sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Crime Continuado - art. 30º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal

UM ACÓRDÃO E UMA ACUSAÇÃO ( CRIME DE LENOCÍNIO )



Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.11.2007
Processo: 07P3296
N.º Convencional: JSTJ000
Relator: Simas Santos

Sumário ( extracto ):


“…11 – Há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
12 – O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior (ao agente) das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente. Na existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito».
13 – Dos requisitos do crime continuado resulta também que, tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se pode falar, como o exige o n.º 2 do art. 30.º citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido. Foi este entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o n.º 3 aditado ao art. 30.º do C. Penal pela Lei n.º 59/2007, quis integrar ao dispor: «o disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentes pessoais».
14 – Pode dizer-se que seria então desnecessário tal aditamento, com o que se concorda. Mas o mesmo não permite a interpretação preversa que já foi apresentada de que daí resultaria a imperatividade do crime continuado quando nos vários crimes fosse sempre a mesma vítima. É que, como se viu, a matriz do crime continuado reside na diminuição considerável da culpa, por razões exógenas e só respeitada essa matriz é que se pode afirmar a ocorrência de crime continuado.
15 – A outra decorrência dos requisitos do crime continuado é a de que, para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores, é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião.
16 – A circunstância de se verificar a repetição do modus operandi utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. «a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa». Na verdade, a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a perduração do meio apto que levou ao cometimento de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente, antes se pode afirmar que o esquema de realização do facto foi gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agrava a responsabilidade criminal.
17 – Nesse caso, o arguido não decidiu cometer novos crimes por dispor do esquema prático de execução que criara, antes está provado que construiu esse esquema para poder cometer múltiplos crimes, o que só por si, afastaria a unificação da sua conduta num crime continuado…”


**


ACUSAÇÃO


Inquérito n.º


Em processo comum e para julgamento com a intervenção do Tribunal Singular, por aplicação do art. 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o Ministério Público acusa:

M...

porquanto:

No período temporal compreendido entre Outubro de 2005 e Março de 2006, o arguido colocou Maria …, id. a fls. … dos autos, a ter relações de cópula com terceiros, na qualidade de clientes, junto de várias estradas nacionais, designadamente, na área de B…, C…, E…, A…, M…, L…, M… e M…
Para o efeito, transportava Maria … no veículo ligeiro de mercadorias, de caixa aberta, cor azul ou no veículo de marca Honda, cor cinzenta, deixando-a nos referidos locais, e efectuando, ao fim do dia, a recolha da mesma, altura em que lhe tirava o dinheiro resultante da prática das relações de cópula, que mantinha com os clientes, que aí se deslocavam para esse efeito, para seu benefício, deixando-lhe apenas a quantia de 15,00 Euros por dia.
Em contrapartida das relações de cópula praticadas recebia de cada cliente 20,00 Euros (vinte euros), preço que, por vezes, era reduzido para apenas 10,00 (dez) Euros.
O arguido, enquanto Maria … mantinha as referidas práticas, ficava próximo da mesma, controlando a sua actividade.
Sendo que há cerca de um ano que Maria … abandonou a referida prática.

No entanto, no dia 07 de Setembro de 2007, pelas 17h45m, no Largo …, sito em …, concretamente, na paragem de autocarros, o arguido abeirou-se de Maria … perguntando-lhe se esta se deslocava, na sua companhia, a Espanha, para que tivesse relações de cópula com clientes, sob a sua protecção.
Perante a referida proposta, que Maria …, de imediato, recusou, esta ausentou-se do local onde se encontrava.

O arguido agiu de forma livre, com o propósito reiterado no tempo de execução de um acordo estabelecido, que concretizou, de obter proventos económicos resultantes das relações de cópula praticadas por Maria …, controlando a sua actividade e assim enriquecendo o seu património, o que representou.

O arguido agiu de forma livre, propondo a Maria … que se dedicasse à referida prática, com o propósito de obter lucros resultantes da actividade por esta desenvolvida, deste modo, ofendendo a sua liberdade de autodeterminação sexual, o que representou.

Sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Cometeu, pelo exposto, em autoria material e em concurso efectivo real:

- um crime de lenocínio, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 70º, n.º1 e 30º n.º 2 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09; e,

- um crime de lenocínio, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 170º, n.º 1, 22º e 23º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09.


*


Atentas as respectivas molduras penais seria competente para o julgamento o tribunal de estrutura colectiva (artigo 14.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal).
No entanto, atendendo às circunstâncias do caso concreto e em especial à aceitação da vítima, bem como à não consumação de um dos crimes, se bem que por razões alheias à sua vontade, e de acordo com o princípio da proporcionalidade das penas, entende-se que, com razoabilidade, em concreto, não será de aplicar ao arguido pena superior a cinco anos de prisão, pelo que, nos termos do nº 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal, se deduz acusação para julgamento com intervenção do tribunal de estrutura singular.

*

PROVA:
a) TESTEMUNHAL:
1 – M…, id. a fls. ...;
2 – L…, id. a fls. …;

*

MEDIDA DE COACÇÃO:
(...)

*
Cumpra o disposto no nº 5 e 6 do art. 283º do Código de Processo Penal, notificando mediante via postal simples a ofendida, por via postal registada o defensor oficioso.

*

Nos termos do disposto no art. 64º n.º 3 do Código de Processo Penal, nomeia-se defensor oficioso ao arguido o Dr. … - que se encontra de escala na data da presente acusação -, notificando-o da presente nomeação nos termos do n.º 1 do art. 66º do Código de Processo Penal.
Ao abrigo do disposto n.º 4 do art. 64º do Código de Processo Penal, informe o arguido de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição do defensor mediante a constituição de advogado.

*

Notifique para os efeitos do disposto no artigo 77º nº2 do Código de Processo Penal.

*

Comunique superiormente de acordo com o ponto VI, n.º3 da Circular n.º 6/2002 de 11.03 da P.G.R..

*

(processei, imprimi, revi e assinei o texto, seguindo os versos em branco – art. 94º n.º 2 do Código de Processo Penal)


Local/Data


O Procurador-Adjunto


COMENTÁRIO:

Acusação por tentativa de crime de lenocínio, uma vez que no tipo legal de crime se exige o mero "fomentar", ou seja, promover, excitar ou provocar, conforme referido por Sénio Manuel dos Reis Alves, em anotação da página 68 de Crimes Sexuais - Notas e Comentários, Almedina, 1995, estando-se assim no caso referido na acusação perante verdadeiros actos de execução e não perante meros actos preparatórios.
A respeito do art. 30º, n.º 3, do Cód. penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 04.09, consulte-se a
DIRECTIVA
do Ex.mo Sr. Procurador-Geral da República,
de 09.01.08
in www.pgr.pt :

“A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que alterou o Código Penal, introduziu significativas modificações não apenas no que se refere à definição de novos tipos legais de crime e à reformulação de incriminações já existentes, mas também no que respeita a normas fundamentais da Parte Geral do Código.
Apesar deste seu carácter inovador, a específica natureza destas alterações do direito penal substantivo não tem suscitado, em geral, o nível de controvérsia que foi gerado por algumas modificações introduzidas, simultaneamente, no Código de Processo Penal.
Ocorreu, porém, uma modificação na “Parte Geral” do Código Penal que provocou polémica, inclusive nos meios de comunicação social e por parte do público em geral, afigurando-se, no entanto, que as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado, ao longo de décadas, pela jurisprudência.
Referimo-nos ao novo n.º 3 do art.º 30º do Código Penal, que veio possibilitar, expressamente, a utilização da figura do crime continuado, em casos de prática plúrima de crimes contra bens eminentemente pessoais, estando em causa a mesma vítima, desde que, obviamente, se verifique o pressuposto fundamental daquele instituto – acentuada diminuição da culpa do autor.
Ora, sem entrar aqui em elaborações doutrinais mais aprofundadas, no âmbito duma matéria que integra os próprios princípios estruturais do sistema punitivo, há que reconhecer que a mera possibilidade da atenuação da punição em casos que poderiam ser punidos de acordo com as regras do concurso de crimes, justificará um particular cuidado na avaliação e valoração das circunstâncias factuais cuja verificação, no caso concreto, poderá implicar a punição a título de crime continuado.
Face ao exposto, cabendo ao Ministério Público um papel essencial na conformação do objecto do processo, tendo em vista o julgamento dos factos apurados e a aplicação do regime punitivo que se mostre mais adequado ao caso concreto, determina-se, nos termos do art.º 12º , n.º 2, alínea b), do Estatuto do Ministério Público revisto e republicado pela Lei n.º 60/98, de 27.08, que sejam adoptadas as seguintes orientações:
1 A eventual subsunção jurídica dos factos apurados à figura do crime continuado, prevista pelos n.º s 2 e 3 do art.º 30º do Código Penal, quando se verifique a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, dependerá sempre, nos termos da lei, da verificação de circunstâncias de facto que, em concreto, devam considerar-se como aptas a justificar um juízo de considerável diminuição da culpa do arguido;
2 Sendo assim, quando no inquérito se suscite a eventual verificação de uma situação de continuação criminosa, deverá proceder-se ao rigoroso apuramento, em concreto, dos pressupostos de facto de que depende a imputação da prática de crime continuado, quer no que se refere à exigível “homogeneidade da actuação” do arguido quer no que respeita à existência de uma “mesma situação exterior”, susceptível de diminuir consideravelmente a respectiva culpa;
3 Subsequentemente, se tais pressupostos estiverem inequivocamente apurados, os factos integradores da “continuação criminosa” deverão ser rigorosamente descritos na acusação, não podendo esta limitar-se à afirmação conclusiva da sua alegada verificação;
4 Caso não se revele possível, no momento do encerramento do inquérito, fundamentar, em factos concretos, a imputação da prática de crime continuado, nos termos atrás expostos, deverão os senhores Magistrados do Ministério Público abster-se de invocar esta figura jurídica, no âmbito das acusações que vierem a ser deduzidas”.

Jurisprudência Obrigatória do S.T.J.

Acórdão n.º 1/97

Apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo - mesmo que após o prazo previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal de 1982.
19.12.1996
Proc. n.º 48 713
Augusto Alves (relator)
DR 8/97 SÉRIE I-A, de 1997-01-10


Assento n.º 1/97

Requerida a instrução por um só ou por alguns dos arguidos abrangidos por uma acusação, os efeitos daquela estendem-se aos restantes que por ela possam ser afectados, mesmo que a não tenham requerido.A final, a decisão instrutória que vier a ser proferida deve abranger todos os arguidos constantes da referida acusação, por não haver lugar, neste caso, a aplicação posterior do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal.
19.10.1995
Proc. n.º 41 250
Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira (relator)
DR 242/97 SÉRIE I-A, de 1997-10-18

Nota:Este Assento foi objecto da Declaração de Rectificação n.º 21/97, de 14 de Novembro de 1997, a qual não alterou o indicado texto do Assento, consignando tão-só que “sobre a matéria deste acórdão veio a ser proferido, em via de recurso, pelo Tribunal Constitucional, em 12 de Março de 1997, o Acórdão n.º 225/97, no processo n.º 96/96, que se publica a seguir, como parte complementar do mesmo”.
DR 275/97 SÉRIE I-A, de 1997-11-27

Acórdão n.º 13/97

A declaração ‘devolvido por conta cancelada’, aposta no verso do cheque pela entidade bancária sacada, equivale, para efeitos penais, à verificação da recusa de pagamento por falta de provisão, pelo que deve haver-se por preenchida esta condição objectiva de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro.
08.05.1997
Proc. n.º 837/96
Florindo Pires Salpico (relator)
DR 138/97 SÉRIE I-A, de 1997-06-18


Assento n.º 4/2000

Se, na vigência do CP de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei n.º 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 82.
19.01.2000
Proc. n.º 43 448 - 3.ª
Leonardo Dias (relator)
DR 40 SÉRIE I-A, de 2000-02-17


Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008, D.R. n.º 63, Série I de 2008-03-31
Supremo Tribunal de Justiça
Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Um acórdão interessante - "meio particularmente perigoso"

Transcrição parcial do texto do acórdão da Relação do Porto, de 14.11.2007
( processo 0744042, n.º convencional JTRP00040751, relator: Custódio Silva ),
in www.dgsi.pt:

“…Apreciemos a primeira questão [ não se verifica a autoria, pelo arguido, do crime de ofensa à integridade física qualificada ( arts. 143º, n.º 1, 146º, n.ºs 1 e 2, e 132º, n.º 2, al. g), do C. Penal ), por não se estar face à circunstância modificativa agravante considerada e prevista nos arts. 146º, n.º 2, e 132º, n.º 2, al. g) - utilização de meio particularmente perigoso -, do C. Penal? ].O crime cuja autoria foi imputada ao arguido assenta na verificação de um tipo de culpa agravado, moldado pelos exemplos ( padrão ) previstos no n.º 2 do art. 132º do C. Penal.Sucede que a verificação desses exemplos ( padrão ) não determina, como consequência imediata, a realização de esse tipo de culpa, pois indispensável se torna que, no concreto ( pela delimitação da imagem global do facto, na feliz expressão do ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 2005, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 184, ano XIII, tomo II/2005, Abril/Maio/Junho/Julho, pág. 253 ), os mesmos manifestem uma especial censurabilidade ou perversidade [ ensinamento de Teresa Serra, in Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, págs. 63/65: « como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa; culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito; no artigo 132º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte ( ou a ofensa à integridade física) foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores …; com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade; significa isto, pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder; assim, poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor; especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente …; importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade; a razão da qualificação do homicídio ( ou da ofensa à integridade física ) reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte ( ou a ofensa à integridade física ) foi causada; com efeito, qualquer homicídio simples ( ou ofensa à integridade física simples ), enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o ( a ) comete » ].Ora, no caso, o que os factos enumerados como provados demonstram está longe de revelar que a acção do arguido possa ser tida como especialmente censurável ( a especial perversidade não pode, aqui, ser, sequer, ponderada ), desde logo na relação com a censurabilidade que se manifesta em qualquer crime de ofensa à integridade física perpetrada por instrumento idêntico ( quanto à sua natureza cortante ou perfurante; logo, perigoso; ademais, o mesmo, pelas suas características e pelas finalidades, comuns, a que está adstrito, não provoca na sua utilização especial perigosidade, não se revestindo de muito maior perigo para a integridade física das pessoas do que a generalidade dos meios perigosos que podem ser utilizados em agressões físicas ) àquele que o arguido utilizou.Ou seja, não podemos dizer que o dito instrumento, que é necessariamente perigoso, pela potencialidade específica que tem para provocar ofensa à integridade física, seja, como é indispensável, particularmente perigoso [ como se escreveu no ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 2005, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 184, ano XIII, tomo II/2005, Abril/Maio/Junho/Julho, págs. 253/254, « este há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para provocar danos físicos, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente; estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou muito perigosos ( facas, pistolas, instrumentos contundentes), não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão » ].O que se acaba de dizer até sai reforçado pelo tipo de lesões provocadas ( ferida cortante, de cerca de 15 cm, com atingimento da camada muscular, mas sem lesão pleural - na região anterior do hemitórax direito -, e ferida superficial cortante, com 7 cm de comprimento - terço inferior e anterior do antebraço direito ).Mas não só (e, aqui, mesmo que, por hipótese de raciocínio, concedêssemos estar face a instrumento particularmente perigoso), pois as circunstâncias em que o arguido actuou não permitiam afirmar que a sua acção havia sido especialmente censurável ( está assente: defesa, mesmo que empregando meio excessivo e francamente desmedido ) contra o que tomara como agressão iminente.É certo que, quando se enumeraram os factos provados, a sentença sob recurso veio a consagrar expressamente, que o instrumento utilizado, pelas suas características perfurantes e cortantes era singularmente perigoso.Mas, como é óbvio, por um lado, tendo tal afirmação como conclusão de facto, a mesma jamais podia dispensar a sua valoração jurídica ao nível da integração daquela circunstância modificativa agravante, e, portanto, sempre aquela conclusão, essencial, se tinha de tirar; por outro, se se entendesse que com essa afirmação se queria significar, pura e simplesmente, a verificação da dita circunstância modificativa agravante, então estaríamos face a algo que, por ser de direito, se tinha de considerar, ao nível do facto, como não escrito ( v. o princípio acolhido no art. 646º, n.º 4, do C. de Processo Civil ), o que imporia, igualmente, aquela essencial conclusão.Dito isto, mais se impõe dizer: não se verifica aquela circunstância modificativa agravante e, por isso, o crime de ofensa à integridade física qualificada ( arts. 143º, n.º 1, 146º, n.ºs 1 e 2, e 132º, n.º 2, al. g), do C. Penal )…”.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Procuração Irrevogável ( revogação ) e património autónomo do casal

Inquérito n.º …
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Declaro encerrado o inquérito (artigo 276º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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Os presentes autos tiveram origem na participação criminal apresentada por Maria … contra António …, constante de fls. 1, denunciando factos que, na sua perspectiva, seriam susceptíveis de integrar a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 218.º do Código Penal.
Alegou, em síntese, que sendo casada em comunhão geral de bens com o denunciado, era este que administrava o património comum do casal, comprando e vendendo, em virtude de aquela lhe ter outorgado procurações para o efeito. Em 6 de Março de 2001, a denunciante revogou a procuração que havia outorgado em 7 de Abril de 1981, tendo levado esse facto ao conhecimento do denunciado através de requerimento de notificação judicial avulsa, pela qual foi notificado em 14 de Março de 2001, requerendo ainda a denunciante que fosse notificado que, dessa forma, revogava todas e quaisquer procurações que houvesse outorgado a favor do mesmo.
Acontece que, no dia 7 de Março de 2006, o denunciado vendeu, em nome próprio e em representação da denunciante, à Sociedade …, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial …a favor do denunciado e da denunciante sob o n.º … do Livro …, fls. …, pelo preço de 2.800.000 €, tendo sido representado no acto por Jorge …, a quem havia outorgado procuração, substabelecendo no mesmo documento os poderes conferidos pela denunciante por procuração datada de 23 de Abril de 1981.
Mais alegou que o denunciado não lhe deu conhecimento do negócio, fazendo seu o valor da venda.
Juntou aos autos certidão de casamento, fotocópia certificada do instrumento de revogação, certidão de notificação judicial avulsa, fotocópia certificada da escritura de compra e venda do terreno referido e ainda a procuração e substabelecimento outorgada a Jorge ...

Procedeu-se a inquérito, nos termos do artigo 262º do Código de Processo Penal.

Foi junto aos autos, a fls. 44 a 57, certidão da escritura supra-referida, acompanhada de procuração e certidão que instruíam a escritura, junto a fls. 62 a 65, certidão de teor matricial relativamente ao prédio em causa e a fls. 68 a 70, certidão de casamento respeitante ao casal.
António … foi constituído arguido e interrogado como tal, não tendo prestado declarações, mas protestando juntar prova documental relativamente aos factos.

Inquirido Jorge …, referiu que se deslocou ao Brasil, na qualidade de mediador, para se encontrar com o denunciado para outorgarem a procuração com substabelecimento, não lhe tendo sido exibida a procuração outorgada em 23 de Abril de 1981. Mencionou que, tendo-lhe sido apresentada uma proposta pelo terreno pelo Sr. Paulo …, no mês de Fevereiro de 2006, procurou entrar em contacto telefónico com o arguido, mas quem atendeu o telefonema foi a denunciante, a quem deu conhecimento da existência de um interessado na aquisição do terreno, tendo-lhe esta dado o número de telefone de um Sr. Fernando …, no Brasil, que o poria em contacto com o marido. Não conseguindo entrar em contacto com esse senhor, por mais duas vezes comunicou com a denunciante, que lhe forneceu dois números de telefone, tendo após o último contacto logrado falar com o denunciado. Esclarece ainda que 2-3 dias antes de falar com a denunciante ao telefone, falou com ela pessoalmente à porta da residência a respeito do terreno, tendo-lhe a mesma dito que o assunto da venda do terreno deveria ser tratado com o marido. Afirmou desconhecer se a procuração em causa chegou alguma vez a ser revogada.

Foi inquirido Paulo … que esclareceu que esteve presente na escritura de compra e venda do terreno, desconhecendo se foi apresentada a procuração da denunciante ao denunciado. Referindo ainda que nunca teve contacto com a denunciante e que não teve conhecimento de algum conflito subjacente ao negócio entre o casal. Juntou quatro cópias relativas ao pagamento, acrescentando que 56.000€ foram entregues em dinheiro.

A fls. 90 a 103, veio a testemunha Jorge … juntar documentos relativos ao negócio em causa e cópia do contrato de mediação mobiliária.
A fls. 104 a 330, veio o arguido aos autos, ao abrigo do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal, requerer o arquivamento dos autos, expondo os seus argumentos e apresentando 16 documentos, entre os quais consta a notificação judicial avulsa e certidões relativas a bens imóveis, património comum do casal.

Inquirida M …, notária no Cartório Notarial em que foi realizada a escritura de compra e venda, esta esclareceu que não lhe foi exibida a procuração outorgada no dia 23 de Abril de 1981, referida na procuração e substabelecimento de fl. 52, dado que este documento tinha sido lavrado no Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, pelo que obrigatoriamente tal documento teria sido exibido perante o chanceler que o lavrou, estando assim dispensada a sua apresentação.

Foi inquirida a denunciante Maria … que confirmou a denúncia apresentada, esclarecendo que não se recorda de ter passado alguma procuração com data de 23 de Abril de 1981. Mencionou que recebeu vários contactos telefónicos de pessoas a solicitar o contacto do seu marido, mas que nunca lhe deram conhecimento da existência de interessados na compra do terreno.
Refere que desconhece quem seja Jorge …, e que nunca teria falado pessoalmente com este sobre o terreno, nem com ninguém sobre o mesmo assunto. Acrescenta que o marido nunca lhe deu conhecimento dessa venda, nem o destino dado ao dinheiro da mesma, e que tinha revogado todas as procurações que havia outorgado ao seu marido, através de notificação judicial avulsa, na qual alegou que aquele vinha celebrando negócios que entendia serem prejudiciais.
Mencionou que após a revogação das procurações, todos os negócios celebrados tiveram a sua intervenção pessoal.
Esclarece ainda que não foi proposta qualquer acção judicial para revogação da procuração, mas que existe a notificação judicial avulsa que juntou nesse momento aos autos a respectiva certidão.

Foi ainda inquirido Américo … o qual referiu que nunca contactou directamente com o arguido a respeito da compra e venda do terreno, nem com a denunciante, visto que o negócio se realizou com a mediação da Imobiliária …. Acrescentou que o terreno foi pago com um cheque, a cujo valor acresceram 56.000 €.

Apreciando:

I – A denunciante Maria … participou criminalmente de António … imputando-lhe a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 218º do Código Penal.
Da análise deste tipo legal resulta que são três os requisitos deste tipo legal de crime, a saber:
a) a intenção do agente de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo;
b) que o mesmo, com tal objectivo, astuciosamente induza em erro ou engano o ofendido sobre os factos;
c) assim o determinando à prática de actos que causem prejuízo patrimonial a si, ou a outra pessoa.
No crime de burla exige-se, desta forma, um triplo nexo de causalidade, nomeadamente, que a astúcia seja a causa do erro ou engano; que o erro ou engano sejam a causa da prática de actos pela vítima e que da prática dos actos resulte um prejuízo patrimonial para a vítima ou para terceiro.
No que à dimensão subjectiva concerne, exige-se que o agente tenha actuado com dolo, ou seja, que conheça estar a actuar fraudulentamente, sabendo que os meios engenhosos que utiliza são adequados a induzir o burlado em erro ou engano e idóneos a que o burlado consinta, consequentemente, na espoliação do seu património ou de terceiro, resultado este pretendido pelo agente.
Além do dolo genérico o tipo subjectivo do crime de burla é ainda constituído pela intenção de enriquecimento ilegítimo à custa do património alheio, devendo o agente ter consciência da ilegitimidade desse enriquecimento.
Nos termos do artigo 218º, nº 1 e 2 do Código Penal, a burla é qualificada se o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado. No caso em apreço, a verificar-se a prática do ilícito, tendo em conta que a venda realizada teve o preço declarado de 2.800.000 €, o crime será punível pela alínea a), do nº 2 do referido artigo, dado o valor exceder 200 unidades de conta (artigo 202º, alínea b) do Código Penal).
O crime de burla qualificada é um crime público, e como tal, independente de queixa ou acusação particular.

