sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Dano com Violência (clique para consultar o acórdão)

Tribunal da Relação do Porto, Acórdão 9 Setembro 2009

Relator: António Gama Ferreira Ramos
Processo: 634/07.2GAVCD.P1

Jurisdição: Criminal
DANO QUALIFICADO. Dano com violência. Lesão de bens eminentemente pessoais. Comete o crime de dano com violência, e não apenas dano simples, quem durante a madrugada, acompanhado de mais dois indivíduos, se introduz voluntária e conscientemente numa casa de habitação onde dormem várias pessoas e destrói portas, janelas e mobiliário, causando o acordar sobressaltado dessas pessoas, fazendo-as temer pela sua integridade física e constrangendo-as a não intervir, com o objectivo conseguido de recuperar bens que se encontravam na garagem. Esse comportamento compreende a quem o suporta uma grave violência física e psíquica. Disposições aplicadas:

arts. 283.2 e 308 CPP
arts. 210.1, 212 e 214.1.a CP


Meio processual:

Tribunal Judicial de Vila do Conde, Proc. n.º 634-07-05


Jurisprudência relacionada:

STJ Acórdão 6-2-2008
STJ Acórdão 23-1-2003
STJ Acórdão 23-1-2003
STJ Acórdão 23-1-2003
STJ Acórdão 23-6-1999
TRP Acórdão 29-4-1998
STJ Acórdão 1-4-1992
No mesmo sentido, Ac. STJ de 14-12-2006.


O tipo legal do dano com violência compreende quer a violência física, quer a psíquica.
Para a verificação do crime exige-se a comprovação de um nexo de imputação entre o dano e os meios utilizados e que estes tenham provocado directamente uma lesão de bens eminentemente pessoais.

Reconstituição do Facto - art. 150º do Cód. Proc. Penal (clique para consultar o acórdão)

Tribunal da Relação do Porto, Acórdão 9 Setembro 2009

Relator: Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Processo: 230/08.7PDVNG.P1

Jurisdição: Criminal
RECONSTITUIÇÃO DO FACTO. A reconstituição do facto não tem por finalidade apurar a existência de factos em si, mas se podiam ter ocorrido de determinada forma. PROVA PROIBIDA. Se a diligência externa realizada assenta exclusivamente nas declarações do arguido, prestadas a um órgão de polícia criminal, não podem ser entendidas com a natureza de reconstituição do facto, mas apenas como declaração ilustrada do arguido. Remetendo-se o Arguido ao silêncio em sede de audiência de julgamento, a inquirição dos agentes policiais, sobre o conteúdo das declarações por estes recolhidas, constitui produção de prova proibida. RECONSTITUIÇÃO DO FACTO. Disposições aplicadas:

arts. 355-357, 57-59, 60-61, 2.4, 127 e 150 CPP

Meio processual:

Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, Proc. n.º 230/08.7PDVNG


Jurisprudência relacionada:

No mesmo sentido, Ac, STJ de 29-01-1992 (in CJ, I, 20)
No mesmo sentido, Ac. STJ de 11-07-2001
No mesmo sentido, Ac. STJ de 05-01-2005 (in CJ, I, 159)
No mesmo sentido, Ac. TRL de 08-02-2007
No mesmo sentido, Ac. TRC de 16-11-2005
No mesmo sentido, Ac. STJ 13-05-1992 (in CJ, III, 19)
Noutro sentido, Ac. STJ de 20-05-1992, (in CJ, III, 31)
No mesmo sentido, Ac. STJ de 20-04-2006


Texto Parcial do Acórdâo:

"...III. 4. 3. Eis-nos chegados ao cerne da questão.
Será que nos autos foi produzida uma reconstituição dos factos, como se pretende na decisão recorrida?
Será que o documentado no auto de fls. 425 e ss. se consubstancia numa reconstituição dos factos?
Da resposta a dar a esta questão, depende, a sorte do recurso.

