terça-feira, 29 de maio de 2007

CONTRIBUTO PARA UMA DOGMÁTICA DO DIREITO PENAL FISCAL

( documento elaborado na vigência do R.J.I.F.N.A. )



Relatório de pós-graduação em direito penal económico e
europeu – ano de 1999/I.D.P.E.E./Universidade de Coimbra


“A obtenção de resultados positivos na punição e prevenção do ilícito fiscal depende essencialmente da eficácia dos serviços de fiscalização tributária(...).Assim, resulta claro que de um reforço quantitativo e qualitativo dos recursos técnicos e humanos na área da fiscalização tributária, resultará uma mais eficiente detecção da fraude fiscal. É sabido que, mais do que o aumento da medida abstracta das sanções ou a criação de penas de prisão(...), é fundamental que a actuação da Administração seja rápida e, tanto quanto possível, permanente”.
( Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, pág. 265 )





Com esta exposição visa-se proceder a uma análise do direito penal fiscal à luz da ideia de bem jurídico, detectando e abordando nódulos problemáticos e aventando hipóteses explicativas, as quais poderão pelo menos servir de base de reflexão sobre uma área do direito sobre a qual se têm debruçado tão pouco os penalistas, pelo menos em Portugal.
Mas para isso importa perceber o que seja o bem jurídico.
Ele é todo o interesse da vida comunitária ou individual que, em homenagem ao seu significado social, é protegido juridicamente, podendo, segundo o seu substracto, revestir formas distintas:1)um valor psico-físico ou espiritual-ideal (ex: a vida ou a honra, respectivamente);2)um estado real (ex: o respeito pelo domicílio);3)um vínculo familiar (ex: relações conjugais ou de parentesco);4)uma relação de direito (ex: propriedade);5)ou até um comportamento de terceiro (ex: o cumprimento de deveres por parte dos funcionários públicos).
Revela-se o bem jurídico como todo o estado socialmente desejado que o direito quer pôr a coberto de agressões.
A soma destes bens jurídicos não constitui um agregado atomístico, mas integra a ordenação social, pelo que não deve apreciar-se o significado de um bem jurídico isolado, mas só em conexão com toda a ordenação social.
Num Estado de Direito material, em que a função do direito penal só pode ser a protecção de bens jurídicos (e não a tutela de qualquer moral), já se não pode ter do bem jurídico, nem uma visão liberal – que fazia dele o «monólito jurídico corporizado» em que se consubstanciavam os direitos subjectivos individuais merecedores de tutela penal -, nem muito menos uma visão formal-metodológica (de raiz neo-Kantiana), que o reduzia a fórmulas interpretativas capazes de exprimir o «sentido e o fim dos preceitos penais», mas sim uma visão funcional, que o vê como unidade de aspectos ônticos e axiológicos através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso «valioso».
No entanto, se se quer tornar esta noção político-criminalmente útil, é preciso afirmá-la como transcendente ao sistema jurídico-penal e, só assim, seu padrão crítico (o bem jurídico é, a esta luz, um elemento trans-sistemático) .
Mas como ganhará materialidade e concreção ?
Se, num Estado de Direito material, toda a actividade estadual se submete à Constituição (art.º 3º, n.º 2, da C.R.P.) e, sobretudo, se afirma a «necessidade social» (art.º 18º, n.º 2, da C.R.P.) como critério decisivo da intervenção do direito penal – temperada por um limite de proporcionalidade -, então, também a ordem dos bens jurídicos há-de constituir uma ordenação axiológica como aquela que preside à Constituição, ou seja, substancialmente análoga à constitucional, com base numa essencial correspondência de sentido. Ora, isto permite afirmar que a ordem de valores jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo e delimitativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva estadual.
Importante é, pois, sublinhar que bens jurídicos há que se relacionam com o livre desenvolvimento da personalidade de cada homem como tal, designadamente os do direito penal de justiça, que são concretizações dos valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, enquanto outros se relacionam com a actuação da personalidade do homem enquanto fenómeno social, em comunidade e em dependência recíproca dela, designadamente os do direito penal secundário, que são concretizações dos valores ligados aos direitos sociais e à organização económica contidos na Constituição.
Com base em tais considerações fácil se torna entender que, se não há ilícitos eticamente neutros, condutas existem, designadamente as do direito das contra-ordenações, que são axiologicamente neutras, as quais, em si mesmas, não podem ofender tais bens jurídicos nem tão-pouco ser referenciadas a uma ordem axiológica constitucional.
Estamos, pois, a operar com a noção de bem jurídico como princípio material de distinção, distinção esta que, sendo de algum modo discricionária, não é arbitrária – recorrer ao direito penal para tutelar bens ou fins organizatórios, de mera ordenação social, portanto, cujas condutas violadoras são, em si, eticamente neutras, seria violar o princípio do art.º 18º, n.º2, da C.R.P., o princípio da proibição do excesso, na sua vertente de princípio de necessidade.
Quando se considera que a protecção de determinados bens jurídicos é a pedra de toque da própria ordem e aqueles valem em perfeita autonomia, não se pode pedir, nem sequer atribuir, grande unidade ao resultado normativo de tais escolhas. O que sempre aparecerá como unitária é a escolha e não necessariamente o resultado normativo da própria escolha. Ao analisarmos tal unidade, no âmbito do direito penal, desde logo nos saltam à vista os fins que lhe presidem e os princípios que lhe fornecem solidez normativa. E, a este respeito, têm desde logo relevo fundamental os princípios da proporcionalidade, em sentido amplo, e da igualdade, sendo interessante notar como a discussão ideológica do direito gira cada em vez mais em torno deste último princípio.
É com base em tais princípios que a fragmentaridade que se revela como característica fundamental do direito penal e do direito constitucional, não põe em causa o seu sentido de unidade, unidade essa, no entanto, que só pode ter o significado de uma autonomia-dependente da ordem jurídico-penal.
Implicará tal fragmentaridade a impossibilidade de pensar uma valoração hierarquicamente estruturada? A honra, a dignidade, o património, a integridade física, ao perfilarem-se como bens jurídicos, com protecção constitucional, estão todos no mesmo nível de ponderação axiológica? Entendemos que não. Que sentido faria punir a violação do património se se despenalizasse a vida? E neste caso ainda existiria razão de existir para o direito penal? Não existiria aqui uma desproporcionalidade do direito penal que o tornaria não substancialmente análogo à Constituição? Note-se que a alternativa superadora estaria em, do mesmo jeito, não punir penalmente as condutas violadoras, quer dos bens patrimoniais, quer de um outro qualquer bem jurídico. Por outras palavras: a desproporcionalidade desapareceria, é óbvio, com o desaparecimento ou abolição de todo o direito penal incriminador.
Numa tal situação ter-se-ia violado o princípio da igualdade, o da proporcionalidade e o da tendencial coincidência material protectora.
O facto de o legislador punir mais fortemente as violações contra a vida quando comparadas com as violações que ofendem os bens patrimoniais não pode ser olhada como um acaso ou uma arbitrariedade; corresponde, antes, a um sentido, a uma intencionalidade que une , deve unir, todos os crimes definidos na parte especial do Código Penal. Corresponde uma tal forma de perceber à aceitação de que entre as diversas infracções da parte especial intercede, não só uma específica valoração de proporcionalidade que parte, primacialmente, da correspondência entre a gravidade da infracção e a gravidade da pena, mas também um juízo de perequação quanto aos mínimos e aos máximos das diferentes molduras penais abstractas.
A parte especial do Código Penal não é expressão de um conglomerado, antes nela se detecta uma coerência, quer ao nível da ordenação dos bens jurídicos – no que se traduz também aquela analogia substancial à Constituição do direito penal -, quer no âmbito – indissociavelmente ligado à anterior ordenação através de uma mútua reciprocidade - da definição das molduras penais abstractas.
A actuação do legislador ao nível da definição da moldura penal abstracta não pode ser imotivada, antes tem de atender a critérios materiais, desde logo, ao critério da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a pena.
Mas a relação de proporção ou de desproporção só pode ser compreendida dentro de um determinado quadro de valoração ou horizonte normativo.
