segunda-feira, 8 de março de 2010

Insolvência

Inquérito nº

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Iniciaram-se os presentes autos com a remessa ao Ministério Público (fls. 1) de Certidão, nos termos do disposto no art. 36º, alínea h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Refere aquele preceito que:

“Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:

(…)

h) Ordena a entrega ao Ministério Público, para os devidos efeitos, dos elementos que indiciem a prática de infracção penal”.

Acrescenta o art. 297º do mesmo diploma que:

“1 – Logo que haja conhecimento de factos que indiciem a prática dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º, do Código Penal, manda o juiz dar conhecimento da ocorrência ao Ministério Público, para efeitos do exercício da acção penal.

2 – Sendo a denúncia feita no requerimento inicial, são as testemunhas ouvidas sobre os factos alegados na audiência de julgamento para a declaração de insolvência, extractando-se na acta os seus depoimentos sobre a matéria.

3 – Dos depoimentos prestados extrair-se-á certidão, que é mandada entregar ao Ministério Público, conjuntamente com outros elementos existentes, nos termos do disposto na alínea h) do artigo 36.”

Do cotejo das normas citadas resulta que só devem ser comunicados ao Ministério Público os elementos, carreados para o processo até ao proferimento da sentença, que constituam uma notícia criminosa, para que o mesmo inicie a competente investigação. Logo, se no momento em que é proferida a sentença, não se tiver notícia de qualquer actuação criminosa, não deve ser entregue qualquer certidão ao Ministério Público para efeitos criminais.

A propósito do envio de tais elementos ao Ministério Público, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 189, que: “Vê-se, do próprio modo como a norma está formulada, o carácter eventual da menção, a qual só deve ser feita quando os elementos trazidos ao processo até a altura da sentença indiciem suficientemente a prática de infracção criminal, nomeadamente alguma das previstas nos arts. 227.º a 229.º-A do C. Penal.

A razão de ser da exigência legal prende-se com o facto de assim se fazer um juízo crítico preliminar sobre a relevância dos factos apurados e dos elementos a remeter para obviar ao envio de peças inúteis”.

Compreende-se tal opção legislativa, dado que o Ministério Público apenas está vinculado à abertura de inquérito, respeitando o princípio da legalidade aflorado no art. 262º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando lhe é dada notícia de um crime.

Se o Juiz lhe remete os elementos, mormente certidão da sentença que decreta a insolvência, sem fazer o “juízo crítico preliminar sobre a relevância dos factos apurados e dos elementos a remeter”, a que aludem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., e aqueles não consubstanciarem uma notícia criminosa, não cabe ao Ministério Público fazer diligências no sentido de recolher indícios de tal notícia. Ao Ministério Público cabe apenas, como supra se referiu, iniciar a investigação quando há notícia da prática de um crime (público). Se não há tal notícia, arquiva liminarmente por ausência de crime, nos termos do art. 277º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Daqui resulta que o Juiz só deve remeter certidão ao Ministério Público, quando nos autos de insolvência se recolham indícios de actuação criminosa.

Compulsando os elementos enviados ao Ministério Público, extraídos dos autos de insolvência que correm termos no … juízo deste Tribunal, com o n.º …/…, denotamos que não há quaisquer indícios que nos permitam imputar ao insolvente a prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. no art. 227º, n.º 1, do Código Penal, dado que nos mesmos não se vislumbra qualquer facto que preencha o tipo legal do art. 227º, n.º 1, do Código Penal.

De facto, dos elementos remetidos ao Ministério Público, não se extrai qualquer facto que demonstre que o devedor, ora insolvente, com intenção de prejudicar os credores, tenha: destruído, danificado, inutilizado ou feito desaparecer parte do seu património; tenha diminuído ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida; tenha criado ou agravado artificialmente prejuízos ou reduzido lucros; ou tenha para retardar a falência, comprado mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente.

Resta-nos indagar se dos autos resultam elementos que integrem o tipo legal de insolvência negligente p. e p. no art. 228º, do Código Penal.

Estatui aquele preceito normativo:

1. O devedor que:

a) Por grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas, ou grave negligência no exercício da sua actividade, criar um estado de insolvência; ou

b) Tendo conhecimento das dificuldades económicas e financeiras da sua empresa, não requerer em tempo nenhuma providência de recuperação;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 444 e no mesmo sentido também, Maria Fernanda Palma, in RFDL, 1995 409, defende que, não obstante a epígrafe “insolvência negligente”, as condutas previstas no n.º 1, do art. 228º, do Código Penal, seriam, necessariamente, dolosas, exceptuando a causação negligente da insolvência do devedor comerciante no exercício da sua actividade, a que faz referência a alínea a) in fine.