Como é sabido o artigo 355º/1 dispõe que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência ressalvando-se nos termos do nº. 2, as provas contida em acto processuais cuja leitura (e hoje, visualização ou audição), sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.
Esta norma constitui uma emanação do princípio do contraditório, que aqui se realiza através da imediação e da oralidade na produção da prova.
A excepção – as situações em que o Tribunal pode valorar provas que não foram produzidas em audiência está contida no nº2.
Assim, nos termos do disposto no artigo 356º é permitida a leitura em audiência de autos, de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas, alínea b) do nº1.
E nos termos do nº. 7, os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem com quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
E o artigo 357º reporta-se a declarações do arguido.
Dispõe, por seu lado, o artigo 150º, norma única inserida no Capítulo V designado de “da reconstituição do facto” do título II “dos meios de prova” do Livro III “da Prova”, que:
1. quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo;
2. o despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas”.

No expressivo dizer de Paulo Pinto de Albuquerque, trata-se de uma encenação de uma versão provável do facto.
Defende o recorrente que a reconstituição dos factos apenas pode servir para determinar “se um facto poderia ter ocorrido de certa forma”, pelo que se da reconstituição efectuada no inquérito apenas se pode concluir que o furto poderia ter sido eventualmente praticado pelo recorrente, não que efectivamente o foi.
Pertinente ainda que não cabal e definitiva, observação esta.
Como bem se refere na decisão recorrida, citando o Prof. Germano marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, 196, “a reconstituição dos factos, como meio de prova, tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma e na forma da sua execução”.
“Com efeito, através da reconstituição do facto visa-se conseguir a reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma (arguido, assistente, testemunhas, partes civis) ou supõe (Tribunal, MP e advogados) ter ocorrido um determinado facto.
Trata-se de comprovar se um dado acontecimento histórico poderá ter ocorrido de determinada forma e, já não de comprovar a existência do facto histórico, em si mesmo, podendo estar em causa circunstâncias de tempo, modo ou lugar. Lateralmente pode ainda servir a finalidade de se perceber, se por exemplo, determinada testemunha poderá ou não ter presenciado os factos a partir do local onde diz que se encontrava.
Para que a reconstituição adquira valor probatório consistente impõe-se que parta de um máximo possível de premissas comprováveis. Para tal mostra-se necessário que haja já sido recolhida prova indiciária bastante, pois de outro modo não se estará em condições de afirmar ou supor, de que modo é que determinado facto poderá ter ocorrido. Dito de outro modo, não deverá a investigação alicerçar-se neste elemento de prova”.[2]
Tendo este meio de prova a virtualidade de materializar e objectivar um acontecimento histórico, levando em consideração contributos, que podem provir, também do próprio arguido e dado que poderá vir a ser utilizado e sede de audiência, pois que depois de documentado vale por si, quando na reconstituição participa o arguido é de todo aconselhável que este se mostre já acompanhado de defensor, para que seja assegurado o efectivo exercício do seu direito de defesa.[3]

A reconstituição do facto não tem por finalidade apurar a existência de factos em si, mas se podiam ter ocorrido de determinada forma[4].
“O auto de reconhecimento de local efectuado pela PJ que o levou a cabo com o arguido trata-se de uma verdadeira reconstituição do facto. Não é o “nomem juris” que releva mas antes a substância/conteúdo da diligência” [5].