É o próprio ordenamento jurídico existente que indicia, nomeadamente no âmbito do Código Penal, uma formulação sobre a hierarquização axiológica pressuposta pelo legislador.
Existem diferenças de valoração dentro do horizonte normativo no qual se realiza a operação normativa de aferição da proporcionalidade. E só assim, acrescente-se, se pode conceber. Pois só na diferença é que é concebível uma proporcionalidade.
Mas o problema da proporcionalidade, entre a infracção e a pena, não se pode ver exclusivamente através de um único segmento de valoração, nem, muito menos, arrancando da ideia simplista de que se está perante um juízo global de proporção ou de desproporção. Julgamos que a questão da proporcionalidade tem de ser olhada, fundamentalmente, a partir de dois princípios: de um princípio de perequação dos mínimos e de um princípio de perequação dos máximos.
Porém, para que tais princípios possam ser operatórios há que descobrir uma função para aqueles limites.
Assim, pensamos dever atribuir-se aos mínimos legais uma função de limiar abaixo do qual o legislador entende não ter sentido, logo desnecessária, a intervenção do direito penal, isto é: eles representam na arquitectura normativa o último grau ao qual pode descer a tutela jurídico-penal, enquanto os máximos se perfilam como o limite extremo até onde o ordenamento penal está disposto a assegurar a eficácia concreta da tutela.
Para nós, porém, é necessário ir mais longe ainda. É necessário entrar fundamentalmente em linha de conta com a ideia de bem jurídico e com o facto de que é também função da lei penal a prevenção, ou seja, não se pode esquecer a ressonância que qualquer Código Penal adquire no seio da comunidade e que lhe advém do impacto que a chamada «Parte Especial» provoca na consciência colectiva e, muito particularmente, na consciência individual dos membros daquela específica e precisa comunidade jurídica – o valor simbólico que o Código Penal desencadeia nas actuais sociedades coincide ponto por ponto, com a definição dos próprios tipos legais de crime.
Assim, se na fixação do limite de 25 anos do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal intervém um princípio de humanidade das penas, ou seja e no fundo, a ideia de dignidade humana, a crença na capacidade de ressocialização da pessoa humana, e também uma ideia de prevenção, na fixação do limite mínimo vale antes uma ideia de benefício/prejuízo que possa daí resultar para a pessoa e comunidade, ou seja, vale uma lógica de custos e prejuízos ligados ao cumprimento da pena – ex. não faria sentido impor um limite mínimo de um dia de prisão em vez dos trinta dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que a prisão tem inerente um estigma e um prejuízo que ofuscam por completo as vantagens para o delinquente e sociedade que derivariam do cumprimento de tal dia de prisão ( o que não invalida o disposto no art.º 49º, n.º 1, parte final, do Código Penal, pois que aí não existe alternativa senão a prisão ).
Mas entre o limite de 25 anos de prisão do art.º 41º, n.º 2, do Código Penal e o limite de 30 dias de prisão do art.º 41º, n.º 1, do mesmo código a graduação far-se-á, na construção das molduras dos tipos legais de crimes, em função da importância do bem jurídico. E sendo os bens jurídicos protegidos pelo direito penal escassos ( no sentido de importantes ), então, actua aqui fundamentalmente uma ideia de necessidade do bem jurídico para a pessoa e para a comunidade.
Nesta sede haverá que perceber o modo de superação individual e/ou social das consequências negativas do crime. Dito de outro modo, haverá que considerar os efeitos possíveis da agressão ao bem jurídico.
Se se quisesse resumir, dir-se-ia que na fixação das molduras abstractas haverá aí também que respeitar o princípio da proibição do excesso do art.º 18º da Constituição da República Portuguesa.
Numa outra vertente, entendemos que, muito embora sem esquecer que o que legitima a incriminação é a ideia de bem jurídico e que a moldura abstracta das penas se liga antes à ideia de carência de tutela penal, a equiparação das penas abstractas da fraude fiscal às do homicídio simples seria inconstitucional, e desde logo por violação da ideia de bem jurídico como princípio material de distinção, do princípio da proporcionalidade (art.º 18º, n.º 2, da C.R.P.), e, no fundo, daquela ideia de analogia substancial entre o direito penal e a Constituição (cfr. a sistemática desta, de onde resulta manifestamente uma preferência pelos direitos, liberdades e garantias, porque mais directamente ligados à ideia de dignidade humana – há aqui bens jurídicos sem os quais a comunidade não é sequer pensável - e porque aos direitos económicos, sociais e culturais estará sempre inerente uma certa ideia de sistema).
Numa determinada óptica, talvez se pudesse afirmar que o direito penal secundário visa a protecção de bens jurídicos que, se comparados com os que iluminam o direito penal clássico, estão num nível mais baixo na escala da valoração axiológica, no sentido de que a menor gravidade penal deriva do «défice de legitimidade».
Todavia, para nós, a validade de tal ideia deve ser compaginada com o facto de que sendo tais bens jurídicos assumidos pela Constituição, então não há verdadeiramente «défice de legitimidade», porque tais novos bens jurídicos foram historicamente sedimentados. Em vez de «défice de legitimidade», conceito este de duvidoso alcance prático para o aplicador da lei constituída, mais correcto será recorrer ao binómio constitucionalidade/inconstitucionalidade.
Aliás, não se vê que défice de legitimidade exista no crime de fraude fiscal ( art.º 23º do R.J.I.F.N.A) quando confrontado, por exemplo, com o crime de burla p. e p. pelo art.º 220º do Cód. Penal. O carácter mutável dos factos ilícitos do direito penal secundário não vale para os crimes fiscais, uma vez que o bem jurídico respectivo se foi sedimentando e ganhou mesmo tutela directa na Constituição da República ( art.ºs 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa ).
Em sede de direito penal secundário, onde o tipo legal de crime se constrói amiudadas vezes como tipo legal de crime de perigo, fundamental é que o nexo de perigo seja minimamente densificado, pois não o sendo violar-se-á o principio da proporcionalidade em sentido amplo e assim o da intervenção mínima do direito penal.
Por outro lado, no que respeita ao modo de o legislador definir as condutas proibidas no âmbito do direito penal mais directamente ligado à tutela do sistema social em sentido amplo, não existe tanta legitimidade neste âmbito para recorrer à técnica da «descrição vazia» ( ex. matar ), impondo-se uma exacta definição das condutas proibidas. É, pois, de censurar a previsão de uma cláusula geral de evasão fiscal, até pela duvidosa constitucionalidade subjacente a tal violação do princípio da tipicidade, sendo de louvar o recurso no R.J.I.F.N.A, na redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24.11 ( o qual entrou em vigor a 01.01.1994 – cf. art.º 6º deste diploma ) à técnica dos exemplos-padrão – a este respeito é importante salientar a diferença entre o dizer-se «condutas susceptíveis de criarem perigo de diminuição de receitas» (crime de perigo concreto de protecção antecipada ), «condutas que criem perigo de diminuição de receitas» ( crime de perigo concreto ) e «condutas susceptíveis de diminuir as receitas» ( expressão que é utilizada nos crimes de perigo concreto e que é coadjuvada, no R.J.I.F.N.A actual, por exemplos-padrão, como sucede no R.J.I.F.N.A, com manifesta vantagem em termos de princípio da legalidade ).
Mesmo que a necessidade da pena se perfile como inquestionável e mesmo que se entenda que a sua concretização não fere o chamado núcleo essencial, mesmo assim há que compaginá-la com a ideia força inerente à proporcionalidade restrita. Sem dúvida que, se para punir uma fraude fiscal for cominada uma brutal pena de prisão, pode essa realidade justificar-se, eventualmente, através de uma ideia de necessidade; mas o que, com certeza, não honra é o princípio da proporcionalidade. Ao desvalor do facto objectivamente considerado há que fazer corresponder um desvalor no efeito (pena) também ele objectivamente proporcionado.
