segunda-feira, 8 de março de 2010

Insolvência

Inquérito nº

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Iniciaram-se os presentes autos com a remessa ao Ministério Público (fls. 1) de Certidão, nos termos do disposto no art. 36º, alínea h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Refere aquele preceito que:

“Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:

(…)

h) Ordena a entrega ao Ministério Público, para os devidos efeitos, dos elementos que indiciem a prática de infracção penal”.

Acrescenta o art. 297º do mesmo diploma que:

“1 – Logo que haja conhecimento de factos que indiciem a prática dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º, do Código Penal, manda o juiz dar conhecimento da ocorrência ao Ministério Público, para efeitos do exercício da acção penal.

2 – Sendo a denúncia feita no requerimento inicial, são as testemunhas ouvidas sobre os factos alegados na audiência de julgamento para a declaração de insolvência, extractando-se na acta os seus depoimentos sobre a matéria.

3 – Dos depoimentos prestados extrair-se-á certidão, que é mandada entregar ao Ministério Público, conjuntamente com outros elementos existentes, nos termos do disposto na alínea h) do artigo 36.”

Do cotejo das normas citadas resulta que só devem ser comunicados ao Ministério Público os elementos, carreados para o processo até ao proferimento da sentença, que constituam uma notícia criminosa, para que o mesmo inicie a competente investigação. Logo, se no momento em que é proferida a sentença, não se tiver notícia de qualquer actuação criminosa, não deve ser entregue qualquer certidão ao Ministério Público para efeitos criminais.

A propósito do envio de tais elementos ao Ministério Público, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 189, que: “Vê-se, do próprio modo como a norma está formulada, o carácter eventual da menção, a qual só deve ser feita quando os elementos trazidos ao processo até a altura da sentença indiciem suficientemente a prática de infracção criminal, nomeadamente alguma das previstas nos arts. 227.º a 229.º-A do C. Penal.

A razão de ser da exigência legal prende-se com o facto de assim se fazer um juízo crítico preliminar sobre a relevância dos factos apurados e dos elementos a remeter para obviar ao envio de peças inúteis”.

Compreende-se tal opção legislativa, dado que o Ministério Público apenas está vinculado à abertura de inquérito, respeitando o princípio da legalidade aflorado no art. 262º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando lhe é dada notícia de um crime.

Se o Juiz lhe remete os elementos, mormente certidão da sentença que decreta a insolvência, sem fazer o “juízo crítico preliminar sobre a relevância dos factos apurados e dos elementos a remeter”, a que aludem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., e aqueles não consubstanciarem uma notícia criminosa, não cabe ao Ministério Público fazer diligências no sentido de recolher indícios de tal notícia. Ao Ministério Público cabe apenas, como supra se referiu, iniciar a investigação quando há notícia da prática de um crime (público). Se não há tal notícia, arquiva liminarmente por ausência de crime, nos termos do art. 277º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Daqui resulta que o Juiz só deve remeter certidão ao Ministério Público, quando nos autos de insolvência se recolham indícios de actuação criminosa.

Compulsando os elementos enviados ao Ministério Público, extraídos dos autos de insolvência que correm termos no … juízo deste Tribunal, com o n.º …/…, denotamos que não há quaisquer indícios que nos permitam imputar ao insolvente a prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. no art. 227º, n.º 1, do Código Penal, dado que nos mesmos não se vislumbra qualquer facto que preencha o tipo legal do art. 227º, n.º 1, do Código Penal.

De facto, dos elementos remetidos ao Ministério Público, não se extrai qualquer facto que demonstre que o devedor, ora insolvente, com intenção de prejudicar os credores, tenha: destruído, danificado, inutilizado ou feito desaparecer parte do seu património; tenha diminuído ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida; tenha criado ou agravado artificialmente prejuízos ou reduzido lucros; ou tenha para retardar a falência, comprado mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente.

Resta-nos indagar se dos autos resultam elementos que integrem o tipo legal de insolvência negligente p. e p. no art. 228º, do Código Penal.

Estatui aquele preceito normativo:

1. O devedor que:

a) Por grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas, ou grave negligência no exercício da sua actividade, criar um estado de insolvência; ou

b) Tendo conhecimento das dificuldades económicas e financeiras da sua empresa, não requerer em tempo nenhuma providência de recuperação;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 444 e no mesmo sentido também, Maria Fernanda Palma, in RFDL, 1995 409, defende que, não obstante a epígrafe “insolvência negligente”, as condutas previstas no n.º 1, do art. 228º, do Código Penal, seriam, necessariamente, dolosas, exceptuando a causação negligente da insolvência do devedor comerciante no exercício da sua actividade, a que faz referência a alínea a) in fine.