Feitas estas considerações, e sopesando os elementos probatórios constantes dos autos, verifica-se, com efeito, que os factos denunciados não configuram a prática de um crime de burla qualificada, nomeadamente não preenchem um dos elementos típicos do ilícito – o processo astucioso empreendido pelo agente, isto é, a utilização pelo mesmo de meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano na vítima.

Desde logo, importa ter presente que o arguido e a denunciante são casados em comunhão geral de bens e que o bem imóvel em causa é um bem comum do casal.
Neste regime de bens, de acordo com o artigo 1732º do Código Civil, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei (sobre os bens incomunicáveis – cfr. artigo 1733º do Código Civil).
Os bens comuns do casal constituem um património autónomo especialmente afecto aos encargos da sociedade conjugal, nos termos do artigo 1724º do Código Civil.
Não se trata de um regime de compropriedade, este envolvido pelo interesse individual dos comproprietários, que podem requerer a divisão da coisa comum, dado aí existirem vários direitos que incidem sobre toda a coisa, mas trata-se de uma propriedade colectiva, afecta aos encargos da sociedade conjugal, insusceptível de divisão enquanto durar o casamento.
É, com efeito, a contitularidade de duas pessoas num mesmo direito que, além de único, é uno, o que se consubstancia em comunhão una, indivisível e sem quotas.
Para que um dos cônjuges possa alienar, de forma eficaz, um bem integrante deste património autónomo do casal, necessário se torna o consentimento do outro cônjuge, nos termos do artigo 1682º-A, nº 1, alínea a) do Código Civil, consentimento cuja forma exigida é a mesma que para a procuração, ou seja, a forma exigida para o negócio a realizar (artigos 1684º, nº 2 e 262º, nº 2 do Código Civil).

No caso em análise, o arguido detinha várias procurações que tinham sido outorgadas pela sua mulher, a denunciante, que lhe autorizavam a alienar os bens comuns do casal, nomeadamente os bens imóveis.
Acontece que a denunciante, em 6 de Março de 2001, fez menção de revogar uma procuração outorgada em 7 de Abril de 1981, dando conhecimento do facto ao arguido em 14 de Março de 2001, através de notificação judicial avulsa, na qual dá conhecimento que, por aquele acto, igualmente revogava todas e quaisquer procurações outorgadas em favor do arguido.
Nos termos do artigo 265º, nº 2 do Código Civil, a procuração é livremente revogável pelo representando, independentemente de convenção em contrário. No entanto, o nº 3 do referido artigo, dispõe que, se a procuração tiver sido outorgada também no interesse do procurador, a revogação carece de consentimento deste, salvo em caso de justa causa.
A lei não define o “interesse do mandatário ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão do princípio geral da irrevogabilidade da procuração, sendo de atender, normalmente, à “relação jurídica em que a procuração se baseia”[1]. Desta forma, o interesse do procurador deve aferir-se pela sua integração numa “relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário tenha direito”[2], auferindo uma vantagem de ordem económica ou jurídica.
No caso em apreço, a procuração em causa foi outorgada também no interesse do arguido, pois os bens imóveis abrangidos no objecto da procuração, visando a sua compra e venda, são bens comuns do casal, pelo que o arguido passou a desempenhar uma actividade que se repercutiu directamente na sua esfera patrimonial, visto que é directamente interessado no produto da venda dos aludidos bens imóveis.

Ora, a denunciante ao revogar a procuração outorgada em 7 de Abril de 1981, não beneficiou do consentimento do arguido, consentimento esse exigido para tal revogação, tendo em conta que a procuração havia sido outorgada igualmente no interesse do arguido, seu cônjuge.
A tal acresce o facto de a notificação judicial avulsa não ser o meio adequado para revogar as procurações mencionadas no artigo 265º, nº 3 do Código Civil, posto que não admite qualquer oposição, de acordo com o disposto no artigo 262º, nº 1 do Código de Processo Civil, só podendo fazer-se valer os direitos respectivos nas acções competentes, no caso numa acção revogatória.

Alega a denunciante justa causa para retirar os poderes conferidos ao arguido, dizendo que o arguido vinha celebrando negócios que entendia serem prejudiciais para seu interesse, contudo não cabe aqui apreciar dessa justificação, mas sim numa acção judicial especialmente intentada para o efeito, isto é, numa acção revogatória. Acção essa que a denunciante refere não ter intentado. Ao que acresce o facto dos efeitos produzidos por essa acção não serem retroactivos, operando apenas para o futuro, visto se tratarem de efeitos “ex nunc”.

Destarte, a procuração outorgada em 23 de Abril de 1981, utilizada no negócio aqui em causa, há-de ser tida como ainda válida e eficaz à data do substabelecimento dos poderes por ela conferidos, bem à data da celebração da escritura de compra e venda do terreno.
Deste modo, o arguido ao substabelecer em Jorge … os poderes conferidos pela procuração outorgada pela sua esposa em 23 de Abril de 1981, que lhe conferia poderes especiais para venda de imóveis, agiu em conformidade com a posição que a referida procuração lhe concedia, ao momento ainda válida e eficaz.
Por outro lado, a existência e conformidade legal da procuração datada de 23 de Abril de 1981 não se põe em causa, em virtude de ter sido exibida e controlada pelo chanceler do Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, aquando do substabelecimento dos poderes por ela conferidos.

Nada nos autos permite inferir que o arguido tenha descrito, perante quem quer que seja, uma falsa representação da realidade, arrogando-se de poderes de procurador da sua esposa Maria …, tentando, assim, fazer cair a denunciante ou outrem em erro ou engano, ardilosamente provocado, pois o arguido detinha, efectivamente, esses poderes e agiu tendo em vista o que esses mesmos poderes lhe possibilitavam.

A tudo isto acresce, embora sem grande relevância para a questão, o conhecimento prévio do negócio pela denunciante, que além disso, reencaminhava para o arguido todos aqueles que a contactavam para discutir a venda do terreno em causa, como foi mencionado pela testemunha Jorge …, cujas declarações se afiguraram verosímeis, não obstante a denunciante ter negado que alguma vez tivesse sido contactada por aquele.

Conclui-se assim que, no caso em apreço, não existem factos que consubstanciem a prática de um crime de burla qualificada pelo arguido António …, designadamente por não estarem preenchidos os elementos objectivos do tipo de burla.

Pelo exposto, determino o arquivamento dos autos, nesta parte, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 1 do Código do Processo Penal.

II – Importa ainda averiguar, pelo facto de a denunciante ter referido que não foi dado “destino a dinheiro” proveniente da venda, se a conduta do arguido consubstancia a prática de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punível pelo artigo 205º, nº 1 e nº 4, alínea b) do Código Penal, dado que o valor da venda foi de 2.800.000 €.

O crime de abuso de confiança consiste na apropriação ilegítima de qualquer coisa móvel, que ao agente tenha sido entregue, de forma lícita e voluntária, com um fim que o obrigaria a restituir essa coisa ou um valor equivalente.
Exige-se que o agente actue com dolo, consistindo o mesmo no facto de ter consciência de que deve restituir, apresentar ou aplicar a coisa a um determinado fim, e que queira apropriar-se dela, integrando-a no seu património ou dissipando-a.
O crime de abuso de confiança qualificado é um crime de natureza pública, pelo que não depende de queixa.

Desde logo há que ter em conta o que supra se referiu acerca do património autónomo do casal, visto este se tratar de uma propriedade colectiva, insusceptível de divisão enquanto durar o casamento, pelo que o produto da venda do terreno veio a integrar-se nesse património.
Por esta via, tratando-se de um bem em que incide um único direito em contitularidade pelo arguido e pela denunciante, enquanto a relação matrimonial subsistir, o bem comum mantém essa qualidade, pelo que a quantia fica sujeita à regra da administração conjunta, de acordo com o preceituado no artigo 1678º, nº 2 do Código Civil.
Em regra, nos termos do artigo 1681º, nº1 do Código Civil, o cônjuge administrador não é obrigado a prestar contas da sua administração, em virtude da recíproca confiança e pela própria estrutura da relação patrimonial, só respondendo pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.
No entanto, quando a administração dos bens comuns por um dos cônjuges se fundar em mandato ou quando praticar actos de administração de bens comuns que lhe não caiba, sem mandato escrito, mas com o conhecimento e sem oposição expressa do outro cônjuge, a dispensa de prestação de contas não se verifica e o cônjuge administrador tem de prestar contas e entregar o respectivo saldo, caso o haja, somente em relação aos actos praticados durante os últimos cinco anos (artigos 1681º, nº 2 e 3 do Código Civil)[3].
A acção de prestação de contas, nos termos do disposto o artigo 1014º do Código de Processo Civil, pode ser proposta por que tenha o direito de exigi-las e por quem tenha o dever de prestá-las, tendo por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que se venha a apurar. Por via do disposto no artigo 1681º, nº 2 e 3 do Código Civil a prestação de contas pode abranger igualmente os bens de que o obrigado a prestar contas também seja titular, como é o caso dos bens comuns do casal, nos casos aí referidos[4].
Caso venha a ser pedida responsabilidade ao cônjuge administrador relativamente a um bem comum, e em caso de apuramento de saldo, surge aí um direito de crédito em favor do cônjuge não administrador. Contudo, tal crédito só passa a ser exigível no momento da partilha, conforme interpretação sistemática do artigo 1697º do Código Civil (neste sentido, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família, Volume I, p. 382 e seguintes).

Ora, consultada a Acção de Separação Litigiosa n.º …, que corre termos no … Juízo do Tribunal Judicial de …, constata-se que o arguido e a denunciante encontram-se em processo de separação judicial de pessoas e bens, ao qual se encontra apenso procedimento cautelar de arrolamento dos bens comuns do casal.
A referida acção foi proposta em 12 de Outubro de 2006, sete meses após a realização do negócio e da entrada da quantia no património comum.
No entanto, a pendência da acção de separação de pessoas e bens não habilita um dos cônjuges a pedir ao outro prestação de contas a respeito de um bem comum, fora dos casos mencionados supra[5].
De acordo com o preceituado no artigo 1795º – A do Código Civil, a separação produz os mesmos efeitos que produziria a dissolução do casamento, nos termos do artigo 1789º, nº 1 do Código Civil. Deste modo, é desde a data da propositura da acção de separação de pessoas e bens que se produzem os consequentes efeitos patrimoniais, pelo que apenas é exigível qualquer crédito, a proceder a acção, no momento da partilha como já referido.

Sucede, porém, que a denunciante não propôs sequer qualquer acção de prestação de contas de forma a apurar tal direito de crédito, apesar de ainda o poder fazer relativamente a actos praticados nos cinco anos antecedentes à data da eventual propositura da acção de prestação de contas.
Por outro lado, não logrou ainda obter a procedência da acção de separação de pessoas e bens.
Ainda assim se frisa que caso se verificasse a propositura da acção de prestação de contas e subsequente procedência, o direito a surgir seria meramente um direito de crédito, pelo que só após a separação e subsequente partilha, tal direito seria exigível, como já mencionado.
Só a partir da divisão e partilha, os bens deixariam de ter a sua estrutura inicial de bens comuns, posto que, desde a separação até à respectiva partilha, o património de mão comum passa à situação de indivisão, não se transmutando, nem confundindo com a figura da compropriedade[6].

Em face deste regime actual de responsabilidade pela administração, que deixa de fora situações de lesão ou perigo para o património do outro cônjuge, o cônjuge não administrador fica, de certa forma, desprotegido num conjunto de situações que carecem de tutela legal.
O direito francês já prevê uma norma de aplicação nestes casos, em que os tribunais emitem interdições ou injunções positivas de praticar certos actos, com o intuito de evitar a produção de um dano e por um período limitado.
No entanto, o direito português ainda não prevê essa situação, pautando-se por uma posição de comedimento relativamente a estas implicações da sociedade conjugal.