Pela sua própria configuração e natureza – reprodução tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido o facto – a reconstituição do facto embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também a não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição e tal participação não tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciado no artigo 126º.
A este propósito refere, de resto, o recorrente que ao tempo era toxicodependente, facto corroborado pelas testemunhas que levaram a cabo o dito reconhecimento exterior. Daqui, no entanto, não se pode extrapolar para o facto de que o que disse, na ocasião, o fosse sob o efeito ou de qualquer forma condicionado, sequer, por esse facto.
A reconstituição uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada autonomiza-se das contribuições individuais de quem nela tenha participado e das informações e declarações que tenham determinado os termos em que foi levada a cabo e o seu concreto resultado final.
As declarações, melhor dito, “as informações” prévias ou contemporâneas, a postura, as hesitações, o real comportamento e estado de espírito, mantido na ocasião, que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova foi processualmente adquirido.
Assim, a autonomia da reconstituição determina que se não tiver sido inquinada nos seus pressupostos, formais ou de execução, nem tiver sido utilizado qualquer método proibido de condicionamento da vontade de algum interveniente, vale por si só e pode ser processualmente adquirida como meio de prova, a valorar segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º.
O posterior direito ao silêncio do arguido que nela participou não pode ser utilizado para colocar em causa o efeito probatório da reconstituição em que, validamente haja participado.
Nesta perspectiva e atenta a autonomia que a reconstituição do facto, documentada em auto ou por outro modo, vg. o audiovisual, ganha para o processo – podendo ser tratada como meio de prova documental, produzida no processo - onde se inserem as contribuições parcelares, porventura também do arguido, que permitem conhecer os termos em que decorreu e o seu resultado, podem os agentes de autoridade que a tenha acompanhado, prestar declarações sobre o modo e os termos em que decorreu a diligência.
Declarações que se referem a elementos que ganham autonomia, que se referem antes, a informações carreadas pelo arguido, para a reconstituição e não tanto a “declarações” por ele prestadas na ocasião e recolhidas pelo agente de autoridade.
Contudo, dada a necessária documentação processual deste meio de prova, que, por isso, se terá, por essa via, processualmente adquirida, deve bastar-se por si próprio, e dispensar – em bom rigor – confirmações ou esclarecimentos, complementares, sem que, todavia, se exclua a possibilidade de que qualquer interveniente possa prestar esclarecimentos sobre a concreta natureza e precisos termos em que decorreu a reconstituição[6].

No caso dos autos, de substantivo para a condenação do recorrente, ressalta o “auto de reconstituição e os depoimentos dos 2 agentes que participaram nessa diligência”.
Enquanto na decisão recorrida, com o aplauso do MP se considera estarmos perante uma reconstituição, o recorrente defende que o auto de diligência externa foi elaborado pelos agentes investigadores de acordo com o que lhes foi sendo dito pelo recorrente, que não visou – como é pressuposto - determinar “se um facto poderia ter ocorrido de certa forma”, antes, apenas se podendo extrair que o furto poderia ter sido eventualmente praticado pelo recorrente e já não que efectivamente o foi.

Vejamos então se o que se passou no processo foi ou não uma reconstituição dos factos.

Quanto à forma, como vimos já, o nome dado ao documento que corporiza a diligência, foi de, AUTO DE RECONHECIMENTO EXTERNO, chegado ao processo no dia designado para continuação da audiência, enviado para o processo oriundo de um outro processo ../08 da .ª Vara criminal do Porto.

Quanto ao conteúdo e substância:
Intróito.
Data 7ABR2008.
Identificação do processo NUIPC ../08.0PEPRT – curiosamente o processo à ordem do qual o recorrente está preso preventivamente.
Autor D………., agente principal na companhia do colega E………., agente …. do mesmo Departamento Policial.
Descrição.
“por indicação de B………., de epíteto "H……….", nascido a 16.11.1973, divorciado, sem ocupação profissional, filho de I………. e de J………., natural da ………. - Porto, sem residência fixa (pernoitando na via pública, em díspares locais desta urbe), deslocámo-nos aos locais infracitados onde o mesmo referiu que no hiato temporal compreendido entre a madrugada do transacto dia seis (Domingo) e a madrugada do dia sete (segunda-feira) perpetrou vários ilícitos criminais contra o património.
1. Rua ………., … - V. N. Gaia (fotogramas 01, 02 e 03) – a situação dos autos.
Aqui, o B………. relatou que na madrugada do pretérito dia seis (Domingo) fazendo uso de um cartão telefónico plastificado, logrou romper a porta principal de serventia do predito imóvel. Acto contínuo, desceu a escadaria que serve de acesso à garagem colectiva do prédio (fotogramas 04 e 05). Dali, furtou uma bicicleta, um berbequim, um jogo de brocas, vários jogos de puxadores e espelhos para portas, bem assim como um abre garrafas com tripé, cujas marcas e modelos disse ignorar. Uma vez na posse de tais artigos, dali retirou, subindo novamente a citada escadaria até ao piso superior, saindo pela concernente porta de entrada.