Refere o ilustre penalista que: “Apesar da recente modificação da epígrafe do art. 228 operada pela L. 65/98, cremos que o respeito pelo disposto no art. 13° do CP relativamente a necessidade de disposição expressa (típica) para a punição da negligência impõe a conclusão de que as condutas incriminadas nas als. a) e b) do n° 1 só serão puníveis a título de dolo (assim também Mª FERNANDA PALMA, RFDL 1995 409, embora no contexto do direito anterior, que apelidava este crime de Falência não intencional) - ressalvada, como é óbvio, a causação negligente da própria insolvência por parte do devedor (comerciante) no exercício da sua actividade, expressamente prevista na al . a), in fine. Na verdade, a simples inclusão no tipo dos conceitos de incúria, imprudência, prodigalidade, etc., não significa, ipso facto, a punição das condutas negligentes que causem a insolvência, mas antes a subordinação típica das condutas dolosas causadoras da insolvência aos ditos parâmetros. Para além de imposta pela citada regra legal da punição da negligência, esta leitura compagina-se com a limitação da punição da produção negligente da insolvência estas condutas praticadas pelo devedor (comerciante) "no exercício da sua actividade" (cf. supra § 10 e infra 31 ss.) e impede a consequência absurda de as condutas descritas no tipo serem imputáveis ao agente em caso de negligência e já não, por não se preencher o tipo subjectivo, no caso de o agente actuar com dolo.

(…) A coexistência de dois tipos dolosos na punição dos crimes falenciais afigura-se adequada, tanto no plano político-criminal como, no plano dogmático. Com efeito, enquanto que a forma fraudulenta do art. 227° reprime a causação fictícia da própria crise, que tem por fim um locupletamento oculto e ilegítimo por parte do devedor – condensado, porventura de forma infeliz, na exigência da intenção de prejudicar os credores –, a forma simples tem em vista a punição da assunção inadequada, a título de dolo (em especial, de dolo eventual)”.

Após minuciosa análise dos documentos juntos aos autos teremos de concluir, também, que não está preenchido o tipo plasmado na alínea a), deste normativo.

De facto, na sentença proferida no processo n.º …/…, reconheceu-se e declarou-se a incapacidade económica do insolvente para satisfazer pontualmente as obrigações firmadas com os seus credores.

Daqui não resulta, contudo, que tal incapacidade económica se tenha ficado a dever a grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas por parte do insolvente, ou grave negligência no exercício da sua actividade. Para que se pudesse extrair tal conclusão teriam, antes de mais, de ser carreados para os autos factos concretos que densificassem os conceitos indeterminados plasmados na alínea a), do n.º 1, do art. 228º do Código Penal, o que não aconteceu, depois ter-se-ia de estabelecer o nexo de causalidade entre aqueles factos e a situação de insolvência, o que também, não se verificou.

Importa, por último, aferir se a situação se enquadra na alínea b), do n.º 1, do art. 228º, do Código Penal.

Esta norma introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, foi, desde o seu surgimento, objecto de críticas.

Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 443, refere que a norma em questão é “insustentável no plano político – criminal”, “incongruente no plano sistemático porque cria deveres penais num espaço onde o direito civil confere uma ampla liberdade de acção; é materialmente inconstitucional porque viola o princípio da necessidade da lei penal contido no art. 18º da CRP e o princípio da legalidade contido no art. 29º, n.º1, do mesmo diploma”.

A situação agravou-se com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 8 de Março, que fez desaparecer a dicotomia entre recuperação/falência e suprimiu a norma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, que estabelecia que “a empresa insolvente ou em situação económica difícil que se considere economicamente viável e julgue superável a situação económica em que se encontra pode requerer em juízo a providência de recuperação adequada”. Hoje existe, apenas, uma obrigação de apresentação à insolvência (art. 18º, do CIRE) que não se confunde com qualquer obrigação de requerer uma providência de recuperação.

Face a tal evolução legislativa, no âmbito da insolvência, fica esvaziada de conteúdo a alínea b) do n.º 1, do art. 228, que não acompanhou aquela evolução.

Se o legislador penal não procedeu à alteração do referido preceito, no sentido de substituir a obrigação de requerer providência de recuperação pela obrigação de se apresentar à insolvência, não pode, agora, o intérprete e aplicador do Direito proceder a qualquer interpretação actualista da norma pois, a mesma, viola o princípio da legalidade plasmado no art. 1º, n.º 1 e 3, do Código Penal e 29º, nº 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

Assim sendo teremos de concluir que, face à letra da alínea b), do n.º 1, do art. 228, do Código Penal, a omissão do dever a que alude o art. 18º, n.º 1, do CIRE, ou seja, da obrigação do devedor requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência ou à data em que devesse conhecê-la, não constitui crime.

Face ao exposto determino o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2, do Código Processo Penal, sem prejuízo da sua posterior reabertura se forem remetidos elementos que consubstanciem uma notícia criminosa.

Cumpra o disposto no art. 277º, n.º 3, do Código Processo Penal.

Remeta certidão do presente despacho ao Processo de insolvência n.º …/…, que corre termos no … juízo deste Tribunal, nos termos do disposto no art. 300º do CIRE.

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Processei, revi, imprimi e assinei o texto, seguindo o verso em branco (art. 94º, n.º 2, do CPP)

Local/Data, d.s.

O Procurador-Adjunto