terça-feira, 19 de outubro de 2010

Modelos de acusações

Numa primeira classificação de despachos encontramos:

- Despachos de expediente;
- Despachos interlocutórios; e
- Despachos finais do inquérito.

Os despachos finais do inquérito serão aqui divididos em três, apenas por se considerar importante autonomizar o despacho interlocutório de suspensão provisória do inquérito e inseri-lo neste local, pois os inquéritos suspensos aparecem como processos findos em alguns mapas estatísticos em uso no Ministério Público.

Temos assim três tipos de despachos finais:

- Despachos de acusação;
- Despachos de arquivamento; e
- Despachos de suspensão provisória do inquérito.


I. Despacho de acusação

Este despacho pode ser classificado segundo vários critérios:

a) Critério da forma de processo mencionado na acusação (cf. comum ou especial):
a.1) Critério da estrutura do tribunal de julgamento (cf. tribunal singular, colectivo ou de júri):

a.1.1) Critério da espécie de processo dentro da forma de processo especial (cf. processo especial: sumário, abreviado ou sumaríssimo);

a.1.2.) Critério da composição do tribunal de julgamento, quando esta é determinada pelo Ministério Público (cf. recurso ao art. 16º, n.º 3, 381º, n.º 2, ou 391º-A, n.º 2, todos do Cód. Proc. Penal);

b) Critério do grau hierárquico do magistrado do Ministério Público que formula a acusação (ex: saber quantas acusações foram formuladas pelo Procurador da República);

c) Critério da existência ou não de arguidos presos;

d) Critério do tipo legal de crime mencionado na acusação;

e) Critério da prioridade do tipo legal de crime mencionado na investigação;

f) Critério do número de arguidos acusados;

g) Critério do número de ofendidos;

h) Critério do tipo de medidas de coacção ou de garantia patrimonial em vigor no inquérito;

i) Critério que permite individualizar as acusações em que se promova a aplicação de medida de coacção detentiva (cf. art. 201º e 202º do CPP) ou não detentiva

j) Critério do tipo de medidas de coacção não detentivas promovidas, ou pelo menos algumas delas (ex: art. 200º do CPP – proibição de sair do país)

k) Critério do recurso a pedido de declaração de perda de objectos a favor do Estado e podendo-se aqui criar subgrupos por titularidade de objectos – cf. de arguido ou de terceiro – ou por tipologia de objecto (exemplos: veículos, imóveis, etc);

l) Critério do recurso ou não a liquidação para perda a favor do Estado;

m) Critério do número de defensores e seu tipo (cf. nomeados ou constituídos); e


n) Critério do tipo de prova indicada ou requerida - exemplificando:

- Número de testemunhas;
- Com recurso à lei de protecção de testemunhas;
- Com pedido de expedição de carta rogatória; e
- Número de exames e perícias indicados.



II. Despacho de arquivamento

Este despacho será classificado pelos seguintes critérios:

a) Critério “normal” (cf. outras ou por defeito);

b) Critério de se tratar ou não de inquérito respeitante a arguido conhecido e a crime punível com pena de prisão superior a cinco anos;

c) Critério de “Investigação realizada na Polícia Judiciária” (cf. existe o dever de comunicar-lhe o teor do despacho de arquivamento, por email);

d) Critério de “declaração de incompetência”;

e) Critério de “declaração de incompetência internacional”;

f) Critério de “delegação de competência internacional”;

g) Critério de “dispensa de pena”, criando-se dois subgrupos: dispensa de pena
fiscal/segurança social ou outra;

h) Critério de “suspensão provisória” (cf. arquivamentos de inquéritos suspensos provisoriamente), criando-se aqui três subgrupos: fiscal/segurança social, violência doméstica e outros;

i) Critério da prioridade do inquérito;

j) Critério da existência ou não de arguido com medida de coacção detentiva;

k) Critério do número de arguidos;

l) Critério do tipo de arguido – cf. menor, agente de autoridade, funcionário público, arquitecto, TOC, magistrado, titular de cargo político, advogado, solicitador, juiz, pessoa colectiva e cidadão estrangeiro (cf. comunitário/não comunitário);

m) Critério de “Impacto público” (cf. esta designação é utilizada nas PGDistritais);

n) Critério do número de ofendidos identificados como tal (cf. art. 75º do CPP); e

o) Critério do tipo legal de crime.


III. Suspensão provisória do inquérito

Este despacho será classificado pelos seguintes critérios:

a) Critério do tipo legal de crime;
b) Critério da prioridade do inquérito;
c) Critério do número de arguidos; e
d) Critério do tipo de injunção aplicada (cf. classificação SIMP).

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Investigação de paternidade/Não caducidade

Acórdão do STJ, de 21-09-2010
495/04 – 3TBOR.C.1.S.1
1ª SECÇÃO
Relator: Sebastião Póvoas

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a48afeb45847b928802577a5003dcf51?OpenDocument

Sumário:

1. O direito ao conhecimento da filiação biológica (ou natural) é pessoalíssimo, incluindo o direito à identidade genética, sendo irrepetível e com dimensão permissiva alcançar a “história” e identidade próprias, já que aquele factor genético condiciona a personalidade.

2. Trata-se de um direito fundamental constitucionalmente consagrado como de identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) que adquire a dimensão de desenvolvimento da personalidade e um relevante valor social e moral.

3. O direito a investigar a paternidade é imprescritível sendo injustificada qualquer limitação temporal que equivaleria à limitação de um direito de personalidade.

4. É este o resultado que se alcança do Acórdão do Tribunal Constitucional ao declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, declaração que não pode deixar de ser extensível a todo o preceito.

5. A revisão do Código Civil de 1977 (Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro) transformou os pressupostos da acção de investigação de paternidade elencados no n.º 1 do artigo 1871.º em presunções “tantum juris” atípicas por para a sua ilisão não ser necessária a prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2) já que basta a existência de “dúvidas sérias” no espírito do julgador (n.º 2 do artigo 1871.º).

6. Como presunções que são, destinam-se a afirmar um facto base conhecido para afirmar um desconhecido que, nestas lides, é a filiação biológica.

7. Demonstrado o vínculo biológico de paternidade, escopo primeiro da lide, irreleva, e deixa de ter razão de existir, a prova por presunção por se mostrar já assente, por outro meio, o facto presumido.

8. A determinação da paternidade biológica é hoje possível com todo o rigor e fiabilidade científicos e se afirmada pelas Instâncias com base em meio de prova admissível, é insindicável por este Supremo Tribunal de Justiça por se tratar de matéria de facto.

9. Conflituando o direito ao reconhecimento da filiação biológica com a privacidade e a tranquilidade do pretenso progenitor ou com a segurança material dos herdeiros deve prevalecer o direito do investigando e também o direito do Estado e da sociedade na defesa de valores éticos e eugénicos.

10. A referida evolução da ciência e da investigação genética afasta o argumento do “envelhecimento da prova”; o argumento do perigo de “caça fortunas” é, além do mais, neutralizado pelo instituto substantivo do abuso de direito e pelas sanções adjectivas da lide dolosa ou temerária.

11. Se está assente o vínculo biológico da filiação é do interesse do Estado e da sociedade o seu reconhecimento jurídico, sob pena de perigo de frustração dos impedimentos matrimoniais – de ordem pública – que vedam o incesto.

12. Se a recorrente transcreve parte dos depoimentos ou de outro meio de prova de que discorda e que pretende ver reapreciado exerceu um “majus” em relação ao n.º 2 do artigo 690-A do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, não impedindo o exercício do contraditório, a que se refere o n.º 3 desse preceito, antes o facilitando.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Processo de Especial Complexidade/Prorrogação de Prazos: art. 107º, n.º 6, do CPP

Acórdão da Relação de Coimbra, de 14-07-2010
Processo: 439/05.5TACBR-A.C1
Relator: PAULO GUERRA

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/2ae903b363e888cc8025776c003a64a7?OpenDocument

Sumário:

O n.º 6 do artigo 107º estabelece que o prazo de 20 dias pode ser prorrogado «até ao limite máximo de 30 dias», não que tal prazo pode ser prorrogado por mais 30 dias.

Artigo 215º, n.º 1, al. a), do CPP

Acordão da Relação de Lisboa, de 31-08-2010
Processo: 694/09.1JDLSB-E.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL

Sumário:

O prazo previsto no art.º 215.º, n.º 1, al. a) do C.P.P. refere-se ao momento em que é deduzida a acusação e não ao da notificação desta ao arguido preventivamente preso.

Crime de Violação da Autonomia ou Independência Sindical

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Data do Acórdão: 07-07-2010
Processo: 774/09.3TDLSB.L1-3
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/95b2ac2f2d5dbe5b8025777d0050da5b?OpenDocument

Sumário:

I – O crime de violação da autonomia ou independência sindical previsto e punido pelos artigos 405.º, n.º 2 e 407.º, n.º 1 do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro – ao punir a conduta dos empregadores que promovem a constituição, mantêm ou financiam o funcionamento, por quaisquer meios, de estruturas de representação colectiva dos trabalhadores ou, por qualquer modo, intervêm na sua organização e gestão, assim como impedem ou dificultam o exercício dos seus direitos –, salvaguarda directa e imediatamente os interesses das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores.

II – A legitimidade dos sindicatos, enquanto estruturas de representação colectiva dos trabalhadores, estende-se, quer à defesa dos interesses colectivos que representam, quer à defesa colectiva dos interesses individuais dos trabalhadores.

III – O direito de contratação colectiva é um direito que compete às associações sindicais exercer, e somente a elas, não podendo ser exercido senão através delas (artigo 491.º do CT).

IV – Tem legitimidade para se constituir como assistente uma associação sindical que participou nas negociações de um acordo de empresa (AE) que não chegou a subscrever e que, em processo criminal, requer a abertura de instrução, imputando ao empregador dos trabalhadores seus associados a promoção de um processo de “adesões individuais” ao referido AE relativamente a tais trabalhadores, processo esse que, na sua perspectiva, impediu ou dificultou o exercício pela mesma associação sindical dos direitos à contratação colectiva e à representação dos seus associados que lhe são legal e constitucionalmente reconhecidos.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Recolha de imagens sem prévia autorização judicial

O registo de imagem de vigilância policial, em local público, no âmbito de investigação de tráfico de estupefacientes depende de prévia autorização judicial (ver art. 6 da Lei 5/2002)?
A utilização de fotografia tirada por um cidadão que presencia um crime pode ser utilizada como meio de prova?

O artigo 26º da CRP prescreve como direito fundamental o direito à imagem. O art. 199º do Código Penal proíbe as fotografias ilícitas, tratando a imagem enquanto bem jurídico autónomo face à privacidade e à intimidade.
O art. 250º do Cód. Proc. Penal prevê a possibilidade de se utilizarem fotografias de suspeito no âmbito das medidas cautelares e de polícia, para prossecução de finalidades processuais.
O art. 167º do Cód. Proc. Penal dispõe o seguinte:


Valor probatório das reproduções mecânicas
1 — As reproduções fotográficas, cinematográficas,
fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um
modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem
como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem
ilícitas, nos termos da lei penal.
2 — Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para
os efeitos previstos no número anterior as reproduções
mecânicas que obedecerem ao disposto no título III deste
livro.

