quinta-feira, 17 de junho de 2010

Recolha de imagens sem prévia autorização judicial

O registo de imagem de vigilância policial, em local público, no âmbito de investigação de tráfico de estupefacientes depende de prévia autorização judicial (ver art. 6 da Lei 5/2002)?
A utilização de fotografia tirada por um cidadão que presencia um crime pode ser utilizada como meio de prova?

O artigo 26º da CRP prescreve como direito fundamental o direito à imagem. O art. 199º do Código Penal proíbe as fotografias ilícitas, tratando a imagem enquanto bem jurídico autónomo face à privacidade e à intimidade.
O art. 250º do Cód. Proc. Penal prevê a possibilidade de se utilizarem fotografias de suspeito no âmbito das medidas cautelares e de polícia, para prossecução de finalidades processuais.
O art. 167º do Cód. Proc. Penal dispõe o seguinte:


Valor probatório das reproduções mecânicas
1 — As reproduções fotográficas, cinematográficas,
fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um
modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem
como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem
ilícitas, nos termos da lei penal.
2 — Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para
os efeitos previstos no número anterior as reproduções
mecânicas que obedecerem ao disposto no título III deste
livro.

Ou seja, não são também ilícitas, nos termos do n.º 2 do art. 167º do Cód. Proc. Penal as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto nos arts. 171º a 190º do Cód. Proc. Penal.
A respeito do art. 167º do Cód. Proc. Penal refere Maia Gonçalves, em anotação do Cód. Proc. Penal Anotado, 12.ª Edição, Almedina,

“…quem fotografar às ocultas pessoa que se encontre em lugar privado não poderá usar a fotografia assim captada como meio de prova em processo penal.
Esta regra poderia, porém, conduzir demasiadamente longe, se não fosse entendido, como deve ser, que o próprio Direito Penal substantivo se tem que harmonizar e compatibilizar com o adjectivo. Aqui as pessoas podem mesmo ser compelidas a sujeitar-se a exames, fotografias, etc., tudo como se regula no título seguinte. Então, dever-se-á até entender que não há qualquer tipo de ilicitude penal, porque a conduta é autorizada por um dos ramos da ordem jurídica (cf . art. 31 .°, n.° 1, do CP). Assim, se as reproduções tiverem sido obtidas de harmonia com as disposições deste Código, podem ser usadas como meio de prova e não há qualquer ilicitude penal por parte de quem as obteve.”

A respeito deste art. 167º do Cód. Proc. Penal refere Paulo Pinto de Albuquerque o seguinte:

“…pela mesma razão, o direito penal também não protege a materialidade da
imagem do crime, sendo, por exemplo, admissíveis as fotografias tiradas na
propriedade rústica do arguido, sem a sua autorização, a umas colmeias cujo
furto é imputado ao arguido (acórdão do TRC, de 27.10.1999, in CJ, XXIV, 4,
68 e, na doutrina, PAOLO TONINI, 2007:282);
C. as imagens obtidas por sistema mecânico de videovigilância colocado em
postos de abastecimento de combustíveis, caixas de multibanco ou noutros
lugares públicos, desde que devidamente autorizado, uma vez que ele se
dirige à generalidade do público (acórdão do STJ, de 20.6.2001, in CJ, Acs. do
STJ, IX, 2,221, acórdão do TRG, de 30.9 .2002, in CJ, XXVII, 4,285, acórdão do
TRG, de 29.3 .2004, in CJ, XXIX, 2, 292, e acórdão do TRG, de 19.5 .2003, in CJ,
XXVIII, 3,299).
D. as reproduções que obedecem ao Título III do Livro III do C.P.P. e ao artigo
6.° da Lei n.° 5/2002, de 11 .1 ; mas devendo ser excluídas as reproduções
respeitantes ao núcleo do direito constitucional à privacidade (ver a NOTA
PRÉVIA ao artigo 189.°) e as reproduções videográficas, audiográficas ou de
outra natureza da confissão do crime pelo arguido feitas pelas autoridades
públicas ou por terceiros a mando destas fora do processo (como dizem,
CLAUSROXIN / HANS ACHENBACH 2006:323: "nem agravação constitui
prova documental nem pode ser aplicado analogicamente o regime desta"),
sob pena de fraude à lei e ao princípio constitucional da imediação (ver
a anotação ao artigo 357.°).
e. as reproduções feitas ao abrigo de causas de justificação, designadamente,
para os que entendam que não deve proceder-se a umaredução teleológica
do tipo do artigo 199.° do CP de modo atutelar os direitos fundamentais da
vítima (assim, preferindo a solução das causas de justificação à da redução
típica, COSTA ANDRADE, anotação 45.' ao artigo 199.', in FIGUEIREDO DIAS,
1999)”
(Comentário do Cód. Proc. Penal, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora).