Refere o ilustre penalista que: “Apesar da recente modificação da epígrafe do art. 228 operada pela L. 65/98, cremos que o respeito pelo disposto no art. 13° do CP relativamente a necessidade de disposição expressa (típica) para a punição da negligência impõe a conclusão de que as condutas incriminadas nas als. a) e b) do n° 1 só serão puníveis a título de dolo (assim também Mª FERNANDA PALMA, RFDL 1995 409, embora no contexto do direito anterior, que apelidava este crime de Falência não intencional) - ressalvada, como é óbvio, a causação negligente da própria insolvência por parte do devedor (comerciante) no exercício da sua actividade, expressamente prevista na al . a), in fine. Na verdade, a simples inclusão no tipo dos conceitos de incúria, imprudência, prodigalidade, etc., não significa, ipso facto, a punição das condutas negligentes que causem a insolvência, mas antes a subordinação típica das condutas dolosas causadoras da insolvência aos ditos parâmetros. Para além de imposta pela citada regra legal da punição da negligência, esta leitura compagina-se com a limitação da punição da produção negligente da insolvência estas condutas praticadas pelo devedor (comerciante) "no exercício da sua actividade" (cf. supra § 10 e infra 31 ss.) e impede a consequência absurda de as condutas descritas no tipo serem imputáveis ao agente em caso de negligência e já não, por não se preencher o tipo subjectivo, no caso de o agente actuar com dolo.

(…) A coexistência de dois tipos dolosos na punição dos crimes falenciais afigura-se adequada, tanto no plano político-criminal como, no plano dogmático. Com efeito, enquanto que a forma fraudulenta do art. 227° reprime a causação fictícia da própria crise, que tem por fim um locupletamento oculto e ilegítimo por parte do devedor – condensado, porventura de forma infeliz, na exigência da intenção de prejudicar os credores –, a forma simples tem em vista a punição da assunção inadequada, a título de dolo (em especial, de dolo eventual)”.

Após minuciosa análise dos documentos juntos aos autos teremos de concluir, também, que não está preenchido o tipo plasmado na alínea a), deste normativo.

De facto, na sentença proferida no processo n.º …/…, reconheceu-se e declarou-se a incapacidade económica do insolvente para satisfazer pontualmente as obrigações firmadas com os seus credores.

Daqui não resulta, contudo, que tal incapacidade económica se tenha ficado a dever a grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas por parte do insolvente, ou grave negligência no exercício da sua actividade. Para que se pudesse extrair tal conclusão teriam, antes de mais, de ser carreados para os autos factos concretos que densificassem os conceitos indeterminados plasmados na alínea a), do n.º 1, do art. 228º do Código Penal, o que não aconteceu, depois ter-se-ia de estabelecer o nexo de causalidade entre aqueles factos e a situação de insolvência, o que também, não se verificou.

Importa, por último, aferir se a situação se enquadra na alínea b), do n.º 1, do art. 228º, do Código Penal.

Esta norma introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, foi, desde o seu surgimento, objecto de críticas.

Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 443, refere que a norma em questão é “insustentável no plano político – criminal”, “incongruente no plano sistemático porque cria deveres penais num espaço onde o direito civil confere uma ampla liberdade de acção; é materialmente inconstitucional porque viola o princípio da necessidade da lei penal contido no art. 18º da CRP e o princípio da legalidade contido no art. 29º, n.º1, do mesmo diploma”.

A situação agravou-se com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 8 de Março, que fez desaparecer a dicotomia entre recuperação/falência e suprimiu a norma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, que estabelecia que “a empresa insolvente ou em situação económica difícil que se considere economicamente viável e julgue superável a situação económica em que se encontra pode requerer em juízo a providência de recuperação adequada”. Hoje existe, apenas, uma obrigação de apresentação à insolvência (art. 18º, do CIRE) que não se confunde com qualquer obrigação de requerer uma providência de recuperação.

Face a tal evolução legislativa, no âmbito da insolvência, fica esvaziada de conteúdo a alínea b) do n.º 1, do art. 228, que não acompanhou aquela evolução.