Ou seja, não são também ilícitas, nos termos do n.º 2 do art. 167º do Cód. Proc. Penal as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto nos arts. 171º a 190º do Cód. Proc. Penal.
A respeito do art. 167º do Cód. Proc. Penal refere Maia Gonçalves, em anotação do Cód. Proc. Penal Anotado, 12.ª Edição, Almedina,

“…quem fotografar às ocultas pessoa que se encontre em lugar privado não poderá usar a fotografia assim captada como meio de prova em processo penal.
Esta regra poderia, porém, conduzir demasiadamente longe, se não fosse entendido, como deve ser, que o próprio Direito Penal substantivo se tem que harmonizar e compatibilizar com o adjectivo. Aqui as pessoas podem mesmo ser compelidas a sujeitar-se a exames, fotografias, etc., tudo como se regula no título seguinte. Então, dever-se-á até entender que não há qualquer tipo de ilicitude penal, porque a conduta é autorizada por um dos ramos da ordem jurídica (cf . art. 31 .°, n.° 1, do CP). Assim, se as reproduções tiverem sido obtidas de harmonia com as disposições deste Código, podem ser usadas como meio de prova e não há qualquer ilicitude penal por parte de quem as obteve.”

A respeito deste art. 167º do Cód. Proc. Penal refere Paulo Pinto de Albuquerque o seguinte:

“…pela mesma razão, o direito penal também não protege a materialidade da
imagem do crime, sendo, por exemplo, admissíveis as fotografias tiradas na
propriedade rústica do arguido, sem a sua autorização, a umas colmeias cujo
furto é imputado ao arguido (acórdão do TRC, de 27.10.1999, in CJ, XXIV, 4,
68 e, na doutrina, PAOLO TONINI, 2007:282);
C. as imagens obtidas por sistema mecânico de videovigilância colocado em
postos de abastecimento de combustíveis, caixas de multibanco ou noutros
lugares públicos, desde que devidamente autorizado, uma vez que ele se
dirige à generalidade do público (acórdão do STJ, de 20.6.2001, in CJ, Acs. do
STJ, IX, 2,221, acórdão do TRG, de 30.9 .2002, in CJ, XXVII, 4,285, acórdão do
TRG, de 29.3 .2004, in CJ, XXIX, 2, 292, e acórdão do TRG, de 19.5 .2003, in CJ,
XXVIII, 3,299).
D. as reproduções que obedecem ao Título III do Livro III do C.P.P. e ao artigo
6.° da Lei n.° 5/2002, de 11 .1 ; mas devendo ser excluídas as reproduções
respeitantes ao núcleo do direito constitucional à privacidade (ver a NOTA
PRÉVIA ao artigo 189.°) e as reproduções videográficas, audiográficas ou de
outra natureza da confissão do crime pelo arguido feitas pelas autoridades
públicas ou por terceiros a mando destas fora do processo (como dizem,
CLAUSROXIN / HANS ACHENBACH 2006:323: "nem agravação constitui
prova documental nem pode ser aplicado analogicamente o regime desta"),
sob pena de fraude à lei e ao princípio constitucional da imediação (ver
a anotação ao artigo 357.°).
e. as reproduções feitas ao abrigo de causas de justificação, designadamente,
para os que entendam que não deve proceder-se a umaredução teleológica
do tipo do artigo 199.° do CP de modo atutelar os direitos fundamentais da
vítima (assim, preferindo a solução das causas de justificação à da redução
típica, COSTA ANDRADE, anotação 45.' ao artigo 199.', in FIGUEIREDO DIAS,
1999)”
(Comentário do Cód. Proc. Penal, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora).




Acórdão da Relação Porto de 21-12-2004
Nº Convencional: JTRP00037538
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Nº do Documento: RP200412210444045

Sumário (parcial):

I- Valem como provas as fotografias tiradas na rua e em outros locais públicos aos arguidos pelos agentes investigadores, em operações de vigilância.


Transcrição Parcial:

“…Quanto à nulidade da prova fotográfica junta aos autos e dos reconhecimentos efectuados pela Polícia Judiciária
Alegam os recorrentes que apreciando erradamente a arguição de não validade da prova fotográfica junta aos autos e dando como válidos os reconhecimentos efectuados na sede da PJ apesar da arguição atempada das irregularidade, nulidade e inexistência, feriu assim o douto despacho na letra e no espírito os arts: 147º, do CPP; e artº. 6º da Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro.
A Constituição da República Portuguesa no art. 26º, nº1, reconhece como direitos fundamentais do cidadão, o direito à imagem, à palavra, à reserva da vida privada e familiar, remetendo para o legislador ordinário as garantias efectivas contra utilizações abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias (nº2, do citado art. 26º). Este preceito constitucional vincula as entidades públicas e privadas, sendo que os direitos nele consagrados só podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição, estando sujeitos ao princípio da proporcionalidade, subjacente ao art. 18º, nº 2, da Constituição, garantindo que a restrição de tais direitos fundamentais, se limite ao estritamente necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Em conformidade com estes preceitos constitucionais, a lei protege as pessoas contra qualquer ofensa ilícita à sua intimidade ou privacidade, e, daí que o legislador reafirmou a intimidade da vida privada, ao conceder no Cap. VII do CP (Dos crimes contra a reserva da vida privada), do Titulo I, (Dos crimes contra as pessoas), toda uma específica área incriminadora à protecção do bem jurídico da intimidade da vida privada.
Por seu turno, o art. 32º, nº 8, da CRP consagra que “são nulas todas as provas obtidas mediante (…) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio (…)”.
Em conformidade com este preceito constitucional, o art. 126º, nº3, do CPP, determina que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.
Relativamente ao valor probatório das reproduções mecânicas, o legislador português, consagrou no preceito nuclear do art. 167º, nº 1, do CPP, que “As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas produzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal”, dispondo o nº 2, do mesmo preceito que “Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no Título III deste Livro”.
Seguindo a lição de Manuel da Costa Andrade,[in “Sobre Proibições de Meios de Prova, Coimbra, 1992, pág. 238- 239] a propósito deste normativo, «Significativa, desde logo, a prevalência expressamente reconhecida ao critério da ilicitude penal substantiva: será inadmissível e proibida a valoração de qualquer registo fonográfico ou fotográfico (filmíco, video, etc) que, pela sua produção ou utilização represente um qualquer ilícito penal material, à luz do disposto no art. 179º, do Código Penal (actualmente art. 192º, do CP)» (…)
«Os interesses encabeçados e servidos pelo processo penal - a saber, a realização da justiça, a estabilização contrafáctica das normas, a restauração da paz jurídica, por razões de economia, a eficácia da justiça penal - não bastam, por si só enquanto tais, para legitimar a danosidade social da produção ou utilização não consentidas de gravações ou fotografias. Numa formulação de mais óbvia e directa intencionalidade pragmática, o mero propósito de juntar, salvaguardar e carrear provas para o processo penal não justifica o sacrifício do direito á palavra e do direito à imagem em que invariavelmente redundam a produção ou utilização não consentida destas reproduções mecânicas. Pela positiva, só como meios necessários e idóneos à salvaguarda de prevalentes valores, transcendentes ao processo penal, poderá justificar-se a sua produção ou ulterior valoração processual contra a vontade de quem de direito. Só neste contexto e com esta específica direcção preventiva pode emergir um relevante estado-de-necessidade probatório»
Sobre a valoração das fotografias e filmes, como meio de prova em processo penal, escreve ainda, o mesmo autor, [ob cit, pág. 270-271] «O âmbito da ilicitude penal (…), predetermina o alcance da proibição de valoração das fotografias e filmes. (…) Deve ter-se como proibida a valoração das fotografias obtidas de modo penalmente ilícito, nomeadamente se produzidas sem consentimento e a descoberto de justificação bastante. Em termos substancialmente idênticos ao que vimos suceder com as gravações.”(…)
“O panorama do lado das fotografias ou filmes cuja obtenção não configura um ilícito penal: porque produzidos com consentimento (e como tais atípicos) ou a coberto de justificação bastante.Como início de resposta importa adiantar uma distinção:
De um lado estarão as hipóteses em que a utilização ou valoração destas fotografias possa originar o ilícito penal á luz dos arts. 178º ou 180º, do CP. É o que sucederá (…) com as fotografias que contendam com a intimidade, cuja valoração sem consentimento, há-de, por isso, considerar-se igualmente proibida.
Solução inversa deverá já preconizar-se para as demais constelações típicas, são: aquelas que, por sobre não terem sido obtidas de forma penalmente ilícita não contendam com a intimidade. A sua valoração será, por princípio, admissível por força do disposto no nº1, do art. 167º, do CPP»A Lei nº 5/2000, de 11JAN, que veio estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, consagra no seu art. 6º, nº1, que «É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado», estabelecendo o nº2, do mesmo preceito legal que «A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos», sendo aplicáveis, por força do nº3, do mesmo normativo, aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no art. 188º, do Código do Processo Penal.
O que está em causa nos presentes autos são as fotografias que foram apreendidas nas buscas realizadas, bem como as produzidas pelos investigadores pelo acto de fotografar os arguidos na rua ou em locais públicos de forma a representar factos observados pelos próprios em resultado de operações de vigilância ou de seguimento.
O nº1 do art. 6º, da Lei nº 5/00, de 11JAN, fala em «registo de voz e de imagem» consiste reprodução audiovisual, daí que não cabem na previsão do citado normativo as «fotografias», já que estas apenas registam imagens e não sons.
Neste sentido, desde que as fotografias não colidam com a esfera da vida privada, como é o caso dado que foram tiradas na rua e em locais públicos de forma a reproduzir factos observados pelos próprios investigadores em resultado de operações de vigilância, não careciam de autorização judicial, na medida em que não foram obtidas de forma penalmente ilícita e não contendem com a intimidade, pelo que a sua valoração será admissível por força do disposto no nº1, do art. 167º, do CPP…”


Para Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao art. 189º do Cód. Proc. Penal, o regime do art. 6º da Lei n.º 5/02 aplica-se ainda à recolha de imagem e de som em local público, em face da proibição típica do artigo 199.° do CP, desde que não se trate de imagem ou som relativo a acontecimento de interesse público ou a pessoa cuja notoriedade ou cargo desempenhado justifiquem o interesse de «terceiros». Nestes casos, é a própria tipicidade legal que está excluída (também assim, COSTA ANDRADE, anotação 42.a ao artigo 199.º, in FIGUEIREDO DIAS, 1999).
Ao invés, a recolha da imagem ou som de pessoa que se encontra em lugar público ou que participa em acto público, mas de forma anónima (por exemplo, um manifestante num comício ou um espectador num concerto), está subordinada à proibição típica do artigo 199.° do CP e, portanto, também ao regime descrito do artigo 6.° da Lei n.° 5/2002 (acórdãos do TEDH P.C. e J.H. v Reino Unido, de 25.9 .2001, e Perryv Reino Unido, de 17.10.2003, que equiparam esta recolha à intercepção de conversa telefónica, e acórdão do TRP, de 22.3.2006, in CJ, XXXI, 2,198, contrariado pelo acórdão do TRE, de 21.11.2000, in CJ, XXV, 5, 279, pelo acórdão do TRL, de 22.1 .2003, in CJ, 2003, 1, 40, e pelo acórdão do TRP, de 16 .11.2005, in CJ, XXX, 5, 219, que entendem que a recolha é neste caso livre e independente de autorização judicial, e ainda acórdão do TRC, de 23.4 .2003, in CJ, XXVIII, 2, 43, que, contudo, impõe uma valoração a posteriori do juiz).
Pode, pois, concluir-se, por um lado, que o artigo 79.°, n.° 2, do CC é aplicável analogicamente à captação do som de uma pessoa e, por outro, que o artigo 199.° do CP revogou tacitamente o artigo 79.°, n.° 2, do CC, na parte em que este se refere aos simples factos ocorridos em "lugares públicos" ou "que hajam decorrido publicamente" quando respeitem a pessoa presente nesses lugares de forma anónima.