Acórdão da Relação Porto de 21-12-2004
Nº Convencional: JTRP00037538
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Nº do Documento: RP200412210444045

Sumário (parcial):

I- Valem como provas as fotografias tiradas na rua e em outros locais públicos aos arguidos pelos agentes investigadores, em operações de vigilância.


Transcrição Parcial:

“…Quanto à nulidade da prova fotográfica junta aos autos e dos reconhecimentos efectuados pela Polícia Judiciária
Alegam os recorrentes que apreciando erradamente a arguição de não validade da prova fotográfica junta aos autos e dando como válidos os reconhecimentos efectuados na sede da PJ apesar da arguição atempada das irregularidade, nulidade e inexistência, feriu assim o douto despacho na letra e no espírito os arts: 147º, do CPP; e artº. 6º da Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro.
A Constituição da República Portuguesa no art. 26º, nº1, reconhece como direitos fundamentais do cidadão, o direito à imagem, à palavra, à reserva da vida privada e familiar, remetendo para o legislador ordinário as garantias efectivas contra utilizações abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias (nº2, do citado art. 26º). Este preceito constitucional vincula as entidades públicas e privadas, sendo que os direitos nele consagrados só podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição, estando sujeitos ao princípio da proporcionalidade, subjacente ao art. 18º, nº 2, da Constituição, garantindo que a restrição de tais direitos fundamentais, se limite ao estritamente necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Em conformidade com estes preceitos constitucionais, a lei protege as pessoas contra qualquer ofensa ilícita à sua intimidade ou privacidade, e, daí que o legislador reafirmou a intimidade da vida privada, ao conceder no Cap. VII do CP (Dos crimes contra a reserva da vida privada), do Titulo I, (Dos crimes contra as pessoas), toda uma específica área incriminadora à protecção do bem jurídico da intimidade da vida privada.
Por seu turno, o art. 32º, nº 8, da CRP consagra que “são nulas todas as provas obtidas mediante (…) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio (…)”.
Em conformidade com este preceito constitucional, o art. 126º, nº3, do CPP, determina que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.
Relativamente ao valor probatório das reproduções mecânicas, o legislador português, consagrou no preceito nuclear do art. 167º, nº 1, do CPP, que “As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas produzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal”, dispondo o nº 2, do mesmo preceito que “Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no Título III deste Livro”.
Seguindo a lição de Manuel da Costa Andrade,[in “Sobre Proibições de Meios de Prova, Coimbra, 1992, pág. 238- 239] a propósito deste normativo, «Significativa, desde logo, a prevalência expressamente reconhecida ao critério da ilicitude penal substantiva: será inadmissível e proibida a valoração de qualquer registo fonográfico ou fotográfico (filmíco, video, etc) que, pela sua produção ou utilização represente um qualquer ilícito penal material, à luz do disposto no art. 179º, do Código Penal (actualmente art. 192º, do CP)» (…)
«Os interesses encabeçados e servidos pelo processo penal - a saber, a realização da justiça, a estabilização contrafáctica das normas, a restauração da paz jurídica, por razões de economia, a eficácia da justiça penal - não bastam, por si só enquanto tais, para legitimar a danosidade social da produção ou utilização não consentidas de gravações ou fotografias. Numa formulação de mais óbvia e directa intencionalidade pragmática, o mero propósito de juntar, salvaguardar e carrear provas para o processo penal não justifica o sacrifício do direito á palavra e do direito à imagem em que invariavelmente redundam a produção ou utilização não consentida destas reproduções mecânicas. Pela positiva, só como meios necessários e idóneos à salvaguarda de prevalentes valores, transcendentes ao processo penal, poderá justificar-se a sua produção ou ulterior valoração processual contra a vontade de quem de direito. Só neste contexto e com esta específica direcção preventiva pode emergir um relevante estado-de-necessidade probatório»
Sobre a valoração das fotografias e filmes, como meio de prova em processo penal, escreve ainda, o mesmo autor, [ob cit, pág. 270-271] «O âmbito da ilicitude penal (…), predetermina o alcance da proibição de valoração das fotografias e filmes. (…) Deve ter-se como proibida a valoração das fotografias obtidas de modo penalmente ilícito, nomeadamente se produzidas sem consentimento e a descoberto de justificação bastante. Em termos substancialmente idênticos ao que vimos suceder com as gravações.”(…)
“O panorama do lado das fotografias ou filmes cuja obtenção não configura um ilícito penal: porque produzidos com consentimento (e como tais atípicos) ou a coberto de justificação bastante.Como início de resposta importa adiantar uma distinção:
De um lado estarão as hipóteses em que a utilização ou valoração destas fotografias possa originar o ilícito penal á luz dos arts. 178º ou 180º, do CP. É o que sucederá (…) com as fotografias que contendam com a intimidade, cuja valoração sem consentimento, há-de, por isso, considerar-se igualmente proibida.
Solução inversa deverá já preconizar-se para as demais constelações típicas, são: aquelas que, por sobre não terem sido obtidas de forma penalmente ilícita não contendam com a intimidade. A sua valoração será, por princípio, admissível por força do disposto no nº1, do art. 167º, do CPP»A Lei nº 5/2000, de 11JAN, que veio estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, consagra no seu art. 6º, nº1, que «É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado», estabelecendo o nº2, do mesmo preceito legal que «A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos», sendo aplicáveis, por força do nº3, do mesmo normativo, aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no art. 188º, do Código do Processo Penal.
O que está em causa nos presentes autos são as fotografias que foram apreendidas nas buscas realizadas, bem como as produzidas pelos investigadores pelo acto de fotografar os arguidos na rua ou em locais públicos de forma a representar factos observados pelos próprios em resultado de operações de vigilância ou de seguimento.
O nº1 do art. 6º, da Lei nº 5/00, de 11JAN, fala em «registo de voz e de imagem» consiste reprodução audiovisual, daí que não cabem na previsão do citado normativo as «fotografias», já que estas apenas registam imagens e não sons.
Neste sentido, desde que as fotografias não colidam com a esfera da vida privada, como é o caso dado que foram tiradas na rua e em locais públicos de forma a reproduzir factos observados pelos próprios investigadores em resultado de operações de vigilância, não careciam de autorização judicial, na medida em que não foram obtidas de forma penalmente ilícita e não contendem com a intimidade, pelo que a sua valoração será admissível por força do disposto no nº1, do art. 167º, do CPP…”


