de 03.10.1996, publicada em Scientia Iuridica – T. XLV, 1996, n.ºs 262/264).
E repare-se que o que se deve punir, muitas vezes, é a ocultação fraudulenta da base tributária, assim se obtendo benefício ilegítimo ( no sentido por nós supra-indicado ), e não a simples passividade. O que deve relevar é o ocultar ou desfigurar as bases tributárias com o fim de iludir a obrigação de satisfazer determinados impostos e com a evidente intenção defraudatória, que decorre das falsificações e das anomalias substanciais na contabilidade . Não se trata, em tais casos, de um mero incumprimento dos deveres fiscais, com o consequente dano patrimonial, mas também, à semelhança do que se passa no crime de burla, de uma manobra falaz susceptível de induzir em erro.
A este respeito podem distinguir-se duas vertentes: a omissão absoluta de declaração, enquanto conduta activa constituída pela ocultação da base tributária ( não é a simples passividade ) e a declaração «falsa».
Tanto engana ou defrauda quem oculta a declaração como quem a apresenta, se nela se falseiam os correspondentes dados, se há propósito defraudador.
Também o silêncio pode configurar fraude, inclusivamente pode ser uma forma de realização da fraude, mais importante quantitativamente ou qualitativamente na expressão e no resultado.
Há que ter em conta nesta sede o dever jurídico de declarar.
Nada dizer, ocultando fraudulentamente a base tributária ( não se trata, portanto, do simples não pagar impostos ) é, muitas vezes, mais grave do que declarar parte e ocultar outra.
Em face de tudo quanto fica dito é pois legítimo concluir que o crime de burla passa então a consumar-se em momento anterior ao pagamento do reembolso ( sempre posterior à li­quidação do imposto- art.º 82º, n.º 3, do Cód. do IRC), passando, pois, tal consumação a coincidir com o momento do pagamento ao fisco em conformidade com a declaração periódica apresentada ( se apresentada em data anterior à referida no art.º 96º do Cód. IRC) ou com a data limite até à qual tal pagamento deveria ter sido feito, isto é, 31 de Maio do ano posterior àquele a que respeita a declaração em apreço (cfr. Art.º 70, al. a), 96º e 80º, n.º 2 do Cód. IRC).
Só existindo fraude fiscal, em sede de IRC, consuma-se a mesma no momento da apresentação da declaração periódica, isto é, no momento da liquidação do imposto ( art.º 96 do Cód. IRC), ou seja, entre 1 de Janeiro e 31 de Maio do ano posterior aquela que respeita a declaração periódica ( a que pode ser apresentada em qualquer dia útil de tal período de tempo).
Por aqui se vê que, sendo a declaração per­­iódica apresentada a 31 de Maio ( do ano posterior àquele a que respeita), existindo burla, esta e a fraude fiscal con­sumam-se na mesma data, o que bem ilustra a identidade de bens jurídicos protegidos por uma e outra infracção.
Uma vez que a fraude fiscal se encontra configurada como um crime de resultado cortado, sendo punível a tenta­tiva no caso do art.º 23º, n.º 4, parte final, e n.º 5 do DL n.º 20-A/90, de 15.01, na redacção do DL n.º 394/93, de 24.11 ( o qual entrou em vigor a 01.01.1994), é admissível o ar­rependimento activo ( se a declaração periódica for apre­sentada em data anterior a 31/05 do ano posterior àquele a que respeita) até ao momento do pagamento do imposto ( 31 de Maio), ao abrigo do art.º 24º, n.º 1, parte final, do Código Pe­nal, desde que exista espontaneidade e voluntariedade.
Após a data referida no art.º 96 do Cód. IRC o agente perde o domínio do facto, muito embora possa ainda adoptar comportamentos adequados a fazer funcionar o disposto no art.º 206º do C. Penal de 1995, aplicável ex vi do art.º 218º (3) do mesmo di­ploma legal.
Mas a liquidação a que nos referimos é a liquidação definitiva (cfr. art.º 96º do Cód. IRC), que não deve ser con­fundida com os pagamentos por conta a que alude o art.º 82º (1) do CIRC, que são anteci­pações do pagamento de um imposto futuro que, no momento em que tais pagamentos são feitos, não existe, nem, muito me­nos, é exigível. É que, a não ser assim, a administração fiscal ou o Ministério Público poderiam controlar o momento da consumação do crime.