A essencialidade do bem jurídico pode justificar a incriminação, mas já não justificará penas desproporcionadas ou a violação do princípio da irrectroactividade da lei penal desfavorável
Numa outra linha de análise, afigura-se-nos que, por atenção ao bem jurídico tutelado na fraude fiscal (art.23º do R.J.I.F.N.A.), as penas abstractas desta deviam merecer equiparação às da fraude na obtenção de subsídio (art.36º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01), inexistindo razão para uma desconformidade como a que existe no nosso direito. E tal desproporcionalidade é tão ou mais evidente quando se tenha em consideração a economia portuguesa de hoje, em que o cumprimento dos critérios de convergência se revelam um interesse público essencialíssimo, para cuja convergência concorrem, afinal, as políticas sectoriais. Com o que estamos numa área de neo-criminalização, o que não é novidade para o direito penal secundário, a que indiscutivelmente ainda pertencem hoje aquelas normas. Pensamos que assim se restabelece a unidade da ordem jurídica penal à luz do bem jurídico, visto no seu ângulo funcional de elo de relacionamento entre o direito penal e o direito constitucional (note-se que não vemos, porém, o primeiro como direito penal «constitucionalizado» - para nós o direito constitucional tem o sentido supra-exposto, sendo bom recordar o seu sentido negativo, por exemplo, face ao princípio da legalidade do direito penal).
Um outro aspecto importante, é a iminente incorporação do direito penal fiscal no Código Penal (cfr. art.º 52º, n.º 1, alª b), da lei n.º 87-B/98, de 31.12). Quanto a isto importa dizer que, em termos de hierarquia valorativa, a incorporação no Código Penal de um ou vários tipos legais de crime – correspondentes a uma área unitária de matéria proibida e de proibição – arrasta um valor acrescentado, não só ao nível do símbolo, mas fundamentalmente na correspondência do seu tratamento dogmático. Se se perde espaço de manobra, o que não é líquido, ganha-se no reforço do princípio da tipicidade, inexistindo até obstáculo à previsão da punibilidade das pessoas colectivas (cfr. art.º 11º do Cód. Penal). A passagem do direito penal secundário a direito penal comum é, sob o ponto de vista estritamente dogmático, a muitas luzes, coisa secundária. E uma vez que falamos de crimes fiscais, diga-se que a relação de cuidado-de-perigo que se detecta no direito penal comum que é susceptível de uma fundamentação material está também por detrás do chamado direito penal secundário, mesmo quando este se afasta do real verdadeiro e entra inconsistentemente no mundo do «real construído».
Com tal decisão legislativa, com tal passagem, descobre-se ainda uma outra realidade, por vezes incompreendida e que tem impedido uma boa visão das relações de concurso de normas, qual seja, a de que não há uma diferença de grau ou de qualidade ( e nisto não existe qualquer contradição com o afirmado em cima a respeito de uma valoração hierarquicamente estruturada).
Não obstante, entendemos que seria preferível a elaboração de uma Lei da Criminalidade Económica, onde se incorporassem os tipos legais de crime que se refiram a bens jurídicos mais consolidados, como os crimes fiscais, posto que tal tipo de diploma é mais apto a soluções de consenso, a concessões à oportunidade ou a ideias de reparação. É esta, aliás, a nossa tradição de que é bom exemplo o Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01, diploma este a necessitar de urgente reforma.
Com base em tal noção de bem jurídico como princípio material de distinção também afirmaremos a impossibilidade de tributar a actividade lucrativa da prostituta, impondo-lhe o dever de declarar rendimentos e de pagar imposto e de a incriminar pelo abuso de confiança fiscal (imagine-se uma casa de passe que funcionasse, na ficção da lei, como uma empresa). É que, não só existe o crime de lenocínio (art.º 170º do Cód. Penal) como também existe a norma do art.º 280º do Cód. Civil, o que aponta no sentido da impossibilidade de o Estado, no fundo, ser de algum modo beneficiário de tal actividade ( ainda que não criminalizável – cfr. prostituição atípica ), sendo certo que não pode valer aqui a mesma racionalidade que se encontra subjacente ao disposto nos art.ºs 2º, n.º 1, alª c), e 19º, n.º 3, do Cód. do I.V.A. e 10º da Lei Geral Tributária (Dec. Lei n.º 398/98, de 17.12), visto que aí se trata de normas-sanção, que visam tributar a aparência de legalidade nos negócios fraudulentos, mas não a actividade fraudulenta como profissão (a nossa análise, como é óbvio, pelas limitações a que estamos sujeitos nesta exposição, ter-se-á de limitar a uma análise no plano das ideias e do direito penal).
Mas a noção de bem jurídico, como princípio material que é, importa ainda uma outra ideia em sede de crimes fiscais, dir-se-á até de direito penal secundário, designadamente a inconstitucionalidade de uma qualquer interpretação que, em abstracto, exclua as regras gerais do concurso, e isto quer no sentido de afirmar o mesmo à revelia da noção de bem jurídico ou de excluí-lo à mesma revelia.
A interpretação do art.º 13º do R.J.I.F.N.A. no sentido da afirmação de um qualquer princípio de especialidade à revelia da noção de bem jurídico configura uma manifesta violação do princípio da igualdade e da proibição do excesso (art. 13º e 18º da C.R.P), bem como do princípio da culpa e do “ne bis in idem”.
Não existem para nós especialidades ao nível de qualquer direito penal secundário que imponham uma tal derrogação às regras do concurso. E sinal manifesto disto mesmo no que respeita aos crimes fiscais é a remissão do art.º 107, n.º 2, da Lei Geral Tributária para o Código Penal e o disposto no art.º 52º, n.º 1, alª b), da Lei n.º 87-B/98, de 31.12 .
Antes, porém, da análise de tal questão, importa fazer uma análise do que seja a fraude fiscal no nosso ordenamento jurídico, à luz da ideia de bem jurídico.
O crime de fraude fiscal as­sume-se no nosso ordenamento jurídico como crime de resul­tado cortado e, por isso, também como um crime de perigo concreto.
É um crime de perigo concreto porque o resultado é an­tecipado para um momento anterior ao dano material, mais concreta­mente, para o momento em que o património fiscal do Estado é colocado numa insegurança tal que a respectiva le­são fica dependente tão-só do acaso.
Nos crimes de perigo abstracto ( ex: art.º 275º, n.º 2, do Cód. Penal ) o perigo não surge expressamente descrito no tipo de ilícito, constitui apenas o fundamento político le­gislativo da incriminação.
Nos crimes de perigo concreto o legislador incrimina uma conduta e associa a esta, na descrição típica, como um evento autónomo, um perigo para um bem jurídico tutelado. O perigo tem de ser efectivo e não mera­mente presumido.
No fundo, ao configurar a fraude fiscal como crime de perigo concreto, o que o legislador fez foi rejeitar a construção das infracções em causa como crimes de mera de­sobediência à administração fiscal, de omissão de colabora­ção com esta, de simples actividade ou de perigo abstracto.
Esclareça-se ainda que os crimes de perigo (concreto ou abstracto) podem surgir-nos ou como crimes de perigo comum ou como crimes de perigo singular.
Para que um crime de perigo tenha a natureza de crime de perigo comum ( Ex. art.ºs 272º e segs. do Código Penal ) tem de ser susceptível de causar um dano incontrolável (difuso), com potência expansiva, sendo apto a causar alarme social ( em sentido material que não processual).
Os crimes de perigo comum visam uma «defesa prévia», que só «a posteriori» e acessoriamente defende os interesses particulares e individuais.
Se os crimes de perigo comum visam proteger em geral o conjunto de condições garantido por um determinado ordenamento jurídico sempre que exista uma ameaça potencial a poder pairar ( em abstracto ) sobre uma grande quantidade de vidas ou de bens alheios de valor significativo, certo é que para a respectiva responsabilização e penalização basta que o perigo potencial se possa repercutir ou incidir sobre uma só pessoa ou coisa alheia, o que resulta numa contradição, pelo menos aparente, que levanta dificuldades à justeza do conceito de «perigo comum», e, ainda mais, à de «perigo colectivo».
Estamos, porém, convencidos de que a fraude fiscal é con­figurada no RJIFNA como um crime de perigo concreto sin­gu­lar, no sentido de que pela mesma não é colocada em perigo uma diversidade não determinável de bens jurídicos ( cfr. vida, integridade física, património, ambiente – cfr. art.º 272 do Cód. Penal, que é um crime de perigo concreto co­mum), mas sim e apenas um determinado interesse jurídico-penal, ainda que multifacetado, mas cujo núcleo se pode reconduzir às receitas tributárias.