Para Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao art. 189º do Cód. Proc. Penal, o regime do art. 6º da Lei n.º 5/02 aplica-se ainda à recolha de imagem e de som em local público, em face da proibição típica do artigo 199.° do CP, desde que não se trate de imagem ou som relativo a acontecimento de interesse público ou a pessoa cuja notoriedade ou cargo desempenhado justifiquem o interesse de «terceiros». Nestes casos, é a própria tipicidade legal que está excluída (também assim, COSTA ANDRADE, anotação 42.a ao artigo 199.º, in FIGUEIREDO DIAS, 1999).
Ao invés, a recolha da imagem ou som de pessoa que se encontra em lugar público ou que participa em acto público, mas de forma anónima (por exemplo, um manifestante num comício ou um espectador num concerto), está subordinada à proibição típica do artigo 199.° do CP e, portanto, também ao regime descrito do artigo 6.° da Lei n.° 5/2002 (acórdãos do TEDH P.C. e J.H. v Reino Unido, de 25.9 .2001, e Perryv Reino Unido, de 17.10.2003, que equiparam esta recolha à intercepção de conversa telefónica, e acórdão do TRP, de 22.3.2006, in CJ, XXXI, 2,198, contrariado pelo acórdão do TRE, de 21.11.2000, in CJ, XXV, 5, 279, pelo acórdão do TRL, de 22.1 .2003, in CJ, 2003, 1, 40, e pelo acórdão do TRP, de 16 .11.2005, in CJ, XXX, 5, 219, que entendem que a recolha é neste caso livre e independente de autorização judicial, e ainda acórdão do TRC, de 23.4 .2003, in CJ, XXVIII, 2, 43, que, contudo, impõe uma valoração a posteriori do juiz).
Pode, pois, concluir-se, por um lado, que o artigo 79.°, n.° 2, do CC é aplicável analogicamente à captação do som de uma pessoa e, por outro, que o artigo 199.° do CP revogou tacitamente o artigo 79.°, n.° 2, do CC, na parte em que este se refere aos simples factos ocorridos em "lugares públicos" ou "que hajam decorrido publicamente" quando respeitem a pessoa presente nesses lugares de forma anónima.