Se o legislador penal não procedeu à alteração do referido preceito, no sentido de substituir a obrigação de requerer providência de recuperação pela obrigação de se apresentar à insolvência, não pode, agora, o intérprete e aplicador do Direito proceder a qualquer interpretação actualista da norma pois, a mesma, viola o princípio da legalidade plasmado no art. 1º, n.º 1 e 3, do Código Penal e 29º, nº 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

Assim sendo teremos de concluir que, face à letra da alínea b), do n.º 1, do art. 228, do Código Penal, a omissão do dever a que alude o art. 18º, n.º 1, do CIRE, ou seja, da obrigação do devedor requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência ou à data em que devesse conhecê-la, não constitui crime.

Face ao exposto determino o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2, do Código Processo Penal, sem prejuízo da sua posterior reabertura se forem remetidos elementos que consubstanciem uma notícia criminosa.

Cumpra o disposto no art. 277º, n.º 3, do Código Processo Penal.

Remeta certidão do presente despacho ao Processo de insolvência n.º …/…, que corre termos no … juízo deste Tribunal, nos termos do disposto no art. 300º do CIRE.

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Processei, revi, imprimi e assinei o texto, seguindo o verso em branco (art. 94º, n.º 2, do CPP)

Local/Data, d.s.

O Procurador-Adjunto

Artigo 14º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias: revogação tácita.

Comum Singular n.º
do … Juízo




Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito do
Tribunal Judicial de …


O Ministério Público, não se conformando com a sentença proferida nos autos supra-referenciados vem, nos termos dos artigos 399.º, 401.º, n.º 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal, dela interpor recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a subir imediatamente (art. 407.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Penal), nos próprios autos (art. 406.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal) e com efeito suspensivo (art. 408.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal).

Para o efeito junta a sua motivação.

Mais requer a Vossa Excelência que se digne admitir o presente recurso.

***

Motivação

*

Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores

Objecto do recurso:
O presente recurso é interposto pelo facto de a sentença recorrida ter aplicado uma pena de prisão suspensa na sua execução, pelo prazo de cinco anos, com a condição de pagamento da indemnização nela mencionada, em aplicação dos arts. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03, e 14º, n.º 1, do R.G.I.T.

*

A respeito da questão que se suscita neste recurso decidiu o Acórdão da Relação do Porto, de 07.11.2007, no qual foi relator o ilustre desembargador Pinto Monteiro, (Processo 0743150; N.º Convencional: JTRP00040730) o seguinte:
Sumário:

“Se, numa altura em que ainda não vigoravam as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei nº 59/2007, a execução de uma pena de 1 ano de prisão, aplicada por crime de frustração de créditos, ficou suspensa pelo período de 5 anos, sob a condição de nesse período o arguido pagar ao Estado uma quantia superior a € 1 600 000,00, correspondente a prestação tributária em falta e acréscimos legais, após a entrada em vigor daquelas alterações, deve reduzir-se para 1 ano o período de suspensão, nos termos da nova redacção do nº 5 do art. 50º do Código Penal, que consagra um regime mais favorável ao arguido. Mas, porque assim resulta um período mais curto que o considerado adequado para o pagamento daquele valor, a suspensão não deve ficar subordinada ao cumprimento da dita condição”.

Dispõe o art. 8º do Cód. Penal que “As disposições deste diploma são aplicáveis aos factos puníveis pelo direito penal militar e da marinha mercante e pela restante legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário”.
Poder-se-á concluir que a ressalva da parte final do art. 8º do Cód. Penal impõe a subsistência do art. 14º do R.G.I.T.?
Poder-se-á entender que o art. 14º do R.G.I.T. não foi tacitamente revogado, nesta parte, já que a lei geral não revoga a lei especial (art. 7º, n.º 3, do Cód. Civil) – cf. neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 10-02-2010 (processo 145/04.8IDPMS.C1, relator: Esteves Marques, in
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/)? Ou foi intenção inequívoca do legislador a não subsistência de tal norma?