Ac. TRC de 23/4/2002, CJ 2002, II, 43:

Tal como a questão é posta ao tribunal, está em causa a obtenção de uma prova mediante intromissão da vida privada, com violação do direito à imagem (art. 76 CC). Porém, entende-se que não é todo e qualquer registo de voz e imagem que depende de autorização prévia do juiz, mas tão só aquele registo em que haja ofensa à integridade moral das pessoas (art. 126 nº1 CPP) ou constitua intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (art. 126 nº 3 CPP). O Código Civil (arts. 76 e 79) não proíbe que se colha imagem, antes proíbe a difusão do retrato sem o consentimento da pessoa retratada. As fotografias e a utilização que delas é feita encontra-se justificada por exigências de justiça, nos termos do art. 79 nº 2 CC. No mesmo sentido Ac. TRG de 29/3/2004.


CNPD/Câmaras de filmar:

- Armazém fechado, residência: é legal ter vídeovigilância.

- «Se um circuito de vigilância é legalmente autorizado, para fins de vigilância e segurança, e no decurso dessa operação fica acidentalmente registada a ocorrência de um crime, nada obsta à sua utilização como meio de prova validamente obtido.
Neste caso, o registo de voz e de imagem está legalmente autorizado e, cumpridas as normas previstas para o efeito, uma das consequências é a validade de tais registos, tanto mais que o local deverá estar assinalado, anunciando tal vigilância. O visado sabe, assim, que a sua imagem e voz naquele local são ou podem ser registados e sabe, também, que tal sucede por razões de segurança».
Diferente é a utilização de um circuito de vigilância para fins de investigação criminal (art. 6 da Lei 5/2002), porque neste caso o registo de voz e imagem carece de prévia autorização judicial.
[Mário Ferreira Monte, «o registo de voz e imagem…», in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira]

- Ac. Relação do Porto, de 26-03-2008, processo 0715930, citando jurisprudência do TEDH (cf. Ac. RG, de 29.03.04, Ac. RP, de 31.05.06): admissibilidade de imagens de câmaras de bombas de gasolina, mesmo sem comunicação à CNPD (cf. Ac. RP, de 16.11.05 - CJ V, p. 216); Ac. RL, de 28.11.01 e Ac. RC, de 17.04.02 (cf. fotos) – inexistência de devassa da vida privada.

- Para Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao art. 189º do Cód. Proc. Penal, as imagens obtidas por sistema de videovigilância, porque não têm nenhum visado em especial, não estão submetidas ao regime do artigo 6.° da Lei n.° 5/2002 e podem ser juntas aos autos e valoradas, desde que o sistema de videovigilância esteja devidamente autorizado (acórdão do STJ, de 20.6 .2001, in CJ, Acs. do STJ, lX, 2, 221, e acórdão do TRG, de 29.3.2004, in CJ, XXIX, 2, 292) .


Acórdão da Relação do Porto de 27-04-2005 [Ver ficha original em www.dgsi.pt]
Proc. 0414638
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO

Sumário:
São lícitas, podendo ser usadas como meio de prova, as fotografias obtidas pelos órgãos de polícia de investigação criminal, mesmo sem autorização das autoridades judiciárias, desde que as mesmas não impliquem a devassa da vida privada.

Transcrição parcial:

“…Quanto à invocada nulidade das vigilâncias realizadas nos dias 29 e 30 de Outubro de 2001, o recorrente entende que foram violados os artigos 188º, 189º e 118º, n.º 3 do CPP. Fundamenta a sua motivação, dizendo que as vigilâncias ocorridas nos referidos dias não foram autorizadas pela entidade titular do processo, nem houve despacho a fundamentar essa autorização. Assim, tais vigilâncias são nulas e, consequentemente, os depoimentos dos agentes que as efectuaram não são meios de prova válidos, por força do disposto nos arts. 189º, 188º e 118º, 3 do CPP.
O M.P. junto do tribunal “a quo” respondeu, alegando (quanto a este ponto) que só com a Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, veio a ser exigida autorização e fundamentação da vigilância de pessoas. Antes desta lei não vigorava tal regime, nem o mesmo resultava do art. 188º do CPP, aplicável apenas às escutas telefónicas e não às vigilâncias e recolha de fotografias. Por outro lado, refere, após a entrada em vigor da referida lei (em 12/02/02) foi previamente autorizada pelo Juiz de Instrução Criminal a recolha de imagem (fls. 64 e 70).
Não há dúvida que na fundamentação da matéria de facto o julgador teve em conta as fotografias obtidas (cf. fls. 1952). E recorreu a tal meio de prova relativamente a factos ocorridos em 30 de Outubro de 2001 (no que se refere ao recorrente), altura em que não havia nos autos qualquer despacho do Juiz de Instrução a autorizar a recolha de imagens. A autorização do Juiz de Instrução obtida depois da Lei 5/2002 é irrelevante, uma vez que estamos a ponderar o valor probatório de fotografias obtidas antes dessa data (tal autorização só pode ser relevante para as fotografias obtidas depois desta lei).
Tal não significa que o recorrente tenha razão, quando alega a violação do art.188º do CPP, uma vez que o mesmo diz respeito às formalidades da gravação “a que se refere o artigo anterior”, ou seja, à “intercepção e gravação de conversações telefónicas”. A nulidade cominada no art. 189º CPP sanciona apenas a violação dos artigos 187 e 188 CPP e estes artigos nada dizem sobre a obtenção de fotografias, ou vigilância directa. Assim, à data da prática dos factos, a nulidade invocada pelo arguido não era aplicável ao caso dos autos.
Importa porém saber se as fotografias assim obtidas, isto é, sem prévia autorização, poderiam ser usadas como meio de prova, antes da citada lei 5/2002, de 11 de Janeiro, ou esse uso configura nulidade de obtenção de um meio de prova.
Vejamos a questão.
A prova através de fotografias (e de outros documentos designados na lei por “reproduções mecânicas”) vem regulada no art. 167º CPP, aí se estabelecendo que as mesmas valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas “se não forem ilícitas nos termos da lei penal”. E o n.º 2 explicita que não se consideram ilícitas, entre outras, as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto nos artigos 171º a 190º, que regulamentam os “meios de obtenção da prova”.
Assim, a ideia geral sobre a validade das fotografias como meio de prova, é a seguinte: (i) valem como meio de prova se não forem penalmente ilícitas e (ii) não são ilícitas se forem obtidas através do procedimento previsto nos artigos 171º a 190º do C.P.Penal.
No caso dos autos foi preenchido o tipo previsto no art. 199º, n.º 2 al. a) do C. Penal, (“gravações e fotografias ilícitas”) uma vez que este se verifica apenas com o acto de fotografar uma pessoa, sem o seu consentimento, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado, já que o bem jurídico aí protegido é apenas o direito à imagem.
Mais complexa é a questão de saber se as fotografias obtidas no âmbito da investigação criminal, antes da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro, poderia considerar-se lícita. O n.º 2 do art. 167 do C. P. Penal, ao referir que a licitude das reproduções mecânicas resulta, “nomeadamente”, da obediência às regras legais de obtenção da prova, deixa antever que não são taxativamente indicadas as condições que tornam penalmente lícita a obtenção de fotografias. Uma ponderada interpretação do preceito, tendo em vista a harmonização do direito penal substantivo e adjectivo, implica que serão de atender todas as causas de exclusão da ilicitude penal, considerando como tal a obtenção das imagens “de harmonia com as disposições do CPP” (Maia Gonçalves, CPP, anotado, pág. 403).
Vejamos então se a obtenção de fotografias pelos órgãos de polícia criminal, no âmbito da investigação criminal, pode ser lícita e, consequentemente, valer como meio de prova.
Se a fotografia foi obtida pelos órgãos de polícia criminal, no âmbito das suas funções, através da devassa da vida privada, configura prova nula, nos termos do art. 126º, n.º 3 do C.P.Penal, a não ser que a lei especial expressamente preveja essa possibilidade. Antes da Lei 5/2005, de 11 de Janeiro, tal não estava especialmente previsto e, portanto, tal prova seria, em princípio, nula. Dizemos em princípio, pois mesmo nesta hipótese poderia ser admissível a validade da prova - cf. sobre a questão o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 263/97, de 19/3/97, onde se defende uma ponderação de interesses, com o fundamento de que a protecção do direito à vida privada não pode intoleravelmente limitar outros direitos.
Porém, no caso dos autos, as fotografias foram obtidas num local público e sem qualquer intenção de devassa da vida privada, pelo que não é aplicável este regime.
Se a fotografia foi obtida no âmbito do processo criminal e não implica a devassa da vida privada, a mesma será lícita, desde que obtida no âmbito da recolha de meios de prova previstos nos artigos 171º e seguintes e se observe o regime aí previsto (art. 167º do CPP) – cf. neste sentido SIMAS SANTOS E LEAL HENRIQUES, Código de Processo Penal anotado, pág. 858, anotação ao art.167º: haverá exclusão da ilicitude quando os meios mecânicos referidos no art. 167º do CPP não sejam “ (…) senão o natural resultado de actos e diligências levadas a cabo no âmbito do CPP, com vista à perseguição da verdade material, portanto verdadeiros actos de investigação criminal”.
Nos termos do art. 171º do C.P.Penal, os órgãos de polícia criminal podem proceder a exames a pessoas, lugares e coisas, inspeccionando os vestígios que o crime possa ter deixado. Cabe neste tipo de recolha de prova a observação directa, acompanhada de relatórios e fotografias de coisas e pessoas. Dado que o art. 171º do C.P.Penal não exige qualquer autorização especial, quer da pessoa visada, quer das autoridades judiciárias, qualquer órgão de polícia criminal pode obter fotografias para documentar o exame. Neste caso, a obtenção da fotografia é lícita, embora só seja possível se não implicar devassa da vida privada.
Ora, no caso dos autos, está provado que as fotografias dos arguidos foram obtidas pelos órgãos de polícia criminal (agentes da PSP) no âmbito de uma investigação criminal com a finalidade de documentar a prática do crime de tráfico de estupefacientes, num local público, não tendo implicado devassa da vida privada.
Assim, tendo em conta a lei vigente à data em que tais fotografias foram obtidas, nada obstava a que as mesmas fossem valoradas livremente pelo julgador, não configurando a valoração desse meio de prova qualquer nulidade….”

A fundamentação deste acórdão vale também no âmbito da Lei 05/2005, pois, como sustentamos aqui, esta Lei apenas se aplica à recolha simultânea de voz e de imagem.