Ac. TRC de 23/4/2002, CJ 2002, II, 43:

Tal como a questão é posta ao tribunal, está em causa a obtenção de uma prova mediante intromissão da vida privada, com violação do direito à imagem (art. 76 CC). Porém, entende-se que não é todo e qualquer registo de voz e imagem que depende de autorização prévia do juiz, mas tão só aquele registo em que haja ofensa à integridade moral das pessoas (art. 126 nº1 CPP) ou constitua intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (art. 126 nº 3 CPP). O Código Civil (arts. 76 e 79) não proíbe que se colha imagem, antes proíbe a difusão do retrato sem o consentimento da pessoa retratada. As fotografias e a utilização que delas é feita encontra-se justificada por exigências de justiça, nos termos do art. 79 nº 2 CC. No mesmo sentido Ac. TRG de 29/3/2004.


CNPD/Câmaras de filmar:

- Armazém fechado, residência: é legal ter vídeovigilância.

- «Se um circuito de vigilância é legalmente autorizado, para fins de vigilância e segurança, e no decurso dessa operação fica acidentalmente registada a ocorrência de um crime, nada obsta à sua utilização como meio de prova validamente obtido.
Neste caso, o registo de voz e de imagem está legalmente autorizado e, cumpridas as normas previstas para o efeito, uma das consequências é a validade de tais registos, tanto mais que o local deverá estar assinalado, anunciando tal vigilância. O visado sabe, assim, que a sua imagem e voz naquele local são ou podem ser registados e sabe, também, que tal sucede por razões de segurança».
Diferente é a utilização de um circuito de vigilância para fins de investigação criminal (art. 6 da Lei 5/2002), porque neste caso o registo de voz e imagem carece de prévia autorização judicial.
[Mário Ferreira Monte, «o registo de voz e imagem…», in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira]

- Ac. Relação do Porto, de 26-03-2008, processo 0715930, citando jurisprudência do TEDH (cf. Ac. RG, de 29.03.04, Ac. RP, de 31.05.06): admissibilidade de imagens de câmaras de bombas de gasolina, mesmo sem comunicação à CNPD (cf. Ac. RP, de 16.11.05 - CJ V, p. 216); Ac. RL, de 28.11.01 e Ac. RC, de 17.04.02 (cf. fotos) – inexistência de devassa da vida privada.

- Para Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao art. 189º do Cód. Proc. Penal, as imagens obtidas por sistema de videovigilância, porque não têm nenhum visado em especial, não estão submetidas ao regime do artigo 6.° da Lei n.° 5/2002 e podem ser juntas aos autos e valoradas, desde que o sistema de videovigilância esteja devidamente autorizado (acórdão do STJ, de 20.6 .2001, in CJ, Acs. do STJ, lX, 2, 221, e acórdão do TRG, de 29.3.2004, in CJ, XXIX, 2, 292) .


Acórdão da Relação do Porto de 27-04-2005 [Ver ficha original em www.dgsi.pt]
Proc. 0414638
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO

Sumário:
São lícitas, podendo ser usadas como meio de prova, as fotografias obtidas pelos órgãos de polícia de investigação criminal, mesmo sem autorização das autoridades judiciárias, desde que as mesmas não impliquem a devassa da vida privada.

Transcrição parcial:

“…Quanto à invocada nulidade das vigilâncias realizadas nos dias 29 e 30 de Outubro de 2001, o recorrente entende que foram violados os artigos 188º, 189º e 118º, n.º 3 do CPP. Fundamenta a sua motivação, dizendo que as vigilâncias ocorridas nos referidos dias não foram autorizadas pela entidade titular do processo, nem houve despacho a fundamentar essa autorização. Assim, tais vigilâncias são nulas e, consequentemente, os depoimentos dos agentes que as efectuaram não são meios de prova válidos, por força do disposto nos arts. 189º, 188º e 118º, 3 do CPP.
O M.P. junto do tribunal “a quo” respondeu, alegando (quanto a este ponto) que só com a Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, veio a ser exigida autorização e fundamentação da vigilância de pessoas. Antes desta lei não vigorava tal regime, nem o mesmo resultava do art. 188º do CPP, aplicável apenas às escutas telefónicas e não às vigilâncias e recolha de fotografias. Por outro lado, refere, após a entrada em vigor da referida lei (em 12/02/02) foi previamente autorizada pelo Juiz de Instrução Criminal a recolha de imagem (fls. 64 e 70).
Não há dúvida que na fundamentação da matéria de facto o julgador teve em conta as fotografias obtidas (cf. fls. 1952). E recorreu a tal meio de prova relativamente a factos ocorridos em 30 de Outubro de 2001 (no que se refere ao recorrente), altura em que não havia nos autos qualquer despacho do Juiz de Instrução a autorizar a recolha de imagens. A autorização do Juiz de Instrução obtida depois da Lei 5/2002 é irrelevante, uma vez que estamos a ponderar o valor probatório de fotografias obtidas antes dessa data (tal autorização só pode ser relevante para as fotografias obtidas depois desta lei).
Tal não significa que o recorrente tenha razão, quando alega a violação do art.188º do CPP, uma vez que o mesmo diz respeito às formalidades da gravação “a que se refere o artigo anterior”, ou seja, à “intercepção e gravação de conversações telefónicas”. A nulidade cominada no art. 189º CPP sanciona apenas a violação dos artigos 187 e 188 CPP e estes artigos nada dizem sobre a obtenção de fotografias, ou vigilância directa. Assim, à data da prática dos factos, a nulidade invocada pelo arguido não era aplicável ao caso dos autos.
Importa porém saber se as fotografias assim obtidas, isto é, sem prévia autorização, poderiam ser usadas como meio de prova, antes da citada lei 5/2002, de 11 de Janeiro, ou esse uso configura nulidade de obtenção de um meio de prova.
Vejamos a questão.
A prova através de fotografias (e de outros documentos designados na lei por “reproduções mecânicas”) vem regulada no art. 167º CPP, aí se estabelecendo que as mesmas valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas “se não forem ilícitas nos termos da lei penal”. E o n.º 2 explicita que não se consideram ilícitas, entre outras, as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto nos artigos 171º a 190º, que regulamentam os “meios de obtenção da prova”.
Assim, a ideia geral sobre a validade das fotografias como meio de prova, é a seguinte: (i) valem como meio de prova se não forem penalmente ilícitas e (ii) não são ilícitas se forem obtidas através do procedimento previsto nos artigos 171º a 190º do C.P.Penal.
No caso dos autos foi preenchido o tipo previsto no art. 199º, n.º 2 al. a) do C. Penal, (“gravações e fotografias ilícitas”) uma vez que este se verifica apenas com o acto de fotografar uma pessoa, sem o seu consentimento, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado, já que o bem jurídico aí protegido é apenas o direito à imagem.
Mais complexa é a questão de saber se as fotografias obtidas no âmbito da investigação criminal, antes da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro, poderia considerar-se lícita. O n.º 2 do art. 167 do C. P. Penal, ao referir que a licitude das reproduções mecânicas resulta, “nomeadamente”, da obediência às regras legais de obtenção da prova, deixa antever que não são taxativamente indicadas as condições que tornam penalmente lícita a obtenção de fotografias. Uma ponderada interpretação do preceito, tendo em vista a harmonização do direito penal substantivo e adjectivo, implica que serão de atender todas as causas de exclusão da ilicitude penal, considerando como tal a obtenção das imagens “de harmonia com as disposições do CPP” (Maia Gonçalves, CPP, anotado, pág. 403).
Vejamos então se a obtenção de fotografias pelos órgãos de polícia criminal, no âmbito da investigação criminal, pode ser lícita e, consequentemente, valer como meio de prova.
Se a fotografia foi obtida pelos órgãos de polícia criminal, no âmbito das suas funções, através da devassa da vida privada, configura prova nula, nos termos do art. 126º, n.º 3 do C.P.Penal, a não ser que a lei especial expressamente preveja essa possibilidade. Antes da Lei 5/2005, de 11 de Janeiro, tal não estava especialmente previsto e, portanto, tal prova seria, em princípio, nula. Dizemos em princípio, pois mesmo nesta hipótese poderia ser admissível a validade da prova - cf. sobre a questão o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 263/97, de 19/3/97, onde se defende uma ponderação de interesses, com o fundamento de que a protecção do direito à vida privada não pode intoleravelmente limitar outros direitos.
Porém, no caso dos autos, as fotografias foram obtidas num local público e sem qualquer intenção de devassa da vida privada, pelo que não é aplicável este regime.
Se a fotografia foi obtida no âmbito do processo criminal e não implica a devassa da vida privada, a mesma será lícita, desde que obtida no âmbito da recolha de meios de prova previstos nos artigos 171º e seguintes e se observe o regime aí previsto (art. 167º do CPP) – cf. neste sentido SIMAS SANTOS E LEAL HENRIQUES, Código de Processo Penal anotado, pág. 858, anotação ao art.167º: haverá exclusão da ilicitude quando os meios mecânicos referidos no art. 167º do CPP não sejam “ (…) senão o natural resultado de actos e diligências levadas a cabo no âmbito do CPP, com vista à perseguição da verdade material, portanto verdadeiros actos de investigação criminal”.
Nos termos do art. 171º do C.P.Penal, os órgãos de polícia criminal podem proceder a exames a pessoas, lugares e coisas, inspeccionando os vestígios que o crime possa ter deixado. Cabe neste tipo de recolha de prova a observação directa, acompanhada de relatórios e fotografias de coisas e pessoas. Dado que o art. 171º do C.P.Penal não exige qualquer autorização especial, quer da pessoa visada, quer das autoridades judiciárias, qualquer órgão de polícia criminal pode obter fotografias para documentar o exame. Neste caso, a obtenção da fotografia é lícita, embora só seja possível se não implicar devassa da vida privada.
Ora, no caso dos autos, está provado que as fotografias dos arguidos foram obtidas pelos órgãos de polícia criminal (agentes da PSP) no âmbito de uma investigação criminal com a finalidade de documentar a prática do crime de tráfico de estupefacientes, num local público, não tendo implicado devassa da vida privada.
Assim, tendo em conta a lei vigente à data em que tais fotografias foram obtidas, nada obstava a que as mesmas fossem valoradas livremente pelo julgador, não configurando a valoração desse meio de prova qualquer nulidade….”