2. ………., .. - Porto (Fotogramas 06, 07 e 08)
Aqui, aludiu que na manhã do antedito dia seis - volvidas poucas horas após a perpetração do referidos furtos - fazendo uso do mesmo cartão telefónico, logrou romper a porta principal de entrada do supradito imóvel. Após, deslocou-se ao 1° andar, sala 24 (fotogramas 09 e 10). Aqui, pese embora os subsecutivos pontapés violentamente desferidos ao nível da zona da atinente fechadura, não logrou irromper pela respectiva porta de acesso, o que inviabilizou o acesso ao seu interior.
Gorados os seus intentos apropriativos, imediatamente se dirigiu à sala 23 (fotogramas 11 e 12). Ali, após ter arrombado a respectiva porta de acesso através do sobredito modus faciendi - pontapés desferidos ao nível da zona da fechadura – introduziu-se no interior. Uma vez ali, após vasculhar o recheio com que se deparara, logrou furtar diversos CD's de música variada e dois rádios leitores de CD's cujas marcas e modelos disse ignorar.
Obstinado, deslocou-se à sala 22 (fotogramas 13 e 14). Recorrente no método que vinha empregando, conseguiu a abertura da respectiva porta e ulterior introdução no seu interior. Porém, não detectou qualquer artigo que lhe merecesse especial interesse, pelo que dali nada furtou. Relevam-se os danos que, com a sua conduta deveras violenta, causou na porta de acesso.
Na senda da ilicitude decursiva, dirigiu-se à sala 30 (fotogramas 15 e 16). Aqui, de novo através do aludido modo, arrombou a respectiva porta de acesso. Uma vez no seu interior, analisado o recheio ali existente, optou por furtar uma embalagem contendo diversos CD's, € 200,00 (duzentos euros) em notas do BCE e um livro de chegues.
Na posse dos documentos furtados do interior da mencionada sala 30, dali retirou, fazendo-o pela porta de entrada do prédio em alusão.
No tocante aos demais artigos furtados, referiu tê-los ocultado no interior de um pequeno armário existente no imóvel em referência, o qual serve de resguardo a contadores) da EDP (fotograma 17). Disse que perspectivava ali voltar a fim de se munir dos mesmos.
3. Rua ………., … - Porto (Fotogramas 18, 19 e 20)
Aqui, mencionou que na madrugada do pretérito dia sete (segunda-feira), fazendo uso do cartão telefónico já referido, logrou romper a porta de ingresso no supracitado imóvel. Sem perder tempo, percorreu os diversos andares que o constituem. Deslocou-se então ao 1° andar direito (fotogramas 21,22 e 23), onde, após ter arrombado a respectiva porta de acesso através de pontapés violentamente desferidos ao nível da zona da atinente fechadura, alcançou o seu interior. Uma vez ali, após remexer as várias dependências que pertencem aos escritórios em foco, dali furtou quatro monitores de computador cujas marcas e modelos disse ignorar, uma caixa com garrafas de vinho do Porto e, outrossim, uma garrafa de whisky J&B 15 anos.
Não totalmente satisfeito com o resultado obtido, deslocou-se sem delonga para o 3° andar esquerdo (fotogramas 24 e 25). Aqui, pese embora os múltiplos pontapés desferidos ao nível da zona da fechadura, não logrou irromper pela respectiva porta de acesso, o que inviabilizou o acesso ao seu interior. Todavia, são bem visíveis os danos por si provocados na antedita porta.
Pertinaz, logo se dirigiu ao 4° andar esquerdo (fotogramas 26 e 27). Neste local, não obstante a perseverança em alcançar os seus desígnios, deparou-se com um desfecho análogo ao narrado no parágrafo supra. Também aqui são visíveis os danos que provocou na respectiva porta de acesso.
Dando continuidade à actividade delituosa em curso, deslocou-se então para o 6° andar esquerdo (fotogramas 28 e 29). Aqui, utilizando o 'modus operandl" prolixamente descrito nos presentes, logrou abrir a respectiva porta e subsequentemente introduzir-se no seu interior. Porém, após ter remexido todo o seu conteúdo, voltou a não alcançar a plenitude dos seus intentos, visto não ter encontrado qualquer artigo que lhe afigurasse facilmente vendável.
Apoderando-se dos susoditos artigos furtados do interior do 1° andar direito, dali retirou, descendo a escadaria do prédio até ao piso inferior, saindo pela concernente porta de acesso.