Sempre se dirá que o processo penal, com a sua estrutura diferenciada e veiculada por princípios diversos, não é o indicado para fazer valer esses direitos, designadamente, a prestação de contas, nem pode servir para se conseguirem efeitos patrimoniais que não se lograriam obter numa acção cível, substituindo-se ou até mesmo sobrepondo-se ao processo civil.
Tratar-se-ia de uma forma transversal de contornar uma eventual improcedência de uma acção de prestação de contas e o uso do processo-crime não tem, nem deverá ter essa finalidade.

Atendendo à presente factualidade apurada e às considerações expendidas, verifica-se que inexiste qualquer apropriação ilegítima ou qualquer dolo por parte do arguido, não se preenchendo o elemento objectivo ou subjectivo do tipo legal do crime de abuso de confiança qualificado.

Pelo exposto, determina-se o arquivamento dos presentes autos, ao abrigo do preceituado no artigo 277.º, n.º 1 do Código Processo Penal.
___________________________________________________________________
Cumpra o disposto no artigo 277, nº 3, do C. P. Processo Penal.
___________________________________________________________________
Comunique superiormente o presente despacho, nos termos, ponto V, nº 4, da Circular 6/2002.
___________________________________________________________________

(processei, imprimi, revi e assinei o texto, seguindo os versos em branco – artigo 94º, nº2 do Código de Processo Penal)

Local/Data

O Procurador-Adjunto

[1] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.01.1990, B.M.J 393-588.
[2] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.06.1997, BMJ 469-361.
[3] Vide Acórdão da Relação de Lisboa de 31.10.1996, BMJ J 460-790, onde se lê que “Fora da previsão do nº 1 do artigo 1681º do Código Civil, designadamente nas situações a que se reportam os seus nºs 2 e 3, a lei não contempla a dispensa de prestação de contas por parte do cônjuge administrador”.
[4] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.02.2005, Processo nº 04B4671, in www.dgsi.pt.
[5] Vide neste sentido, relativamente a uma acção de divórcio, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.98, Processo nº 98B500, in www.dgsi.pt.
[6] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2004, Processo 05B2720, in www.dgsi.pt.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Validação de Apreensão - um acórdão interessante ...

Acórdão da Relação do Porto, de 07.11.2007
Processo 0745888
N.º Convencional: JTRP00040732

Sumário:

O prazo máximo de 72 horas referido no nº 5 do art. 178º do Código de Processo Penal é o prazo para a apresentação das apreensões à autoridade judiciária, e não para a sua validação.


TEXTO DO ACÓRDÃO:

O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA) - no processo n.º 5888/07 - com os juízes Artur Oliveira (relator), Maria Elisa Marques e José Piedade, - após conferência, profere, em 7 de Novembro de 2007, o seguinte
ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO
1. No processo comum (tribunal singular) n.º ……/05.6GAVLG, do ..º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Valongo, o arguido ………………. foi notificado da acusação que lhe atribui a prática de um crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar e requereu a abertura da instrução invocando, além do mais, a “invalidade das apreensões” por não terem sido “validadas” pelo Ministério Público dentro do prazo legal fixado pelo artigo 178.º, n.º 5, do Código de Processo Penal [fls. 15-17]. 2. A decisão instrutória “indeferiu a requerida declaração de invalidade das apreensões” [fls. 25] e pronunciou o arguido pelos factos e enquadramento jurídico constante da acusação [fls. 29].3. Inconformado, o arguido recorre, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [fls. 36-37]: «A. O recorrente pretende colocar em crise a decisão de fls. … que indeferiu a arguição da nulidade / irregularidade de validação extemporânea das apreensões efectuadas nos presentes autos;
B. As apreensões efectuadas nos presentes autos não foram autorizadas nem ordenadas, pelo que tinham obrigatoriamente que ser validadas pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas [Art. 178º/3 e 5 do CPP];
C. A apreensão das máquinas foi efectuada pelos OPC no dia 31.03.2005, [Vide auto de apreensão de fls. 11] e o despacho de validação da apreensão foi proferido pelo Ministério Público em 07.04.2005, ou seja, 07 dias após a sua concretização;
D. A apreensão foi validada muito para lá das setenta e duas horas que a lei impõe como prazo máximo para a sua validação legal - art. 178º/5;
E. prazo de 72 horas não é o prazo dentro do qual os OPC têm de remeter ao MP as apreensões para validação, mas o prazo dentro do qual o MP deve validar as apreensões que não foram por si autorizadas ou ordenadas;
F. Os direitos constitucionalmente consagrados só podem ser ofendidos, ultrapassados se existir um controlo efectivo por parte do órgão/entidade a quem a própria comunidade confiou essa actividade fiscalizadora, ou seja, o MP - art. 219º/1 CRP; --
G. Daí a imposição do prazo de setenta e duas horas, não só para sujeição mas também para validação das apreensões pela autoridade judiciária.
H. A interpretação do art. 178º/5 feita pelo tribunal "a quo" é ilegal e inconstitucional, porquanto viola as regras de competências e atribuições legais dos sujeitos processuais, nomeadamente o art. 53º/1 e 2, o art. 55º/1 e 2, o art. 264º/1, todos do CPP, e ainda o art. 219º da CRP, provocando uma subversão e uma adulteração dessas mesmas atribuições;
I. O art. 178º/5 do CPP é inconstitucional, por violação do art. 32º da CRP, quando interpretado no sentido de "o prazo das 72 horas não ser para a autoridade judiciária validar as apreensões, mas para o OPC lhe comunicar as apreensões.
J. Sendo declaradas nulas/irregulares as apreensões de fls. 11, também têm que ser todos os actos que dependem delas – 122º/1 e 121º/1 do CPP.
4. Na resposta, o Ministério Público refuta todos os argumentos do recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 40-43]. O Exmo. procurador-geral-adjunto não emitiu parecer [fls. 48].
5. Dos elementos disponíveis nos autos está demonstrado o seguinte: . em 31 de Março de 2005, pelas 23H15, ocorreu a apreensão [de duas máquinas de jogo tipo ‘video-poker’] – auto de apreensão/termo de entrega de fls. 2;
. em 4 de Abril de 2005, os objectos apreendidos foram entregues nos Serviços do Ministério Público [dia 3 – Domingo (art. 279.º, alíneas c) e d), Código Civil)];
. em 7 de Abril de 2005, foi proferido despacho a validar tal apreensão – fls. 4.
II – APRECIAÇÃO
6. A única questão suscitada pelas conclusões do recurso é relativa ao prazo de 72 horas fixado pelo artigo 178.º, n.º 5, do Código de Processo Penal: saber se tal prazo visa a sujeição ou a validação da apreensão efectuada. 7. A resposta acha-se, como não podia deixar de ser, no texto da norma citada – que estabelece:
«As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas»
8. “São sujeitas a validação… no prazo máximo de setenta e duas horas”; não necessariamente “validadas” no prazo máximo de setenta e duas horas.
9. O que se compreende: o prazo fixado destina-se a pressionar a rápida comunicação da apreensão à autoridade judiciária, uma vez que ela não teve conhecimento directo da sua realização [não a ordenou ou autorizou]. Como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-05-2007 [Relator: Pereira Madeira]: “Tal prazo tem tão-somente por escopo controlar os actos processuais com reflexos sobre direitos, nomeadamente sobre o direito de propriedade, impondo-se à autoridade que tome posição sobre o motivo das apreensões levadas a cabo de forma a evitar que se conservem apreendidos bens cuja apreensão já se não legitime. Parece-nos que deste normativo não advém de forma directa quaisquer direitos para os titulares dos bens apreendidos” – processo 07P1231, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/Pesquisa+Campo?OpenForm, acedido em Novembro de 2007.
10. Esta é, aliás, a regra de procedimento nos restantes “meios de obtenção de prova”. De facto, nas revistas e buscas a lei estipula que a realização da diligência seja “imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação” – artigo 174.º, n.º 6 e 177.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Também o formalismo das escutas prevê que a autorização especial obtida nos termos do artigo 187.º, n.º 2, seja levada ao conhecimento do juiz do processo “no prazo máximo de setenta e duas horas” – n.º 3, do artigo citado.
11. Como se vê, a preocupação da lei é fixar um prazo curto para a comunicação da realização da diligência à autoridade judiciária.
12. Assim, concluímos – tal como o faz o Acórdão desta secção, de 17-01-2007, [Custódio Silva], processo 0644955, em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/Pesquisa+Campo?OpenForm, acedido em Novembro de 2007 – que o prazo de setenta e duas horas referido no artigo 178.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, não é o prazo para a validação das apreensões mas para a apresentação das apreensões à autoridade judiciária com vista à sua validação.
13. Que o prazo fixado é para a comunicação da diligência resulta, também, do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/07.
14. E não se diga que tal interpretação é inconstitucional. Desde logo, o recorrente não especifica em que termos é que este entendimento viola garantias de defesa do arguido em processo penal. Com o refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/01 – num caso em que também se argúi a inconstitucionalidade desta norma: “Não basta, com efeito, acusar uma norma de violar um preceito constitucional para se considerar justificada tal alegação (…)”. Na verdade, o recorrente não concretiza que garantias de defesa do arguido são lesadas por esta aplicação/interpretação da norma; e não concretiza porque, como vimos, não viola qualquer direito de defesa reconhecido e tutelado.
15. Improcedem, pois, os argumentos do recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto, os juízes acordam em:
- Negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente B…………….., mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 [cinco] UC. [Elaborado e revisto pelo relator]Porto, 7 de Novembro de 2007Artur Manuel da Silva OliveiraMaria Elisa da Silva Marques Matos SilvaJosé Joaquim Aniceto Piedade

Competência - um acórdão interessante ...

Acórdão da Relação do Porto, de 19.11.2007
Processo 0753431
N.º Convencional: JTRP00040777
Relator: Paulo Brandão

Sumário:

I - Findo que está o processo de Regulação do Poder paternal de menor, não faz sentido apensar-lhe processo Tutelar Cível contra o mesmo entretanto suscitado. Neste caso, a competência é definida pela distribuição deste processoII - O despacho de atribuição de competência promulgado num processo, se não atacado apenas produz caso julgado material, fixando definitivamente a competência nos termos do n.º2 do art. 111.º do CPC.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Seguro Automóvel e Recusa ao Teste de Despistagem de Álcool no Sangue

Acórdão do S.T.J., de 13.11.2007
Processo: 07A3584
N.º Conveniconal: JSTJ000
Relator: Faria Antunes

Sumário:

I- Impendendo sobre a Companhia de Seguros, em ordem a excluir a sua responsabilidade, o ónus de provar que o condutor do veículo segurado estava sob o efeito do álcool no momento do acidente e que este estado foi causal da ocorrência do mesmo, dá-se a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2 do Código Civil, se aquele condutor se recusar a efectuar o teste de alcoolémia, passando a recair sobre o segurado o encargo de fazer a demonstração de que a condução não estava a ser feita sob influência do álcool.
II- Tal sucede também no caso de o veículo pertencer a uma sociedade por quotas de que condutor era sócio gerente, até porque, fazendo ele parte do órgão de administração e representação da sociedade segurada, de que era elemento, incumpriu o dever acessório de cooperação, ao impedir a fiscalização do cumprimento da obrigação contratual de não conduzir sob a influência do álcool.

Acusação + Pedido Cível

(…)

O Ministério Público acusa em processo comum e para julgamento por tribunal de estrutura singular, ao abrigo do disposto no artigo 16º, nº 3 do Código de Processo Penal:

.João …,

porquanto,

No dia 23.03.07, pelas 15h50, na Rua …, o arguido, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros, marca …, com a matrícula …, apercebendo-se da perseguição movida pela viatura descaracterizada da Polícia de Segurança Pública, mas com o sinal rotativo ligado, acelerou a marcha em direcção à Estrada Nacional …, não parando perante o sinal STOP aí existente. Continuando a sua marcha, na localidade de …, o arguido não parou perante um sinal luminoso de cor vermelha e seguiu a velocidade não inferior a 100 km/h, em local de velocidade permitida de 50 km/h.
Junto à Escola …, o arguido, ignorando o sinal de sentido proibido, entrou em sentido contrário.
O arguido não possuía carta de condução, nem qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir.

