terça-feira, 15 de março de 2011

Escuta telefónica, tráfico de estupefaciente: conceito de bando

Acórdão da Relação do Porto, de 23-02-2011

Processo: 1152/08.7PEGDM.P1

Nº Convencional: JTRP000

Relator: MELO LIMA

Descritores: Nº do Documento: RP201102231152/08.7PEGDM.P1

Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO

Sumário:

I - A escuta telefónica é um meio de obtenção de prova mas a gravação das conversações colhidas tem a natureza de verdadeiro meio de prova.

II - O conceito de bando integra, à semelhança de outras legislações, uma situação de actuação ilícita intermédia entre a simples comparticipação criminosa e a associação criminosa.

III - Para a verificação de actuação em bando, no crime de tráfico de estupefacientes, o legislador teve em mente considerar como mais graves do que as situações de mera participação criminosa, embora menos censuráveis do que aquelas em que existe uma perfeita e definida "associação criminosa", aquelas condutas em que, pelo menos dois agentes actuam de forma voluntária e concertada, em colaboração mútua, com uma incipiente estruturação de funções, mas sem que se possa já considerar como existente uma organização perfeitamente caracterizada, com níveis e hierarquias de comando e com uma certa divisão e especialização de funções de cada uma das suas componentes ou aderentes, como sucede na associação criminosa.

Crimes fiscais, abuso de confiança e segurança social: pena detentiva/suspensão de pena condicionada

Acórdão da Relação do Porto, de 23-02-2011

Processo: 2760/05.3TAVNG.P1

Nº Convencional: JTRP000

Relator: ANTÓNIO GAMA

Descritores: Nº do Documento: RP201102232760/05.3TAVNG.P1

Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO

Sumário:

Nos crimes fiscais e parafiscais, a pena de prisão é, em abstracto, a pena mais adequada, por ser a única capaz de responder às necessidades de promover a consciência ética fiscal.

Texto Parcial:

«…E – Opção pela pena detentiva.

Sindica o arguido D… a opção pela pena detentiva em detrimento da pena de multa. Diz que não vislumbra motivo para que a pena aplicada não tivesse sido fixada pelo mínimo. Se o mínimo punitivo que pretende o arguido é o mínimo legal diremos que a «culpa» o não permite: no caso não há razões de ordem preventiva especial ou positiva de integração que justifiquem que a pena fique aquém da culpa. Nesta criminalidade não é aconselhável reduzir a medida da pena para aquém da medida da culpa, dados os conhecidos inconvenientes no plano da prevenção geral[7], nesta luta contra a informalidade e evasão fiscal, onde se joga o interesse fundamental do Estado em arrecadar receita para poder prosseguir os fins de justiça social constitucionalmente fixados. É hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, pois o sistema fiscal não pode mais ser visto, numa perspectiva redutora, apenas como o meio de arrecadar receitas, cabendo-lhe também a realização de objectivos de justiça distributiva, o financiamento das actividades sociais do Estado, cf. artºs 103º e 104º da Constituição. Nesta perspectiva é correcta a previsão da pena de prisão como pena principal. Mais, a pena de prisão é, em abstracto, a pena mais adequada por ser a única capaz de responder às necessidades de promover a consciência ética fiscal, não se lhe podendo assacar os efeitos criminógenos que normalmente andam ligados ao cumprimento deste tipo de pena. Acresce que o requisitório contra as penas curtas de prisão perde neste tipo de criminalidade, muita da sua força: os efeitos dessocializadores que lhe andam ligados, na maior parte dos casos, não se fazem sentir ou são substancialmente minorados[8]. Os agentes do crime fiscal são em regra pessoas perfeitamente normais e integradas, que raro assumem as suas condutas como delituosas, antes se consideram protagonistas de meras irregularidades, que são por todos praticadas e que fazem parte das regras do jogo. Ora é contra este modo de conceber as coisas que se impõe reagir, fazendo sentir aos agentes do crime económico e fiscal que abusam da confiança que neles é depositada, que os seus comportamentos ilícitos típicos são crimes e não simples irregularidades. E isso consegue-se de modo particularmente adequado e eficaz com as penas de prisão[9]. Nenhuma censura merece, pois, a concreta pena aplicada, que no quadro factual apurado é proporcionada e por isso de manter.

