terça-feira, 20 de novembro de 2007

Subsistência do art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T. após a nova redacção do Código Penal


Acórdão da Relação do Porto, de 07.11.2007

Relator: Pinto Monteiro

Processo 0743150

N.º Convencional : JTRP00040730

Sumário:

Se, numa altura em que ainda não vigoravam as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei nº 59/2007, a execução de uma pena de 1 ano de prisão aplicada por crime de frustração de créditos ficou suspensa pelo período de 5 anos, sob a condição de nesse período o arguido pagar ao Estado uma quantia superior a € 1 600 000,00, correspondente a prestação tributária em falta e acréscimos legais, após a entrada em vigor daquelas alterações deve reduzir-se para 1 ano o período de suspensão, nos termos da nova redacção do nº 5 do art. 50º do Código Penal, que consagra um regime mais favorável ao arguido, mas, porque assim resulta um período mais curto que o considerado adequado para o pagamento daquele valor, a suspensão não deve ficar subordinada ao cumprimento da dita condição.

Comentário 1:

O douto acórdão deveria ter equacionado o disposto no art. 8º do Cód. Penal, o qual dispõe que “As disposições deste diploma são aplicáveis aos factos puníveis pelo direito penal militar e da marinha mercante e pela restante legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário”.

Poder-se-á concluir que a ressalva da parte final do art. 8º do Cód. Penal impõe a subsistência do art. 14º do R.G.I.T. ?

