terça-feira, 15 de março de 2011

Crimes fiscais, abuso de confiança e segurança social: pena detentiva/suspensão de pena condicionada

Acórdão da Relação do Porto, de 23-02-2011

Processo: 2760/05.3TAVNG.P1

Nº Convencional: JTRP000

Relator: ANTÓNIO GAMA

Descritores: Nº do Documento: RP201102232760/05.3TAVNG.P1

Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO

Sumário:

Nos crimes fiscais e parafiscais, a pena de prisão é, em abstracto, a pena mais adequada, por ser a única capaz de responder às necessidades de promover a consciência ética fiscal.

Texto Parcial:

«…E – Opção pela pena detentiva.

Sindica o arguido D… a opção pela pena detentiva em detrimento da pena de multa. Diz que não vislumbra motivo para que a pena aplicada não tivesse sido fixada pelo mínimo. Se o mínimo punitivo que pretende o arguido é o mínimo legal diremos que a «culpa» o não permite: no caso não há razões de ordem preventiva especial ou positiva de integração que justifiquem que a pena fique aquém da culpa. Nesta criminalidade não é aconselhável reduzir a medida da pena para aquém da medida da culpa, dados os conhecidos inconvenientes no plano da prevenção geral[7], nesta luta contra a informalidade e evasão fiscal, onde se joga o interesse fundamental do Estado em arrecadar receita para poder prosseguir os fins de justiça social constitucionalmente fixados. É hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, pois o sistema fiscal não pode mais ser visto, numa perspectiva redutora, apenas como o meio de arrecadar receitas, cabendo-lhe também a realização de objectivos de justiça distributiva, o financiamento das actividades sociais do Estado, cf. artºs 103º e 104º da Constituição. Nesta perspectiva é correcta a previsão da pena de prisão como pena principal. Mais, a pena de prisão é, em abstracto, a pena mais adequada por ser a única capaz de responder às necessidades de promover a consciência ética fiscal, não se lhe podendo assacar os efeitos criminógenos que normalmente andam ligados ao cumprimento deste tipo de pena. Acresce que o requisitório contra as penas curtas de prisão perde neste tipo de criminalidade, muita da sua força: os efeitos dessocializadores que lhe andam ligados, na maior parte dos casos, não se fazem sentir ou são substancialmente minorados[8]. Os agentes do crime fiscal são em regra pessoas perfeitamente normais e integradas, que raro assumem as suas condutas como delituosas, antes se consideram protagonistas de meras irregularidades, que são por todos praticadas e que fazem parte das regras do jogo. Ora é contra este modo de conceber as coisas que se impõe reagir, fazendo sentir aos agentes do crime económico e fiscal que abusam da confiança que neles é depositada, que os seus comportamentos ilícitos típicos são crimes e não simples irregularidades. E isso consegue-se de modo particularmente adequado e eficaz com as penas de prisão[9]. Nenhuma censura merece, pois, a concreta pena aplicada, que no quadro factual apurado é proporcionada e por isso de manter.

F – Inconstitucionalidade da condição de suspensão

Como já tivemos oportunidade de dizer[10] a suspensão condicionada não ofende o ideário constitucional. Os recorrentes foram condenados em pena de prisão suspensa pelo período de dezoito meses de prisão sob a condição de, no referido prazo de dezoito meses, procederem ao pagamento das prestações tributárias em apreço nos presentes autos e acréscimos legais. Reagem os arguidos contra o estabelecimento desta condição, com a alegação de que tal suspensão condicionada é inconstitucional, já que o nosso ordenamento jurídico não permite a prisão por dívidas, que a condição será dificilmente cumprida, que essa forma de assegurar o pagamento das quantias ao Estado viola o princípio constitucional da separação de poderes. Relativamente à primeira das alegações, apesar de os arguidos não explicarem onde radica a alegada inconstitucionalidade, que norma ou princípio constitucional foi violado, vejamos se lhes assiste ou não razão. O art.º 14º n.º1 do RGIT, impõe que se condicione sempre a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa. Do art.º 8º n.º2 da Constituição retira-se a conclusão que a CEDH vigora na ordem jurídica interna do Estado Português. O art.º 1 do Protocolo n.º 4, adicional à convenção de protecção dos direitos do homem, refere, na tradução portuguesa que acompanhou a Lei n.º 65/78 de 13.10: Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual. Como vimos os recorrentes omitem por completo onde radica a conclusiva alegação de inconstitucionalidade. Parece entenderem que o condicionamento, via art.º 14º do RGIT, da suspensão da execução da pena de prisão, ao pagamento da prestação tributária em dívida viola o disposto no referido art.º 1º do Protocolo 4 Adicional à CEDH. Impõe-se uma liminar e não despicienda chamada de atenção: o que diz o art.º 1º do protocolo n.º4 [1963] da CEDH é que «Ninguém será privado da sua liberdade meramente com base na impossibilidade de cumprir uma obrigação contratual». O pormenor «contratual» faz toda a diferença. A obrigação de pagar impostos não é uma obrigação contratual na dimensão normativa usada na CEDH. O Estado não contrata com os contribuintes o pagamento de impostos; a obrigação de pagar impostos deriva da imperatividade da lei e não tem por fonte qualquer contrato. Daí que o art.º 107º do RGIT, ao prever a aplicação de uma pena de prisão, não é inconstitucional, nem viola o princípio de que ninguém pode ser privado da liberdade por não poder cumprir uma obrigação contratual, pela única razão de que está em causa uma obrigação legal de pagamento de impostos e não qualquer obrigação contratual. Do mesmo modo o art.º 14º do RGIT não é inconstitucional ao condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais em falta. Repete-se a obrigação em causa – pagar impostos em dívida – é uma obrigação pública fiscal que deriva da lei e não tem por fonte qualquer contrato. A história do preceito ajuda a consolidar a afirmação que fizemos. Quando o Protocolo n.º4 estava a ser considerado em 1960, a Assembleia Consultiva propôs adoptar o texto das Nações Unidas sem alteração, de modo a reforçar as garantias existentes no art.º 5º da Convenção relativas ao direito à liberdade e segurança da pessoa. A nova garantia aplicar-se-ia a obrigações contratuais de todo o tipo, incluindo a não entrega e a não execução, e não apenas dívidas monetárias. Ao mesmo tempo, não se aplicaria a obrigações públicas (fiscais ou militares), nem a obrigações civis impostas por estatuto ou por ordem de um tribunal. Por essa razão – estar em causa uma obrigação legal, não meramente contratual – não se verifica também violação do art.º 27º n.º1 e 2.