F – Inconstitucionalidade da condição de suspensão

Como já tivemos oportunidade de dizer[10] a suspensão condicionada não ofende o ideário constitucional. Os recorrentes foram condenados em pena de prisão suspensa pelo período de dezoito meses de prisão sob a condição de, no referido prazo de dezoito meses, procederem ao pagamento das prestações tributárias em apreço nos presentes autos e acréscimos legais. Reagem os arguidos contra o estabelecimento desta condição, com a alegação de que tal suspensão condicionada é inconstitucional, já que o nosso ordenamento jurídico não permite a prisão por dívidas, que a condição será dificilmente cumprida, que essa forma de assegurar o pagamento das quantias ao Estado viola o princípio constitucional da separação de poderes. Relativamente à primeira das alegações, apesar de os arguidos não explicarem onde radica a alegada inconstitucionalidade, que norma ou princípio constitucional foi violado, vejamos se lhes assiste ou não razão. O art.º 14º n.º1 do RGIT, impõe que se condicione sempre a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa. Do art.º 8º n.º2 da Constituição retira-se a conclusão que a CEDH vigora na ordem jurídica interna do Estado Português. O art.º 1 do Protocolo n.º 4, adicional à convenção de protecção dos direitos do homem, refere, na tradução portuguesa que acompanhou a Lei n.º 65/78 de 13.10: Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual. Como vimos os recorrentes omitem por completo onde radica a conclusiva alegação de inconstitucionalidade. Parece entenderem que o condicionamento, via art.º 14º do RGIT, da suspensão da execução da pena de prisão, ao pagamento da prestação tributária em dívida viola o disposto no referido art.º 1º do Protocolo 4 Adicional à CEDH. Impõe-se uma liminar e não despicienda chamada de atenção: o que diz o art.º 1º do protocolo n.º4 [1963] da CEDH é que «Ninguém será privado da sua liberdade meramente com base na impossibilidade de cumprir uma obrigação contratual». O pormenor «contratual» faz toda a diferença. A obrigação de pagar impostos não é uma obrigação contratual na dimensão normativa usada na CEDH. O Estado não contrata com os contribuintes o pagamento de impostos; a obrigação de pagar impostos deriva da imperatividade da lei e não tem por fonte qualquer contrato. Daí que o art.º 107º do RGIT, ao prever a aplicação de uma pena de prisão, não é inconstitucional, nem viola o princípio de que ninguém pode ser privado da liberdade por não poder cumprir uma obrigação contratual, pela única razão de que está em causa uma obrigação legal de pagamento de impostos e não qualquer obrigação contratual. Do mesmo modo o art.º 14º do RGIT não é inconstitucional ao condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais em falta. Repete-se a obrigação em causa – pagar impostos em dívida – é uma obrigação pública fiscal que deriva da lei e não tem por fonte qualquer contrato. A história do preceito ajuda a consolidar a afirmação que fizemos. Quando o Protocolo n.º4 estava a ser considerado em 1960, a Assembleia Consultiva propôs adoptar o texto das Nações Unidas sem alteração, de modo a reforçar as garantias existentes no art.º 5º da Convenção relativas ao direito à liberdade e segurança da pessoa. A nova garantia aplicar-se-ia a obrigações contratuais de todo o tipo, incluindo a não entrega e a não execução, e não apenas dívidas monetárias. Ao mesmo tempo, não se aplicaria a obrigações públicas (fiscais ou militares), nem a obrigações civis impostas por estatuto ou por ordem de um tribunal. Por essa razão – estar em causa uma obrigação legal, não meramente contratual – não se verifica também violação do art.º 27º n.º1 e 2.