O facto de o legislador punir mais fortemente as violações contra a vida quando comparadas com as violações que ofendem os bens patrimoniais não pode ser olhada como um acaso ou uma arbitrariedade; corresponde, antes, a um sentido, a uma intencionalidade que une , deve unir, todos os crimes definidos na parte especial do Código Penal. Corresponde uma tal forma de perceber à aceitação de que entre as diversas infracções da parte especial intercede, não só uma específica valoração de proporcionalidade que parte, primacialmente, da correspondência entre a gravidade da infracção e a gravidade da pena, mas também um juízo de perequação quanto aos mínimos e aos máximos das diferentes molduras penais abstractas.
A parte especial do Código Penal não é expressão de um conglomerado, antes nela se detecta uma coerência, quer ao nível da ordenação dos bens jurídicos – no que se traduz também aquela analogia substancial à Constituição do direito penal -, quer no âmbito – indissociavelmente ligado à anterior ordenação através de uma mútua reciprocidade - da definição das molduras penais abstractas.
A actuação do legislador ao nível da definição da moldura penal abstracta não pode ser imotivada, antes tem de atender a critérios materiais, desde logo, ao critério da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a pena.
Mas a relação de proporção ou de desproporção só pode ser compreendida dentro de um determinado quadro de valoração ou horizonte normativo.
É o próprio ordenamento jurídico existente que indicia, nomeadamente no âmbito do Código Penal, uma formulação sobre a hierarquização axiológica pressuposta pelo legislador.
Existem diferenças de valoração dentro do horizonte normativo no qual se realiza a operação normativa de aferição da proporcionalidade. E só assim, acrescente-se, se pode conceber. Pois só na diferença é que é concebível uma proporcionalidade.
Mas o problema da proporcionalidade, entre a infracção e a pena, não se pode ver exclusivamente através de um único segmento de valoração, nem, muito menos, arrancando da ideia simplista de que se está perante um juízo global de proporção ou de desproporção. Julgamos que a questão da proporcionalidade tem de ser olhada, fundamentalmente, a partir de dois princípios: de um princípio de perequação dos mínimos e de um princípio de perequação dos máximos.
Porém, para que tais princípios possam ser operatórios há que descobrir uma função para aqueles limites.
Assim, pensamos dever atribuir-se aos mínimos legais uma função de limiar abaixo do qual o legislador entende não ter sentido, logo desnecessária, a intervenção do direito penal, isto é: eles representam na arquitectura normativa o último grau ao qual pode descer a tutela jurídico-penal, enquanto os máximos se perfilam como o limite extremo até onde o ordenamento penal está disposto a assegurar a eficácia concreta da tutela.
Para nós, porém, é necessário ir mais longe ainda. É necessário entrar fundamentalmente em linha de conta com a ideia de bem jurídico e com o facto de que é também função da lei penal a prevenção, ou seja, não se pode esquecer a ressonância que qualquer Código Penal adquire no seio da comunidade e que lhe advém do impacto que a chamada «Parte Especial» provoca na consciência colectiva e, muito particularmente, na consciência individual dos membros daquela específica e precisa comunidade jurídica – o valor simbólico que o Código Penal desencadeia nas actuais sociedades coincide ponto por ponto, com a definição dos próprios tipos legais de crime.
Assim, se na fixação do limite de 25 anos do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal intervém um princípio de humanidade das penas, ou seja e no fundo, a ideia de dignidade humana, a crença na capacidade de ressocialização da pessoa humana, e também uma ideia de prevenção, na fixação do limite mínimo vale antes uma ideia de benefício/prejuízo que possa daí resultar para a pessoa e comunidade, ou seja, vale uma lógica de custos e prejuízos ligados ao cumprimento da pena – ex. não faria sentido impor um limite mínimo de um dia de prisão em vez dos trinta dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que a prisão tem inerente um estigma e um prejuízo que ofuscam por completo as vantagens para o delinquente e sociedade que derivariam do cumprimento de tal dia de prisão ( o que não invalida o disposto no art.º 49º, n.º 1, parte final, do Código Penal, pois que aí não existe alternativa senão a prisão ).
Mas entre o limite de 25 anos de prisão do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal e o limite de 30 dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do mesmo código a graduação far-se-á, na construção das molduras dos tipos legais de crimes, em função da importância do bem jurídico. E sendo os bens jurídicos protegidos pelo direito penal escassos ( no sentido de importantes ), então, actua aqui fundamentalmente uma ideia de necessidade do bem jurídico para a pessoa e para a comunidade.
Nesta sede haverá que perceber o modo de superação individual e/ou social das consequências negativas do crime. Dito de outro modo, haverá que considerar os efeitos possíveis da agressão ao bem jurídico.
Se se quisesse resumir, dir-se-ia que na fixação das molduras abstractas haverá aí também que respeitar o princípio da proibição do excesso do art.º 18º da Constituição da República Portuguesa.