É que os pagamentos por conta só são adquiridos, só são " propriedade" do Estado, se o montante a pagar de IRC for superior ou igual ao total dos pagamentos por conta.
A obrigação de imposto só surge no fim do ano civil. Só no final do ano civil ( art.º 7º, nº1 do CIRC) se gera a obriga­ção de pagar o imposto e pode não surgir se não houver lucro tributável.
O IRC é um imposto continuado, em que a obrigação de im­posto só surge no fim do ano civil, se houver lucro tri­bu­tável.
Se a liquidação não é "definitiva", tal não se deve ao Estado, mas sim ao sujeito passivo que engana o Estado, aproveitando-se do facto de vigorar o princípio da auto-liquidação em sede de IRC. As declarações substitutivas não têm, pois, relevância, a não ser em sede do art.º 206º do C. Penal de 1995 - salvo se apresentadas até 31 de Maio do ano a que se refere o art.º 96º do Cód. do IRC.
É bom não esquecer, na verdade, que estamos a falar de empresas, muitas delas com grande capacidade económica, e não é pelo facto de apresentarem declarações rectificativas que podem ser ilibadas em sede de burla.
Curioso é notar que, para Jescheck, no caso de desis­tência da tentativa, quando a tentativa já constitui em si um facto consumado, aquilo que se designa por tentativa qualificada, este crime deve ser punido com independência, apesar de se verificar uma desistência voluntária.
Um crime consumado não pode ficar impune só pelo facto de o seu autor, através dele, ter tentado cometer outro crime. Porém, faz-nos uma ressalva quando o crime já consumado é um crime de perigo. E para resolver o problema, recorre à distinção doutrinal entre crime de perigo abstracto (ex. a falsificação) e concreto ( ex. a fraude fiscal).
No primeiro caso ( crime de perigo abstracto), dado o perigo geral que com aquele já foi criado, o agente deve ser punido; no segundo caso, os efeitos da desistência também se estendem ao crime de perigo concreto, sempre que este protege o mesmo bem jurídico que o crime tentado ( ex. burla) protegia, visto que a colocação em perigo daquele bem jurídico é apenas uma fase prévia da sua lesão ( cfr. Tratado de derecho penal, Vol. I, pág. 748).
Chegados a este ponto, não queremos terminar sem antes chamar a atenção para a diferença que existe entre o abuso de con­fiança fiscal e o abuso de confiança do Código Penal.
Para que exista o abuso de confiança do Código Penal é necessário que o agente ilegitimamente se aproprie de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por ti­tulo não translativo da propriedade.
Imagine-se o empresário (A) que não entrega ao Estado os montantes que reteve na fonte a título de IRS. Comete, por isso, um crime de abuso de confiança do Código Penal? Ao apropriar-se de tais montantes de IRS não se apropria de nada que lhe tenha sido entregue pelo Estado. E se não in­tervier na sua relação com o fisco qualquer artifício frau­dulento, também não comete o crime de burla.
Augusto Silva Dias analisa um caso de consunção do crime de abuso de confiança fiscal pelo crime de abuso de confiança do Código Penal, em «O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro», publicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. II, Coimbra editora, na página 256. Concordamos integralmente com essa análise ( cf. em sentido contrário, Figueiredo Dias – Costa Andrade, “O Crime de Fraude Fiscal no novo Direito Penal Tributário Português”, in «Direito Penal Económico e Europeu, cit., pág. 426 ).
Porém, já não acompanhamos o mesmo autor quando admite, na página 277 de tal trabalho, a aplicação do n.º 6 do art.º 24º do R.J.I.F.N.A., na redacção inicial do Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15.01, às prestações periódicas que derivam, não de uma divisão da prestação global, mas do nascimento, também periódico, de novas obrigações. É que o normativo em apreço, que dispunha que «Se a obrigação da entrega da prestação for de natureza periódica, haverá tantos crimes quantos os períodos a que respeita tal obrigação», configurava um caso de responsabilidade objectiva, sendo inconstitucional por violação do princípio do «ne bis in idem» e do princípio da culpa.
Tratava-se aí, uma vez mais, de uma tentativa, frustrada pela inconstitucionalidade de tal normativo, de desvio às regras gerais do concurso, o que já criticámos em diversos lugares deste trabalho.