A fundamentação deste acórdão vale também no âmbito da Lei 05/2005, pois, como sustentamos aqui, esta Lei apenas se aplica à recolha simultânea de voz e de imagem.

Acórdão da Relação do Porto de 03-02-2010 [Ver ficha original em www.dgsi.pt] :

Transcrição parcial:

- “…tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente [Ac. R.Coimbra de 17.04.2002, in CJ, Tomo III, pág. 40 e Ac. R.Lx de 28.11.2001, in CJ, Tomo V, pág. 138].
Aliás, o próprio art. 79º n.º 2 do Cód. Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, também deverá ser considerado extensível ao direito penal, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima. Consagrando o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o art. 31º, n.º 1, do Cód. Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Significa isto que as normas de um ramo do direito que estabelecem a licitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal, a ponto de, por exemplo, nunca poder haver responsabilidade penal por factos que sejam considerados lícitos do ponto de vista civil.
Aquela justa causa apenas será afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, como seja o direito ao respeito pela sua vida privada.
Ora, a citada norma do Cód. Civil não só afasta a ilicitude dos art.s 199º do Cód. Penal e 167º do Cód. Proc. Penal, como também não é inconstitucional, uma vez que, embora comprima o direito à reserva da vida privada, não o faz de uma forma de todo intolerável, como parece evidente à luz do mais elementar bom senso [Ac. da Relação do Porto de 26.03.2008, relatado pelo Des. Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt, Ac. de 14.10.2009, também desta Relação, de que foi relator o Des. Ângelo Morais, citando decisão proferida pela 1ª instância; v. ainda o Ac. do STJ de 20.06.2001, in CJAcs. STJ, Ano IX, Tomo II, pág. 226].
Assim, tem a jurisprudência, de um modo geral, entendido não ser proibida a prova obtida por sistemas de videovigilância colocados em locais públicos, com a finalidade de proteger a vida, a integridade física, o património dos respectivos proprietários ou dos próprios clientes perante furtos ou roubos, por as imagens não serem captadas em locais privados, total ou parcialmente restritos, nos quais, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, justificando-se, pois, essa excepção aos métodos proibidos de prova por razões de polícia ou de justiça.
Como se refere no voto de vencido lavrado pelo Des. Mário B. Morgado no Ac. R.Lx. de 03.05.2006, afigura-se-nos que a captação de imagens em causa não integra o crime p. e p. pelo art. 199º, nº 2, a), CP: a captação de imagem dirigida a provar factos ilícitos em locais públicos ou no local de trabalho deve considerar-se desprovida de tipicidade (aquele tipo criminal deve sofrer uma redução da área de tutela de sentido vitimodogmático) ou, pelo menos, de ilicitude (com base, segundo as diferentes posições doutrinárias, em quase legítima defesa, legítima defesa, direito de necessidade, prossecução de interesses legítimos ou num critério geral de interesses) - cf. sobre esta problemática Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 834-840, e Sobre as proibições de prova em processo penal, 242-272. Também não se descortina no caso vertente qualquer violação da integridade física ou moral do arguido ou ofensa da sua dignidade/intimidade - como se sabe, nem toda a lesão de um direito de personalidade viola a dignidade humana.
Por outro lado, a obtenção de imagens nas circunstâncias em apreço também não constitui qualquer crime de devassa contra a vida privada (previsto no art. 192º) ou de devassa por meio de informática (do art. 193º, ambos do Cód. Penal), uma vez que com estes ilícitos pretende-se tutelar apenas o núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas, o que não é manifestamente o caso da situação que nos ocupa. Com efeito, as imagens do arguido não foram registadas no contexto da esfera privada e íntima deste, nem foram captadas às ocultas, tanto mais que a existência das câmaras de videovigilância estava devidamente assinalada através da aposição dos competentes dísticos.
Conclui-se assim que as imagens captadas em circunstâncias e condições semelhantes àquelas em que foram recolhidos os fotogramas juntos aos autos e examinados em audiência, não correspondem a qualquer método proibido de prova, tanto mais que apenas foram obtidas com o fim de identificação, confinando-se, pois, à estrita ligação à identidade do titular do direito, o que exclui qualquer exposição arbitrária da imagem e muito menos qualquer manipulação da mesma.”