O facto de o legislador punir mais fortemente as violações contra a vida quando comparadas com as violações que ofendem os bens patrimoniais não pode ser olhada como um acaso ou uma arbitrariedade; corresponde, antes, a um sentido, a uma intencionalidade que une, deve unir, todos os crimes definidos na parte especial do Código Penal. Corresponde uma tal forma de perceber à aceitação de que entre as diversas infracções da parte especial intercede, não só uma específica valoração de proporcionalidade que parte, primacialmente, da correspondência entre a gravidade da infracção e a gravidade da pena, mas também um juízo de perequação quanto aos mínimos e aos máximos das diferentes molduras penais abstractas.
A parte especial do Código Penal não é expressão de um conglomerado, antes nela se detecta uma coerência, quer ao nível da ordenação dos bens jurídicos – no que se traduz também aquela analogia substancial à Constituição do direito penal-, quer no âmbito – indissociavelmente ligado à anterior ordenação através de uma mútua reciprocidade - da definição das molduras penais abstractas.
A actuação do legislador ao nível da definição da moldura penal abstracta não pode ser imotivada, antes tem de atender a critérios materiais, desde logo, ao critério da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a pena. Mas a relação de proporção ou de desproporção só pode ser compreendida dentro de um determinado quadro de valoração ou horizonte normativo. É o próprio ordenamento jurídico existente que indicia, nomeadamente no âmbito do Código Penal, uma formulação sobre a hierarquização axiológica pressuposta pelo legislador.
Existem diferenças de valoração dentro do horizonte normativo no qual se realiza a operação normativa de aferição da proporcionalidade.
E só assim, acrescente-se, se pode conceber. Pois só na diferença é que é concebível uma proporcionalidade. Mas o problema da proporcionalidade, entre a infracção e a pena, não se pode ver exclusivamente através de um único segmento de valoração, nem, muito menos, arrancando da ideia simplista de que se está perante um juízo global de proporção ou de desproporção. Julgamos que a questão da proporcionalidade tem de ser olhada, fundamentalmente, a partir de dois princípios: de um princípio de perequação dos mínimos e de um princípio de perequação dos máximos.
Porém, para que tais princípios possam ser operatórios, há que descobrir uma função para aqueles limites. Assim, pensamos dever atribuir-se aos mínimos legais uma função de limiar abaixo do qual o legislador entende não ter sentido, logo desnecessária, a intervenção do direito penal, isto é: eles representam na arquitectura normativa o último grau ao qual pode descer a tutela jurídico-penal, enquanto os máximos se perfilam como o limite extremo até onde o ordenamento penal está disposto a assegurar a eficácia concreta da tutela.
Porém, é necessário ir mais longe ainda. É necessário entrar fundamentalmente em linha de conta com a ideia de bem jurídico e com o facto de que é também função da lei penal a prevenção, ou seja, não se pode esquecer a ressonância que qualquer Código Penal adquire no seio da comunidade e que lhe advém do impacto que a chamada «Parte Especial» provoca na consciência colectiva e, muito particularmente, na consciência individual dos membros daquela específica e precisa comunidade jurídica – o valor simbólico que o Código Penal desencadeia nas actuais sociedades coincide ponto por ponto, com a definição dos próprios tipos legais de crime. Assim, se na fixação do limite de 25 anos do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal intervém um princípio de humanidade das penas, ou seja e no fundo, a ideia de dignidade humana, a crença na capacidade de ressocialização da pessoa humana, e também uma ideia de prevenção, na fixação do limite mínimo vale antes uma ideia de benefício/prejuízo que possa daí resultar para a pessoa e comunidade, ou seja, vale uma lógica de custos e prejuízos ligados ao cumprimento da pena – ex. não faria sentido impor um limite mínimo de um dia de prisão em vez dos trinta dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que a prisão tem inerente um estigma e um prejuízo que ofuscam por completo as vantagens para o delinquente e sociedade que derivariam do cumprimento de tal dia de prisão ( o que não invalida o disposto no art.º 49º, n.º 1, parte final, do Código Penal, pois que aí não existe alternativa senão a prisão ).