Mais consta estar assinado, pelos “indicante, autuante e testemunha”.

Analisando a norma contida no artigo 150º, podemos esquematizar:
como pressuposto - a realização da reconstituição do facto tem subjacente a necessidade de se apurar se determinado facto pode ter ocorrido de determinada forma;
como requisitos, a sua realização exige,
a reprodução fiel, tanto quanto possível das condições em que (no caso) o recorrente afirma ter ocorrido o facto e,
a repetição do modo de realização do facto.

Daqui, cremos resultar óbvio que, nem, no contexto, nem na finalidade, nem na forma, nem no resultado, se pode afirmar estarmos perante uma reconstituição do facto.

O que consta do auto que documenta a realização da diligência, antes, permite afirmar que estamos perante um reconhecimento dos locais onde o recorrente praticou atentados contra o património.
Este auto retrata uma espécie de visita guiada do arguido aos locais dos crimes.
Ou dito de outra forma, constitui a confissão da autoria dos factos, in loco e, não no silêncio do gabinete policial.
Obviamente que se não pretendeu, desde logo – por isso nem sequer se tentou demonstrar, na prática – a forma como o recorrente refere ter levado a efeito os factos[7].

Assim, não pode aquela diligência valer como reconstituição do facto, antes e tão só, como declarações ilustradas do arguido[8].

Vejamos agora as consequências directas e imediatas de tal consideração.
Desde logo, não pode o auto que a reproduz ser lido, por conter declarações do arguido e não estarmos perante nenhum dos 2 casos previstos no artigo 357º, em que é admitida a leitura de declarações do arguido – a sua própria solicitação, ou se prestadas perante um juiz, houver contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência.
Da mesma forma - dado que o arguido se recusou a prestar declarações em audiência, não existe qualquer hipótese, (aqui seria por via da contradição ou discrepância) - se não podem ser lidas aquelas declarações anteriormente prestadas, decorre, de forma necessária, que quem, a qualquer título participou na sua recolha, não pode ser inquirido sobre o conteúdo delas, artigo 356º/7[9].

Com efeito, relacionada sequencialmente com a questão da qualificação da diligência a que se reporta o auto de fls. 425 e ss, surge, irremediavelmente uma outra – a possibilidade de os órgãos de polícia criminal (OPC) poderem ser ouvidos sobre factos de que tenham conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações que recebeu (ou que acompanhou a receber) do arguido, no processo.
Entendimento este, que vem sendo aceite de forma uniforme, no sentido de que do âmbito desta audição apenas estará excluído o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido perante o agente OPC ou seu auxiliar material.
Ou seja, quem recebeu declarações ou participou na sua recolha fica impedido de depor sobre o seu conteúdo.