Os valores públicos em confronto na fraude fiscal podem enquadrar-se numa dicotomia em que se veja, por um lado, o bem jurídico tutelado como a pretensão do Estado na deter­minação exacta dos factos fiscalmente relevantes ou, dife­rentemente, se identifique o valor protegido com a pre­tensão do Estado em obter integralmente as receitas fiscais que por lei lhe são devidas.
A primeira perspectiva associa o valor tutelado pelas normas penais a outras condutas fiscalmente relevantes dos cidadãos perante o Estado; o segundo entendimento acentua o interesse do Estado na obtenção de certos resultados ( a percepção das receitas tributárias) e as condutas criminal­mente valoradas deverão ser ponderadas em função das suas consequências. Em termos mais sintéticos, o valor tutelado na incriminação legal da fraude fiscal é, na primeira pers­pectiva, a ordem fiscal ( em sentido amplo - ou seja, o in­teresse na concreta determinação dos factos fiscalmente re­levantes) e , na segunda, o erário público.
Para nós, é do debate sobre a tensão entre estes dois valores que se pode determinar com rigor o bem jurídico tutelado pela incriminação da fraude fiscal.
A primeira das vias apontadas é de rejeitar. Um bem jurídico dessa natureza sempre será, por um lado, demasiado difuso, não resistindo, noutro plano, aos diversos elementos argu­mentativos que se podem carrear para o debate. Em termos históricos, resulta da autorização legislativa que suportou o Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, uma evidente preocupação em construir o crime por referência a um resul­tado lesivo no erário público ( V. o disposto no art.º 2, n.º 2, al. a), 1º da Lei n.º 88/89, de 11 de Se­tem­bro), não se bastando com meras condutas em abstracto peri­gosas por parte dos contribuintes ou com a omissão de deve­res de colaboração para com as autoridades fiscais. Preo­cupação essa igual e expressamente referida doutrinariamente nos anteprojectos que deram origem ao diploma em causa (atente-se nas passagens do anteprojecto Figueiredo Dias/ Faria Costa, invocado por Alfredo José de Sousa, In­fracções Fiscais Não aduaneiras, Anotado e documentado, Al­medina, Coimbra, 1990, paginas 60, 80-81).
Saliente-se ainda que a identificação do bem jurídico tutelado pela incriminação de fraude fiscal com a " ordem fiscal", em sentido amplo, é contrariado por diversos ele­mentos de carácter sistemático.
Desde logo pela construção do crime como de perigo concreto, pois se o legislador quisesse tutelar a ordem fiscal lato sensu deveria ter construído a incriminação como infracção de perigo abstracto.
Além do mais, a dicotomia infraccional " cri­­­­­­­­­­­mes/contra-ordenações" perderia sentido, pois se o propósito do le­gislador fosse o de tutelar a "ordem fiscal" não se justi­ficaria que sancionasse como meras contra-ordenações os fac­tos previstos nos artigos 28º a 40º do Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15.01 - estes sim, ilícitos destinados a zelar por certos aspectos da ordem fiscal em sentido amplo. Finalmente, é de reter a importância dada pelo legislador às condutas repa­ra­doras que permitem o arquivamento do processo e a isenção da pena prevista no art.º 26º do RJIFNA: o funcionamento do preceito depende de ser reparada a lesão no erário público.
Ora, se os valores tutelados pela incriminação da fraude fiscal fossem genericamente aspectos da regularidade da ordem fiscal, não se poderia aceitar que o agente fiscal visse arquivado o processo ou ficasse isento de pena por, apesar de ter violado esses valores, reparar o "erário pu­blico".
Por outro lado, se se considerasse que o bem jurídico-criminal em causa na fraude fiscal era a segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico com documentos ( cf. neste sentido: o Ac. do S.T.J., de 28.04.1999, no Processo n.º 302/97-3ª Secção ), sem atentar na especificidade de nos movermos numa área particular que é a da prática fiscal, o simples acto de introduzir uma «factura falsa» (cf. sobre este conceito, Nuno Sá Gomes, em Relevância Jurídica, Penal e Fiscal e Respectivos Fluxos Financeiros, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 337, págs. 10 e segs., Ac. Tribunal Judicial de Loulé no Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, e Patrícia Noiret Silveira da Cunha, em “A Fraude Fiscal no Direito Português”, in Revista Jurídica, 22, págs. 281 segs. ) na contabilidade não lesava o bem jurídico, mas colocava-o em perigo de lesão, pelo que a fraude fiscal estaria consumada nessa data, o que é verdadeiramente absurdo, uma vez que é o próprio legislador a admitir a fase da tentativa no art.º 23º do R.J.I.F.N.A. ( cfr. redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24.11 ).
A este respeito e fazendo aqui um parêntesis, diga-se que a tentativa de fraude fiscal é possível porque tais crimes fiscais do art.º 23º do R.J.I.F.N.A. admitem a possibilidade ou até exigem vários actos de execução, podendo por isso realizar-se uma execução incompleta.
O crime de fraude fiscal exige para a consumação um certo acontecimento e por isso admite a possibilidade de uma execução completa, sem que o resultado se siga.
A tentativa liga-se não à actividade de lesão ou ao resultado-lesão, mas sim à actividade de perigo ou ao resultado-perigo. A tentativa de fraude fiscal não é uma «tentativa de tentativa» nem um acto preparatório punível, pois que se incrimina directamente a tentativa como crime consumado.
Não existe nem pode existir tentativa de tentativa, «prática de actos de execução» de uma tentativa. Juridicamente a tentativa de tentativa é uma figura impossível de conceptualizar. A tentativa exige necessariamente uma referência a um crime de consumação, a outra «forma» de facto punível.

Nos crimes de perigo concreto, o resultado ( cortado ) não é um perigo não traduzido em qualquer facto tipicamente determinado. Não se pode afirmar a inexistência de uma descrição objectiva de uma acção e/ou de um resultado que propicie a determinação clara das fronteiras entre a plena realização do comportamento incriminado e um seu começo de execução. Há um ponto de referência para se sustentar a admissibilidade da tentativa. É possível distinguir um momento em que há tentativa de outro momento em que há consumação ( cfr. fraude consumada ) e de um outro em que há já dano consumado, sendo certo que, se há áreas de intercessão, é porque se pretendeu reforçar a protecção do bem jurídico tutelado, o que, porém, não invalida o necessário recurso às regras gerais do concurso.No caso da fraude fiscal, o ponto de referência para uma distinção entre o tentar e o consumar é um termo, uma data limite fixada por lei.
Mas a consumação não deixa de ser um tentar algo, uma intenção de obter outro resultado.
É para este tipo de crimes que vale o disposto no art.º 24º, n.º 1, parte final, do Código Penal, ou seja, para os crimes em que o resultado é exterior ao tipo legal de crime e, portanto, indiferente à afirmação da sua consumação, mas não indiferente à valoração do ilícito. Constitui ao fim e ao cabo o resultado que o legislador pretendeu evitar, ao estabelecer, por razões determinadas e que têm a ver com a necessidade sentida de reforçar a protecção de um bem jurídico a antecipação da consumação, por relação à lesão efectiva do bem jurídico tutelado.
No fundo são razões de política criminal que terão levado o legislador a formalmente considerar consumados delitos em que a conduta incriminada apenas cria uma situação de perigo para o bem jurídico, que induziram o legislador a, evitada ( voluntariamente ) a produção daquilo que, afinal, ele pretendeu impedir, decidir-se pela impunidade do agente.
Mas o resultado não é de forma alguma uma condição objectiva de punibilidade, pois a consumação não depende da sua ocorrência, mas sim do perigo.
Resultado não compreendido no tipo de crime não será, pois, outra coisa que «o resultado que a lei quer evitar se verifique», expressão possivelmente mais feliz utilizada no art.º 382º do Código Penal de 1982, e que não difere, aliás, das outras que no seio da Comissão Revisora foram sugeridas para substituir a fórmula originária do art.º 25º do Projecto ( cfr. Actas, Parte Geral, pág. 187 ).