Invocar a violação do art.º 13º da Constituição, pretextando situação de privilégio do Estado na cobrança dos impostos relativamente aos particulares na cobrança das dívidas também não procede. A lei em questão reveste carácter geral e abstracto e os recorrentes não identificam qualquer arbítrio legislativo, desnecessidade, desproporcionalidade ou desrazoabilidade do art.º 14º do RGIT e só essas características poderiam ter relevo. Se alguma vantagem tem o Estado, tal justifica-se em nome das finalidades que prossegue e que a Constituição lhe impõe. O Estado está incumbido de realizar democraticamente vários objectivos visando a realização da democracia económica, social e cultural, art.º 58 e segts da Constituição. Essas finalidades são possibilitadas pelas receitas cobradas pelo sistema fiscal, cujo regime jurídico foi aprovado nos termos da Constituição e da lei. Daí que o dever de pagar impostos, não deriva de uma obrigação meramente contratual, tem origem legal e configura-se até como um dever fundamental[11]. Consequentemente o cumprimento desse dever, essencial para a realização dos referidos fins do Estado, pode ser assegurado, e essa foi a opção do legislador português, mediante a cominação de sanções criminais. As receitas fiscais são o «salário» com que o Estado Português governa o país. Colocar em pé de igualdade créditos de particulares e obrigações legais é ferir de morte o próprio Estado, torna-lo refém dos interesses dos particulares. O juízo de conformidade constitucional do art.º 14º do RGIT com a Constituição – com as apontadas normas e outras – tem sido o veredicto constante do Tribunal Constitucional, por exemplo, nos Acórdãos n.º 240/00, 256/03, 335/03, 376/03, 500/05, 543/06, 29/07; 61/07, 327/08 e 556/2009 todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, nos quais decidiu não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 14.º do RGIT, enquanto condiciona a suspensão da execução da pena ao pagamento ao Estado das quantias em dívida. Conclui-se, assim, pela conformidade constitucional dos artºs artigo 14º e 107º do RGIT, que não violam o disposto nos artºs 8º n.º2 e 27º nº 1 e 2 e art.º 13º n.º1 e 2 da Constituição nem o art.º 1º do protocolo n.º4 [1963] da CEDH.

Quanto ao argumento de que a condição será dificilmente cumprida, valem em parte as considerações já expendidas, com o acrescento de que, conforme bem realça o Exmo. Exmo. Procurador-Geral Adjunto o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça de modo reiterado e uniforme afastam a objecção de que, com a suspensão condicionada se está a impor aos arguidos um dever de cumprimento impossível e com isso a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa. Em primeiro lugar um juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão. De outro modo como se afastava esse “gravame” para os arguidos? Aplicando-lhe de imediato o “benefício” de uma pena de prisão efectiva? A argumentação dos arguidos esquece duas realidades incontornáveis: as quantias que agora são obrigados a repor estiveram na sua disponibilidade, deram-lhes destino diferente daquele a que estavam legalmente obrigados; depois bem vistas as coisas, nos presentes autos, não se averiguou em profundidade os meios de fortuna dos arguidos e caso seja precária sempre pode haver “regresso de melhor fortuna”. Finalmente a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não é automática mas mediada pela intervenção e avaliação judicial com amplo e efectivo contraditório, onde os arguidos podem demonstrar os esforços desenvolvidos no cumprimento da obrigação, restando sempre uma certeza, art.º 55 do Código Penal a contrario, o incumprimento da obrigação condição de suspensão, sem culpa do condenado, não determina a revogação da suspensão da pena.
Quanto a violação da divisão de poderes não funda o recorrente a sua alegação e também nós não vislumbramos suporte para tal afirmação…»

“…Decisão:

Julgam-se improcedentes os recursos, com a correcção de que relativamente aos membros dos órgãos estatutários só é penalmente típica a retenção após a entrada em vigor do RGIT.

Custas pelos arguidos fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 23 de Fevereiro de 2011.

António Gama Ferreira Ramos

Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva”

Suspensão provisória do processo: competência do juiz de instrução

Relator: António Gama

RP201103041170/10.5ptprt-A.P1

04-03-2011

4ª SECÇÃO

Sumário:

I – O Juiz competente para proferir o despacho a que alude o art.º 384º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal é o juiz de instrução.
Disposições legais: art.º 384º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, art.º 10º e 17º do Código de Processo Penal, art.ºs 79º e 102º n.º1 da LOFTJ.

__________________________

Conflito de competência
Processo 1170-10.
Porto.