Numa outra vertente, entendemos que, muito embora sem esquecer que o que legitima a incriminação é a ideia de bem jurídico e que a moldura abstracta das penas se liga antes à ideia de carência de tutela penal, a equiparação das penas abstractas da fraude fiscal às do homicídio simples seria inconstitucional, e desde logo por violação da ideia de bem jurídico como princípio material de distinção, do princípio da proporcionalidade (art.º 18º, n.º 2, da C.R.P.), e, no fundo, daquela ideia de analogia substancial entre o direito penal e a Constituição (cfr. a sistemática desta, de onde resulta manifestamente uma preferência pelos direitos, liberdades e garantias, porque mais directamente ligados à ideia de dignidade humana – há aqui bens jurídicos sem os quais a comunidade não é sequer pensável - e porque aos direitos económicos, sociais e culturais estará sempre inerente uma certa ideia de sistema).
Numa determinada óptica, talvez se pudesse afirmar que o direito penal secundário visa a protecção de bens jurídicos que, se comparados com os que iluminam o direito penal clássico, estão num nível mais baixo na escala da valoração axiológica, no sentido de que a menor gravidade penal deriva do «défice de legitimidade».
Todavia, para nós, a validade de tal ideia deve ser compaginada com o facto de que sendo tais bens jurídicos assumidos pela Constituição, então não há verdadeiramente «défice de legitimidade», porque tais novos bens jurídicos foram historicamente sedimentados. Em vez de «défice de legitimidade», conceito este de duvidoso alcance prático para o aplicador da lei constituída, mais correcto será recorrer ao binómio constitucionalidade/inconstitucionalidade.
Aliás, não se vê que défice de legitimidade exista no crime de fraude fiscal quando confrontado, por exemplo, com os crimes de burla p. e p. pelo art.s 217º a 222º do Cód. Penal. O carácter mutável dos factos ilícitos do direito penal secundário não vale para os crimes fiscais, uma vez que o bem jurídico respectivo se foi sedimentando e ganhou mesmo tutela directa na Constituição da República ( art.ºs 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa ).
Em sede de direito penal secundário, onde o tipo legal de crime se constrói amiudadas vezes como tipo legal de crime de perigo, fundamental é que o nexo de perigo seja minimamente densificado, pois não o sendo violar-se-á o principio da proporcionalidade em sentido amplo e assim o da intervenção mínima do direito penal.
Por outro lado, no que respeita ao modo de o legislador definir as condutas proibidas no âmbito do direito penal mais directamente ligado à tutela do sistema social em sentido amplo, não existe tanta legitimidade neste âmbito para recorrer à técnica da «descrição vazia» ( ex. matar ), impondo-se uma exacta definição das condutas proibidas.
Mesmo que a necessidade da pena se perfile como inquestionável e mesmo que se entenda que a sua concretização não fere o chamado núcleo essencial, mesmo assim há que compaginá-la com a ideia força inerente à proporcionalidade restrita. Sem dúvida que, se para punir uma fraude fiscal for cominada uma brutal pena de prisão, pode essa realidade justificar-se, eventualmente, através de uma ideia de necessidade; mas o que, com certeza, não honra é o princípio da proporcionalidade. Ao desvalor do facto objectivamente considerado há que fazer corresponder um desvalor no efeito (pena) também ele objectivamente proporcionado.
A essencialidade do bem jurídico pode justificar a incriminação, mas já não justificará penas desproporcionadas ou a violação do princípio da irrectroactividade da lei penal desfavorável
Concluindo, entendo que o disposto no art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T., viola os princípios de perequação dos mínimos e de perequação dos máximos, atrás referidos, porquanto o estabelecimento de limites mínimos e máximos diferentes de suspensão da execução da pena de prisão e mais gravosos que no direito penal de justiça atenta contra o princípio da proporcionalidade do art. 18º da Constituição da República, na modalidade de proibição do excesso. Aliás, o condicionamento ao pagamento, mesmo quando à partida se sabia que tal era impossível, era já de si inconstitucional, por violação do art. 18º da Constituição da República Portuguesa.
E assim sendo, o disposto no art. 2º, n.º 4, do Cód. Penal deve prevalecer sobre a interpretação literal do art. 8º do Cód. Penal.
Outro elemento de interpretação importante reside no facto de o art. 14º do R.G.I.T. não conter qualquer disposição relativa à duração do período de suspensão da execução da pena, devendo retirar-se da referência da al. b) do n.º 2 de tal preceito a «prazo máximo de suspensão admissível» a conclusão de que existe aí uma remissão inequívoca para o período de duração previsto no art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal ( cf. neste sentido, anotação 3 da página 66 in "Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais Anotados, António Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo, Coimbra Editora 2002 ). Assim, a alteração introduzida ao Código Penal e supra-aludida levará nesta sede a ter-se de aplicar o regime geral, não se levantando assim sequer qualquer problema em sede do art. 8º do Código Penal.
Comentário 2:
Já após surgiu o
ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO, de 12.12.07
Processo 0744647
Relatora: Olga Maurício
www.dgsi.pt

