terça-feira, 19 de junho de 2007

Abuso de Confiança Fiscal - (In)constitucionalidade

Muito embora em matéria de criminalização o legislador não beneficie de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição da República, certo é, contudo, que no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com fundamento em violação do princípio da necessidade ou da proporcionalidade, o julgador que aprecie da conformidade constitucional da norma penal à Constituição só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas.
No caso do crime de abuso de confiança fiscal existem ponderosas razões de política criminal a impor a criminalização efectuada.
Tanto assim é que o próprio Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 54/04, de 20.01.04 ( Processo n.º 640/03, 2ª Secção – Relator – Cons. Paulo Mota Pinto, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos ) decidiu não julgar inconstitucional a norma do art. 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributarias.
A obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária deduzida nos termos da lei ( e não de contrato ) e a falta dolosa dessa entrega, decorrido um período razoável, que o legislador definiu ser de 90 dias, configura crime de abuso de confiança fiscal e tal assim é porque estamos perante um dever legal cujo cumprimento é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado.
Note-se ainda que mesmo nos casos de outros crimes públicos mais graves, o direito civil permite a indemnização do dano, sem que daí decorra a inconstitucionalidade da incriminação penal. Isto porque a tutela cível não satisfaz os fins que se pretendem alcançar com a incriminação penal.
Essencial é sublinhar que estamos perante um bem jurídico que se pode reconduzir em última instância ao património do Estado, mas que se liga directamente a ponderosas razões de justiça distributiva e de igualdade social.
Note-se ainda que não existe crime senão decorrido aquele prazo de 90 dias, existindo até aí contra-ordenação. Mas mesmo que o legislador se tivesse equivocado, prevendo para uma mesma situação a responsabilidade contra-ordenacional e a responsabilidade penal, o certo é que se estaria perante uma situação de alternatividade a impor uma solução que apele directamente às regras da consunção. Se se preferir, a norma penal configura mesmo, nessas situações, uma especialidade, a impor a sua aplicação, porque contém todos os elementos da contra-ordenação e mais alguns, ainda que seja apenas a sanção penal.
Por outro lado, se colocarmos os preceitos do art. 24º do RJIFNA e do art. 105º do RGIT lado a lado, veremos que as diferenças são mínimas, diremos mesmo insignificantes. As diferenças são meramente literais, que não de fundo, tudo não passando de uma mera diferença de redacção, sem qualquer significado especial, a não ser o de ser agora mais claro que os impostos têm de ser recebidos, não relevando criminalmente as situações em que existe liquidação de IVA, mas em que não se recebe do cliente o respectivo valor.
Com efeito, embora na lei actual se não faça referência expressa à apropriação, ela está contida no espírito do texto, pois se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei.
A ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado.
Na realidade, a não entrega total ou parcial da prestação tributária ou equiparada traduz-se num apropriar-se, num fazer sua coisa alheia. Inicialmente o agente recebe validamente a coisa, passando a possui-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção passando a dispor da coisa ut dominum. Deixa então de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer.
Note-se ainda na seguinte diferença: para que exista o abuso de confiança do Código Penal ( art. 205º ) é necessário que o agente ilegitimamente se aproprie de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade; no caso do empresário que não entrega ao Estado os montantes que, por exemplo, reteve na fonte a título de IRS, este não se apropria de nada que lhe tenha sido entregue pelo Estado, pois os valores em causa ficaram na disponibilidade do mesmo, desde sempre, ab initio, numa relação muito próxima da do fiel depositário – não há entrega, há é uma imposição legal de entrega de tais montantes ao Estado. Portanto, a ideia da inversão do título de posse não é totalmente válida, pois não existe a entrega. O que interessa verdadeiramente é a não entrega de tais valores ao Estado, independentemente da finalidade que se venha a dar a tal dinheiro, pois que estamos em matéria de interesse público geral, não se podendo aqui verificar a sobreposição de interesses particulares.
A apropriação a que se refere o art. 24º do RJIFNA é uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, estando por isso integrada no seu texto, ao menos implicitamente, como decorrência lógica.
Nelson Hungria refere no Comentário ao Código Penal Brasileiro, 135, que existe apropriação indébita não só quando a negativa de restituição se funda no «arbitrário animus rem sibi habendi», mas também quando «não haja, de todo, qualquer fundamento legal ou motivo razoável para a recusa ou omissão», podendo integrar essa recusa ou omissão actos da mais diversa espécie: venda, doação, consumo, dissipação, cessão, penhor, caução, ocultação, etc, isto é, qualquer acto que fique à margem do destino a que essas quantias estavam legalmente afectas.