Importa a resolução do conflito negativo de competência entre os Ex.mos juízes do 2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal e 3º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto.
Ambos os magistrados se atribuem reciprocamente a competência, negando a própria, para proferir a declaração de concordância, ou não concordância a que alude o art.º 384 do CPP.
A Ex.ma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o tribunal competente é o 2º Juízo do TIC do Porto.
O procedimento iniciou-se em 27.11.2010, já na vigência da 19ª alteração do CPP, entrada em vigor em 29.10.2010, art.º 5º da Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, em consequência de o arguido conduzir em estado de embriaguez.

*

O entendimento do Ex.mo juiz do TPIC, para negar a sua competência que atribui ao TIC, apoia-se na letra do art.º 384º que expressamente refere “juiz de instrução”.

O Ex.mo Juiz do TIC afasta a solução legal expressa com base em dois argumentos:

a) O actual n.º 2 do art.º 384º do CPP padece de lapso de escrita facilmente determinável [na parte em que atribui competência ao juiz de instrução];

b) A declaração de concordância ou discordância a que se refere o art.º 384 do CPP não pode ser proferida pelo JIC, pois tal matéria está fora da sua competência, conforme resulta dos art.ºs 79º e 102º n.º1 da LOFTJ; a competência do JIC limita-se à fase de inquérito e no caso do art.º 384º CPP, os autos não estão na fase de inquérito; a decisão judicial do art.º384º CPP insere-se na preparação das causas a que corresponda processo sumário.

A – Em tema de alegado “lapso de escrita” por parte do legislador cabe liminarmente referir que o mesmo se não verifica, pelo seguinte:

A génese da Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, que alterou o Código de Processo Penal é conhecida e pode ser consultada em: http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx? BID=35137[1].

Dessa consulta resulta que durante o processo legislativo o legislador teve oportunidade de ouvir, entre outras entidades, a ASJP e o SMMP.

A ASJP referiu no seu Parecer[2] o seguinte:

Art. 384º: Os novos nºs 2 e 3 do art. 384º assumem a regulamentação do arquivamento por dispensa de pena e suspensão provisória do processo em processo sumário, procurando resolver as dificuldades suscitadas pelo impedimento do juiz de julgamento que recuse aquelas medidas (art. 40º al. e)), ao atribuírem expressamente competência ao juiz de instrução (a usar em vez de juiz de instrução criminal, para manter uniformidade terminológica no CPP) para a concordância a que se referem os art. 280º e 281º. Não é, porém, solução isenta de novas dificuldades, pois sobretudo nas comarcas em que se encontrem instalados tribunais de instrução criminal, a decisão do Ministério Público implica a remessa dos autos para esses mesmos tribunais para que o JI se pronuncie e, no caso de recusa, o regresso dos autos ao tribunal originário, o que dificilmente poderá ter lugar com respeito do prazo de 15 dias previsto no novo nº2 do art. 384º.
Por outro lado, a atribuição de competência ao JI (em vez do juiz de julgamento a quem foi distribuído o processo sumário) revela-se igualmente mais desfavorável, do ponto de vista da economia e celeridade processuais, nos casos em que o JI concorde mas o arguido não dê autorização, obviando deste modo ao arquivamento ou à suspensão provisória do processo. Se o processo permanecesse no tribunal com competência para julgamento sumário, podia realizar-se o mesmo de imediato, sem impedimento do juiz de julgamento. Na redacção agora proposta suscitam-se os mesmos problemas de respeito do prazo.
A hipótese alternativa de atribuir competência ao juiz de julgamento para manifestar a sua concordância apenas implica a intervenção do juiz substituto nos casos de discordância do juiz natural, ganhando-se em economia e celeridade, pelo que nos aprece ser de ponderar a sua adopção.
E depois, aquando da audição na AR[3], adiantou que:
“Os novos nºs 2 e 3 do art.º 384º assumem a regulamentação do arquivamento por dispensa de pena e suspensão provisora do processo em processo sumário, que até aqui se limitava a remeter para as disposições gerais que as prevêem. Ao atribuírem expressamente competência ao juiz de instrução para a concordância a que se referem os art.ºs 280 e 281º, parece-nos que se procura esclarecer dúvidas reveladas pela jurisprudência (…)”. Não é porém, solução isenta de novas dificuldades (…). A hipótese alternativa de atribuir competência ao juiz do julgamento para manifestar a sua concordância apenas implica a intervenção do juiz substituto nos casos de discordância do juiz natural, ganhando-se em economia e celeridade, pelo que nos parece ser de ponderar a sua adopção.