Acórdão da Relação do Porto de 03-02-2010 [Ver ficha original em www.dgsi.pt] :

Transcrição parcial:

- “…tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente [Ac. R.Coimbra de 17.04.2002, in CJ, Tomo III, pág. 40 e Ac. R.Lx de 28.11.2001, in CJ, Tomo V, pág. 138].
Aliás, o próprio art. 79º n.º 2 do Cód. Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, também deverá ser considerado extensível ao direito penal, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima. Consagrando o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o art. 31º, n.º 1, do Cód. Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Significa isto que as normas de um ramo do direito que estabelecem a licitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal, a ponto de, por exemplo, nunca poder haver responsabilidade penal por factos que sejam considerados lícitos do ponto de vista civil.
Aquela justa causa apenas será afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, como seja o direito ao respeito pela sua vida privada.
Ora, a citada norma do Cód. Civil não só afasta a ilicitude dos art.s 199º do Cód. Penal e 167º do Cód. Proc. Penal, como também não é inconstitucional, uma vez que, embora comprima o direito à reserva da vida privada, não o faz de uma forma de todo intolerável, como parece evidente à luz do mais elementar bom senso [Ac. da Relação do Porto de 26.03.2008, relatado pelo Des. Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt, Ac. de 14.10.2009, também desta Relação, de que foi relator o Des. Ângelo Morais, citando decisão proferida pela 1ª instância; v. ainda o Ac. do STJ de 20.06.2001, in CJAcs. STJ, Ano IX, Tomo II, pág. 226].
Assim, tem a jurisprudência, de um modo geral, entendido não ser proibida a prova obtida por sistemas de videovigilância colocados em locais públicos, com a finalidade de proteger a vida, a integridade física, o património dos respectivos proprietários ou dos próprios clientes perante furtos ou roubos, por as imagens não serem captadas em locais privados, total ou parcialmente restritos, nos quais, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, justificando-se, pois, essa excepção aos métodos proibidos de prova por razões de polícia ou de justiça.
Como se refere no voto de vencido lavrado pelo Des. Mário B. Morgado no Ac. R.Lx. de 03.05.2006, afigura-se-nos que a captação de imagens em causa não integra o crime p. e p. pelo art. 199º, nº 2, a), CP: a captação de imagem dirigida a provar factos ilícitos em locais públicos ou no local de trabalho deve considerar-se desprovida de tipicidade (aquele tipo criminal deve sofrer uma redução da área de tutela de sentido vitimodogmático) ou, pelo menos, de ilicitude (com base, segundo as diferentes posições doutrinárias, em quase legítima defesa, legítima defesa, direito de necessidade, prossecução de interesses legítimos ou num critério geral de interesses) - cf. sobre esta problemática Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 834-840, e Sobre as proibições de prova em processo penal, 242-272. Também não se descortina no caso vertente qualquer violação da integridade física ou moral do arguido ou ofensa da sua dignidade/intimidade - como se sabe, nem toda a lesão de um direito de personalidade viola a dignidade humana.
Por outro lado, a obtenção de imagens nas circunstâncias em apreço também não constitui qualquer crime de devassa contra a vida privada (previsto no art. 192º) ou de devassa por meio de informática (do art. 193º, ambos do Cód. Penal), uma vez que com estes ilícitos pretende-se tutelar apenas o núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas, o que não é manifestamente o caso da situação que nos ocupa. Com efeito, as imagens do arguido não foram registadas no contexto da esfera privada e íntima deste, nem foram captadas às ocultas, tanto mais que a existência das câmaras de videovigilância estava devidamente assinalada através da aposição dos competentes dísticos.
Conclui-se assim que as imagens captadas em circunstâncias e condições semelhantes àquelas em que foram recolhidos os fotogramas juntos aos autos e examinados em audiência, não correspondem a qualquer método proibido de prova, tanto mais que apenas foram obtidas com o fim de identificação, confinando-se, pois, à estrita ligação à identidade do titular do direito, o que exclui qualquer exposição arbitrária da imagem e muito menos qualquer manipulação da mesma.”


O art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11.01, com a Rect. n.º 5/2002, de 06/02, alterada pela Lei n.º 19/2008, de 21/04, e pelo DL n.º 317/2009, de 30/10, estabelece o seguinte:

Artigo 6.º
Registo de voz e de imagem

1 - É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.
2 - A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos. 3 - São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.



Portanto, a lei refere-se apenas ao registo de voz e de imagem e não apenas ao registo de imagem ou ao registo de voz (este já se mostrava regulado no Código de Processo Penal).
O art. 6º da Lei 5/2002 exclui apenas a ilicitude resultante da violação do direito à palavra falada e do direito à imagem, mas não permite, todavia, a violação do domicílio (não é permitida a colocação de câmaras ou microfones no interior do domicílio).
Quanto à nulidade da utilização das imagens recolhidas em operações policiais, tal consistiria um nítido abuso de direito, descaracterizador de outros direitos também constitucionalmente consagrados.
Rejeita-se assim a invocada proibição ou nulidade de tal prova, uma vez que não foi, por qualquer forma, obtida em violação do preceituado no disposto no art. 126º, do Cód. de Proc. Penal. Não está em causa, nomeadamente, qualquer violação da vida privada do arguido, quando o mesmo, de forma não autorizada, por arrombamento, violando por várias formas o património de outrem, se introduz num estabelecimento público, por sinal fechado naquela altura. Como é óbvio, a protecção da vida privada deste cidadão/arguido não é tão abrangente que lhe permita, impunemente, a coberto de normas que visam a defesa desse direito fundamental, pôr em causa outros direitos fundamentais de terceiros, de forma criminosa. O art. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, que está na génese do art. 126º, nº 3, do Cód. de Proc. Penal, tem de ser interpretado de forma que previna a violação da substância desse direito fundamental mas não ao ponto de o mesmo constituir um abuso ou a descaracterização de outros.
É o art. 199.º do Cód. Penal que tipifica o crime de gravações ou fotografias ilícitas. Ora, nos termos deste preceito deve ser punido «quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas». Nos termos do n.º 2 do referido artigo, no mesmo crime incorre ainda quem, «contra vontade fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos».
O art. 199.º contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis. E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, importa destacar que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida sem consentimento, enquanto que a fotografia só será ilícita desde que produzida contra a vontade, o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa.
Como se referiu, o próprio art. 79º n.º 2 do Cód. Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça
Impedir a polícia de recolher imagens nas operações de vigilância policial e devidamente justificadas por razões de prossecução de justiça, a avaliar pelo juiz segundo o princípio da livre apreciação da prova, seria um absurdo, por fazer perigar seriamente a realização prática de um verdadeiro Estado de Direito.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cúmulo jurídico: penas extintas

Por força do art. 78º, n.º 1, do Código Penal, onde se estatui que "Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento dapena única aplicada ao concurso de crimes.", as penas extintas devem integrar o cúmulo jurídico.

Porquê? Por duas razões:

- Para que se proceda ao desconto do art. 80º, n.º 1, do Código Penal ;e
- Para evitar a realização de cúmulos por arrastamento, como aconteceria se cumulássemos juridicamente os processos 2 e 3 do exemplo seguinte, esquecendo o processo 1 pelo facto de a respectiva pena se mostrar extinta:

Processo 1:
- Factos: 31-01-2007
- Condenação: 04-04-2008 (pena de prisão extinta pelo cumprimento);
Processo 2:
- Factos: 01-01-2008;
- Condenação: 02-08-2008 (pena de prisão não extinta);
Processo 3:
- Factos: 05-04-2008 (cometidos já após a condenação do processo 1);
Condenação: 02-07-2008 (pena de prisão não extinta).

Neste caso, a condenação 1 e 2 estão em relação de cúmulo jurídico, a condenação 2 e 3 também, mas como 1 e 3 não se cumulam, só se podem cumular 1 e 2, ficando de fora a condenação 3, que será de cumprimento sucessivo.
A esquecer a condenação 1, 2 e 3 cumulavam-se, mas seria um cúmulo por arrastamento.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

CÚMULO JURÍDICO: PENAS SUSPENSAS (clique para consultar o acórdão))

Processo: 16/06.3GANZR.C1.S1
Relator: Santos Carvalho

Acórdão do S.T.J., de 29-04-2010

Sumário:

I - A extinção da pena suspensa prevista no art.º 57.º, n.º 1, não resulta do cumprimento da pena de prisão subjacente à suspensão, mas de não ter ocorrido durante o respectivo período alguma das circunstâncias referidas no art.º 56.º, pelo que tal pena, já extinta mas sem ser pelo cumprimento, nunca pode ser descontada na pena única, nos termos do art.º 78.º, n.º 1. A entender-se que, nesses casos, já se verificou o “cumprimento” da pena, tal só se pode fazer por referência ao “cumprimento” da pena de substituição, mas não ao da pena de prisão, pois este, efectivamente, não se verificou.

II - Deste modo, no concurso de crimes superveniente não devem ser englobadas as penas suspensas já anteriormente declaradas extintas nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do CP, pois, não tendo sido cumpridas as penas de prisão substituídas e, portanto, não podendo as mesmas serem descontadas na pena única, tal englobamento só agravaria injustificadamente a pena única final.

III – Pelo mesmo motivo, há que reflectir que não é possível considerar na pena única as penas suspensas cujo prazo de suspensão já findou, enquanto não houver no respectivo processo despacho a declarar extinta a pena nos termos daquela norma ou a mandá-la executar ou a ordenar a prorrogação do prazo de suspensão. Na verdade, no caso de extinção nos termos do art.º 57.º, n.º 1, a pena não é considerada no concurso, mas já o é nas restantes hipóteses.

IV - Assim, o tribunal recorrido ao englobar no cúmulo as penas parcelares de alguns processos, todas elas suspensas na sua execução e já com o prazo de suspensão esgotado, sem apurar previamente qual a decisão sobre a respectiva execução, prorrogação ou extinção, incorreu numa nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

V - Nos termos do art.º 78.º, n.º 1, do CP, no concurso superveniente, a pena que já tiver sido cumprida é descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. Tal significa que as penas extintas pelo cumprimento são englobadas na pena única.

VI - A razão de ser deste preceito, que foi modificado nesse ponto em relação à versão anterior a 2007 do CPP (pois que na versão original as penas extintas pelo cumprimento não eram consideradas na pena única), é a de que, sofrendo as penas parcelares uma compressão da sua grandeza na operação de formação da pena única, o desconto do seu cumprimento integral beneficia sempre o condenado.


TEXTO PARCIAL:

“…Cumpre decidir.

As principais questões a decidir são:

1ª- A pena de suspensão declarada extinta nos termos do art. 57.º, n.º 1 do C. Penal, deve entrar no cúmulo jurídico?

2ª- As penas suspensas em que o prazo de suspensão já findou devem entrar no cúmulo jurídico? Ou, com se desconhece se já houve despacho a prorrogar o prazo de suspensão ou a declará-las extintas ou a mandá-las executar, há omissão de pronúncia e nulidade do acórdão a suprir no tribunal recorrido?

3ª- As penas já declaradas extintas pelo cumprimento devem entrar no cúmulo jurídico?

4º- As medidas das duas penas únicas revelam-se exageradas?

AS CONDENAÇÕES E OS FACTOS
(…)

A PENA ÚNICA E A PENA DE SUSPENSÃO DECLARADA EXTINTA NOS TERMOS DO ART.º 57.º, N.º 1, DO C. PENAL

Tem sido jurisprudência firme do STJ, exemplificada por inúmeros acórdãos, que “No concurso superveniente de crimes, nada impede que na formação da pena única entrem penas de prisão efectiva e penas de prisão suspensa, decidindo o tribunal do cúmulo se, reavaliados em conjunto os factos e a personalidade do arguido, a pena única deve ou não ficar suspensa na sua execução” (Ac. de 04-09-2008, proc. 2391/08-5).Mas a questão controversa neste recurso consiste em saber se, no concurso superveniente de crimes, participa na pena única a pena parcelar de prisão que foi suspensa na sua execução e que, nesse momento, já foi declarada extinta nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do C. Penal.
Esta norma indica que “a pena é declarada extinta se, decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação.”
Por sua vez, o art.º 78.º, n.º 1, do mesmo diploma, dispõe que “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.”
Esta norma, como se vê, não manda integrar no concurso superveniente as penas já extintas, mas as penas já cumpridas, o que não pode gerar confusão, pois há outras causas de extinção das penas que não o cumprimento e não faria sentido que entrassem na pena única, por exemplo, penas parcelares amnistiadas ou prescritas.
Ora, a extinção da pena suspensa prevista no art.º 57.º, n.º 1, não resulta do cumprimento da pena de prisão subjacente à suspensão, mas de não ter ocorrido durante o respectivo período alguma das circunstâncias referidas no art.º 56.º, pelo que tal pena, já extinta mas sem ser pelo cumprimento, nunca poderia ser descontada na pena única, nos termos do art.º 78.º, n.º 1. A entender-se que, nesses casos, já se verificou o “cumprimento” da pena, tal só se pode fazer por referência ao “cumprimento” da pena de substituição, mas não ao da pena de prisão, pois este, efectivamente, não se verificou.
Deste modo, no concurso de crimes superveniente não devem ser englobadas as penas suspensas já anteriormente declaradas extintas nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do CP, pois, não tendo sido cumpridas as penas de prisão substituídas e, portanto, não podendo as mesmas serem descontadas na pena única, tal englobamento só agravaria injustificadamente a pena única final.
Como se diz no Ac. do STJ de 20-01-2010, proc. n.º 392/02.7PFLRS.L1.S1 - 3.ª Secção:
“Se a pena aplicada for declarada extinta, nos termos do art. 57.º, n.º 1, do CP, no termo final do período da suspensão da execução da pena, em virtude de não ter praticado outro ilícito criminal, não haverá lugar a desconto, pois que a Lei 59/2007, de 04-09, apenas alterou o regime do concurso superveniente de infracções no caso de uma pena que se encontre numa relação de concurso se mostrar devidamente cumprida, descontando-se na pena única o respectivo cumprimento, mas não as penas prescritas ou extintas. Estas últimas não entram no concurso, pois de outra forma, interviriam como um injusto factor de dilatação da pena única, sem justificação material, já que essas penas, pelo decurso do tempo, foram “apagadas”. Deste modo, não é de operar a inclusão, por tal “cumprimento” não corresponder a cumprimento de pena de prisão, não estar em causa privação de liberdade e o desconto só operar em relação a medidas ou penas privativas de liberdade.
No caso dos autos, portanto, não pode entrar na pena única, para já, a pena parcelar do processo n.º 454/04.6PAMGR, do 2.° Juízo Criminal de Leiria (condenação referida supra sob a al. e).
Tem razão, nesse ponto, o juiz do tribunal recorrido que lavrou voto de vencido quanto a algumas matérias do acórdão da 1ª instância.