Exemplos de declarações de agentes OPC que caem fora do âmbito das declarações do arguido, não havendo, por isso, impedimento à sua audição, colhem-se nas seguintes situações:

agente que fora incumbido de ir a determinado local verificar o conteúdo de uma mala com heroína aí encontrada, foi admitido a falar sobre a existência da mala, o seu conteúdo e o local onde se encontrava, “que são factos que se comprovam por observação directa e análise laboratorial”, in Acórdão do STJ de 7OUT1992;
é permitida a narração de diligências em que os agentes OPC intervieram: buscas, apreensões, escutas telefónicas, in Acórdão do STJ de 30OUT1996;
agentes da PJ que depuseram sobre o que se passou na reconstituição do crime, in Acórdão do STJ de 11DEZ1996, de 22ABR2004 e de 30MAR2005, de resto, invocados na decisão recorrida;
agente OPC que havia assinado, um aditamento ao auto de denúncia, o auto de reconhecimento, auto de apreensão e termo de entrega, in Acórdão do STJ de 22JAN1997;
agente da PJ acerca dos factos de que tomou conhecimento directo, através de vigilância ao local do crime ou investigação a partir de denúncia de indivíduo não revelado ou que observou em busca, in Acórdão do STJ 25SET1997;
sobre busca, ainda, Acórdãos do STJ de 26JUN1997 e de 21JAN1999.

A reconstituição constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações, podendo ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio, sem que tal configure violação do artigo 357°.
Pode, de resto, o auto de reconstituição do facto ser lido em audiência, nos termos do artigo 356º/1 alínea b).
Isto porque a verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de ”declarações”, pois o discurso ou “declarações” produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto e se destinam no geral a esclarecer o próprio acto de reconstituição, com ele se confundindo, ensinamento que se retira do invocado na decisão recorrida, Acórdão do STJ de 20ABR2006.

Isto é assim, independentemente de o arguido em audiência falar, assumir ou negar, ou se remeter ao silêncio.
Estaremos perante conversas informais prestadas no dia seguinte e no próprio dia (em relação ao outros factos) ao da ocorrência dos factos, com a identificação dos locais dos crimes, que foram transpostas para o processo e por isso deixaram de o ser.
Se é certo que o OPC não pode ser inquirido sobre o conteúdo das declarações que recebeu nem sobre a recolha que acompanhou, numa 1ª abordagem dir-se-ia que as testemunhas que subscreveram o auto ao deporem sobre a diligência externa não estavam a ser inquiridos sobre declarações do recorrente. Só que numa 2ª observação, logo se surpreende que tal diligência externa de reconhecimento-indicação dos locais dos crimes de furto se baseia evidente e exclusivamente em declarações do recorrente.
É uma prova que assenta exclusivamente na confissão do recorrente e, no caso, obtida antes de ter sido, sequer, constituído arguido e submetido a interrogatório.
Nem se pode dizer que esta diligência haja servido para complementar uma anterior confissão. A confissão aqui obtida, e retratada no auto, foi a 1ª intervenção do recorrente nos autos.

Do que vem de ser exposto, cremos poder concluir que com o silêncio do recorrente fica impossibilitada, desde logo, a possibilidade de ponderação desta confissão.
A propósito de diligências de reconhecimento de casa assaltada efectuada com o arguido, decidiu o STJ no Acórdão de 13MAI1992, in CJ, III, 19, que não pode ser atendido o depoimento do OPC que nela participou.
Todavia o STJ decidiu no Acórdão de 20.MAI1992, in CJ, III, 31 de forma diferente: entendeu que a lei só proíbe o depoimento sobre declarações escritas (fala em leitura) pelo que se o arguido participara com o agente numa diligência de reconhecimento das residências assaltadas, antes de ser ouvido em declarações, não pode gorar-se o direito ao silêncio do arguido (que não é meio de prova) mas também não pode rejeitar-se o que foi investigado.