Por sua vez o SMMP disse o seguinte:

(…) Artigo 384.º (…) O n.º 2 proposto é desnecessário e vai criar grandes problemas práticos onde existem Tribunais de Pequena Instância Criminal: Ainda que não exista esta norma, se não for possível obter a concordância não só do juiz, mas também do próprio arguido, o Ministério Público sempre poderá não só notificar o arguido para comparecer nos 15 dias posteriores à detenção, como apresentá-lo de imediato a julgamento (é isso que já se passa hoje, sem existir esta norma); erradamente, a norma parece querer vedar a possibilidade de apresentação imediata (se a lei distingue…); Ao afastar a suspensão provisória do processo do julgamento, atribuindo a competência jurisdicional para a concordância ao juiz de instrução, criam-se grandes problemas práticos onde há Tribunais de Pequena Instância Criminal, pois o magistrado do Ministério Público que terá o inquérito (e convém não esquecer é de um inquérito que se trata) estará no edifício desse tribunal e, em muitos casos, o juiz de instrução estará noutro edifício, por vezes a grande distância (por exemplo, pensemos no Porto ou em Loures). Aquilo que deveria ser feito com celeridade transformar-se-á num “vai-e-vem” de processos: o Ministério Público junto do TPIC a quem o processo foi presente e a quem o arguido se apresentou fará a sua proposta de suspensão provisória do processo; apresenta-a ao arguido que está junto de si; concordando este, tem de remeter o processo ao juiz de instrução, noutro edifício; concordando este, o processo terá de voltar ao edifício do TPIC; após, o magistrado do Ministério Público fará o despacho de suspensão provisória do processo; finalmente, notificá-lo-á ao arguido. Aquilo que poderia ser feito em menos de uma hora demorará dias…

O n.º 2, do actual art.º 384º do Código de Processo Penal, corresponde à redacção da proposta de Lei n.º 12/XI (GOV)[4], tendo sido eliminado apenas o inciso “criminal”, para manter uniformidade terminológica no Código de Processo Penal, caso dos artigos 280º, 281º, como, v.g., foi referido pela ASJP.

Conclui-se do exposto que carece em absoluto de fundamento a tese sustentada pelo Ex.mo Juiz do TIC de que a “referência ao JIC na norma do n.º2 do art.º 384 do Código de Processo Penal é um lapso de escrita”. Como resulta evidente da resenha da história legislativa do preceito, é infundado afirmar a existência de “lapso” na atribuição de competência ao JI, bem pelo contrário, como demonstramos acima, essa foi uma opção consciente e querida pelo legislador.

A clareza da solução era tal, já na proposta, que nem à ASJP nem ao SMMP surgiu dúvida quanto ao sentido da solução normativa. Essas entidades apenas alertaram, conforme deixamos realçado, que em casos pontuais, a diversa localização geográfica dos TICs e TPICs, podia ser um factor de perturbação na aplicação da lei. Apesar destas chamadas de atenção, que não podia deixar de ponderar, o legislador reafirmou e fez lei a solução da proposta, o que aliás diga-se em abono da coerência é mais conforme com o princípio acusatório consagrado na Constituição e encaixa melhor com o figurino acusatório desenhado no Código de Processo Penal.

Importa lembrar que a “alteração legislativa” é muito peculiar – no essencial o legislador deitando mão de técnica legislativa diversa, passou a dizer expressamente o que já antes dizia por remissão para os artºs 280º, 281º e 282º – e a novidade tem em vista concretamente “o momento do processo sumário”. E não aconteceu por mero acaso. Já na vigência da anterior redacção formaram-se duas correntes de entendimento a nível jurisprudencial: uns entendiam que a concordância com a suspensão provisória competia ao juiz do julgamento[5]; outros que competia ao JI[6].