A PENA ÚNICA E AS PENAS SUSPENSAS CUJO PRAZO DE SUSPENSÃO JÁ FINDOU E DE QUE SE DESCONHECE SE JÁ HOUVE DESPACHO A PRORROGAR O PRAZO DE SUSPENSÃO OU A DECLARÁ-LAS EXTINTAS OU A MANDÁ-LAS EXECUTAR

No acórdão recorrido foram englobadas na pena única penas suspensas cujo prazo de suspensão já havia findado e de que se desconhece se houve despacho a prorrogar o prazo de suspensão ou a declará-las extintas ou a mandá-las executar.
É o caso das penas parcelares dos processos n.ºs 80/04.0PAACB do 2.° Juízo de Alcobaça, 71/03.8PBMGR do 3.° Juízo da Marinha Grande, 1066/04.0GAABF do 3.° Juízo de Albufeira e 58/03.0TASTR, do 1.° Juízo Criminal de Santarém.
Ora, se resulta da resposta que demos à questão anterior que no concurso de crimes superveniente não devem ser englobadas as penas suspensas já anteriormente declaradas extintas nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do CP, então há que reflectir que não é possível considerar na pena única as penas suspensas cujo prazo de suspensão já findou, enquanto não houver no respectivo processo despacho a declarar extinta a pena nos termos daquela norma ou a mandá-la executar ou a ordenar a prorrogação do prazo de suspensão. Na verdade, no caso de extinção nos termos do art.º 57.º, n.º 1, a pena não é considerada no concurso, mas já o é nas restantes hipóteses.
Assim, o tribunal recorrido ao englobar no cúmulo as penas parcelares dos processos n.ºs 80/04.0PAACB, 71/03.8PBMGR, 1066/04.0GAABF e 58/03.0TASTR, todas elas suspensas na sua execução e já com o prazo de suspensão esgotado, sem apurar previamente qual a decisão sobre a respectiva execução, prorrogação ou extinção, incorreu numa nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Tal nulidade implica que, baixados os autos à 1ª instância, aí se proceda a averiguação sobre se as penas se mostram ou não extintas e depois se proceda em conformidade, formulando ou não um novo cúmulo.

A PENA ÚNICA E AS PENAS JÁ DECLARADAS EXTINTAS PELO CUMPRIMENTO

O recorrente reclama quanto ao englobamento no cúmulo jurídico das penas parcelares dos processos 217/01.0TALRA do 3° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria e 1423/03.9PBLRA do mesmo Juízo Criminal e Tribunal, pois as mesmas foram declaradas extintas pelo cumprimento em 23/0/2006 e 18/07/2007.
Trata-se de penas de multa, uma paga em numerário, outra cumprida através da prisão subsidiária.
Ora, já referimos que, nos termos do art.º 78.º, n.º 1, do CP, no concurso superveniente, a pena que já tiver sido cumprida é descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. Tal significa que as penas extintas pelo cumprimento são englobadas na pena única.
A razão de ser deste preceito, que foi modificado nesse ponto em relação à versão anterior a 2007 do CPP (pois que na versão original as penas extintas pelo cumprimento não eram consideradas na pena única), é a de que, sofrendo as penas parcelares uma compressão da sua grandeza na operação de formação da pena única, o desconto do seu cumprimento integral beneficia sempre o condenado.
Na verdade, no caso dos autos, foram cumuladas penas de multa cuja soma material é de 1450 dias. Às mesmas, porém, correspondeu em cúmulo jurídico uma pena única de 700 dias de multa, o que quer dizer que cada uma das penas de multa parcelares sofreu uma compressão de cerca de metade. Como o recorrente cumpriu 680 dias de multa pelos processos 217/01.0TALRA e 1423/03.9PBLRA, o primeiro pelo pagamento, o segundo pelos correspondentes dias de prisão subsidiária, tal significa que só terá de pagar (se nenhum outro dia de multa pagou nos restantes processos) 20 dias de multa a 4 € diários, pois que as penas cumpridas são descontadas na pena única.
Caso tais penas já extintas pelo cumprimento não fossem englobadas na pena única, como pretende o recorrente, em desrespeito ao disposto na lei, verificar-se-ia que a soma das restantes penas de multa é de 770 dias, a que corresponderia, pelo mesmo critério, uma pena única de 350/360 dias de multa a 4 € diários, cujo montante total teria ainda de ser pago pelo recorrente. Seria uma situação muito mais gravosa para este.
Por isso, não tem razão o recorrente quanto a este ponto.

MEDIDA DAS PENAS CONJUNTAS

«Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes» (art.º 78.º, n.º 1, do CP). «O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado» (n.º 2).
Esta norma impede o chamado cúmulo por «arrastamento», que é a situação que ocorre quando se procede ao cúmulo de todas as penas parcelares, apesar de se notar que alguma ou algumas estão numa situação de concurso com todas as outras, mas algumas destas não o estão entre si.
No caso dos autos, o tribunal recorrido resolveu bem essa situação, formulando duas penas únicas de cumprimento sucessivo, separando um conjunto de penas parcelares que estão numa relação recíproca de concurso, de outro conjunto de penas parcelares que, estando também em concurso entre si, não o estão com alguma ou algumas das penas do conjunto anterior.
Conforme decorre do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP, para o qual remete o art.º 78.º, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
No caso, portanto, os limites abstractos da primeira pena única, quanto à pena de prisão - que abrange os processos descritos supra sob as alíneas b), g), i), j), l), o), p), q), r), t) e u) - variam entre o mínimo de 2 anos de prisão (pena parcelar mais grave) e o máximo de 25 anos de prisão (a soma de todas as penas é de 27 anos e 1 mês). Quanto à pena de multa, que abrange os processos descritos supra sob as alíneas a), c), d) e n), o limite mínimo é de 350 dias e o máximo de 900 dias (visto que o somatório das penas parcelares ascende a 1450 dias, mas não pode exceder 900 dias, nos termos do art. 77.° do Código Penal).
O Tribunal recorrido disse o seguinte na fixação dessa primeira pena única.
“No caso vertente, o ilícito global é constituído por crimes de pequena, média e elevada gravidade.São todos eles crimes contra o património ou de falsificação de documento.Perante o elevado número de ilícitos agora considerados, o intervalo temporal em que foram praticados, e a dispersão territorial dos factos, não se pode afirmar que as infracções em concurso constituam episódios isolados numa vida socialmente responsável, antes revelando uma personalidade com muita dificuldade em respeitar o património de terceiros e a fé que os documentos devem revestir. E, assim, entendemos que não se pode deixar de concluir que o conjunto de factos ilícitos praticados pelo arguido, e pelos quais foi condenado nos mencionados processos, é reconduzível a uma "tendência criminosa".Os elementos existentes nos autos evidenciam, pois, que a actuação do arguido é merecedora de forte juízo de censura global, atendendo aos factos e à personalidade neles revelada, salientando-se ainda que, e em geral, no decurso dos processos onde os factos foram julgados não consta que o arguido tenha tido uma postura de assunção da sua responsabilidade e de colaboração para a descoberta da verdade.Porém, dos factos provados também resulta que os ilícitos são praticados num contexto de grande desorganização pessoal por parte do arguido, onde avulta a dissolução do vínculo conjugal, o afastamento do arguido relativamente aos seus familiares e a doença de que padece, o que mitiga em grande medida a culpa do arguido pelo ilícito globalmente considerado.Face ao exposto:- no que respeita á pena de multa, afigura-se adequada a pena única de 700 dias de multa, fixando-se o quantitativo diário em € 4,00, considerando as decisões condenatórias em apreço e a situação actual do arguido. Deverão ser imputados no cumprimento desta pena única de multa os dias de multa já pagos pelo arguido e os dias de prisão subsidiária, resultantes da conversão de penas de multa parcelares, já cumpridos pelo arguido;- no que respeita à pena de prisão, afigura-se adequada a pena única de 8 anos de prisão. Além dos descontos a efectuar relativamente a privações de liberdade sofridas pelo arguido nos processos em apreço, há ainda que imputar no cumprimento desta pena única de prisão os cumprimentos de pena de prisão efectiva efectuados à ordem desses processos;- atento o tempo já decorrido desde o trânsito em julgado da decisão proferida no processo referido na a., o) dos Factos Provados, não se afigura necessário renovar, neste momento, a aplicação da pena acessória com que o arguido foi aí também sancionado.”- Considerando, porém, que foram retirados desse cúmulo uma pena parcelar de 7 meses de prisão e, a título provisório, enquanto não se sanar a nulidade apontada, penas parcelares que somam 8 anos de prisão; - Tendo em conta ainda que se provou que o arguido mantém no Estabelecimento Prisional da Carregueira acompanhamento psiquiátrico que lhe permite permanecer estável e uma postura de acordo com as normas institucionais, que se voltou a aproximar da família e que tem boas perspectivas de reinserção futura, isto é, como diz o M.º P.º recorrente, que «está adaptado ao estabelecimento prisional, respeita as respectivas regras, está medicamente estabilizado, revela preocupações com a sua valorização escolar, se reaproximou da família, que novamente o apoia, tem possibilidades de emprego, quando em liberdade, e tem feito uma reflexão sobre o seu modo de vida anterior, as razões de prevenção especial, que também são de relevar na determinação da medida concreta da pena do, cúmulo jurídico, não se farão sentir, já, no caso concreto»;- Entende-se adequado fixar essa pena única em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão e 700 (setecentos) dias de multa à razão de 4,00€ (quatro euros) diários.
Não se renova também a pena acessória de inibição do uso de cheque (cf. proc. n.º 140/04.7PAACB de Alcobaça), pois é de admitir que, dado o tempo decorrido, tal pena já estará cumprida, o que deverá ser esclarecido no tribunal recorrido.
Quanto ao segundo cúmulo jurídico, que abrange as penas referidas nas alíneas v), x), z), aa) e bb), o seu limite mínimo é de 3 anos de prisão e o máximo de 17 anos e 6 meses de prisão.
O tribunal recorrido disse o seguinte:
No caso vertente, o ilícito global é constituído por crimes de pequena, média e elevada gravidade.São todos eles, também, crimes contra o património ou de falsificação de documento.Os mesmos revelam igualmente uma "tendência criminosa".Dos factos provados também resulta, igualmente, que os ilícitos são praticados no referido contexto de desorganização pessoal por parte do arguido, e no mesmo quadro psiquiátrico aludido, o que mitiga a culpa do arguido pelo ilícito globalmente considerado.Porém, quanto às infracções agora consideradas, importa realçar que as mesmas foram já praticadas depois de o arguido ser condenado pela prática de crimes semelhantes -pelo que o arguido já tinha sido solenemente advertido para respeitar os bens jurídicos violados pelas suas condutas e, mesmo assim, reincidiu nas mesmas -, e parte delas durante o período de suspensão da execução da pena de prisão em que inicialmente fora condenado no processo identificado na al. b) dos factos provados, o que são factores agravantes.Face ao exposto, afigura-se adequada a pena única de 7 anos de prisão, sendo descontadas à mesma as privações de liberdade sofridas pelo arguido nos processos em apreço.Tendo em atenção os referidos factores atenuativos, não devidamente ponderados na decisão recorrida, considerando ainda que só pelas penas parcelares do processo n.º 34/05.9PELRA já havia uma condenação numa pena única, transitada em julgado, de 6 anos de prisão, entende-se mais adequado fixar esta segunda pena única em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Termos em que o recurso do arguido merece provimento parcial e o do M.º P.º provimento total.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e provimento parcial ao recurso do arguido A, pelo que se condena o mesmo nas seguintes duas penas únicas de cumprimento sucessivo:

1ª- 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão e 700 (setecentos) dias de multa à razão de 4,00€ (quatro euros) diários, pena única que abrange as penas parcelares dos processos n.ºs 217/01.0TALRA, 2210/03.0TALRA, 1423/03.9PBLRA, 42/99.7PAMGR, 427/01.0PANZR, 469/05.7TALRA, 217/03.6PAACB, 250/04.0PAMGR, 725/04.1GDPTM, 140/04.7PAACB, 301/03.6GAMGR, 122/04.9PAPBL, 785/04.5PBLRA, 310/05.0PBLRA e 159/04.8TAACB;

2ª- 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pena única que abrange as penas parcelares dos processos n.ºs 34/05.9PELRA, 115/06.1GCACB, 122/06.4PBFIG, 191/06.7TACBR e 16/06.3GANZR.

Na primeira destas penas únicas far-se-á desconto, pelo menos, da multa já entretanto paga no 3º Juízo Criminal Leiria, proc. 217/01.0TALRA (480 dias), da prisão já cumprida no tribunal da Nazaré, proc. n.º 427/01.0PANZR (3 anos e 4 meses prisão) e da prisão em cumprimento no processo 310/05.0PBLRA do 2.° Juízo Criminal de Portimão.

Mais se declara a nulidade do acórdão recorrido na parte em que englobou no primeiro cúmulo as penas parcelares dos processos n.ºs 80/04.0PAACB, 71/03.8PBMGR, 1066/04.0GAABF e 58/03.0TASTR, todas elas suspensas na sua execução e já com o prazo de suspensão esgotado, sem apurar previamente qual a decisão sobre a respectiva execução, prorrogação ou extinção, pelo que, uma vez baixados os autos à 1ª instância, aí se deve averiguar se as penas se mostram ou não extintas e depois se proceder em conformidade, formulando ou não um novo cúmulo.

Também se apurará se a pena acessória de inibição do uso de cheque (cf. proc. n.º 140/04.7PAACB de Alcobaça) está ou não já cumprida.

Fixa-se em 5 UC a taxa de justiça a cargo do recorrente, pelo decaimento parcial, com metade de procuradoria (art.ºs 87.º, n.ºs 1-a e 3, e 95.º, do CCJ).
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Abril de 2010

Santos Carvalho (Relator)
Rodrigues da Costa

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Buscas/Indícios

Tribunal da Relação de Coimbra, Acórdão 18 Novembro 2009
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Processo: 329/09.2JALRA.C1
Jurisdição: Criminal
Colectânea de Juriprudência, Nº 218 Tomo V/2009

Sumário:

«...para a realização de uma busca, a lei processual exige apenas a existência de "meros indícios", contrariamente ao que acontece para efeito de acusação ou pronúncia, no artigo 283.º, n.º 1 e no artigo 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P., em que é exigida a presença de "indícios suficientes", ou para efeitos de aplicação de medidas de coacção, a que aludem os artigos 200.º, 201.º, e 202.º, n.º 1, al. a), todos do C.P.P., em que se impõe a presença de "fortes indícios" - ver, neste sentido, Acórdãos da Relação de Coimbra, de 7/12/2005, Processo n.º 3616/05, in www.colectaneadejurisprudencia.com, de 15/2/2006, Processo n.º 4354/05, C.J., tomo I/2006, página 50, e de 22/2/2006, Processo n.º 33/06, in www.dgsi.pt.
Ainda neste sentido, podemos encontrar o Acórdão da Relação de Lisboa, de 3/10/2000, Processo n.º 7069/99, 9ª Secção, onde pode ser lido que "para se poder ordenar uma diligência de busca domiciliária ou em outros lugares reservados, basta a existência de indícios de que naqueles lugares existam ou se encontram ocultos objectos relacionados com um crime ou que possam servir de meio de prova, não se exigindo para tal que existam indícios suficientes. Entende-se como indícios as suspeitas, indicações, sinais ou quaisquer outros elementos que apontem para a existência dos objectos naquele lugar."»

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Conversão da prisão subsidiária em falta em pena de multa: critério matemático

Cálculo da pena de multa remanescente, segundo os Acórdãos

- da Relação do Porto, de 04-06-97:
processo n.º 9740399; http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/4b635407e3986f5f8025686b0066efe3?OpenDocument;
- da Relação de Lisboa, de 11-03-2010:
processo 1510/02.0GABRR-A.L1-9; http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/305ce9f251e2ba4f802576e8005bbcec?OpenDocument .

Condenação =
118 dias de multa x 3,5 euros ----- 78 dias de prisão Subsidiária

Cumpriu 2 dias de prisão

Tem a pagar quanto?

78-2= 76 dias de prisão subsidiária

76 dias equivalem a 114 dias de pena de multa

114 x 3,5 euros = 399 euros (a pagar)

Ou seja:

118 ------- 78
x---------- 76

x = 114

114 x 3,5€ = 399 €


A outra solução seria menos favorável:

118 x 3,5€= 413€ -------- 78 dias

X (a pagar)-------------- 76 dias

X = 402,41 €

Os referidos acórdãos atendem aos dias de multa e não à multa resultante da multiplicação dos dias de multa com a taxa diária.
Porquê? Porque a correspondência para cálculo da prisão subsidiária também não atende à taxa diária, mas apenas aos dias de multa.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Jogo

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2010. D.R. n.º 46, Série I de 2010-03-08
Supremo Tribunal de Justiça
Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público

quarta-feira, 17 de março de 2010

Crime de pesca ilegal do art. 65º do Decreto-Lei n.º 44623, de 10.10.1962

Quanto ao crime de pesca ilegal p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 30º, al. d), 44, al. i), - alíneas respeitantes à pesca do "meixão" ou enguia em estado larvar - e 65º do Decreto-Lei n.º 44623, de 10.10.1962, alterado pelo Decreto-Lei n.º 312/70, de 06.07, pelo Decreto n.º 35/71, de 13.02, pelos Decretos-Regulamentares 18/86, de 20.05, e 11/89, de 27.04, pelos artigos 16º e 17º da Lei n.º 30/2006, de 11.07, com a actualização do Decreto-Lei n.º 131/82, de 23.04, e Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17.12:


-Este tipo legal de crime está sujeito ao disposto no art. 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23.09, devendo a remissão aqui efectuada ter-se por feita para os artigos 41º, n.º 1, e 47º, n.º 2, do Código Penal, na redacção actual, atentas as alterações entretanto introduzidas no Código Penal.



Assim, por força do art. 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23.09, a pena de prisão do art. 65º do Decreto-Lei n.º 44623, de 10.10.1962, passaria a ser fixa e de 30 dias, o que sofre de insconstitucionalidade material:

-Acórdãos do Tribunal Constitucional:
.) 22/2003 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030022.html)
.) 163/2004 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040163.html);

-Decisões Sumárias do Tribunal Constitucional:
.) n.º 386/2009 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20090386.html);
.) n.º 190/2003 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20030190.html); e
.) n.º 189/2003 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20030189.html).

Nota: Quanto ao art. 67º, & único, do Decreto-Lei n.º 44623, de 10-10-1962:

- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2002, de 19.02
(http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020070.html) ; e

- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 124/2004, de 02.03 (com obrigatória geral)
(
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040124.html).


Assim, tem de se represtinar a norma posta em causa pelo art. 3º, n.º 1, citado, ficando o art. 65º citado, quanto à pena de prisão, igual, ou seja, de 10 a 30 dias.



Quanto à multa, duas teses se podem defender:



- Actualização pelo coeficiente 6 do Decreto-Lei n.º 131/82, de 23.04, com a conversão em euros do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17.12; ou



- Aplicação do art. 3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23.09, passando a moldura da pena de multa em quantia, sem prisão subsidiária (cf. art. 5º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03), a ser de 5€ a 500€, por recurso ao disposto no art. 47º, n.º 2, do Código Penal, tese esta que defendemos.



Sendo uma pena de prisão e multa, haverá que aplicar as normas dos arts. 6º, n.º 1, e 8º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03).

segunda-feira, 8 de março de 2010

Insolvência

Inquérito nº

___________________________________________________________________________

Iniciaram-se os presentes autos com a remessa ao Ministério Público (fls. 1) de Certidão, nos termos do disposto no art. 36º, alínea h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Refere aquele preceito que:

“Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:

(…)

h) Ordena a entrega ao Ministério Público, para os devidos efeitos, dos elementos que indiciem a prática de infracção penal”.

Acrescenta o art. 297º do mesmo diploma que:

“1 – Logo que haja conhecimento de factos que indiciem a prática dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º, do Código Penal, manda o juiz dar conhecimento da ocorrência ao Ministério Público, para efeitos do exercício da acção penal.

2 – Sendo a denúncia feita no requerimento inicial, são as testemunhas ouvidas sobre os factos alegados na audiência de julgamento para a declaração de insolvência, extractando-se na acta os seus depoimentos sobre a matéria.

3 – Dos depoimentos prestados extrair-se-á certidão, que é mandada entregar ao Ministério Público, conjuntamente com outros elementos existentes, nos termos do disposto na alínea h) do artigo 36.”

Do cotejo das normas citadas resulta que só devem ser comunicados ao Ministério Público os elementos, carreados para o processo até ao proferimento da sentença, que constituam uma notícia criminosa, para que o mesmo inicie a competente investigação. Logo, se no momento em que é proferida a sentença, não se tiver notícia de qualquer actuação criminosa, não deve ser entregue qualquer certidão ao Ministério Público para efeitos criminais.

A propósito do envio de tais elementos ao Ministério Público, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 189, que: “Vê-se, do próprio modo como a norma está formulada, o carácter eventual da menção, a qual só deve ser feita quando os elementos trazidos ao processo até a altura da sentença indiciem suficientemente a prática de infracção criminal, nomeadamente alguma das previstas nos arts. 227.º a 229.º-A do C. Penal.

A razão de ser da exigência legal prende-se com o facto de assim se fazer um juízo crítico preliminar sobre a relevância dos factos apurados e dos elementos a remeter para obviar ao envio de peças inúteis”.

Compreende-se tal opção legislativa, dado que o Ministério Público apenas está vinculado à abertura de inquérito, respeitando o princípio da legalidade aflorado no art. 262º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando lhe é dada notícia de um crime.