Invocar a violação do art.º 13º da Constituição, pretextando situação de privilégio do Estado na cobrança dos impostos relativamente aos particulares na cobrança das dívidas também não procede. A lei em questão reveste carácter geral e abstracto e os recorrentes não identificam qualquer arbítrio legislativo, desnecessidade, desproporcionalidade ou desrazoabilidade do art.º 14º do RGIT e só essas características poderiam ter relevo. Se alguma vantagem tem o Estado, tal justifica-se em nome das finalidades que prossegue e que a Constituição lhe impõe. O Estado está incumbido de realizar democraticamente vários objectivos visando a realização da democracia económica, social e cultural, art.º 58 e segts da Constituição. Essas finalidades são possibilitadas pelas receitas cobradas pelo sistema fiscal, cujo regime jurídico foi aprovado nos termos da Constituição e da lei. Daí que o dever de pagar impostos, não deriva de uma obrigação meramente contratual, tem origem legal e configura-se até como um dever fundamental[11]. Consequentemente o cumprimento desse dever, essencial para a realização dos referidos fins do Estado, pode ser assegurado, e essa foi a opção do legislador português, mediante a cominação de sanções criminais. As receitas fiscais são o «salário» com que o Estado Português governa o país. Colocar em pé de igualdade créditos de particulares e obrigações legais é ferir de morte o próprio Estado, torna-lo refém dos interesses dos particulares. O juízo de conformidade constitucional do art.º 14º do RGIT com a Constituição – com as apontadas normas e outras – tem sido o veredicto constante do Tribunal Constitucional, por exemplo, nos Acórdãos n.º 240/00, 256/03, 335/03, 376/03, 500/05, 543/06, 29/07; 61/07, 327/08 e 556/2009 todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, nos quais decidiu não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 14.º do RGIT, enquanto condiciona a suspensão da execução da pena ao pagamento ao Estado das quantias em dívida. Conclui-se, assim, pela conformidade constitucional dos artºs artigo 14º e 107º do RGIT, que não violam o disposto nos artºs 8º n.º2 e 27º nº 1 e 2 e art.º 13º n.º1 e 2 da Constituição nem o art.º 1º do protocolo n.º4 [1963] da CEDH.

Quanto ao argumento de que a condição será dificilmente cumprida, valem em parte as considerações já expendidas, com o acrescento de que, conforme bem realça o Exmo. Exmo. Procurador-Geral Adjunto o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça de modo reiterado e uniforme afastam a objecção de que, com a suspensão condicionada se está a impor aos arguidos um dever de cumprimento impossível e com isso a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa. Em primeiro lugar um juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão. De outro modo como se afastava esse “gravame” para os arguidos? Aplicando-lhe de imediato o “benefício” de uma pena de prisão efectiva? A argumentação dos arguidos esquece duas realidades incontornáveis: as quantias que agora são obrigados a repor estiveram na sua disponibilidade, deram-lhes destino diferente daquele a que estavam legalmente obrigados; depois bem vistas as coisas, nos presentes autos, não se averiguou em profundidade os meios de fortuna dos arguidos e caso seja precária sempre pode haver “regresso de melhor fortuna”. Finalmente a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não é automática mas mediada pela intervenção e avaliação judicial com amplo e efectivo contraditório, onde os arguidos podem demonstrar os esforços desenvolvidos no cumprimento da obrigação, restando sempre uma certeza, art.º 55 do Código Penal a contrario, o incumprimento da obrigação condição de suspensão, sem culpa do condenado, não determina a revogação da suspensão da pena.
Quanto a violação da divisão de poderes não funda o recorrente a sua alegação e também nós não vislumbramos suporte para tal afirmação…»

“…Decisão:

Julgam-se improcedentes os recursos, com a correcção de que relativamente aos membros dos órgãos estatutários só é penalmente típica a retenção após a entrada em vigor do RGIT.

Custas pelos arguidos fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 23 de Fevereiro de 2011.

António Gama Ferreira Ramos

Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva”

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