Assim se afirma aqui a nossa discordância à tese sustentada no Ac. Rel. Porto, de 15.10.1997 ( C.J., T. 4, págs. 245 e segs. ), no qual se aplicou tal normativo e se deu uma relevância absoluta à periodicidade do imposto, descurando o elemento subjectivo do tipo legal de crime, o que constitui um caso de responsabilidade objectiva, uma violação do princípio da culpa.
No entanto, também entendemos que o caso do Acórdão não configuraria nunca um caso de crime continuado, não só pelo facto de a periodicidade não ser determinante para aferir o número de crimes praticados como também porque não se configurava qualquer circunstância exterior que diminuísse consideravelmente a culpa – são os arguidos que criam a situação que se pretende diminuir consideravelmente a culpa.
No Ac. S.T.J. de 28.04.1999, já citado, aderiu-se à tese do Ministério Público segundo a qual nos crimes fiscais em julgamento se verificava um dolo único e reiterado da parte dos arguidos, situação esta distinta da do crime continuado.
Quanto ao crime continuado e às situações de dolo único e reiterado, ficariam as mesmas arredadas, à partida, a admitir-se a plena validade da norma do n.º 6 do art.º 24º do R.J.I.F.N.A, na redacção inicial, o que equivaleria a um recuo de dezenas de anos no que respeita à dogmática do direito penal.
Importa é referir que quando exista crime continuado a punição dele determina-se não pela soma dos actos praticados, dotados de valor económico, mas pelo valor mais elevado do prejuízo emergente de uma das parcelas do conjunto desses actos ( cf. Ac. S.T.J., de 28.04.1999, no Processo n.º 592/98-3ª Secção ).
Diga-se ainda que, atenta a natureza do IRC, é impossível configurar qualquer caso de abuso de con­fiança fiscal com base neste imposto.
" Afigura-se-nos que este crime fiscal não abrange os casos de auto-liquidação obrigatória para os rendimentos de pessoas colectivas nos termos dos art.ºs 70º , al. a), e 96º, n.º 1, do CIRC.
É que nestes casos a prestação tributária não foi re­ce­bida pelo sujeito passivo, pois que é ele próprio que a tem de liquidar e pagar...." ( Alfredo José de Sousa, In­fracções fiscais Não Aduaneiras, Almedina, 2ª edição, pág. 105).
Estranhamente, no Ac. S.T.J., de 02.07.1998, in C.J. 1998, T. II, págs. 230 e segs., implicitamente parece admitir-se o contrário.
Estranho nos parece é que Alfredo José de Sousa conclua nesse sentido e, por outro lado, sustente que o bem jurídico tutelado é a Fazenda Pública como sistema dinâmico de ob­tenção de receitas e realização de despesas ( cfr. ob. cit., pág. 98).
Na verdade, em casos de auto-liquidação não se vê como possa ser esse o bem jurídico, isto é, a Fazenda Pública ou o ente público credor ou a função tributária.
Terminamos citando Eliana Gersão e Rodriguez Morullo ( citado por aquela autora no mesmo lugar adiante indicado ), respectivamente:
* «...Importa (...) mais uma vez salientar que a criminalização das mais graves infracções fiscais só terá sentido se for acompanhada de um esforço sério de aperfeiçoamento do sistema jurídico, especialmente no que se refere à distribuição equitativa da carga tributária e à aplicação adequada dos dinheiros públicos. O esforço sério de aperfeiçoamento deve ser extensível (...) à aplicação prática do sistema fiscal» ( Eliana Gersão, in «Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários», Vol. II, pág. 91 ) ;
* « o grande risco e o paradoxo que acarreta a criminalização das infracções fiscais, que se propugna sempre com o desejo bem intencionado de favorecer os oprimidos pela carga fiscal e de conseguir que cumpram os seus deveres tributários aqueles que os infringem escandalosamente, é que pode voltar-se contra aqueles que se pretende defender. O resultado que se pretende não se pode conseguir «a partir» do direito penal, mas «a partir» do próprio sistema tributário, na medida em que este seja justo e se aplique equitativamente na prática. Se não suceder assim, a cominação da pena criminal e o risco da sua imposição seguem fatalmente o mesmo deslocamento que a pressão fiscal. E acabamos por colocar, mesmo sem querer, o peso da pena criminal sobre os que estão já oprimidos pela pressão fiscal e que pretendíamos precisamente defender» ( Rodriguez Morullo ).