Retomando a nossa argumentação, refira-se também que não é qualquer conduta de simula­ção, ocultação ou alteração dos factos fiscalmente relevan­tes que integra o tipo, mas apenas aquelas que sejam diri­gidas " a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado" (redacção inicial do art.º 23º, n.º 1) ou, como refere hoje o preceito, «que visem a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias». Ou seja, exige-se um plus em relação à conduta ilícita.
Igual ideia é corroborada pelo facto de existir, na redacção inicial do art.º 23º do R.J.I.F.N.A, uma agravante em função da vantagem patrimonial indevida, em princípio o re­verso do prejuízo causado, recorrendo hoje o preceito à técnica dos exemplos-padrão ( cf. sobre este conceito, Teresa Serra, “Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, 1990, págs. 58 e segs. ).
As referências da al. a) do n.º 2 e do n.º 4 do art.º 23º do Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15.01, e da al. a) do n.º 3 e do n.º 5 do art.º 23º do mesmo diploma, com a redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24/11, a um determinado quantitativo de vantagem patrimonial indevida é considerado por determinado sector doutrinal em Espanha (cfr. Muñoz Conde, Bacigalupo e Bus­tos) como a previsão de condições objectivas de punibilidade por parte do legislador. Já outro sector doutrinal ( cfr. Martinez Perez e Bajo) entende que tais quantias têm a na­tureza de resultado do delito.
A nosso ver não se pode falar de condição objectiva de punibilidade, dado que não se trata de qualquer facto futuro e incerto, nem a quantia com que se defrauda a Fazenda Pú­blica se encontra causalmente desvinculada da conduta de­litual, devendo estar compreendida no dolo a vontade de de­fraudar efectivamente nesse montante ( cfr. neste sentido, as Sentencias del Tribunal Supremo de 2 de Marzo de 1988 y de las Audiencias Provinciales de Madrid de 27 de Marzo de 1989 y de Las Palmas de 14 de Diciembre de 1987).
A este respeito é interessante salientar o esforço de Augusto Silva Dias para demonstrar que a expressão «que visem» do n.º 1 do art.º 23º do R.J.I.F.N.A se refere às «condutas ilegítimas», não sendo elemento subjectivo do tipo. Ou seja, para A. Silva Dias trata-se aí de um elemento objectivo que designa a aptidão ou tendência das acções descritas no n.º 2 para a não liquidação, não entrega ou não pagamento do imposto ou para a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais. Para tal autor, na acentuação da especial idoneidade para influir em qualquer das operações mencionadas, pretende afastar-se da tipicidade as condutas de ocultação ou alteração de dados que não tenham qualquer interferência no cálculo do imposto ( «Crimes e contra-ordenações fiscais», Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinais, Vol. II, págs. 439 e segs.).
Para A. Silva Dias a substituição da expressão «intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida», que constava da redacção inicial do art.º 23º, n.º 1, do R.J.I.F.N.A, pela expressão «que visem», retira ao crime em análise a natureza de crime de resultado cortado, ou seja, dado que esta expressão apenas traduz a adequação necessária das condutas, não se está perante um crime de tendência interna transcendente.
Chega mesmo ao ponto de sustentar que, se o agente do crime tem sérias dúvidas sobre os efeitos que, por exemplo, a ocultação de um determinado dado tem para a liquidação ou obtenção de benefícios, se ele quase desacredita da idoneidade da acção para obter aquele resultado, mas apesar de tudo age conformando-se com o que vier, não haverá dolo eventual de fraude fiscal porque escapa à representação do agente a especial aptidão exigida pelo tipo.
Ou seja, com esta afirmação, com a qual não concordamos, não obstante a formulação demasiado vaga para ser objecto de crítica, tal autor contradiz tudo o que havia dito, reconhecendo, afinal, que na expressão «que visem» está presente não só um momento de adequação objectiva da conduta mas também um momento subjectivo.
Aliás, é óbvio que na fraude fiscal se procura um resultado de enriquecimento ilegítimo, que existe uma tendência interna transcendente.
Repare-se ainda que o crime de fraude fiscal foi configurado como crime de intenção, prescindindo-se do prejuízo efectivo, não porque o legislador português tivesse aderido à chamada “Escola de Bona” (cf. Demuth, H.,Gelfabrbegrift, pág.145), para a qual o que é relevante, em termos jurídico-penais, em sede de comportamento típico, é o desvalor de acção sendo o resultado (o desvalor de resultado ) uma mera condição objectiva de punibilidade . O resultado é totalmente irrelevante para a determinação do conteúdo do ilícito típico.
Para esta escola tanto monta estarmos perante um resultado danoso como perante um resultado perigoso: ambos serão ou desempenharão uma função de condição objectiva de punibilidade.
Da redacção do art.º 26º do RJIFNA poderia, apa­rente­mente, retirar-se um conclusão algo diferente quanto ao bem jurí­dico tutelado, na medida em que reporta a conduta do agente à “reposição da verdade fiscal", o que levaria a identifi­car o valor tutelado com este conceito ( neste sentido, Alfredo José de Sousa, ob. cit. pág. 80). Contudo, o argu­mento, radicando no citado art.º 26º, não pode colher, já que não basta a reposi­ção da verdade fiscal, sendo antes necessária uma efectiva reparação de carácter patrimonial.
A este respeito também nos parece laborar em erro quem considera tal dispositivo de aplicação automática, à luz do R.J.I.F.N.A., afirmando que neste artigo se operou a consagração de uma condição objectiva de punibilidade. Ora, parece-nos que assim não será, pois, caso contrário, teria o legislador escrito “deve” onde se lê “ pode”.
Convém aqui recordar o disposto no art.º 9º, n.º 3, do Cód. Civil.
Repare-se , por outro lado, na inconstitucionalidade subjacente à redacção inicial do artº26º, nº1, do R.J.I.F.N.A., ao retirar ao Ministério Público o monopólio da acção penal, confiando a perseguição penal a uma autoridade não sujeita a quaisquer critérios de estrita objectividade, violando-se assim a Constituição. Queremos referirmo-nos à parte de tal norma em que se dizia que “ ...o processo poderá ser enviado ao Ministério Público para efeitos de eventual arquivamento...”, esquecendo aí o legislador o disposto no art.º 248º do C. P. Penal, aplicável por força do art.º 41º do aludido Regime Jurídico ( a este respeito remetemos para o douto despacho de 17.10.1996 de Sua Excelência o Conselheiro Procurador-Geral da República - Circular n.º 6/96 da P.G.R. de 21.10.1996 ).
Para nós, o arquivamento está condicionado às exigências de prevenção geral e especial e ao grau de gravidade da conduta do agente, tendo, aliás, a redacção actual natureza interpretativa, por força da inconstitucionalidade referida.
No sentido exposto depõe também o facto de que a isenção de pena ( cfr. art.º 26º do R.J.I.F.N.A.) apenas se aplica aos casos de pouca importância do crime (insignificante conteúdo do injusto e/ou da culpabilidade).
À luz do disposto no art.º 26º citado, o perigo revela-se no entender do legislador como uma noção gradativa, mas não num sentido quantitativo ( esse sentido foi também acolhido, mas de forma ainda mais marginal, designadamente no que respeita às referências a valores previstas no art.º 23º do R.J.I.F.N.A, desiderato, aliás, parcialmente frustrado por força da necessária interpretação ab-rogante que se terá de fazer do art.º 23º, n.º 5, do R.J.I.F.N.A, por incompatibilidade lógica com a alª a) do n.º 3 do artigo ).
Não faria sentido falar-se aqui em «perigos fortes e fracos», à semelhança de Artz/Weber.
Também não faz sentido dizer-se que o art.º 26º corresponde, no fundo, à possibilidade de prova de inexistência de perigo, retirando daí a conclusão de que se está na fraude fiscal em face de um crime de perigo abstracto-concreto. Todavia, regimes como o aí consagrado não fazem sentido em relação a perigos comuns. Sinal manifesto de que se está perante um bem jurídico individual, cuja natureza pública confere uma densidade acrescida ao nexo de perigo e permite dar ao bem jurídico em causa uma dimensão funcional especial.
A prova da inexistência do perigo concreto para o bem jurídico protegido já é admitida no âmbito do disposto no art.º 23º do R.J.I.F.N.A, isto é, em momento anterior ao do recurso ao disposto no art.º 26º do mesmo diploma legal, o que resulta da utilização da expressão «...susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias...».