No dia 17 de Abril de 2007, pelas 13h50, na Rua …, o arguido conduzia o ciclomotor “tipo Scooter”, com a matrícula …, sem qualquer capacete de protecção. Apercebendo-se da presença da viatura descaracterizada da Polícia, o arguido pôs-se em fuga. Na verdade, o arguido não possuía licença de condução de ciclomotores, nem qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir.

No dia 8 de Maio de 2007, pelas 2h30, na Rotunda …, o arguido conduzindo o veículo ligeiro de passageiros supra-identificado, e transportando Cristina …, id. a fls. 22, Henrique …, id. a fls. 23, Filipe …, id. a fls. 24, circulava com as luzes de cruzamento (médios) desligadas.
Por tal motivo, o veículo descaracterizado da Polícia de Segurança Pública, com a matrícula …, moveu-lhe perseguição, seguindo na sua retaguarda, tendo ligado o rotativo policial, junto à rotunda ...
Ao aproximar-se do veículo do arguido, pela via da esquerda da faixa de rodagem, no início de uma ligeira curva à esquerda, este guinou na direcção do veículo policial e seguiu a sua marcha.
Cerca de 100 metros, na sequência da tentativa do veículo policial se colocar ao lado do veículo do arguido, de forma a que o agente da PSP colocasse a raquete de sinalização para o obrigar a parar, o arguido guinou novamente na direcção daquele veículo, indo embater com a parte lateral esquerda na parte lateral direita da viatura policial, empurrando-o contra o separador central em betão e continuou a sua marcha.
Foi movida perseguição até à Rotunda …, e sem que nada o fizesse prever, o arguido, com o propósito de se colocar em fuga, saindo do veículo, travou bruscamente à frente do veículo policial, indo este embater na traseira do veículo do arguido.
Acto seguido, o arguido abandonou o seu veículo e fugiu em direcção a um pinhal, sendo seguido pelo agente da Polícia de Segurança Pública Eduardo …, que foi no seu alcance, vindo a interceptá-lo num canavial a cerca de 500 metros do local do embate.
Aí, quando o referido agente da PSP procedia à sua imobilização e detenção, o arguido desferiu-lhe vários murros e pontapés e mordeu-o no dedo médio da mão esquerda.
Como consequência directa e necessária do embate, o agente António … foi assistido no Serviço de Urgência do Hospital … e sofreu as lesões melhor descritas nos relatórios de perícia de avaliação do dano corporal, junto a fls. 112 a 114 e 156 a 157, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que lhe determinou um período de doença de 8 dias, todos com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
Ainda como consequência directa e necessária da conduta posterior do arguido, o agente Eduardo … foi assistido no Serviço de Urgência do Hospital … e sofreu as lesões melhor descritas no relatório de perícia de avaliação do dano corporal, junto a fls. 85 a 87, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que lhe determinou um período de doença de 7 dias, todos com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
Ainda em resultado do embate, o veículo policial sofreu danos na frente e lateral esquerda e direita, designadamente no capôt, na frente, no guarda-lamas, na óptica esquerda e direita, no pára-choques, no radiador ar condicionado, no radiador água, na carga ar condicionado, no canto farol chapa, na tampa espelho direito, no jogo juventos, no farolim pisca, nos frisos porta direita 23,28x2, e ainda amolgadelas na chapa e na pintura, cuja reparação ascendeu a 3.218,23 € (três mil e duzentos e dezoito euros e vinte e três cêntimos), conforme documento junto a fls. 116 dos autos.
O arguido não possuía carta de condução, nem qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir.
Não possuía, ainda, qualquer seguro de responsabilidade civil obrigatório válido e eficaz do veículo supra-referido.

No dia 21 de Maio de 2007, pelas 14h45, o arguido conduzia o ciclomotor com a matrícula … na Rua … em direcção à Praça ... . Tendo-se apercebido do veículo descaracterizado da Polícia de Segurança Pública, o arguido acelerou a marcha do ciclomotor e pôs-se em fuga, circulando em sentido contrário ao do trânsito na Praça ...
De facto, o arguido não possuía licença de condução de ciclomotores, nem qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir.

No dia 14 de Junho de 2007, pelas 12h40, na Avenida …, em …, o arguido conduzia o ciclomotor referido, não possuindo ainda licença de condução de ciclomotores, nem qualquer documento que o habilitasse a conduzir.

O arguido bem sabia que não tinha documento que o habilitasse a conduzir e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículos a motor na via pública, não se coibindo de o fazer nas situações referidas, o que representou.
O arguido bem sabia ainda que não estava a cumprir com as regras estradais, no dia 8 de Maio de 2007, pelo que não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, colocando em perigo o veículo policial, as pessoas que consigo circulavam e ainda os agentes da Polícia de Segurança Pública, causando as lesões supra descritas em António …
Agiu igualmente de forma livre com o propósito concretizado, através do emprego da violência supra descrita dirigida contra o agente de autoridade policial Eduardo Fernandes, de se eximir ao cumprimento dos comandos que aquele lhe queria impor, assim pondo em causa a autoridade subjacente ao mesmo, o que representou.
Sabia também que não podia conduzir a velocidade superior a 50 km/h nas localidades, no entanto, agiu de forma livre não se coibindo de exceder tal limite em mais de 50km/h, o que representou.
O arguido sabia que devia respeitar os sinais de cedência de passagem e os sinais luminosos, que devia proteger a cabeça usando capacete e que, de noite, devia ter as luzes de cruzamento ligadas, no entanto agiu de forma livre, não se coibindo de não respeitar tais regras, o que representou.
Sabia ainda que não podia circular em sentido oposto ao estabelecido, no entanto, agiu de forma livre não se coibindo de desrespeitar tal regra nos dias 23 de Março e 21 de Maio de 2007, o que representou.
O arguido sabia igualmente que não podia transitar na via pública sem possuir seguro válido de responsabilidade civil relativo ao seu veículo automóvel e que desta forma incorria em responsabilidade contra-ordenacional.

Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Cometeu, pelo exposto, em autoria material, na forma consumada e em concurso real e efectivo:

- dois crimes de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, com referência ao artigo 121º, nº 1 do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 03.05, na redacção do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23.02;

- três crimes de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, com referência ao artigo 121º, nº 1 do Código da Estrada;

- um crime de condução perigosa, previsto e punível pelos artigos 291º, nº 1 alínea b) e nº 2 e 69º, nº 1 alínea a), ambos do Código Penal;

- um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelos arts. 15º, al. b), e 148º, n.º 1, do Cód. Penal ( em relação ao agente António Cardoso );

- um crime de resistência e coacção, previsto e punível pelo artigo 347º do Código Penal;

- uma contra-ordenação, prevista e punível pelos artigos 27º, nº 1 e 2, alínea a), 3º ponto, 146º, alínea i) e 147º, nº 2 e 3 do Código da Estrada,

- uma contra-ordenação, prevista e punível pelos artigos 21º e 23º, alínea a) do Decreto-Lei nº 22-A/98, de 1 de Outubro e artigos 146º, alínea n) e 147º, nº 2 e 3 do Código da Estrada;

- uma contra-ordenação, prevista e punível pelo artigo do 69º, nº 1, alínea a) e 76º, alínea a) do Decreto-Lei nº 22-A/98 de 1 de Outubro e artigos 146º, alínea l) e 147º, nº 2 e 3, do Código da Estrada;

- uma contra-ordenação, prevista e punível pelos artigos 82º, nº 3 e 6 do Código da Estrada;

- uma contra-ordenação, prevista e punível pelos artigos 61º, nº 1 alínea b) e 5 do Código da Estrada;

- duas contra-ordenações, previstas e puníveis pelos artigos 13º, nº 1 e 4, 145º, nº 1, alínea a) e 147º, nº 2 e 3 do Código da Estrada;

- uma contra-ordenação, prevista e punível pelos artigos 150º, nº 1 e 2, 145º, nº 2 e 147º, nº 2 e 3 do Código da Estrada.

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Atentas as respectivas moldura penal seria competente para o julgamento o tribunal de estrutura colectiva (artigo 14.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal).
No entanto, atendendo à idade do arguido, ao prejuízo que provocou, ao tipo de lesões sofridas pelos ofendidos e ao princípio da proporcionalidade das penas, não obstante as condenações anteriores do mesmo, entende-se que, com razoabilidade, em concreto, não será de aplicar àquele pena superior a cinco anos de prisão, pelo que, nos termos do nº 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal, se deduz acusação para julgamento com intervenção do tribunal de estrutura singular.
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PROVA

- Documentos:
- fls…;

- Exames:
- Relatórios de exame pericial juntos a fls. … dos autos.

- Testemunhas:
(…)
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Estatuto processual do arguido:
(…)
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Consigno que o ofendido Eduardo … é beneficiário n.º ...
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Mantêm-se como defensora do arguido, a Sra. Dra. …, nomeada a fls. 65 dos autos (artigo 66º, nº 4 do Código de Processo Penal).
Comunique, informando o arguido de que fica obrigado, caso seja condenado, a pagar os honorários da defensora oficiosa, salvo se for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição desse defensor, mediante a constituição de advogado (artigo 64º, nº 4 do Código de Processo Penal).
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Cumpra o disposto no artigo 283º, nº 5 do Código de Processo Penal.
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Notifique ainda o arguido com a advertência que pode pagar as coimas correspondente às contra-ordenações, no prazo de 15 dias, pelo mínimo de 1624,58 € (300€ – excesso de velocidade, 99,76€ – sinal de cedência de passagem, 74,82€ – sinal luminoso, 120€ – uso de capacete, 30€ – luzes de cruzamento, 250€ x 2vezes – circulação em sentido contrário, 500 € - seguro de responsabilidade civil), nos termos do disposto no artigo 172º, nº 1 e 2, sem prejuízo do disposto no nº 4, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro.
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Cumpra o disposto no nº 2, do artigo 6º do Decreto-lei 218/99, de 15 de Junho, notificando o Hospital ..., para querendo, no prazo de 20 dias, vir aos autos deduzir pedido de indemnização cível.
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Comunique superiormente o presente despacho ( na totalidade ), uma vez que existem agentes da Polícia de Segurança Pública ofendidos.
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Pedido Cível

O Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 1º, 3º, nº 1, alínea a), e 5º, nº 1, alínea a) da Lei nº 60/98, de 27.08, e artigos 71º, 73º, n.º 1, 74º, n.º 1, 76º, n.º 3, 77º, n.º 1 e 5, e 79º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, vem em representação do Estado deduzir pedido de indemnização civil contra:

1. João …, identificado na acusação que antecede, e

2. Fundo de Garantia Automóvel, unidade orgânica departamental do Instituto de Seguros de Portugal, com sede na Av. da República, n.º 59 – 4º e 5º pisos, 1050-189 Lisboa;


nos termos e nos seguintes fundamentos:



Para efeitos do presente pedido cível dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos da acusação.



Por força do embate causado pelo veículo … conduzido pelo Réu, o veículo policial de matrícula … sofreu estragos na frente e lateral esquerda e direita, designadamente os danos descritos na acusação que antecede.



Com a reparação dos danos causados no veículo policial despendeu o Estado Português a quantia de 3.218,23 € (três mil e duzentos e dezoito euros e vinte e três cêntimos), conforme documento junto a fls. 116, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.



Além disso, na sequência das agressões perpetradas, o agente da Polícia de Segurança Pública Eduardo … sofreu as lesões melhor descritas no relatório médico, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.



Assim, ficou impossibilitado de trabalhar desde 8 de Maio a 17 de Maio de 2007.



Não tendo, durante tal período, prestado qualquer serviço.



Porém, a Polícia de Segurança Pública pagou-lhe, relativamente a tais dias, as seguintes quantias, assim discriminadas (Documento junto a fls. 123):
- vencimento: 351,74 €;
- suplemento: 60, 85 €;
- fardamento: 1,83 €;
- subsídio de alimentação: 20,15 €;
- subsídio de Natal: 34,39 €;
- suplemento de patrulha: 56,26 €;
- Suplemento de turno: 40,40 €.



Perfazendo a quantia total de 600,01 € (seiscentos euros e um cêntimo).