Mas, entre o limite de 25 anos de prisão do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal e o limite de 30 dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do mesmo código, a graduação far-se-á, na construção das molduras dos tipos legais de crimes, em função da importância do bem jurídico. E sendo os bens jurídicos protegidos pelo direito penal escassos ( no sentido de importantes ), então, actua aqui fundamentalmente uma ideia de necessidade do bem jurídico para a pessoa e para a comunidade.
Nesta sede haverá que perceber o modo de superação individual e/ou social das consequências negativas do crime. Dito de outro modo, haverá que considerar os efeitos possíveis da agressão ao bem jurídico.
Se se quisesse resumir, dir-se-ia que na fixação das molduras abstractas haverá aí também que respeitar o princípio da proibição do excesso do art.º 18º da Constituição da República Portuguesa.
Numa outra vertente, entendemos que, muito embora sem esquecer que o que legitima a incriminação é a ideia de bem jurídico e que a moldura abstracta das penas se liga antes à ideia de carência de tutela penal, a equiparação das penas abstractas da fraude fiscal às do homicídio simples seria inconstitucional, e desde logo por violação da ideia de bem jurídico como princípio material de distinção, do princípio da proporcionalidade (art.º 18º, n.º 2, da C.R.P.), e, no fundo, daquela ideia de analogia substancial entre o direito penal e a Constituição (cf. a sistemática desta, de onde resulta manifestamente uma preferência pelos direitos, liberdades e garantias, porque mais directamente ligados à ideia de dignidade humana – há aqui bens jurídicos sem os quais a comunidade não é sequer pensável - e porque aos direitos económicos, sociais e culturais estará sempre inerente uma certa ideia de sistema). Numa determinada óptica, talvez se pudesse afirmar que o direito penal secundário visa a protecção de bens jurídicos que, se comparados com os que iluminam o direito penal clássico, estão num nível mais baixo na escala da valoração axiológica, no sentido de que a menor gravidade penal deriva do «défice de legitimidade». Todavia, para nós, a validade de tal ideia deve ser compaginada com o facto de que, sendo tais bens jurídicos assumidos pela Constituição, então não há verdadeiramente «défice de legitimidade», porque tais novos bens jurídicos foram historicamente sedimentados. Em vez de «défice de legitimidade», conceito este de duvidoso alcance prático para o aplicador da lei constituída, mais correcto será recorrer ao binómio constitucionalidade /inconstitucionalidade.
Aliás, não se vê que défice de legitimidade exista no crime de fraude fiscal quando confrontado, por exemplo, com os crimes de burla p. e p. pelo art.s 217º a 222º do Cód. Penal. O carácter mutável dos factos ilícitos do direito penal secundário não vale para os crimes fiscais, uma vez que o bem jurídico respectivo se foi sedimentando e ganhou mesmo tutela directa na Constituição da República (art.s 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa). Em sede de direito penal secundário, onde o tipo legal de crime se constrói amiudadas vezes como tipo legal de crime de perigo, fundamental é que o nexo de perigo seja minimamente densificado, pois não o sendo violar-se-á o princípio da proporcionalidade em sentido amplo e assim o da intervenção mínima do direito penal. Por outro lado, no que respeita ao modo de o legislador definir as condutas proibidas no âmbito do direito penal mais directamente ligado à tutela do sistema social em sentido amplo, não existe tanta legitimidade neste âmbito para recorrer à técnica da «descrição vazia» (ex. matar), impondo-se uma exacta definição das condutas proibidas. Mesmo que a necessidade da pena se perfile como inquestionável e mesmo que se entenda que a sua concretização não fere o chamado núcleo essencial, mesmo assim há que compaginá-la com a ideia força inerente à proporcionalidade restrita. Sem dúvida que, se para punir uma fraude fiscal for cominada uma brutal pena de prisão, pode essa realidade justificar-se, eventualmente, através de uma ideia de necessidade; mas o que, com certeza, não honra, é o princípio da proporcionalidade. Ao desvalor do facto objectivamente considerado, há que fazer corresponder um desvalor no efeito (pena), também ele objectivamente proporcionado.
A essencialidade do bem jurídico pode justificar a incriminação, mas já não justificará penas desproporcionadas ou a violação do princípio da irrectroactividade da lei penal desfavorável.