Extracto:

“…A execução da pena de prisão aplicada ao arguido foi suspensa por se revelar que esta medida era suficiente para o afastar, no futuro, da prática de novos crimes, tendo o período de suspensão sido fixado em 3 anos. Esta suspensão foi condicionada ao pagamento da quantia de € 35.333,33 ao Estado Português (Administração Fiscal), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 50º e 51º do Código Penal, e 11º, nºs 6 e 7 do RJIFNA, normas que estabelecem os pressupostos da suspensão da execução da pena, sendo que esta última condicionada esta suspensão ao pagamento ao Estado do imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos. O RGIT contém uma norma semelhante. Efectivamente, o art. 14º, nº 1, estabelece que a «suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa». Dada a proibição da reformatio in pejus, a suspensão terá que se manter.
Quanto à condição, vamos ver. Como sabemos, no passado dia 15 de Setembro entrou em vigor a recente alteração introduzida ao Código Penal pela Lei 59/2007, de 4/9. Uma das normas alteradas foi a que consta do art. 50º, que versa sobre os pressupostos e duração da suspensão da execução da pena de prisão. É a seguinte a actual redacção:«1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova. 3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente. 4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições. 5 - O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão». Nos termos do art. 2º, nº 4, do Código Penal, «quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente …». No anterior regime, vigente à data da prática dos factos (e condenação), o período de suspensão da execução da pena situava-se entre 1 e 5 anos, qualquer que fosse a duração da pena aplicada. Actualmente este período é igual à medida da pena, embora nunca inferior a 1 ano. Isto significa que a suspensão terá que ter a duração de 14 meses, e mesmo mantendo a pena anterior não poderia ultrapassar os 18 meses. Daqui resulta que o actual regime legal é claramente mais favorável.Isto pensando, exclusivamente, na pena e na suspensão e descurando a condição imposta. Mas como a condição integra a condenação, não podemos esquecer o preceituado no nº 1 do art. 14º do RGIT que, como vimos, impõe como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada o pagamento da prestação tributária e acréscimos legais do montante dos benefícios indevidamente obtidos. Isto significa que reduzido que seja o período de suspensão, o arguido fica com menos tempo para pagar as quantias que integram a condição. Constatado isto podemos continuar a dizer que o novo regime se mostra concretamente mais favorável ao arguido? É certo que nada na lei impõe que o prazo de suspensão da execução da pena de prisão e o prazo para cumprimento da condição coincidam. O prazo para cumprimento da condição e o prazo de suspensão da pena são realidades diferentes, sujeitos a pressupostos diferentes quando aos termos da sua fixação: enquanto a suspensão da execução da pena será decretada se se entender que, desta forma, as finalidades da punição serão realizadas, já o prazo de cumprimento da condição dependerá das condições económicas do agente. Então, uma das soluções será suspender a execução da pena por período igual à sua duração - encurtá-lo, portanto - e manter o prazo fixado na decisão recorrida, três anos, para cumprimento da condição. Mas será esta opção razoável? Pensamos que não. Neste quadro uma de duas coisas aconteceria: ou a condição era ignorada por a extinção da pena acontecer antes do termo do prazo de cumprimento da condição, ou então teríamos que entender que o período de suspensão da pena só se iniciaria cumprida que fosse a condição. No primeiro caso o melhor, porque mais pragmático e frontal, seria não estabelecer qualquer condição. Para quê estabelecer uma condição que todos sabíamos que, mesmo que não fosse cumprida, não geraria quaisquer consequências negativas para o agente? Só que suspender a execução da pena sem estabelecer a condição violaria ostensivamente o preceituado no art. 14º do RGIT. Parece-nos que esta solução não é de adoptar porque a aplicação da condição apenas visaria um respeito formal pela letra da lei. Ao invés, se a suspensão apenas começasse a correr após o decurso do prazo de cumprimento da condição aquele problema já não existia: cumprida a condição a suspensão efectivava-se; em caso de incumprimento, a suspensão serra revogada e a pena cumprida. Tudo claro, portanto. No entanto esta solução gerava outro problema, que era o protelamento do desfecho do processo. Mesmo que o primeiro prazo, chamemos-lhe assim, não relevasse para efeitos do disposto na al. b), do nº 1 do art. 51º do Código Penal, a verdade é que havia um protelamento da situação de indefinição que sempre poderia ser visto como um agravamento da situação do arguido.Isto por um lado. Por outro lado «trata-se … de uma engenharia jurídica que … não tem suporte na lei …» - acórdão desta Relação de 7-11-2007, processo 0743150. Outra via para solucionar este problema (que o legislador veio criar, por não ter acautelado a harmonia das normas legais em vigor) foi apontada pelo douto acórdão desta Relação agora mencionado e que decidiu que, face à desarmonia legal actualmente existente, a única solução passa por suspender a pena de prisão sem estabelecer qualquer condição. Não obstante as razões valiosas que fundamentaram esta opção, parece-nos que dificilmente se pode defender a sua maior bondade face, desde logo, à alternativa de fazer intervir o disposto no nº 3 do art. 51º do Código Penal. E a favor desta via, de modificação dos deveres impostos ao agente que viu a sua pena suspensa, pode dizer-se que tem previsão na lei geral, lei geral esta que é de aplicação subsidiária a todas os ilícitos penais, qualquer que seja o diploma onde esteja previsto, e que permite continuar a perseguir, pelo menos em parte, o objectivo visado pelo RGIT, ao determinar que a suspensão da pena de prisão teria que ficar condicionada ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais e/ou do montante dos benefícios indevidamente obtidos, que foi, pensamos, impor sempre ao agente a reparação das consequências do crime, sob pena de ter de cumprir a pena de prisão “pendente”.Apesar de se poder entender que esta solução