Faz sim sentido é perceber que o legislador pretende, por razões de política criminal, prescindir, dentro dos condicionalismos impostos pela assunção do princípio da legalidade como matriz, da perseguição de casos de pequena monta, porque o que interessa é concentrar esforços nos que geram a injustiça fiscal, nos que violam a igualdade.
Entender o art.º 26º do R.J.I.F.N.A. com aquele sentido automático ( cf. neste sentido, o Acórdão do Tribunal Judicial de Loulé e do Supremo Tribunal de Justiça de 28.04.1999, citado, formulados no Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, daquele primeiro tribunal ) seria perder a prevenção geral e conceder razão a quem vê na quantidade a verdadeira distinção entre crimes e contra-ordenações. Ora, como queremos demonstrar, o critério quantitativo, no âmbito da fundamentação dos crimes de perigo, é para nós marginal, servindo para excluir a incriminação ou graduá-la, mas não para explicar o quid materialmente diferenciador que legitime uma proibição e que ilegitime outra.
Para nós, não é também numa ideia de «reparação», ou seja, de direito penal reparador, uma espécie de terceira via, que se encontra fundamento para a inserção do «deve» no art.º 26º do R.J.I.F.N.A. . O punir apenas quando não se arrecadar o imposto é, no fundo, retirar a legitimidade ao direito penal fiscal, convertê-lo num mero sistema de cobrança impostos, que não é. O fundamento material deste direito é aquilo que procuramos demonstrar neste trabalho, sob diversos nódulos problemáticos e sempre norteados pela ideia de bem jurídico, com aquele sentido trans-sistemático já aludido.
Defendemos assim uma oportunidade limitada.
No art.º 26º estabeleceu-se, até à remessa dos autos para a fase de julgamento, uma causa pessoal de exclusão da punição, como refere Faria Costa, na página 46 do Parecer da sua autoria junto ao Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, do Tribunal Judicial de Loulé.
A ideia de reparação aludida já terá utilidade para fundamentar o disposto no art.º 39º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01. .
Note-se ainda que do art.º 26º não resulta qualquer concessão à tese que sustenta que a gravidade mínima exigida para se construir uma infracção penalmente relevante deve ser tanto mais elevada quanto menor for o valor do bem jurídico tutelado na hierarquia axiológica do ordenamento constitucional.
Do que se trata no art.º 26º não é de uma questão de valor do bem jurídico, mas tão-só da gravidade da ofensa ao mesmo. O valor do bem jurídico resta intocável.
O mesmo se diga do estatuído na Lei n.º 51-A/96, de 09.12.
Por esta via se contestam os que vêm neste preceito uma manifestação da «artificialidade» do bem jurídico protegido com a incriminação da fraude fiscal. Tal modo de encarar as coisas mais não traduz do que uma incapacidade de encontrar um critério material de distinção entre crimes e contra-ordenações e dentro dos crimes entre os diferentes tipos de perigo.
Mas já admitimos uma certa «atipicidade» do tipo legal de crime de fraude fiscal no âmbito dos crimes de perigo concreto, mas que não lhe retira esta natureza.
A tese da elevação da gravidade mínima em função da menor valia do bem jurídico conduziria a um radicalismo estático que determinaria a impossibilidade de um combate consequente a todas as novas formas de criminalidade. Tem de haver um espaço livre de incriminação do legislador, aquela imprescindível margem que permite que os ataques ou violações a novos bens jurídicos, historicamente sedimentados, sejam sancionados criminalmente.
Tal tese nega a autonomia/dependente do direito penal, a que já aludimos.
Não se nega, porém, que tem de haver, como já sustentámos supra, uma proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a definição do componente sancionador. E o art.º 26º vem no fundo trazer um reforço da proporcionalidade na incriminação da fraude fiscal, não se compreendendo porque razão não se introduz tal lógica no âmbito do art.º 36º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01., prevendo-se uma atenuação da pena abstracta para casos de pequena gravidade, à semelhança do que sucedia com o disposto no art.º 228º, n.º 4, do Código Penal de 1982, dispositivo este sem paralelo, infelizmente, no Código Penal actualmente em vigor e porque, mais uma vez, se entendeu que a abstracção deste crime de perigo não seria compaginável com uma ideia de menor gravidade. Tal lógica, porém, não é de funcionalização do direito penal, mas sim de o reforçar através da ideia de proporcionalidade.
Ora, isto abre uma outra linha de discussão, qual seja, a de saber qual a verdadeira fundamentação dos crimes de perigo abstracto, aspecto este que abordaremos mais à frente e que permitirá compreender o que agora se afirma.
O valor que em última linha parece orientar o legislador, no R.J.I.F.N.A. é, efectivamente, a protecção patrimo­nial do "erário público".
Em relação à tutela do erário público a "verdade fis­cal" tem uma natureza instrumental. Não se nega que seja também um valor tutelado, mas sê-lo-á em termos instrumen­tais e não finais, tal como acontece com a relação peri­­­­­­­­­­go/dano. Em termos imediatos, a reposição da verdade fiscal é a forma idónea de impedir ou neutralizar o perigo que con­suma o tipo de ilícito. Já a reposição das quantias de­vidas traduz-se no impedimento do dano efectivo.
O bem jurídico teleológicamente protegido pela norma é, pois, o erário público nos termos descritos, importando agora salientar que o mesmo deve ser visto no R.J.I.F.N.A. na sua dimensão funcional: encontra-se funcionalmente vinculado a fins de interesse geral, à consecução de objectivos de política económica, apoiados constitucionalmente.
Porém, não se protegem no R.J.I.F.N.A., contrariamente a outros delitos económicos ( cf. art.º 37º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20.01 ), fins concretos, fixados por determinado organismo estadual e de acordo com um determinado plano ( ex.: subvencional ). E, assim sendo, não é legítimo concluir que a danosidade da conduta supera o nível do prejuízo da funcionalidade dos recursos públicos.
O facto de o crime ser de perigo concreto não prejudica tal conclusão, pois tal apenas significa uma antecipação da tutela penal e não que se esteja perante outro valor tute­lado. Ilustre-se o que se acaba de dizer com os crimes con­tra a integridade física previstos nos art.ºs 142.º e segs. do Código Penal de 1982: o bem jurídico protegido é sempre a integridade física, mas as incriminações tanto podem ser de lesão ( Art.º 142), de perigo abstracto-concreto ( art 146, nº 1) ou de perigo concreto (art 144, nº 1).
Sobre a natureza do crime de fraude fiscal em Espanha são elucidativas as sentenças de 12.03.1986 ( Ar. 1462 ) e de 12.05.1986 ( Ar. 2449 ) do Supremo Tribunal de Espanha ( publicadas em “El Delito Fiscal”, Introducción y selección, de António Aparicio Pérez, Tecnos, págs 24 e segs e 28 e segs ), onde se diz que no que respeita à natureza jurídica da infracção estudada, com anterioridade à Lei de 1977, estimava-se que se tratava de um facto punível contrário à fé pública, tese que abonava a sua colocação dentro do capítulo dedicado às falsidades; mas, após tal lei, entende-se que se trata de um delito sócio-económico que atenta contra os interesses patrimoniais do Estado e das entidades locais ou autonómicas.
A doutrina alemã, de maneira expressa, diz-nos que o bem jurídico protegido é «das Steueraufkommen» ( cf. LAMMERDING/HACKEN BROCH/SUDAU, Steuersfrafrecht, 6ª edição, Achim: Fleischer, 1993, ( N. 21 ), P. 13 ), vale por dizer: o bem jurídico defendido são as receitas dos impostos ( cf. Faria da Costa, Parecer, nota 37 da pág. 39 ).
Por aqui se vê que não podemos concordar com a tese do concurso efectivo entre burla e fraude fiscal seguida nos Acórdãos do STJ de 04-10.1995 e 11.10.1995, proferidos res­pectivamente nos processos nº 47.891 e 47.938.
A obtenção de dados estatísticos não é, por si só, su­ficiente para legitimar a criação de um tipo legal de crime, sob pena de violação do princípio da necessidade e da in­tervenção mínima do direito penal.