Ademais no caso, suscita-se, ainda a seguinte questão.
O arguido deve ser considerado não como um objecto de prova, mas sim como um sujeito do processo.
Daí o rigor com que nos artigos 57º a 59º, se procura delimitar essa qualidade (ainda agora na recente reforma do C P Penal, reforçada, cfr. artigo 58º/1 alínea a) e d) e 61º/1 alínea c) evitando que uma pessoa contra quem esteja a correr uma indagação criminal minimamente objectivada seja colocado em posições dúbias de desconhecimento dos seus direitos e deveres, os quais lhe devem ser dados a saber formalmente, artigos 58º/3, 60º e 61º.
Realce-se desde logo que a não constituição de alguém como arguido nos casos a que se refere artigo 58º C P penal, nomeadamente a violação ou omissão das formalidades aí previstas “implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela”, norma que pode relevar, desde logo, no âmbito das ditas conversas informais que os agentes OPC mantém com a pessoa antes de ser submetida a interrogatório formal, impedindo um futuro depoimento sobre elas.
É certo que o artigo 250º dispõe que os OPC podem identificar uma pessoa em lugar público ou equiparado sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes.
Mas depois de uma pormenorizada descrição sobre os procedimentos a adoptar pela autoridade e o modo de a pessoa se identificar - podendo haver condução do suspeito ao posto policial mais próximo e ser compelido a ali permanecer pelo tempo estritamente indispensável à identificação, por período não superior a 6 horas - actos que devem ser reduzido a auto, dispõe o nº. 8 que os OPC podem pedir ao suspeito bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecer informações úteis, e deles receber, sem prejuízo quanto ao suspeito do disposto no artigo 59º, informações relativas ao crime e nomeadamente à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária.
Esta norma está inserida numa disposição que vai dirigida à actuação dos OPC em lugares públicos, onde se contactam pessoas por fundada suspeita de envolvimento na prática de crimes – em flagrante, ou quase flagrante delito, como será a regra. Actuação que é determinada pela urgência da situação, destinada à descoberta e à conservação de meios de prova. Sendo que no tocante à recolha de informações úteis relativas ao crime, logo se ressalva em relação ao suspeito, o disposto no artigo 59º, ou seja no momento em que surja fundada suspeita de que a fonte de informação pode coincidir com o autor do crime, o OPC suspende de imediato o acto de pedido de informações sob pena de tais declarações não poderem ser usadas contra ele, nº. 3 do artigo 59º e 4 do artigo 58º (hoje nº. 5).
Daqui resulta um argumento de valia para a não admissão das ditas conversas informais entre OPC e suspeitos e mesmo, no que respeita a autos de ocorrência que venham a ser lavrados ou relatórios elaborados nos termos do artigo 253º onde porventura se incluam referências à confissão do arguido – que então ainda o não era. [10]

Em resumo:
dado que a diligência externa realizada assenta exclusivamente nas declarações do recorrente prestadas a OPC, ainda que fisicamente diante e com a identificação dos prédios que constituem o local dos crimes – que nem se podem dizer complemento, esclarecimento/concretização de anterior confissão;
dado que foram até, a 1ª diligência, cronologicamente falando, a ter lugar, de resto nem sequer nestes autos, não se podem ter como validamente adquiridas nem podem ser entendida com a natureza de reconstituição do facto,
de todo se não verificam os pressupostos e condições do artigo 150º C P Penal,
pois que não foi com esse objectivo que foi levada a efeito a diligência, (era, de resto absolutamente prematuro o entendimento da necessidade de verificação da possibilidade de os actos terem sido levados a cabo de determinada maneira),
nem, o teor, o conteúdo, a substância, revelam essa natureza ou virtualidade;
dado estarmos perante proibição legal, desde logo, por violação do artigo 58º/1 alíneas a) e d) C P Penal, nos termos do nº. 5 da mesma norma e 126º/3 C P Penal [11];
dado que, et pour cause, os depoimento das testemunhas agentes da PSP que participaram na diligência de recolha da confissão com concomitante identificaãp do local do crime, não podem versar sobre as declarações prestadas pelo recorrente[12],
dado que nenhum outro elemento de prova existe no processo que permita chegar à conclusão afirmada na decisão recorrida – como dela mesmo consta, de resto - o recurso terá que proceder.