Despendeu ainda a quantia de 30,54 € (trinta euros e cinquenta e quatro cêntimos), referentes a duas consultas médicas no Posto Clínico da Policia de Segurança Pública de …
– Documento junto a fls. 124 a 127 dos autos.

10º

No montante global, relativamente a tais danos, de 630,55 € (seiscentos e trinta euros e cinquenta e cinco cêntimos).

11º

Desta forma, relativamente a todos os prejuízos, o Estado despendeu a quantia total de 3.848,78 € (três mil e oitocentos e quarenta e oito euros e setenta e oito cêntimos).

12º

Tais prejuízos são imputáveis ao 1º Réu, nos termos dos artigos 483º, nº 1, constituindo-se na obrigação de os reparar, nos termos dos artigos 562º do Código Civil, dado que lhes deu causa (artigo 563º do Código Civil).

13º

À data, não tinha o 1º Réu, nem qualquer outra pessoa, contrato de seguro automóvel válido e eficaz, relativamente ao veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ...

14º

Assim, os Réus são solidariamente responsáveis pelos encargos efectuados relativamente aos danos causados no veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..., nos termos dos artigos 1º, nº 1, 2º, 21º, nº 1 e 2, al. b), 29º, nº 6, todos do Decreto-Lei nº 522/85, de 31.12, (actualmente dos artigos 47º, nº 1, 49º, nº 1, alínea b) e 62º, nº 1 do Decreto-Lei 291/2007, de 21.08), e artigo 497º, n.º 1, do Código Civil.

15º

Sendo que ao montante a cargo do 2º Réu Fundo de Garantia Automóvel haverá que deduzir uma franquia de 299,28 €, nos termos do artigo 21º, nº 3, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31.12.


16º

Aos montantes em causa devem acrescer os juros à taxa legal, desde a data da notificação do despacho que recebeu a acusação e o presente pedido cível até integral pagamento, nos termos dos artigos 804º, n.º 2 e 806º, nº 1 e 2, ambos do Código Civil.


17º

O presente pedido cível fundamenta-se no disposto nos artigos 483º, nº 1, 562º, 563º e 566º, nº 1 e 2, 592º, 593º, 804 e 806, n.º 2, todos do Código Civil e artigos 1º, nº 1, 2º, 21º, nº 1 e 2, al. b), 29º, nº 6, todos do Decreto-Lei nº 522/85, de 31.12, (actualmente dos artigos 47º, nº 1, 49º, nº 1, alínea b) e 62º, nº 1 do Decreto-Lei 291/2007, de 21.08), do Código Civil.



Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente pedido cível ser julgado procedente, por provado, e em consequência:
a) serem os Réus condenados solidariamente a pagar ao Estado a importância de 3.218,23 € (três mil e duzentos e dezoito euros e vinte e três cêntimos), a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a notificação judicialmente ordenada deste pedido cível até integral pagamento, sendo deduzida a franquia de 299,98 €, relativamente ao Réu Fundo de Garantia Automóvel;
b) ser o 1º Réu condenado a pagar ao Estado a quantia de 630,55 € (seiscentos e trinta euros e cinquenta e cinco cêntimos), a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a notificação judicialmente ordenada deste pedido cível até integral pagamento.
c) no caso de não proceder o pedido efectuado na alínea a), designadamente no que respeita ao Fundo de Garantia Automóvel, subsidiariamente, ser o 1º Réu condenado a pagar ao Estado a importância de 3.218,23 € (três mil e duzentos e dezoito euros e vinte e três cêntimos), a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a notificação judicialmente ordenada deste pedido cível até integral pagamento.

Mais se requer a notificação dos Réus para contestarem, querendo, nos termos do artigo 78º, nº 1 do Código de Processo Penal, no prazo e sob legal cominação, seguindo-se os demais termos processuais adequados.

Prova:
- A indicada na acusação.

Valor: 3.848,78 € (três mil oitocentos e quarenta e oito euros e setenta e oito cêntimos).

Junta: duplicados e cópia legais.
______________________________________________________________________________
(processei, imprimi, revi e assinei o texto, seguindo os versos em branco – artigo 94º, nº2 do Código de Processo Penal)
local/data
O Procurador-Adjunto


Comentário 1:
Não há lugar a autoliquidação de taxa de justiça nas acções cíveis declarativas processadas conjuntamente com a acção penal ( art. 29º, n.º 3, al. f), do Cód. Custas Judiciais ).

Comentário 2:
O pedido subsidiário formulado deve-se ao recente acórdão do S.T.J., de 13.03.2007, in CJ – Ac. STJ , n.º 198, Ano XV – Tomo I/2007, p. 108 a 112, cujo sumário é o seguinte:

I – Não se provando que o atropelamento do peão
tenha ocorrido devido aos riscos próprios
decorrentes da circulação do veículo, mas antes
em consequência da intenção do condutor de
ofender corporalmente o sinistrado, utilizando
a viatura como instrumento de agressão, não
estamos perante um acidente de viação.

II – As lesões assim originadas encontram-se
fora dos riscos que a seguradora considerou
quando celebrou o contrato de seguro, não se
encontrando cobertas pela respectiva apólice
e não existindo, da parte desta, obrigação de
indemnizar.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Artigo 105º, n.º 4, al. b), do R.G.I.T. - um acórdão com interesse especial ...

Acórdão da Relação de Guimarães, de 17.09.2007

Processo 1118/07-2

Relator: Cruz Bucho



I – A al. b) do n.º 4 do artº 105.° do RGIT, na redacção operada pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, não veio acrescentar nenhum elemento novo ao tipo legal, tendo-se limitado a estabelecer uma condição objectiva de punibilidade, a saber, a não entrega das prestações comunicadas à administração tributária, acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.II – Se nos trinta dias subsequentes à comunicação houver lugar ao pagamento daquelas quantias, a conduta é “despenalizada”, melhor dizendo, não é punida, assim se aplicando retroactivamente a lei nova mais favorável.III – O objectivo do aditamento foi, claramente, o de possibilitar a despenalização de condutas após a regularização fiscal, assim contribuindo para o combate à evasão fiscal, uma das principais medidas de política fiscal consagradas no OE2007, reforçando o cumprimento voluntário das obrigações tributárias e aumentando a receita global.IV – Aliás, do Relatório do Orçamento do Estado para 2007 (relatório este que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 31º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto - Lei de enquadramento orçamental - acompanha necessariamente a proposta de lei de Orçamento de Estado), resulta expressamente que (…) «não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a proliferação de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto».V – A tese do imediato arquivamento faz tábua rasa da circunstância de aquela notificação dever efectuar-se na vigência da lei nova (ela não foi efectuada na vigência da lei anterior pela simples razão de a lei, na ocasião, não a prever!), subverte por completo o anunciado propósito legislativo de recuperação do montante da dívida fiscal e, sendo equivalente nos seus efeitos a uma amnistia, não desejada pelo legislador (conforme foi já apontado por Saldanha Sanches, apud Público de 1 de Fevereiro de 2007), é geradora de uma desigualdade gritante entre quem pagou e quem não pagou e, por isso, incompreensível para a comunidade.VI – Tem também que se consignar que, conforme resulta claramente do teor literal da citada nova alínea b) (“a prestação comunicada à administração fiscal”), a nova condição objectiva de punibilidade não abarca todos os crimes de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social), mas apenas os casos em que a existência da dívida fiscal é participada pelo sujeito passivo, através da correspondente declaração, que não foi acompanhada do respectivo meio de pagamento.VII – Nos casos em que ocorre ocultação, ou seja, quando não houve declaração do montante devido, não se aplica esta nova condição de punibilidade – cfr. expressamente neste sentido os Acs da Rel. de Guimarães de 23-3-2007, proc.º n.º 1917/06-1, rel. Cruz Bucho e da Rel. de Lisboa de 26-4-2007, proc.º n.º 3256/07, rel. Fernando Correia Estrela, este último in www. dgsi.pt/.