Por outro lado, o argumento de que no Código Penal só se punem os crimes comuns, mas não os crimes “especiais”, como o de fraude fiscal, parte de uma premissa viciada: a da fragmentação do sistema penal em compartimentos estanques, com características e regras incomunicáveis.
Mas não é isso o que acontece, pois o sistema jurídico-penal é necessariamente uno, tendo como peça estrutural o Código Penal, e apenas admite certas especializações, ditadas pela especificidade de certos tipos de ilícito ( crimes aduaneiros, crimes económicos, tráfico de estupefacientes, etc. ). Mas essas especializações têm que ser expressamente previstas na lei para derrogarem o regime geral. De outra forma o Código Penal, com a sua vocação globalizante, aplicar-se-á a todo o sistema jurídico-penal.
Não negamos o efeito indício gerado pelo facto do R.J.I.F.N.A constituir uma região normativa especial, isto é, não pomos em causa que o legislador, ao instituir uma nova área normativa incriminadora quer, segundo as mais elementares regras da interpretação jurídico-hermenêutica, que, essa precisa zona jurídico-normativa seja vista como lei especial.
Só que, para nós, tal especialidade não é senão sistemática, não interferindo nunca nas regras gerais do concurso ( em sentido inverso, vide o Ac. S.T.J. de 28.04.1999, citado ). Ou seja, de um ponto de vista sistemático o direito penal fiscal é um ramo especial do direito penal, mas não há qualquer razão, nem tal seria possível, à luz dos princípios enunciados, para derrogar as regras gerais do concurso, sendo certo que o legislador ordinário se encontra submetido à Constituição e não podia afastar as regras em apreço.
Na verdade, com base naquela especialidade sistemática não é possível afirmar-se uma especialidade ratione materiae, alegando-se ter sido essa a intenção do legislador e ser essa a intenção do legislador e ser essa a tradição legislativa e até jurisprudencial e até a vontade de um saudoso mestre de direito.
Se assim fosse, seria a concessão ao caos, à arbitrariedade, pois que a especialidade em direito penal é um conceito bem definido e só funciona nos termos indicados neste texto, ou seja, embora em abstracto ( contrariamente à consunção, que funciona em concreto ), por referência a tipos legais de crime.
Como ensina Cavaleiro Ferreira, em Direito Penal Português, volume I, ed. 1981, Capítulo II, ponto 44-II, fundamentalmente opõem-se duas correntes doutrinárias quanto ao sentido da interpretação da lei: uma que propugna uma interpretação subjectiva, consonante com a vontade do legislador e o fim por ele expresso ou impresso à vontade, e outro que propugna uma interpretação objectiva e teleológica.
Na primeira orientação, que é, no fundo, a que tem sido seguida pela maior parte dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em sede de processos por crimes fiscais, predomina a utilização dos meios de interpretação gramatical, do elemento histórico e da finalidade originária da lei.
Na interpretação objectiva, teleológica, predomina o pensamento objectivo da lei, que se sobrepõe ao pensamento do legislador e é susceptível, para além de atentar nas circunstâncias em que foi elaborada e que a determinaram, de ter em atenção a adaptação do espírito objectivo da lei a novas circunstâncias, às circunstâncias específicas do tempo em que é aplicada.
Justifica-se assim uma interpretação ou pretende-se uma interpretação que não é inovadora mas é, de alguma sorte, progressiva, enquanto a lei, com vida autónoma relativamente ao legislador, é susceptível de alteração quanto ao seu sentido em função do elemento sistemático e da conexão do sentido objectivo da lei com as novas circunstâncias da vida real.
É por isso que não conseguimos entender a jurisprudência portuguesa em sede de crimes fiscais e também não conseguimos perceber como se possa afirmar que o regime jurídico das infracções fiscais «...não é «um mais», algo que acresça, ao Direito Penal comum...», retirando daí não só a conclusão de que não só não existe concurso efectivo ( com o que concordamos ) entre burla, falsificação e fraude fiscal, mas também a conclusão ( com a qual não concordamos ) de que a fraude fiscal afasta sempre o recurso ao tipo legal de crime de burla e de falsificação, quando é certo que não se contesta que o bem jurídico protegido na fraude fiscal é «...em última instância a defesa da prestação tributária...» ( cf. neste sentido, o Ac. S.T.J., de 01.10.1997, ainda inédito, onde se invoca também a natureza institucional do direito penal fiscal para afirmar tal especialidade, o que já contestámos supra).
Mas, como procuramos demonstrar, as regras do concurso afastam a aplicabilidade simultânea do tipo do art.º 23º do R.J.I.F.N.A , do tipo de falsificação e do tipo de burla.
Interessante é notar que, para Alfredo José de Sousa, o bem jurídico tutelado é a Fazenda Pública como sistema di­nâmico de obtenção de receitas e realização de despesas, isto é, mais do que o património estático do Estado. É um bem jurídico diverso daquele de que são titulares os membros da comunidade, já que a não arrecadação dos impostos devidos ou a realização incorrecta da despesa pública se repercute negativamente sobre os benefícios que cada cidadão espera obter do estado na sua actuação sobre a vida social ( In­fracções Fiscais Não Aduaneiras, Almedina, pág. 98).
Afigura-se-nos porém que, numa ordem jurídica democrática, a possível discrepância do cidadão a respeito das diversas funções assinaladas à Administração é elemento ine­rente à mesma, de sorte que a mera desobediência, o inc­um­primento de obrigação formais, não pode erigir-se em con­teúdo do injusto penal. Nem tão pouco as consequências ma­teriais que daí derivem, quando não se afecta outro bem.
Por outro lado, a teoria da função do imposto, como exclusivo objecto de protecção, suporia uma não pouca in­segurança jurídica pelo inabarcável dos seus limites e, portanto, ante a impossibilidade de conformar taxativamente o injusto típico.
Torna-se assim ilegítimo o recurso à via alternativa da construção de crimes de desobediência em detrimento da opção pela construção de crimes de perigo abstracto. Nenhuma destas soluções é fundada e pelas razões expostas.
Refira-se ainda que tutelando o crime de burla também o património público, necessariamente tutela, por via me­diata ou reflexa, os valores a ele associados de igualdade e jus­tiça social ( ex: imagine-se uma burla a uma instituição de caridade - com o tipo legal de crime de burla tutela-se o património de tal instituição, mas também, por via reflexa, os fins a que o mesmo se destinava ).
Só existindo fraude fiscal a ocorrência do resultado ( não entrega do imposto devido ou recebimento de reembolso indevido) deve relevar como medida de avaliação do perigo causado. Nessa medida, a produção do resultado deve ser va­lorada em sede de medida concreta da pena a título de agra­vante geral.
Mas, existindo burla, então o dolo imputável à activi­dade que cria o perigo tutelado pela fraude fiscal está contido no dolo imputável ao crime de lesão (burla).
Toda a conduta de lesão do bem jurídico supõe uma tran­sição pelo perigo dela; daqui que a lesão do interesse contenha já em si, e que por isso a sua punição consuma, o conteúdo criminal das actividades que no caso concreto a põem em perigo.
Ponto é que o dolo à base do qual se imputa a activi­dade de perigo seja o necessariamente contido na imputação dolosa do dano ( cfr. Prof. Beleza dos Santos, RLJ, ano 67, págs. 242 a 243) ou que, de qualquer maneira, se possa afirmar entre as diversas actividades numa unidade resul­tante de continuação criminosa. Só pressupondo isto se pode na verdade dizer que a punição da lesão de um bem jurídico consome o conteúdo das situações que concretamente o põem em perigo.
Para que a consunção possa ter lugar é, porém, sempre necessário investigar também cuidadosamente se o círculo de bens jurídicos, cujo perigo de lesão uma determinada norma prevê, coincide com aquele cujo dano uma outra proíbe.
Só quando se trata do mesmo interesse mas diferente­mente valorado se pode considerar a existência de consunção.
Assentam os doutos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.1995 e de 11.10.1995, supra-citados, na tese de que os bens jurídicos são distintos na fraude fiscal e na burla, com o argumento de que na primeira está em causa o desvalor da acção e na segunda o desvalor do resultado.
Tal fundamentação é incorrecta, salvo o devido res­peito, pois aquilo a que se referem tais Acórdãos é aos modos de tutela de um bem jurídico.