Parece-nos que foram estas aporias que o legislador quis ultrapassar avivando o traço no desenho acusatório do CPP.

Face á actual redacção do n.º2 do artigo 384.º do Código de Processo Penal deixa de haver qualquer margem de dúvida sobre qual o juiz competente para, nesse momento processual, produzir a declaração de concordância [ou não concordância]: é sempre o juiz de instrução [criminal][7].

Da possibilidade de a iniciativa poder agora partir do tribunal, n.º 1, do art.º 384º, não se pode retirar que seja esse tribunal – o do julgamento – o competente para produzir a declaração de concordância. Esta solução constituiria entorse aos princípios pois a concordância é materialmente um acto do JI. Parece-nos que o legislador não engrossou o elenco do art.º 268º do CPP por uma dupla ordem de razões, por redundante, face à cláusula aberta constante do n.º1 al.) f); para não criar mais um factor de perturbação ou ruído, pois discute-se a natureza do processo enquanto permanece no “limbo”: julgamento em processo sumário; suspensão do processo.

Em sentido crítico a esta solução poderá argumentar-se, então, que o legislador se esqueceu de alterar correspondentemente o art.º 40º al. e) do Código de Processo Penal, cuja manutenção nessa parte, agora ficaria sem sentido. Sem razão tal crítica. É que, tal como acontece com a aplicação de medida de coacção, com o debate instrutório, também no que respeita à não concordância com a suspensão, o juiz que intervém nesses actos como JI, pode, em momento posterior, mas em veste diferente, v.g. em virtude de movimento para outro tribunal, ser o competente para os termos subsequentes do processo. Por tal motivo a manutenção do impedimento tem todo o sentido.

Conclui-se assim que é infundado o argumento de que o actual n.º2 do art.º 384º do CPP padece de “lapso de escrita”.

B) A segunda linha argumentativa parte do pressuposto que esta matéria está fora da competência do JIC, o que resultaria dos art.ºs 79º e 102º n.º1 da LOFTJ; que a competência do JIC está limitada à fase de inquérito e a decisão judicial do art.º384 do CPP, insere-se na preparação das causas a que corresponda processo sumário.

O artigo 79.º da LOFTJ diz que compete aos tribunais de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito; o artigo 102.º que compete aos juízos de pequena instância criminal preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo. Salvo o devido respeito a argumentação retirada da LOFTJ está votada ao insucesso. Em matéria de competência material e funcional está legalmente definida uma hierarquia clara. Diz o art.º 10º do Código de Processo Penal que a competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária. No confronto entre LOFTJ e CPP, quanto a matéria de competência e em caso de conflito, prevalece o CPP, como expressamente resulta do art.º 10 do CPP. Esta norma processual é uma norma especial logo prevalece sobre as disposições da LOFTJ: lex specialis derogat legi generali.

O mesmo raciocínio vale e tem que ser chamado para ultrapassar as aporias dentro do Código de Processo Penal.

Elas existem, não se podem varrer para debaixo do tapete, e só com o recurso às regras de interpretação, aos princípios e à constituição podem ser ultrapassadas.

O primeiro caso é o art.º 17º do CPP. Temos de ter a percepção que essa norma disciplina genericamente a competência do JIC, pois está sistematicamente inserida naquilo que podemos chamar com propriedade a “parte geral” do CPP. Ora o art.º 17º do CPP no confronto com a norma “especialíssima” do art.º 384º do CPP, tem que ceder, prevalecendo esta última. Foi o mesmo legislador – o legislador com a mesma legitimidade constitucional – quem erigiu uma e outra norma. A norma especial prevalece sobre a norma geral. Mais: a norma especial resulta da manifestação mais recente da vontade legislativa, o que a torna depositária de um valor reforçado[8], no sentido de determinar a solução normativa.