Concluindo, o disposto no art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T. viola os princípios de perequação dos mínimos e de perequação dos máximos, atrás referidos, porquanto o estabelecimento de limites mínimos e máximos diferentes de suspensão da execução da pena de prisão e mais gravosos que no direito penal de justiça atenta contra o princípio da proporcionalidade do art. 18º da Constituição da República, na modalidade de proibição do excesso.
E, assim sendo, o disposto no art. 2º, n.º 4, do Cód. Penal deve prevalecer sobre a interpretação literal do art. 8º do Cód. Penal. Pode concluir-se que o legislador, ao alterar as regras da suspensão da execução da pena do Código Penal, só por esquecimento não alterou ou compatibilizou o art. 14º do R.G.I.T. com tais regras, pelo que este não pode subsistir mais, nesta parte.

Ou seja, o prazo de suspensão da execução da pena de prisão não pode ser superior ao da pena de prisão e, por outro lado, não pode ser imposta a condição de pagamento, salvo ao abrigo do art. 51º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, devendo, neste caso, ponderar-se da adequação de tal condição, quando se dá por provado que o arguido se encontra desempregado e nas demais condições referidas na sentença.

O que não se pode é afirmar, como na sentença recorrida, que se apresentam duas possibilidades, ou seja, aplicar o regime anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09, determinando um período de suspensão mais alargado, superior ao do art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, que pode ir até cinco anos, e conferindo um prazo maior para o cumprimento da condição a que está subordinada a suspensão, em aplicação estrita do art. 14º do R.G.I.T., ou determinar um período de suspensão substancialmente mais curto, em obediência ao art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, mas também com um prazo muito menor para cumprir a condição imposta no art. 14º do R.G.I.T.. Na verdade, esta última solução não é possível, pois seria misturar dois regimes, o do art. 14º do R.G.I.T., pensado para um Código Penal com um prazo de suspensão de execução da pena que podia ir até cinco anos (cf. art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal na redacção anterior), e o que resulta da nova redacção do art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, que, sendo incompatível com aquele normativo do R.G.I.T. e implicando até a sua revogação tácita, não se pode misturar com o mesmo. Em suma, como se afirma na sentença, embora nela depois se não cumpra tal ideia, há que determinar em concreto qual o regime legal mais favorável ao arguido, opção essa que terá de atender aos regimes na sua globalidade e não na parte que parcelarmente for mais favorável.
A sentença recorrida parte do pressuposto, errado, de que o art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal é conjugável com o art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T., através da redução do prazo de 5 anos. Só que tal interpretação revogatória de tal artigo fica a meio do caminho, e daí afastar a aplicação do art. 50º, n.º 5. do Cód. Penal, na redacção actual. Pois, a revogação não se opera apenas pela redução do prazo de suspensão da execução da pena de prisão, mas pela revogação total do artigo, até pela possibilidade de recurso ao art. 51º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal.
Em suma, subscreve-se a solução do Acórdão da Relação do Porto de 07.11.2007, supra citado.
Concluindo:


1. Ao suspender a pena de prisão aplicada ao arguido, pelo prazo de cinco anos, sob a condição de o arguido pagar o montante em dívida de 65.737,98€ e acréscimos legais, por aplicação do disposto no art. 50º, n.ºs 1, 2 e 5 do Cód. Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03, e 14º, n.º 1, do R.G.I.T.,

2. entendeu a sentença recorrida ser tal regime mais favorável ao arguido, em comparação com o que resultaria da aplicação conjugada do art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, na redacção actual, e 14º, n.º 1, do R.G.I.T., pois este último regime, segundo a sentença, implicaria um prazo mais curto para pagar a indemnização devida ao Estado.

3. Acontece, porém, que o regime mais favorável e que devia ter sido aplicado, conforme sustentado no Acórdão da Relação do Porto, de 07-11-2007, supra citado, é o que resulta da aplicação do disposto no art. 50º, n.º 5, do Cód. Penal, na redacção actual, sem recurso ao disposto no art. 14º, n.º 1, do R.G.I.T., que se deve ter por tacitamente revogado, por se ter tornado incompatível com aquele primeiro dispositivo legal, perdendo assim a sua razão de ser (cf. art. 7º, n.º 3, parte final, do Cód. Civil).

4. Tal conclusão é imposta pelos princípios de perequação dos mínimos e de perequação dos máximos das molduras penais, ou seja, em última instância, pelo princípio da proibição do excesso do art. 18º, n.º 1, da Constituição da República, que é violado pela solução contrária.

5. O que não deve impedir, porém, o recurso ao disposto no art. 51º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na redacção actual, impondo-se ao arguido que enverede esforços no sentido de pagar um montante do valor devido, a fixar segundo um critério de equidade, que tenha em consideração a capacidade de trabalho do arguido e conhecimentos adquiridos, sem prejuízo de uma ulterior reavaliação, em caso de incumprimento não culposo, ao abrigo do art. 55º do Cód. Penal.

6. Termos em que se entende dever ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra nos termos preconizados.

No entanto, Vossas Excelências, como sempre, farão a tão costumada

JUSTIÇA!

O Procurador-Adjunto