TEXTO DO ACÓRDÃO:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
*
I – RelatórioNo Processo Comum Singular n.º 496/03.9TAEPS do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, por despacho de 31 de Janeiro de 2007, foi decidido:«A) Absolver os arguidos MC, MM, e NG -, Lda. pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punível pelos arts. 107.º, e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, por que vinham acusados;B) Conhecer da excepção dilatória de violação do princípio da adesão e, em consequência, absolver os demandados de instância quanto ao pedido de indemnização cível contra si deduzido pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social.»
*
Inconformado com tal despacho, o Ministério Público e o Instituto de Segurança Social dele interpuseram recurso pedindo a sua revogação.
*
São as seguintes as conclusões apresentadas pelo Ministério Publico (transcrição):1. Confrontando o regime anterior (RGIT) com aquele que entrou em vigor no transacto dia 1 de Janeiro, para que se verifique um crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário, para além do decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prezo legal da entrega da prestação, existir o não pagamento na sequência de uma notificação para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento da prestação comunicada à Administração Fiscal, acrescida de juros e do valor da coima aplicável; 2. A alínea b) do n.º 4 do artigo 105.° do RGIT não veio, propriamente, acrescentar nenhum elemento novo ao tipo legal do mesmo preceito, na sua redacção anterior à alteração operada pela Lei n,o 53-A/2006, de 29 de Dezembro, tendo-se limitado, como limitou, a alargar o âmbito de uma causa de exclusão da punibilidade que já se encontrava prevista no n.º 6 do mesmo artigo, embora com uma previsão mais restrita; 3. Para além disso, também nenhuma alteração foi, a nosso ver, introduzida no tipo-de-ilícito ou de culpa da norma em questão, que mantém todos os seus traços anteriores; 4. É quanto a nós inegável verificar-se, in casu, uma continuidade típica entre o artigo 105° do RGIT antes e depois da entrada em vigor da citada Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e, por isso mesmo, uma sucessão de leis penais em sentido estrito, a resolver mediante a aplicação retroactiva da lex mitior - que, na ausência de outras alterações relevantes ao regime punitivo dos crimes fiscais, é inevitavelmente a que agora se encontra em vigor; 5. Concluímos dizendo que a Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, operou, relativamente ao artigo 105° do RGIT, uma sucessão de leis penais em sentido estrito, a resolver pela aplicação retroactiva do novo regime penal do abuso de confiança fiscal, por ser o mais favorável. 6. Como tal deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que, com nota de urgente, oficie à Direcção de Finanças do Distrito do Braga para que, nos termos previstos na nova alínea b) do n.º 4 do artigo 105° do RGIT, na redacção que a este preceito foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, proceda à notificação dos arguidos para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das prestações tributárias por eles em dívida e aqui em causa, acrescidas dos respectivos juros moratórios e do valor da coima aplicável; 7. Declarando ainda suspenso os ulteriores termos do processo até que se mostre efectuada a notificação em questão e decorrido o -prazo legalmente previsto para a realização do pagamento aludido.»
*
Por seu turno o assistente remata a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):«1.- No douto despacho recorrido, o Meritíssimo Juiz “a quo” entendeu absolver os arguidos de um crime de abuso de confiança contra a segurança social e, em consequência a absolvição do pedido de indemnização formulado pela segurança social. 2.- Deveria ter-se procedido a uma correcta aplicação do disposto na Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro que introduziu várias alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. 3.- Deveria ter-se procedido a uma correcta aplicação do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105° da Lei n.º 15/2006, de 5 de Junho. 4.- Foi ignorado o disposto no n.º 4 do artigo 2° do Código Penal e n.º 4 do artigo 29° da Constituição da República Portuguesa, relativamente à aplicação da Lei mais favorável. 5.- O Meritíssimo Juiz do Tribunal, "a quo", na douta sentença que ora se recorre, violou a alínea b) do n.º 4 do artigo 105° da Lei n.º 15/2006, de 05 de Junho, o n.º 4 do artigo 2° do Código Penal e o n.º 4 do artigo 29° da Constituição da Republica Portuguesa. 6. Os arguidos, deveriam ser notificados, para, querendo, procederem, no prazo de 30 dias, ao pagamento das prestações tributárias em dívida, acrescidas dos juros respectivos e do valor das coimas aplicáveis junto da administração tributária, informando-os de que o mencionado pagamento determinará a extinção do presente procedimento criminal. Termos em que, o douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro, que notifique os arguidos, para, querendo, procederem, no prazo de 30 dias, ao pagamento das prestações tributárias em dívida, acrescidos dos juros respectivos e do valor das coimas aplicáveis junto da administração tributária, informando-os de que o mencionado pagamento determinará a extinção do presente procedimento criminal, com todas as ínsitas consequências.»
*
Os recursos foram admitidos, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 362.
*
Nesta Relação o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer pronunciando-se pela procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.
*
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos prosseguiram os autos para conferência.
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II- Fundamentação1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):“ Entre a data da prática dos factos e a presente sucedem-se duas leis penais diferentes, no que concerne aos pressupostos de punição do crime de abuso de confiança contra a segurança social. Este fenómeno é regulado no art. 2.º do CP, cuja aplicação implica desde logo a destrinça entre situações de mutação do próprio tipo incriminador, que podem levar à conclusão da descriminalização da conduta, nos termos do n.º 2 do supracitado artigo, e outras, que partem de situações de continuidade normativo-típica, alterando-se apenas o regime da punição, enquadráveis no n.º 4 da mesma disposição.No caso concreto temos uma alteração do tipo.Nos termos da anterior versão do RGIT, dispunha o art. 107.º, n.º 1, do RGIT, que as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º.O n.º 2 do mesmo art. 107.º determinava ser aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do art. 105.º, do RGIT.E o n.º 4 do art. 105.º do RGIT dispunha à data dos factos que os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.Este n.º 4 foi entretanto alterado pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, com início de vigência em 1 de Janeiro de 2007, como resulta do seu art. 163.º.A nova redacção é a seguinte:“4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”Foi aditado um novo pressuposto de punição deste crime, constante da alínea b) do n.º 4. Em face da acusação, em causa estão contribuições comunicadas através das correspondentes declarações, embora apenas no decurso de uma acção inspectiva. Para preenchimento de todos os elementos do tipo de crime tal como é actualmente descrito necessário seria ter ocorrido a notificação prescrita e uma posterior inércia do arguido.Este novo elemento do tipo não está preenchido em face da acusação.A lei nova adita um elemento especial, e portanto qualitativo adicional, que restringe o âmbito de punibilidade do tipo, e que implica uma descriminalização da conduta. A este respeito tem-se presente o critério enunciado por Taipa de Carvalho, nos termos do qual “quando a lei nova, mediante a adição de novos elementos, restringe a extensão da punibilidade, há despenalização se o elemento adicionado é especializador; não há despenalização, se o elemento adicionado é especificador”.A especificação está ligada à ideia de quantificação ou delimitação de um elemento preexistente do tipo, sendo exemplo a hipotética restrição de punibilidade do aborto das dez para as doze semanas em diante, em que os abortos praticados para além das doze semanas manteriam a punibilidade, ou a alteração da qualificação de um furto do valor de €1.000,00 para €2.000,00, em que os furtos de valor superior a €2.000,00 manteriam sempre a qualificação.Já a especialização está ligada à alteração qualitativa de um tipo. Pegando em exemplo paralelo, a adição ao tipo de aborto do elemento “desde que não praticado em hospital público” adiciona um elemento novo, não contido no tipo anterior, que implica a despenalização quer dos abortos praticados em hospital público quer não.Em concreto, o elemento aditado é claramente especializador, pois implica uma nova interpelação pela segurança social ao agente para consumação da infracção criminal.Mas ainda que assim não fosse, e que se pudesse afirmar que o novo elemento típico é especificador, nem por isso se poderia afirmar pela continuidade normativo típica. É que, face à lei nova, a conduta descrita na acusação não é punível, e tanto basta para concluir pela sua descriminalização, nos termos do art. 2.º, n.º 2, do CP.A descriminalização da conduta implica uma conclusão liminar pela absolvição dos arguidos quanto ao crime de por que vinham acusados.Por outro lado, parte do pedido de indemnização cível deduzido a fls. 271, refere-se a danos emergentes do crime por cuja absolvição se concluiu supra.O prosseguimento desta demanda cível desligada da apreciação do respectivo ilícito criminal é processualmente inadmissível, nos termos do art. 71.º, do CPP, pelo que se conclui pela absolvição dos arguidos de instância nesta parte.
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Pelo exposto decide-se:A) Absolver os arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punível pelos arts. 107.º, e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, por que vinham acusados;B) Conhecer da excepção dilatória de violação do princípio da adesão e, em consequência, absolver os demandados de instância quanto ao pedido de indemnização cível contra si deduzido pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social.Sem custas.Sem efeito a audiência de julgamento para hoje designada.»
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2. A Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2007, consagrou importantes alterações ao regime das infracções tributárias, nomeadamente no que concerne aos crimes de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social).Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 95º da citada Lei n.º 53-A/2006 foi alterada a redacção do n.º 4 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, o qual passou a consagrar na sua alínea b) que os factos só são puníveis se “a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.”Questiona-se a aplicação deste novo normativo aos processos pendentes. Conforme a imprensa logo deu conta (cfr. António Arnaldo Mesquita “OE 2007 arquiva crimes de abuso de confiança fiscal” in Público de 1 de Fevereiro de 2007, reproduzido no Diário Económico da mesma data; António Arnaldo Mesquita e Vítor Costa, “MP tenta impedir ‘amnistia’ do abuso de confiança fiscal”, in Público de 2 de Fevereiro de 2007; e Miguel Alexandre Ganhão, “Impostos - Sentença já decretou a despenalização, Processos de abuso fiscal suspensos”, in Correio da Manhã de 3 de Fevereiro de 2007) e alguns canais de televisão noticiaram, o entendimento díspar entre os magistrados está a provocar o caos nos tribunais onde se encontram pendentes alguns milhares de processos relacionados com aqueles ilícitos, entendendo uns que a sucessão legislativa tem como consequência o imediato arquivamento dos autos por despenalização, e sustentando outros a necessidade de proceder à notificação do arguido para, no prazo de 30 dias, efectuar o pagamento das quantias devidas.Estas divergências estão bem patentes no despacho do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria e no acórdão de 24 de Janeiro de 2007 do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santarém (respectivamente publicados pelo Dr. Gil Vicente Cardoso da Silva “Abuso de Confiança Fiscal: despenalização ou sucessão de leis penais” e pelo Dr. Manuel José Miranda Pedro, “Abuso de Confiança Fiscal: Nova condição de punibilidade”, ambos in www.verbojurídico.pt), e justificaram até um comunicado de imprensa por parte do Ministério das Finanças e da Administração Pública, de 2 de Fevereiro de 2007 (disponível in www.min-finanças.pt).Confirma-se, assim, o diagnóstico do Prof. Costa Andrade segundo o qual ao longo do “curto período da sua existência e da sua história, de pouco mais de uma década, a figura do Abuso de confiança fiscal esteve permanentemente exposta às intempéries das sucessivas reformas, suportando contínuas vicissitudes que atingiam os seus momentos estruturais e sofrendo, por vias disso, constantes e profundas metamorfoses” (“O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134º, pág. 308). Mais recentemente, o conhecido fiscalista Ricardo Sá Fernandes de forma premonitória sublinhava que “Vão seguir-se anos de decisões judiciais contraditórias, de recursos sem fim, de acórdãos do STJ de fixação de jurisprudência e de acórdãos do Tribunal Constitucional para apreciar as delicadas questões de constitucionalidade que todos estes temas suscitam (Rombo no combate à evasão fiscal, in Sol de 24-3-2007, pág. 27).
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3. Os termos da questão são conhecidos.Pela nossa parte vamo-nos limitar a enunciar as razões fundamentais pelas quais, desde a primeira hora, esta Relação de Guimarães sempre entendeu que a alteração legislativa em causa não provocou, sem mais, qualquer descriminalização dos factos ocorridos anteriormente, em que se não verificou o pagamento, havendo, em princípio, necessidade de proceder à notificação do arguido para, no prazo de 30 dias, efectuar o pagamento das quantias devidas.
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§1. Ao contrário do que foi sustentado no despacho recorrido, a citada norma [alínea b) do n.º 4 do do artigo 105º do RGIT na redacção que lhe foi conferida pela lei n.º 53-A/2006] reveste, inequivocamente, a natureza de condição objectiva de punibilidade.Recorda-se que as condições objectivas de punibilidade são elementos que a lei requer para a punibilidade da conduta, mas que são absolutamente independentes da ilicitude e da culpabilidade da própria conduta (sobre este conceito cfr. as obras gerais de Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, 1963, pág. 370-371, Teresa Beleza, Direito Penal, 2ºvol. Lisboa, 1983, págs. 367-368 e 372, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, Lisboa, 1998, págs. 38-39, e os estudos de Frederico Isasca, Da Participação em Rixa, Lisboa, 1985, págs. 113-117, Manuela Valadão e Silveira, Sobre o crime de incitamento ou ajuda ao suicídio, Lisboa, 1990, págs. 115-122, Teresa Quintela de Brito, Crime praticado em estado de inimputabilidade auto-provocada, por via de consumo de álcool ou drogas, Lisboa, 1991, págs. 110-118, Pedro Caeiro, Sobre a natureza dos crimes falenciais, Coimbra, 1996, págs. 297-300 e Frederico L. Costa Pinto, Ilícito e punibilidade no crime de participação em rixa, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, págs. 869-900). É claramente este o sentido para que apontam, convergentemente, os elementos literal [“Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se”], sistemático [a nova norma integra a alínea b) do n.º4 sendo que a alínea a) do mesmo número tem vindo a ser considerada, de forma unânime, como condição objectiva de punibilidade – cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das infracções Tributárias, Lisboa, 2001, pág. 587-588, Tolda Pinto e Reis Bravo, Regime Geral das Infracções Tributárias, Coimbra, 2002, pág. 333, Paulo José Rodrigues Antunes, Infracções Fiscais e seu Processo, Coimbra, 2002, pág. 129, Costa Andrade “O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”, cit., págs. 312 e 322, Nuno Lumbrales, “O abuso de confiança fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias”, Fiscalidade, n.º 13/14 -2003, pág. 93, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra, 2006, pág. 136-138; não há vozes dissonantes na doutrina portuguesa sendo que a designação de “condição da instauração” imputada a Alfredo Lopes de Sousa, Infracções Fiscais Não aduaneiras, Coimbra, 3ª ed., págs. 108-109 e, depois, aceite por Augusto Silva Dias (Crimes e Contra-ordenações Fiscais, in Direito Penal Económico e Europeu, vol. II, Coimbra, 1999, pág. 463), se reportava ao n.º 6 do artigo 24º do RGIFNA, cuja redacção era então substancialmente diferente: “Para instauração do procedimento criminal (…) é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação”. Para um confronto entre as condições objectivas de punibilidade e as condições de procedibilidade à luz da doutrina germânica, italiana, espanhola e latino-americana cfr. o texto da professora brasileira Érika Mendes de Carvalho “Las condiciones de procedibilidad y su ubicación sistemática, in Revista Electrónica de Ciencia penal y Criminologia, 07-10 (2005), disponível em http://criminet.ugr.es/recpc], histórico e teleológico.Quanto a estes últimos elementos, salienta-se que no Relatório do Orçamento do Estado para 2007 (relatório este que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 31º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto - Lei de enquadramento orçamental - acompanha necessariamente a proposta de lei de Orçamento de Estado) se consignou expressamente que, relativamente às medidas legislativas, se prevê na Proposta de Lei a “despenalização da não entrega de prestação tributária (retenções de IR/Selo e IVA)” nos seguintes termos:«A entrega da prestação tributária (retenções de IR/selo e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento. A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal. O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da dívida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva. Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente. Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a proliferação de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto» (pág. 44 do citado Relatório disponível em www.governo.pt).O objectivo foi, claramente, o de possibilitar a despenalização de condutas após a regularização fiscal, assim contribuindo para o combate à evasão fiscal, uma das principais medidas de política fiscal consagradas no OE2007, reforçando o cumprimento voluntário das obrigações tributárias e aumentando a receita global (cfr. neste sentido o Relatório do Orçamento do Estado para 1997, pág. 26).Uma vez mais, à semelhança do que acontecera com o n.º 4 do artigo 105º, agora integrando a alínea a), são razões de política criminal que subjazem à formulação do preceito em análise: a entrega ainda que fora de prazo põe fim ao prejuízo patrimonial do Estado atenuando ou eliminando as exigências de prevenção; constituindo um incentivo ao pagamento das prestações em falta, é um instrumento de combate à evasão fiscal e, simultaneamente, aumenta a receita global e permite evitar os custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal (cfr. Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, cit., pág. 136; sobre a relevância no âmbito do direito penal tributário da regularização da situação tributária pelo contribuinte, cfr. págs. 307-314 e Mário Monte, “Da reparação penal como consequência jurídica autónoma do crime”, in Liber Discipulorum cit., págs. 150-154). Neste sentido, de que a norma reveste a natureza de uma condição objectiva de punibilidade cfr., v.g., o Ac. do STJ de 7-2-2007, in www.stj.pt., os Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães de 5-2-2007, Rec.º n.º 2324/2006, rel. Des.ª Nazaré Saraiva, e de 23-3-2007, proc.º n.º 1917/06-1, rel. Cruz Bucho, entre muitos outros, o Ac. da Rel. do Porto de 14-2-2007, proc.º n.º 0646222, rel. Des. Ernesto Nascimento, in www. dgsi.pt/, o Ac. da Rel. de Lisboa de 26-4-2007, proc.º n.º 3256/07, rel. Des. Fernando Correia Estrela e, na doutrina, Isabel Marques da Silva, Regime Geral da Infracções Tributárias, 2ª ed., Coimbra, 2007, pág. 180 [a categoria de “causa de anulação de pena”, proposta pelo M.º Juiz de Paredes Dr. Pedro Menezes, na senda da doutrina espanhola, no seu trabalho “Evasão Fiscal, descriminalização”, in www.dgsi.pt, onde o Ministério Público junto do tribunal a quo buscou forte inspiração, não se mostra conforme à realidade (legislativa) nacional].
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4. À luz do disposto nos artigos 29º, n.º4 da Constituição da República e artigo 2º do Código Penal, o intérprete não pode deixar de extrair as devidas consequências desta norma relativamente aos processos pendentes. A este respeito, H.H. Jescheck é peremptório ao afirmar que as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo (Tratado de Derecho Penal, Parte general, 4ª ed., trad. esp., Granada, 1993, pág. 508). Entre nós parece também ser esta a solução defendida por Teresa Beleza, quando assinala que quanto as estas condições funcionam as mesmas exigências de garantia da lei penal em termos de interpretação e de aplicação (Direito Penal, 2ºvol. Lisboa, 1983, pág. 367-368 e 372).Entre estas garantias do Estado de Direito, destaca-se a retroactividade da lei penal mais favorável.Consequentemente, deve ser efectuada a notificação em causa.Só depois de efectuada aquela notificação e depois de constatada a ausência de pagamento no prazo fixado (30 dias), o processo deve prosseguir. Se nos trinta dias subsequentes à comunicação houver lugar ao pagamento daquelas quantias, a conduta é “despenalizada”, melhor dizendo, não é punida, assim se aplicando retroactivamente a lei nova mais favorável.Neste sentido, da necessidade de se proceder à notificação nos processos pendentes, cfr., por ordem cronológica, o acórdão de 24 de Janeiro de 2007 do 1º juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santarém (in Dr. Manuel José Miranda Pedro, “Abuso de Confiança Fiscal: Nova condição de punibilidade”, www.verbojurídico.pt), o despacho do Procurador--Geral Distrital de Coimbra n.º 1/2007, de 29 de Janeiro de 2007, o estudo do Dr. Jorge Manuel Monteiro da Costa, “Despenalização da não entrega da prestação tributária?”, in www.verbojurídico.pt.Na jurisprudência dos tribunais superiores merecem destaque os seguintes arestos:- Ac. do STJ de 7-2-2007, in www.stj.pt.;- Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães de 5-2-2007, Rec.º n.º 2324/2006, rel. Des.ª Nazaré Saraiva, e de 23-3-2007, proc.º n.º 1917/06-1, rel. Cruz Bucho, entre muitos outros- Ac. da Rel. do Porto de 14-2-2007, proc.º n.º 0646222, rel. Ernesto Nascimento, in www. dgsi.pt/ Não se perfilha, pois, o entendimento segundo o qual o processo deve ser imediatamente arquivado por nele não se ter efectuado a notificação em causa. O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática não foi eliminado do número de infracções pela lei nova (artigo 2º, n.º 2 do Código Penal).A citada Lei n.º 53-A/2006 não provocou qualquer alteração ao nível da tipicidade, do ilícito e da culpa, limitando-se a criar uma nova condição de punibilidade [note-se que já assim era entendido ao nível da condição prevista na actual alínea a), cfr., v.g., Costa Andrade, “O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”,cit pág. 312 e Susana Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, cit., págs. 136 e nota 268]. A tese do imediato arquivamento faz tábua rasa da circunstância de aquela notificação dever efectuar-se na vigência da lei nova (ela não foi efectuada na vigência da lei anterior pela simples razão de a lei, na ocasião, não a prever!), subverte por completo o anunciado propósito legislativo de recuperação do montante da dívida fiscal e, sendo equivalente nos seus efeitos a uma amnistia, não desejada pelo legislador (conforme foi já apontado por Saldanha Sanches, apud Público de 1 de Fevereiro de 2007), é geradora de uma desigualdade gritante entre quem pagou e quem não pagou e, por isso, incompreensível para a comunidade.Por isso que não possa manter-se a decisão recorrida.
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5. Ao contrário do que uma leitura apressada do novo normativo legal pode deixar transparecer, conforme resulta claramente do teor literal da nova alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT (“ A prestação comunicada à administração fiscal”), e é confirmado pelo excerto do Relatório do Orçamento do Estado para 1997 acima transcrito, esta nova condição objectiva de punibilidade não abarca todos os crimes de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social). Na verdade, ela só se aplica aos casos em que a existência da dívida fiscal é participada pelo sujeito passivo, através da correspondente declaração, que não foi acompanhada do respectivo meio de pagamento.O seu âmbito de aplicação está, por conseguinte, restringido aos casos de atraso na entrega do valor declarado. Neste caso, ocorrendo a regularização da dívida fiscal e demais alcavalas no prazo fixado, a lei passa a considerar que existe apenas uma contra-ordenação para situações que antes eram consideradas crime de abuso de confiança fiscal - cfr. pontos 2 e 3 do citado Comunicado de Imprensa do Ministério das Finanças e da Administração Pública, de 2 de Fevereiro de 2007.Nos casos em que ocorre ocultação, ou seja, quando não houve declaração do montante devido, não se aplica esta nova condição de punibilidade – cfr. expressamente neste sentido os Acs da Rel. de Guimarães de 23-3-2007, proc.º n.º 1917/06-1, rel. Cruz Bucho e da Rel. de Lisboa de 26-4-2007, proc.º n.º 3256/07, rel. Fernando Correia Estrela, este último in www. dgsi.pt/.No caso dos autos conforme parece decorrer da acusação pública [“As folhas de remunerações e as quantias assim deduzidas, foram declaradas em 21 de Janeiro de 2004, após acção inspectiva da Segurança Social, mas tais declarações não foram acompanhadas dos meios de pagamento aos cofres da segurança Social], os montantes das prestações em dívida apenas foram detectados na sequência da acção inspectiva levada a efeito pela Segurança Social, já que não lhe haviam sido comunicados Contudo, saber se houve declaração dos montantes devidos ou, se pelo contrário, ocorreu ocultação daqueles montantes ou, o que é o mesmo, saber se se aplica ou não esta nova condição de punibilidade (e, em caso afirmativo, se aquela notificação deve ser efectuada pelo próprio tribunal ou pela administração fiscal) é matéria que não constitui objecto do presente recurso e sobre a qual esta Relação se não deve pronunciar até para que se não coíba o arguido, o assistente ou o Ministério Público de usarem do direito de recorrer da decisão, privando as partes de um grau de jurisdição.
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III- Decisão.