afronta o nº 1 do art. 14º do RGIT, diremos que maior afronta ao nosso sistema legal será entender esta norma como não permitindo qualquer poder de intervenção do juiz. Considerá-la nestes termos rígidos poderá, quiçá, ter-se como violando de forma insustentável do princípio da proporcionalidade (vide acórdão do S.T.J. de 18-10-2006, processo 06P2935). Assim, sempre se poderá defender o poder de o juiz intervir na fixação do montante que integra a condição, por exemplo em caso de alteração superveniente das circunstâncias (aqui a alteração decorre da alteração legal).No entanto, e vistas as várias possibilidades, entendemos que a escolha deve recair no actual regime da suspensão da execução da pena, fixando para o cumprimento da condição o período que se estabeleceu para a suspensão. Quanto menos foi o período de suspensão da pena mais rapidamente o agente fica desonerado da carga que a suspensão sempre comporta. O facto de, deste modo, ficar com menos tempo para cumprir a condição não nos sensibiliza. Primeiro, porque as vantagens da redução do período da suspensão são maiores que as desvantagens resultantes do menor tempo para pagar. Depois porque apesar de o período de cumprimento da condição depender da situação económica do agente, isto não significa que seja obrigatório (a lei não o diz) que o cumprimento da condição se faça apenas à custa dos vencimentos do agente. Muitas vezes isso não é possível e nem por isso se deixa de estabelecer a condição. Finalmente, a escolha do regime mais favorável tem que reportar-se ao regime em bloco, não sendo legítimo aplicar normas dispersas de um e de outro (com o que se estaria a criar um outro regime diferente dos aplicáveis). Embora qualquer destas soluções agrave, em determinada medida, a situação do arguido, é a única que nos parece cumprir integralmente a lei.É certo que suspender a pena por período igual à sua duração equivale a dizer que o arguido fica com menos tempo para pagar.Mas, e como referimos, o encurtamento do prazo de suspensão da pena resulta mais favorável.As quantias a pagar equivalem a quantias desviadas do fim a que se destinavam, quantias que nunca foram do arguido (eram de terceiros e destinavam-se ao Estado, funcionando o arguido em relação a elas, como se diz no acórdão do S.T.J. de 18-10-2006, processo 06P2935, como fiel depositário). Para além disso o arguido teve muito tempo para cumprir os seus deveres, cumprimento este que, como se viu, até o eximiria de responsabilidade penal. Portanto, parece-nos que o manter o prazo anterior, apenas porque desta forma fica com mais tempo para cumprir a condição, não é argumento suficiente que faça abalar a maior vantagem que resulta de a suspensão decretada ser reduzida.Então diremos que, à luz do preceituado no art. 2º, nº 4, do Código Penal, revelando-se a nova lei mais favorável terá que ser esta a aplicável ao caso.Portanto, a pena aplicada ao arguido deverá ser suspensa na sua execução pelo período de catorze meses, sendo que a condição estabelecida terá que ser satisfeita neste mesmo período de tempo.Portanto, aplica-se ao arguido a pena de catorze meses prisão, suspensa pelo período de catorze meses na condição de ele pagar ao Estado/Administração Fiscal, neste mesmo prazo, a quantia de € 35.333,33 (trinta e cinco mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos).
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VII – Verificação de circunstâncias que impõem a atenuação especial da pena O arguido defende, ainda, a ocorrência de circunstâncias que impõem a atenuação especial da pena aplicada. Alega que a ilicitude da conduta não foi elevada e que a actuação criminosa terminou já há mais de sete anos.«Quando o legislador dispõe de uma moldura penal para um certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até aos de maior gravidade pensáveis: em função daqueles fixará o limite mínimo; em função destes o limite máximo da moldura penal respectiva; de modo a que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção.Desde há muito, porém, se põe em relevo a limitação da capacidade de previsão do legislador para abarcar não só todas as situações contemporâneas da feitura da lei, como acompanhar o constante fluir de novas situações que a vida faz emergir a cada momento.Daí que, em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, tenha surgido a necessidade de dotar do sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena …O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber: - Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção; - A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos "normais", "vulgares" ou "comuns", "lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios".… No caso, nada de excepcional se descortina, já que ao agir como agiu, o arguido o fez sempre consciente e deliberadamente, fazendo-o com plena liberdade de actuação bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei … Por isso, hoc sensu, não há lugar a falar aqui em atenuação especial» - acórdão do S.T.J. de 29-1-2004, 03P1874. Apesar de pensadas para situação diferente estas palavras aplicam-se, na íntegra, ao caso. Aliás, a sem razão é tão evidente que o arguido, aqui, limitou-se a repetir os argumentos já expendidos a propósito da escolha e medida da pena.Improcedem, sem mais, as conclusões 52ª a 61ª.
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DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos concede-se provimento parcial ao recurso e, em consequência:
I – Pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível pelo art. 105º, nº 1, do RGIT, condena-se o arguido na pena de catorze meses de prisão.
II – Nos termos decididos suspende-se execução da pena aplicada, fixando em catorze meses o período de suspensão.
III – A suspensão decretada fica subordinada à condição de o arguido pagar ao Estado a quantia de € 35.333,33 (trinta e cinco mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), durante o período de suspensão.
IV – Pelo decaimento parcial condena-se o arguido em 6 UCs. de taxa de justiça.
Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária.
Porto, 2007-12-12
Olga Maria dos Santos Maurício
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
Não concordamos com o acórdão que antecede, pelos motivos já expostos no comentário 1.