O art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11.01, com a Rect. n.º 5/2002, de 06/02, alterada pela Lei n.º 19/2008, de 21/04, e pelo DL n.º 317/2009, de 30/10, estabelece o seguinte:

Artigo 6.º
Registo de voz e de imagem

1 - É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.
2 - A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos. 3 - São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.



Portanto, a lei refere-se apenas ao registo de voz e de imagem e não apenas ao registo de imagem ou ao registo de voz (este já se mostrava regulado no Código de Processo Penal).
O art. 6º da Lei 5/2002 exclui apenas a ilicitude resultante da violação do direito à palavra falada e do direito à imagem, mas não permite, todavia, a violação do domicílio (não é permitida a colocação de câmaras ou microfones no interior do domicílio).
Quanto à nulidade da utilização das imagens recolhidas em operações policiais, tal consistiria um nítido abuso de direito, descaracterizador de outros direitos também constitucionalmente consagrados.
Rejeita-se assim a invocada proibição ou nulidade de tal prova, uma vez que não foi, por qualquer forma, obtida em violação do preceituado no disposto no art. 126º, do Cód. de Proc. Penal. Não está em causa, nomeadamente, qualquer violação da vida privada do arguido, quando o mesmo, de forma não autorizada, por arrombamento, violando por várias formas o património de outrem, se introduz num estabelecimento público, por sinal fechado naquela altura. Como é óbvio, a protecção da vida privada deste cidadão/arguido não é tão abrangente que lhe permita, impunemente, a coberto de normas que visam a defesa desse direito fundamental, pôr em causa outros direitos fundamentais de terceiros, de forma criminosa. O art. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, que está na génese do art. 126º, nº 3, do Cód. de Proc. Penal, tem de ser interpretado de forma que previna a violação da substância desse direito fundamental mas não ao ponto de o mesmo constituir um abuso ou a descaracterização de outros.
É o art. 199.º do Cód. Penal que tipifica o crime de gravações ou fotografias ilícitas. Ora, nos termos deste preceito deve ser punido «quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas». Nos termos do n.º 2 do referido artigo, no mesmo crime incorre ainda quem, «contra vontade fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos».
O art. 199.º contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis. E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, importa destacar que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida sem consentimento, enquanto que a fotografia só será ilícita desde que produzida contra a vontade, o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa.
Como se referiu, o próprio art. 79º n.º 2 do Cód. Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça
Impedir a polícia de recolher imagens nas operações de vigilância policial e devidamente justificadas por razões de prossecução de justiça, a avaliar pelo juiz segundo o princípio da livre apreciação da prova, seria um absurdo, por fazer perigar seriamente a realização prática de um verdadeiro Estado de Direito.