Se o Juiz lhe remete os elementos, mormente certidão da sentença que decreta a insolvência, sem fazer o “juízo crítico preliminar sobre a relevância dos factos apurados e dos elementos a remeter”, a que aludem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., e aqueles não consubstanciarem uma notícia criminosa, não cabe ao Ministério Público fazer diligências no sentido de recolher indícios de tal notícia. Ao Ministério Público cabe apenas, como supra se referiu, iniciar a investigação quando há notícia da prática de um crime (público). Se não há tal notícia, arquiva liminarmente por ausência de crime, nos termos do art. 277º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Daqui resulta que o Juiz só deve remeter certidão ao Ministério Público, quando nos autos de insolvência se recolham indícios de actuação criminosa.

Compulsando os elementos enviados ao Ministério Público, extraídos dos autos de insolvência que correm termos no … juízo deste Tribunal, com o n.º …/…, denotamos que não há quaisquer indícios que nos permitam imputar ao insolvente a prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. no art. 227º, n.º 1, do Código Penal, dado que nos mesmos não se vislumbra qualquer facto que preencha o tipo legal do art. 227º, n.º 1, do Código Penal.

De facto, dos elementos remetidos ao Ministério Público, não se extrai qualquer facto que demonstre que o devedor, ora insolvente, com intenção de prejudicar os credores, tenha: destruído, danificado, inutilizado ou feito desaparecer parte do seu património; tenha diminuído ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida; tenha criado ou agravado artificialmente prejuízos ou reduzido lucros; ou tenha para retardar a falência, comprado mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente.

Resta-nos indagar se dos autos resultam elementos que integrem o tipo legal de insolvência negligente p. e p. no art. 228º, do Código Penal.

Estatui aquele preceito normativo:

1. O devedor que:

a) Por grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas, ou grave negligência no exercício da sua actividade, criar um estado de insolvência; ou

b) Tendo conhecimento das dificuldades económicas e financeiras da sua empresa, não requerer em tempo nenhuma providência de recuperação;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 444 e no mesmo sentido também, Maria Fernanda Palma, in RFDL, 1995 409, defende que, não obstante a epígrafe “insolvência negligente”, as condutas previstas no n.º 1, do art. 228º, do Código Penal, seriam, necessariamente, dolosas, exceptuando a causação negligente da insolvência do devedor comerciante no exercício da sua actividade, a que faz referência a alínea a) in fine.

Refere o ilustre penalista que: “Apesar da recente modificação da epígrafe do art. 228 operada pela L. 65/98, cremos que o respeito pelo disposto no art. 13° do CP relativamente a necessidade de disposição expressa (típica) para a punição da negligência impõe a conclusão de que as condutas incriminadas nas als. a) e b) do n° 1 só serão puníveis a título de dolo (assim também Mª FERNANDA PALMA, RFDL 1995 409, embora no contexto do direito anterior, que apelidava este crime de Falência não intencional) - ressalvada, como é óbvio, a causação negligente da própria insolvência por parte do devedor (comerciante) no exercício da sua actividade, expressamente prevista na al . a), in fine. Na verdade, a simples inclusão no tipo dos conceitos de incúria, imprudência, prodigalidade, etc., não significa, ipso facto, a punição das condutas negligentes que causem a insolvência, mas antes a subordinação típica das condutas dolosas causadoras da insolvência aos ditos parâmetros. Para além de imposta pela citada regra legal da punição da negligência, esta leitura compagina-se com a limitação da punição da produção negligente da insolvência estas condutas praticadas pelo devedor (comerciante) "no exercício da sua actividade" (cf. supra § 10 e infra 31 ss.) e impede a consequência absurda de as condutas descritas no tipo serem imputáveis ao agente em caso de negligência e já não, por não se preencher o tipo subjectivo, no caso de o agente actuar com dolo.

(…) A coexistência de dois tipos dolosos na punição dos crimes falenciais afigura-se adequada, tanto no plano político-criminal como, no plano dogmático. Com efeito, enquanto que a forma fraudulenta do art. 227° reprime a causação fictícia da própria crise, que tem por fim um locupletamento oculto e ilegítimo por parte do devedor – condensado, porventura de forma infeliz, na exigência da intenção de prejudicar os credores –, a forma simples tem em vista a punição da assunção inadequada, a título de dolo (em especial, de dolo eventual)”.

Após minuciosa análise dos documentos juntos aos autos teremos de concluir, também, que não está preenchido o tipo plasmado na alínea a), deste normativo.

De facto, na sentença proferida no processo n.º …/…, reconheceu-se e declarou-se a incapacidade económica do insolvente para satisfazer pontualmente as obrigações firmadas com os seus credores.

Daqui não resulta, contudo, que tal incapacidade económica se tenha ficado a dever a grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas por parte do insolvente, ou grave negligência no exercício da sua actividade. Para que se pudesse extrair tal conclusão teriam, antes de mais, de ser carreados para os autos factos concretos que densificassem os conceitos indeterminados plasmados na alínea a), do n.º 1, do art. 228º do Código Penal, o que não aconteceu, depois ter-se-ia de estabelecer o nexo de causalidade entre aqueles factos e a situação de insolvência, o que também, não se verificou.

Importa, por último, aferir se a situação se enquadra na alínea b), do n.º 1, do art. 228º, do Código Penal.

Esta norma introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, foi, desde o seu surgimento, objecto de críticas.

Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 443, refere que a norma em questão é “insustentável no plano político – criminal”, “incongruente no plano sistemático porque cria deveres penais num espaço onde o direito civil confere uma ampla liberdade de acção; é materialmente inconstitucional porque viola o princípio da necessidade da lei penal contido no art. 18º da CRP e o princípio da legalidade contido no art. 29º, n.º1, do mesmo diploma”.

A situação agravou-se com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 8 de Março, que fez desaparecer a dicotomia entre recuperação/falência e suprimiu a norma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, que estabelecia que “a empresa insolvente ou em situação económica difícil que se considere economicamente viável e julgue superável a situação económica em que se encontra pode requerer em juízo a providência de recuperação adequada”. Hoje existe, apenas, uma obrigação de apresentação à insolvência (art. 18º, do CIRE) que não se confunde com qualquer obrigação de requerer uma providência de recuperação.

Face a tal evolução legislativa, no âmbito da insolvência, fica esvaziada de conteúdo a alínea b) do n.º 1, do art. 228, que não acompanhou aquela evolução.

Se o legislador penal não procedeu à alteração do referido preceito, no sentido de substituir a obrigação de requerer providência de recuperação pela obrigação de se apresentar à insolvência, não pode, agora, o intérprete e aplicador do Direito proceder a qualquer interpretação actualista da norma pois, a mesma, viola o princípio da legalidade plasmado no art. 1º, n.º 1 e 3, do Código Penal e 29º, nº 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

Assim sendo teremos de concluir que, face à letra da alínea b), do n.º 1, do art. 228, do Código Penal, a omissão do dever a que alude o art. 18º, n.º 1, do CIRE, ou seja, da obrigação do devedor requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência ou à data em que devesse conhecê-la, não constitui crime.

Face ao exposto determino o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2, do Código Processo Penal, sem prejuízo da sua posterior reabertura se forem remetidos elementos que consubstanciem uma notícia criminosa.

Cumpra o disposto no art. 277º, n.º 3, do Código Processo Penal.

Remeta certidão do presente despacho ao Processo de insolvência n.º …/…, que corre termos no … juízo deste Tribunal, nos termos do disposto no art. 300º do CIRE.

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Processei, revi, imprimi e assinei o texto, seguindo o verso em branco (art. 94º, n.º 2, do CPP)

Local/Data, d.s.

O Procurador-Adjunto

Artigo 14º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias: revogação tácita.

Comum Singular n.º
do … Juízo




Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito do
Tribunal Judicial de …


O Ministério Público, não se conformando com a sentença proferida nos autos supra-referenciados vem, nos termos dos artigos 399.º, 401.º, n.º 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal, dela interpor recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a subir imediatamente (art. 407.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Penal), nos próprios autos (art. 406.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal) e com efeito suspensivo (art. 408.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal).

Para o efeito junta a sua motivação.

Mais requer a Vossa Excelência que se digne admitir o presente recurso.

***

Motivação

*

Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores

Objecto do recurso:
O presente recurso é interposto pelo facto de a sentença recorrida ter aplicado uma pena de prisão suspensa na sua execução, pelo prazo de cinco anos, com a condição de pagamento da indemnização nela mencionada, em aplicação dos arts. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03, e 14º, n.º 1, do R.G.I.T.

*

A respeito da questão que se suscita neste recurso decidiu o Acórdão da Relação do Porto, de 07.11.2007, no qual foi relator o ilustre desembargador Pinto Monteiro, (Processo 0743150; N.º Convencional: JTRP00040730) o seguinte:
Sumário:

“Se, numa altura em que ainda não vigoravam as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei nº 59/2007, a execução de uma pena de 1 ano de prisão, aplicada por crime de frustração de créditos, ficou suspensa pelo período de 5 anos, sob a condição de nesse período o arguido pagar ao Estado uma quantia superior a € 1 600 000,00, correspondente a prestação tributária em falta e acréscimos legais, após a entrada em vigor daquelas alterações, deve reduzir-se para 1 ano o período de suspensão, nos termos da nova redacção do nº 5 do art. 50º do Código Penal, que consagra um regime mais favorável ao arguido. Mas, porque assim resulta um período mais curto que o considerado adequado para o pagamento daquele valor, a suspensão não deve ficar subordinada ao cumprimento da dita condição”.

Dispõe o art. 8º do Cód. Penal que “As disposições deste diploma são aplicáveis aos factos puníveis pelo direito penal militar e da marinha mercante e pela restante legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário”.
Poder-se-á concluir que a ressalva da parte final do art. 8º do Cód. Penal impõe a subsistência do art. 14º do R.G.I.T.?
Poder-se-á entender que o art. 14º do R.G.I.T. não foi tacitamente revogado, nesta parte, já que a lei geral não revoga a lei especial (art. 7º, n.º 3, do Cód. Civil) – cf. neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 10-02-2010 (processo 145/04.8IDPMS.C1, relator: Esteves Marques, in
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/)? Ou foi intenção inequívoca do legislador a não subsistência de tal norma?