A esta conclusão não obsta a forma como em concreto foi deduzida a pretensão recursória do recorrente.
Se como refere o MP na sua resposta, o recorrente não indicou quais as concretas provas que impõe decisão em sentido diverso, não deixou, contudo, de num âmbito processualmente, mais alargado, de resto, se insurgir contra a qualificação jurídica e subsequente valoração (em 2 vertentes: do próprio auto e das declarações dos agentes de autoridade que participaram na diligência), afinal, as provas que em concreto foram decisivas para julgar provados os factos atinentes à autoria dos factos.
Da forma alguma, este modo concreto pelo qual o recorrente optou para mostrar a sua irresignação contra a sentença que o condenou, se pode ter como “comprometendo o êxito da sua impugnação”, como pretende o MP.
Na mesma peça processual, o MP, mais adiante, acaba por reconhecer que, afinal, entre outros argumentos, o recorrente estrutura a sua impugnação, na desvalorização do auto de diligência externa, que entende, no entanto, como não tendo a virtualidade de substituir aquela indicação, nem constitui fundamento, que permita a alteração do julgamento da matéria de facto fixada na 1ª instância, argumentação de que demonstra discordar dado que nem sequer arguiu a nulidade de tal meio de prova.

Entende Paulo Pinto Albuquerque, in Comentário do C P Penal que na situação de o juiz valorar prova proibida na sentença, pronunciando-se erradamente sobre a interpretação da norma que prevê a proibição de prova, ié. admitindo como válida uma prova proibida, o vício é de Direito, rectius de interpretação jurídica, que deve ser alegado nos termos do artigo 412º/2 alínea b) C P Penal.
Como vimos, então, a questão não se reporta, tanto a nulidade de qualquer meio de prova, mas sim a nulidade da prova proibida - que não pode deixar de se ter como arguida - dada a dependência cronológica, lógica e valorativa, em que se encontra a diligência contra a qual o recorrente “assentou baterias, por si, directamente posta em crise enquanto “reconstituição do facto”, sendo que afinal se reconduz a prestação de declarações confessórias “in loco” com a, por esse facto, impossibilidade de os depoimentos das testemunhas que participaram na diligência, sobre tais declarações versar.

III. 5. Para finalizar.

Refere o recorrente, de facto, as coisas são como são e as regras do processo e os princípios constitucionais directamente as enformam impõem-se como balizas dentro das quais o Julgador se tem de ter.
Com efeito, o resultado a que se chega pode-se dizer que de algum modo, está em contraponto com o interesse público na perseguição dos criminosos, da segurança dos cidadãos e das garantias que devem provir de um Estado de Direito, bem como da própria confiança nas Instituições.
Só que ao tribunais cabe julgar com total independência na interpretação da Lei no caso concreto, sendo que o fim do processo, com tem sido sublinhado com insistência, não é apenas o da descoberta da verdade e todo o transe, mas a descoberta da verdade, usando regras processualmente admissíveis e legítimas.
A elaboração de tais regras compete, na organização dos poderes do Estado, a outros órgãos que não os judiciais, vocacionados para a ponderação dos interesses relevantes, à luz dos princípios vertidos na Constituição da República e em outros instrumentos internacionalmente consagrados.
Se o sistema é excessivo na protecção e garantia do arguido, ficando ao alcance de uma boa estratégia de defesa, não cabe aqui avaliar. Também, por outro lado, os Tribunais não existem para suprir falhas de investigação ou de oportunas diligências que plasmem a prova em ordem a poder ser apreciada na audiência de julgamento.
O que o legislador terá querido foi, conceder ao arguido uma completa independência e liberdade na sua defesa, afastando-o de qualquer tipo de pressões, comparecendo perante o Tribunal que o vai julgar sem qualquer vinculação - designadamente se adoptar a atitude do silêncio – ao que anteriormente dissera, de forma processualmente válida – o que, de resto, saliente-se, nem foi o caso.

Com esta decisão fica, naturalmente, prejudicado o outro segmento do recurso, atinente à medida pena.

IV. DISPOSITIVO.

Nos termos e com os fundamentos indicados, acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B………., revogando-se a decisão recorrida.

Sem tributação.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2009.Setembro.09
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Olga Maria dos Santos Maurício"