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recursos, revogando a sentença recorrida que deverá ser substituída por outra, no pressuposto de que a introdução da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 53-A/2006, não teve o efeito de descriminalizar os factos imputados aos arguidos.Sem custas.
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Guimarães, 17 de Setembro de 2007



Comentário 1:

Entre as causas de extinção da responsabilidade criminal contam-se as situações em que o legislador, não descriminalizando ou não despenalizando, dá uma oportunidade de pagamento, fazendo corresponder ao mesmo a extinção do procedimento criminal.
Tais causas de extinção da responsabilidade criminal podem ser supervenientes ao crime e não fazem parte do tipo legal de crime, contrariamente às condições objectivas de punibilidade.
Um exemplo de causa de extinção da responsabilidade criminal é a do art. 1º-A e 11º, n.º 5, do Dec. Lei n.º 454/91, de 28.12, na redacção do Dec. Lei n.º 316/97, de 19.11. Neste caso, pagando o sacador do cheque a importância mencionada no art. 1º-A, não há lugar a procedimento criminal ou haverá lugar a extinção do mesmo. Se a notificação, por lapso, não for realizada, e ainda assim o inquérito prosseguir com acusação, está-se perante uma irregularidade que deverá ser sanada, não se operando qualquer extinção da instância. Por outro lado, não tem o MP de alegar na acusação que o art. 1º-A citado foi cumprido, tal como não alega nos crimes em que o procedimento criminal depende de queixa que a mesma foi apresentada. E isto porque não se trata de elementos do tipo ou de condições objectivas de punibilidade - cf. neste sentido, ou seja, de não se tratar de uma condição objectiva de punibilidade nem de um pressuposto de procedibilidade, o Acórdão da Relação do Porto, de 11.10.2006 ( processo 0643538; n.º convencional: JTRP00039557; relator: Pinto Monteiro ), e Acórdão da Relação de Guimarães, de 01.12.2004 ( processo 2083/03-1; relator: Miguês Garcia ).
Diga-se ainda que a tão vulgarizada absolvição da instância em processo crime foi proibida pelo art. 359º do Cód. Proc. Penal.
A lei é mais favorável apenas no sentido de conferir a possibilidade ao arguido de crime de abuso de confiança fiscal ou contra a segurança social de extinguir a responsabilidade criminal pelo pagamento, não sendo uma amnistia, não sendo uma descriminalização dos crimes já acusados e não representando também uma nova construção típica, até porque se assim fosse,

que fazer aos inquéritos em que não seja possível notificar o arguido nos termos do art. 105º, n.º 4, al. b), do R.G.I.T. ( note-se que a notificação edital não é permitida ):

- aguardam nos serviços do MP até prescrever o procedimento criminal, vedando-se o acesso ao instituto da contumácia ?

A consumação, por outro lado, só existiria, caso estivessemos perante um elemento do tipo ou uma condição objectiva de punibilidade, com a perfeição da notificação, pelo que, em bom rigor, nem abertura de inquérito poderia ocorrer, assim se premiando o cidadão infractor e em fuga, face ao incumpridor que não foge e face ao cidadão que cumpre as suas obrigações fiscais e que, bastas vezes, é torturado pelo fisco ...
Se foi esta a intenção do legislador, então...

Comentário 2:

Sobre a matéria veja-se ainda o seguinte acórdão:

Acórdão do STJ, de 20.12.2007
Relator: Manuel José Carrilho de Simas Santos
Processo: 07P3220
Jurisdição: Criminal

ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL. Sucessão de normas. A nova condição de punibilidade objectiva não altera os elementos constitutivos do crime pelo que não existe qualquer descriminalização do tipo mais favorável ao autor material. O ilícito penal consuma-se com a falta de entrega da prestação tributária à segurança social dentro de determinado prazo.


No mesmo sentido, Ac. STJ n.º 4086/06-3
No mesmo sentido, Ac. STJ de 27-06-2007, n.º 2050/07-3
No mesmo sentido, Ac. STJ de 07-02-2007, n.º 4086/06
No mesmo sentido, Ac. STJ de 14-03-2007, n.º 4459/06
No mesmo sentido, Ac. STJ de 17-05-2007, n.º 12/07-5
No mesmo sentido, Ac. STJ de 12-09-2007, n.º 2817/07-3
No mesmo sentido, Ac. STJ de 10-10-2007, n.º 2077/07-3