O facto de o legislador punir mais fortemente as violações contra a vida quando comparadas com as violações que ofendem os bens patrimoniais não pode ser olhada como um acaso ou uma arbitrariedade; corresponde, antes, a um sentido, a uma intencionalidade que une, deve unir, todos os crimes definidos na parte especial do Código Penal. Corresponde uma tal forma de perceber à aceitação de que entre as diversas infracções da parte especial intercede, não só uma específica valoração de proporcionalidade que parte, primacialmente, da correspondência entre a gravidade da infracção e a gravidade da pena, mas também um juízo de perequação quanto aos mínimos e aos máximos das diferentes molduras penais abstractas.
A parte especial do Código Penal não é expressão de um conglomerado, antes nela se detecta uma coerência, quer ao nível da ordenação dos bens jurídicos – no que se traduz também aquela analogia substancial à Constituição do direito penal-, quer no âmbito – indissociavelmente ligado à anterior ordenação através de uma mútua reciprocidade - da definição das molduras penais abstractas.
A actuação do legislador ao nível da definição da moldura penal abstracta não pode ser imotivada, antes tem de atender a critérios materiais, desde logo, ao critério da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a pena. Mas a relação de proporção ou de desproporção só pode ser compreendida dentro de um determinado quadro de valoração ou horizonte normativo. É o próprio ordenamento jurídico existente que indicia, nomeadamente no âmbito do Código Penal, uma formulação sobre a hierarquização axiológica pressuposta pelo legislador.
Existem diferenças de valoração dentro do horizonte normativo no qual se realiza a operação normativa de aferição da proporcionalidade.
E só assim, acrescente-se, se pode conceber. Pois só na diferença é que é concebível uma proporcionalidade. Mas o problema da proporcionalidade, entre a infracção e a pena, não se pode ver exclusivamente através de um único segmento de valoração, nem, muito menos, arrancando da ideia simplista de que se está perante um juízo global de proporção ou de desproporção. Julgamos que a questão da proporcionalidade tem de ser olhada, fundamentalmente, a partir de dois princípios: de um princípio de perequação dos mínimos e de um princípio de perequação dos máximos.
Porém, para que tais princípios possam ser operatórios, há que descobrir uma função para aqueles limites. Assim, pensamos dever atribuir-se aos mínimos legais uma função de limiar abaixo do qual o legislador entende não ter sentido, logo desnecessária, a intervenção do direito penal, isto é: eles representam na arquitectura normativa o último grau ao qual pode descer a tutela jurídico-penal, enquanto os máximos se perfilam como o limite extremo até onde o ordenamento penal está disposto a assegurar a eficácia concreta da tutela.
Porém, é necessário ir mais longe ainda. É necessário entrar fundamentalmente em linha de conta com a ideia de bem jurídico e com o facto de que é também função da lei penal a prevenção, ou seja, não se pode esquecer a ressonância que qualquer Código Penal adquire no seio da comunidade e que lhe advém do impacto que a chamada «Parte Especial» provoca na consciência colectiva e, muito particularmente, na consciência individual dos membros daquela específica e precisa comunidade jurídica – o valor simbólico que o Código Penal desencadeia nas actuais sociedades coincide ponto por ponto, com a definição dos próprios tipos legais de crime. Assim, se na fixação do limite de 25 anos do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal intervém um princípio de humanidade das penas, ou seja e no fundo, a ideia de dignidade humana, a crença na capacidade de ressocialização da pessoa humana, e também uma ideia de prevenção, na fixação do limite mínimo vale antes uma ideia de benefício/prejuízo que possa daí resultar para a pessoa e comunidade, ou seja, vale uma lógica de custos e prejuízos ligados ao cumprimento da pena – ex. não faria sentido impor um limite mínimo de um dia de prisão em vez dos trinta dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que a prisão tem inerente um estigma e um prejuízo que ofuscam por completo as vantagens para o delinquente e sociedade que derivariam do cumprimento de tal dia de prisão ( o que não invalida o disposto no art.º 49º, n.º 1, parte final, do Código Penal, pois que aí não existe alternativa senão a prisão ).
Mas, entre o limite de 25 anos de prisão do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal e o limite de 30 dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do mesmo código, a graduação far-se-á, na construção das molduras dos tipos legais de crimes, em função da importância do bem jurídico. E sendo os bens jurídicos protegidos pelo direito penal escassos ( no sentido de importantes ), então, actua aqui fundamentalmente uma ideia de necessidade do bem jurídico para a pessoa e para a comunidade.
Nesta sede haverá que perceber o modo de superação individual e/ou social das consequências negativas do crime. Dito de outro modo, haverá que considerar os efeitos possíveis da agressão ao bem jurídico.
Se se quisesse resumir, dir-se-ia que na fixação das molduras abstractas haverá aí também que respeitar o princípio da proibição do excesso do art.º 18º da Constituição da República Portuguesa.
Numa outra vertente, entendemos que, muito embora sem esquecer que o que legitima a incriminação é a ideia de bem jurídico e que a moldura abstracta das penas se liga antes à ideia de carência de tutela penal, a equiparação das penas abstractas da fraude fiscal às do homicídio simples seria inconstitucional, e desde logo por violação da ideia de bem jurídico como princípio material de distinção, do princípio da proporcionalidade (art.º 18º, n.º 2, da C.R.P.), e, no fundo, daquela ideia de analogia substancial entre o direito penal e a Constituição (cf. a sistemática desta, de onde resulta manifestamente uma preferência pelos direitos, liberdades e garantias, porque mais directamente ligados à ideia de dignidade humana – há aqui bens jurídicos sem os quais a comunidade não é sequer pensável - e porque aos direitos económicos, sociais e culturais estará sempre inerente uma certa ideia de sistema). Numa determinada óptica, talvez se pudesse afirmar que o direito penal secundário visa a protecção de bens jurídicos que, se comparados com os que iluminam o direito penal clássico, estão num nível mais baixo na escala da valoração axiológica, no sentido de que a menor gravidade penal deriva do «défice de legitimidade». Todavia, para nós, a validade de tal ideia deve ser compaginada com o facto de que, sendo tais bens jurídicos assumidos pela Constituição, então não há verdadeiramente «défice de legitimidade», porque tais novos bens jurídicos foram historicamente sedimentados. Em vez de «défice de legitimidade», conceito este de duvidoso alcance prático para o aplicador da lei constituída, mais correcto será recorrer ao binómio constitucionalidade /inconstitucionalidade.
Aliás, não se vê que défice de legitimidade exista no crime de fraude fiscal quando confrontado, por exemplo, com os crimes de burla p. e p. pelo art.s 217º a 222º do Cód. Penal. O carácter mutável dos factos ilícitos do direito penal secundário não vale para os crimes fiscais, uma vez que o bem jurídico respectivo se foi sedimentando e ganhou mesmo tutela directa na Constituição da República (art.s 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa). Em sede de direito penal secundário, onde o tipo legal de crime se constrói amiudadas vezes como tipo legal de crime de perigo, fundamental é que o nexo de perigo seja minimamente densificado, pois não o sendo violar-se-á o princípio da proporcionalidade em sentido amplo e assim o da intervenção mínima do direito penal. Por outro lado, no que respeita ao modo de o legislador definir as condutas proibidas no âmbito do direito penal mais directamente ligado à tutela do sistema social em sentido amplo, não existe tanta legitimidade neste âmbito para recorrer à técnica da «descrição vazia» (ex. matar), impondo-se uma exacta definição das condutas proibidas. Mesmo que a necessidade da pena se perfile como inquestionável e mesmo que se entenda que a sua concretização não fere o chamado núcleo essencial, mesmo assim há que compaginá-la com a ideia força inerente à proporcionalidade restrita. Sem dúvida que, se para punir uma fraude fiscal for cominada uma brutal pena de prisão, pode essa realidade justificar-se, eventualmente, através de uma ideia de necessidade; mas o que, com certeza, não honra, é o princípio da proporcionalidade. Ao desvalor do facto objectivamente considerado, há que fazer corresponder um desvalor no efeito (pena), também ele objectivamente proporcionado.
A essencialidade do bem jurídico pode justificar a incriminação, mas já não justificará penas desproporcionadas ou a violação do princípio da irrectroactividade da lei penal desfavorável.

Concluindo, o disposto no art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T. viola os princípios de perequação dos mínimos e de perequação dos máximos, atrás referidos, porquanto o estabelecimento de limites mínimos e máximos diferentes de suspensão da execução da pena de prisão e mais gravosos que no direito penal de justiça atenta contra o princípio da proporcionalidade do art. 18º da Constituição da República, na modalidade de proibição do excesso.
E, assim sendo, o disposto no art. 2º, n.º 4, do Cód. Penal deve prevalecer sobre a interpretação literal do art. 8º do Cód. Penal. Pode concluir-se que o legislador, ao alterar as regras da suspensão da execução da pena do Código Penal, só por esquecimento não alterou ou compatibilizou o art. 14º do R.G.I.T. com tais regras, pelo que este não pode subsistir mais, nesta parte.

Ou seja, o prazo de suspensão da execução da pena de prisão não pode ser superior ao da pena de prisão e, por outro lado, não pode ser imposta a condição de pagamento, salvo ao abrigo do art. 51º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, devendo, neste caso, ponderar-se da adequação de tal condição, quando se dá por provado que o arguido se encontra desempregado e nas demais condições referidas na sentença.

O que não se pode é afirmar, como na sentença recorrida, que se apresentam duas possibilidades, ou seja, aplicar o regime anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09, determinando um período de suspensão mais alargado, superior ao do art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, que pode ir até cinco anos, e conferindo um prazo maior para o cumprimento da condição a que está subordinada a suspensão, em aplicação estrita do art. 14º do R.G.I.T., ou determinar um período de suspensão substancialmente mais curto, em obediência ao art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, mas também com um prazo muito menor para cumprir a condição imposta no art. 14º do R.G.I.T.. Na verdade, esta última solução não é possível, pois seria misturar dois regimes, o do art. 14º do R.G.I.T., pensado para um Código Penal com um prazo de suspensão de execução da pena que podia ir até cinco anos (cf. art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal na redacção anterior), e o que resulta da nova redacção do art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, que, sendo incompatível com aquele normativo do R.G.I.T. e implicando até a sua revogação tácita, não se pode misturar com o mesmo. Em suma, como se afirma na sentença, embora nela depois se não cumpra tal ideia, há que determinar em concreto qual o regime legal mais favorável ao arguido, opção essa que terá de atender aos regimes na sua globalidade e não na parte que parcelarmente for mais favorável.
A sentença recorrida parte do pressuposto, errado, de que o art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal é conjugável com o art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T., através da redução do prazo de 5 anos. Só que tal interpretação revogatória de tal artigo fica a meio do caminho, e daí afastar a aplicação do art. 50º, n.º 5. do Cód. Penal, na redacção actual. Pois, a revogação não se opera apenas pela redução do prazo de suspensão da execução da pena de prisão, mas pela revogação total do artigo, até pela possibilidade de recurso ao art. 51º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal.
Em suma, subscreve-se a solução do Acórdão da Relação do Porto de 07.11.2007, supra citado.
Concluindo:


1. Ao suspender a pena de prisão aplicada ao arguido, pelo prazo de cinco anos, sob a condição de o arguido pagar o montante em dívida de 65.737,98€ e acréscimos legais, por aplicação do disposto no art. 50º, n.ºs 1, 2 e 5 do Cód. Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03, e 14º, n.º 1, do R.G.I.T.,

2. entendeu a sentença recorrida ser tal regime mais favorável ao arguido, em comparação com o que resultaria da aplicação conjugada do art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, na redacção actual, e 14º, n.º 1, do R.G.I.T., pois este último regime, segundo a sentença, implicaria um prazo mais curto para pagar a indemnização devida ao Estado.

3. Acontece, porém, que o regime mais favorável e que devia ter sido aplicado, conforme sustentado no Acórdão da Relação do Porto, de 07-11-2007, supra citado, é o que resulta da aplicação do disposto no art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, na redacção actual, sem recurso ao disposto no art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T., que se deve ter por tacitamente revogado, por se ter tornado incompatível com aquele primeiro dispositivo legal, perdendo assim a sua razão de ser (cf. art. 7º, n.º 3, parte final, do Cód. Civil).

4. Tal conclusão é imposta pelos princípios de perequação dos mínimos e de perequação dos máximos das molduras penais, ou seja, em última instância, pelo princípio da proibição do excesso do art. 18º, n.º 1, da Constituição da República, que é violado pela solução contrária.

5. O que não deve impedir, porém, o recurso ao disposto no art. 51º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na redacção actual, impondo-se ao arguido que enverede esforços no sentido de pagar um montante do valor devido, a fixar segundo um critério de equidade, que tenha em consideração a capacidade de trabalho do arguido e conhecimentos adquiridos, sem prejuízo de uma ulterior reavaliação, em caso de incumprimento não culposo, ao abrigo do art. 55º do Cód. Penal.

6. Termos em que se entende dever ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra nos termos preconizados.

No entanto, Vossas Excelências, como sempre, farão a tão costumada

JUSTIÇA!

O Procurador-Adjunto