Incidentalmente referimos as aporias e dissemos que elas existem. É uma verdade incontornável. São conhecidas as razões para algum desencontro terminológico ou mesmo desconforto ou ruído interpretativo nesta matéria da suspensão do processo[9]. Na versão original do CPP a suspensão provisória do processo estava no âmbito de competência exclusiva do MP, não sendo necessário consentimento do Juiz. O TC, no Ac. 7/87, aquando da fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma entendeu que os originários nºs 1 e 2 do art.º 281º do CPP, eram inconstitucionais. À última hora o legislador acabou por introduzir a exigência da concordância do juiz. Faltou a “afinação” com outras normas, nomeadamente com o “nosso” art.º 384 do CPP, e assim nasceu algum ruído interpretativo, que diga-se em abono da verdade, facilmente se ultrapassa com o apelo a boas regras de interpretação.

Do exposto resulta que o juiz competente para proferir o despacho a que alude o art.º 384º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal é o juiz de instrução.

Decisão:

Julga-se competente para proferir o despacho a que se refere o art.º 384º do Código de Processo Penal o senhor juiz do TIC do Porto.
Observe de imediato o disposto no n.º 3 do artigo 36.º do Código de Processo Penal.
Não há lugar a tributação.
Porto, 4 de Março de 2011.
António Gama Ferreira Ramos
____________________
[1] Proposta de Lei 12/XI Autor: Governo.
2010-03-18 | Entrada.
(…)
2010-03-25 | Votação na generalidade
[DAR I série Nº.39/XI/1 2010.03.26 (pág. 51-51)]
Votação na Reunião Plenária nº. 39
Aprovado
A Favor: PS
Abstenção: PSD, CDS-PP, BE, PCP, PEV
(…)
2010-03-25 | Baixa comissão especialidade
Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias - Comissão competente
(…)
Parecer Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Parecer Associação Sindical dos Juízes Portugueses
2010-07-22 | Votação final global
[DAR I série Nº.83/XI/1 2010.07.23 (pág. 45-45)]
Votação na Reunião Plenária nº. 83, Texto Final apresentado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdade e Garantias relativo à PPL n.º 12/XI/1.ª (GOV), e aos PJLs n.ºs 38/XI/1.ª (PCP), 173/XI/1.ª (CDS-PP), 178/XI/1.ª (PCP), 181/XI/1.ª (BE), e 275/XI/1.ª (PPD/PSD)
Aprovado
Contra: CDS-PP, BE, PCP, PEV
A Favor: PS
2010-07-29 | Baixa comissão para redacção final.
Apesar de nesta página não se fazer referência ao sentido de voto do PSD, resulta da consulta ao DAR I Série n.º 83º/XI/1 2010.7.23, que se absteve.
[2] Boletim Informação & Debate, VI.ª Série, n.º 4, Setembro de 2010, p. 17 e 18.
[3] Alterações ao Código de Processo Penal (Notas Complementares e de Síntese) Audição na AR – 1ª Comissão, Boletim Informação & Debate, VI.ª Série, n.º 4, Setembro de 2010, p. 34 -5.
[4] Disponível em: http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=35137
[5] Acórdão do TRL, de 19.6.2007, CJ XXXII, Tomo III, p. 139.
[6] Acórdão do TRG, de 19.3.2007, XXXII, Tomo II, p. 285-6.
[7] Coincidente nesta conclusão Cruz Bucho, A Revisão de 2010 do Código de Processo Penal, disponível no sítio do TRG.
[8] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p. 170.
[9] A título de mera ilustração, a Decisão Sumária do TRL de 21-12-2010 [Carlos Almeida], disponível no sítio da PGDL, em matéria similar afirma que embora o processo sumário não comporte uma fase de inquérito e não seja admissível a instrução, existe uma fase preliminar, mais ou menos prolongada, sob o domínio do Ministério Público, que se desenrola até à remessa dos autos para a fase de julgamento. É durante essa fase preliminar que o Ministério Público, se o entender conveniente, interroga sumariamente o arguido e é nela que realiza as diligências de prova a que se refere o n.º 4 do artigo 382.º do Código de Processo Penal. Se durante essa fase preliminar do processo sumário o Ministério Público decidir suspender provisoriamente o processo, não desempenha qualquer finalidade útil o registo, a distribuição e a autuação do processo no Tribunal de Pequena Instância Criminal quando não é o respectivo juiz o competente para apreciar a decisão de suspender o processo.