Vejamos o caso do bem jurídico "vida":
Tal bem jurídico reveste uma dignidade penal tal que se pode descortinar ao longo do Código Penal uma verdadeira " protecção plural" do mesmo. Na verdade, não só se pune a tentativa de homicídio, como o crime de homicídio consumado, como, inclusive, se tutela a mesma vida através de crimes de perigo.
Tal é a prova mais evidente de que a fundamentação uti­lizada por tais acórdãos confunde medidas de tutela com diversidade de bens jurídicos.
Não me parece, pois, que o bem jurídico protegido por uma norma deva ser identificado por recurso a tal critério.
O verdadeiro critério a utilizar terá de ser aquele que procura no tipo legal de crime a verdadeira intenção do le­gislador, tipo esse que deve ser visto na sua máxima signi­fi­cância, ou seja, não só em si mas também no contexto em que foi gerado e em que se insere. No fundo, valem também aqui as regras gerais de interpretação, que nos dizem que é ne­cessário atender:
ao elemento literal da norma,
ao elemento histórico,
ao elemento racional e
ao elemento sistemático.
Pode mesmo dizer-se que a tarefa de aplicação de uma norma penal passa em primeira linha pela tarefa da sua in­terpretação. E o que o intérprete do direito penal deve desde logo procurar, sobretudo quando se depara perante um crime de perigo, é o bem jurídico protegido pela norma pe­nal.
Na verdade, uma acção é perigosa, não porque carrega em si mesma o modo-de-ser perigoso - conclusão a que levará a singeleza do critério do STJ.-; uma acção é perigosa porque efectivamente pôs em perigo um determinado bem jurídico.
Mesmo em sede de crimes de perigo abstracto, estes só se podem verdadeiramente justificar quando, se bem que uni­camente através de um cuidado-de-perigo, se quer ainda pro­teger um bem jurídico com dignidade penal - o critério não é, pois, o da probalidade do pôr-em-perigo: uma acção não é perigosa porque carrega em si mesma o modo-de-ser perigoso.
Vale nesta sede o princípio da ofensidade, que liga o momento relacional de cuidado-de-perigo fundante dos crimes de perigo abstracto com a mediação de um concreto bem jurí­dico.
Podem, na verdade, descortinar-se tipologias de "agressão" ao bem jurídico:
a) Para Grasso a distinção far-se-ia entre:
- dano;
- perigo:
. directo - crimes de perigo concreto;
. indirecto - crimes de perigo abstracto;
b) Para Faria Costa a distinção faz-se por apelo a um princípio de ofensidade:
- dano/ violação;
- concreto/pôr-em-perigo
( crimes de perigo concreto);
- cuidado-de-perigo
( crimes de perigo abstracto).
Note-se que para nós o perigo não é um dano para o direito penal, embora o possa ser para outros efeitos. O perigo é um resultado, mas não é um dano.
Assim, não distinguimos entre dano e lesão para tal efeito.
Admitimos, porém, que a riqueza da linguagem possa surpreender outras terminologias.
Este autor critica a subdistinção entre perigo directo e indirecto, porque no fundo o perigo tem de ser sempre efec­tivo, mas não no sentido da acção ilícita se ter de ma­teri­alizar num qualquer prejuízo, antes sim no sentido de o pe­rigo para o bem jurídico ter de ser efectivo.
Já a idoneidade que transparece do juízo que assenta na capacidade de pôr-em-perigo baseia-se na aceitação de constantes que enformam e conformam o quotidiano analí­tico-compreensivo no seio da normatividade que anali­samos.
O perigo não pode ser visto em termos naturalísticos, mas sim fazendo apelo a um juízo que radicará em investigar se, aparentemente e segundo as regras da experiência comum, a actividade do agente, no conjunto das circunstâncias que o rodeiam e do objecto a que se dirige, é ou não adequada a preencher um certo tipo legal de crime – vale ainda aqui um critério subjectivo mitigado, que permite a construção de um conceito unitário de tentativa, devendo, porém, dizer-se que não é o perigo que caracteriza a tentativa, mas sim a existência de actos de execução, que podem estar ausentes nos crimes de perigo, maxime abstractos.
Quer se entenda que o perigo é a situação que faz aparecer como possível a realização de uma dano contrário aos interesses juridicamente protegidos( Schröder), quer se entenda que o perigo é a situação invulgar e anormal, que, segundo um juízo prudente ( dadas as circunstâncias existentes em concreto ) funciona como meio provável de produção de um dano ( Jeschek ), quer se afirme que o perigo concreto se verifica quando exista uma possibilidade, não negligenciável, de vir a ser causado um dano, o certo é que a teoria da causalidade adequada ( art.º 10º, n.º 1, do Cód. Penal ) tem aqui pleno emprego, havendo que notar que se o perigo se concretizou, ainda que, em abstracto, a conduta ou o comportamento em causa não possuísse idoneidade para o produzir, não deve ser afastada a incriminação.
Como ensina Costa Andrade, em " Consentimento", pág. 340, nota 167, e Faria Costa, " O Perigo em Direito Penal"; nota 177, pág. 644, o concreto pôr-em-perigo que se vislumbra nos crimes de perigo concreto invoca, em primeira linha, a defesa de bens jurídicos individuais. Na verdade, a especial natureza do bem jurídico que se quer proteger "determina" o "modus" da sua protecção.
No caso das receitas tributárias é a referência ínsita na Constituição da República às mesmas que impõe uma sua tutela antecipada através de um crime de perigo concreto.
A idoneidade refere-se no art.º 23º do R.J.I.F.N.A não ao pilar normativo que o perigo representa, mas sim ao dano e o juízo de idoneidade tem que se fazer directamente para com ele, o que constitui um sinal manifesto de que estamos perante um crime de perigo concreto singular.
O princípio da ofensividade neste caso apenas permite dois níveis de estruturação da tutela penal:
- dano/violação: burla;
- concreto-pôr-em-perigo: fraude fiscal.
Note-se que não fundamentámos os crimes de perigo na singela afirmação de que existe uma linha de continuidade entre o perigo e a violação, pelo que o pôr-em-perigo merece proibição penal, como estádio lógico anterior.
Ao afirmarmos a possibilidade de tais dois níveis de estruturação fazemo-lo por força da conclusão que tirámos a respeito de qual o bem jurídico protegido na fraude fiscal.
Sabemos, na verdade, que pode haver incriminações de perigo a que não correspondem incriminações de resultado. Porém, se concluirmos que a fraude fiscal é um crime de resultado, isto é, de resultado cortado, então, é natural que se procure tal linha de continuidade, que encontrámos no tipo «supletivo» de burla, posto que o perigo é sempre subsidiário do dano ( lesão ), até mesmo nos casos de consunção impura, onde o dano aparece sempre como referente estruturante da solução jurídica final (neste ponto se revela a grande fragilidade argumentativa do Ac. S.T.J., de 01.10.1997).
Mas avancemos no nosso raciocínio, que vai muito para além desta vexata questio, ou seja, manterá validade ainda que se afirme uma total exclusão do crime de burla, o que, diga-se, não defendemos.
O terceiro nível de estruturação do princípio da ofen­sividade , designadamente o cuidado-de-perigo (cfr. crimes de perigo abstracto), não se justifica senão sob a forma de tutela contra-ordenacional e isto porque as condutas a que aludem os art.ºs 28º a 40º do RJIFNA tutelam interesses que se en­contram num nível mais baixo da escala da valoração axiológica.
A criação de um tipo legal de crime de perigo ab­stracto será, a nosso ver, inconstitucional por violação do princípio da ofensividade ou, o que é o mesmo, dos princí­pios da intervenção mínima do direito penal ( este só deve in­tervir e a escolha dos meios de punição deve reger-se por uma lógica de graduação de instrumentos), da necessidade , da adequação e da proporcionalidade.
O interesse pela obtenção de dados estatísticos não permite a criação de um tipo legal de crime, posto que se­ria o mesmo inconstitucional por falta de densificação bas­tante do perigo que merece a reacção penal, isto é, por vio­lação do princípio da ofensividade.
Além do mais, a presunção absoluta inerente aos crimes de perigo abstracto seria deveras discutível, na sua cons­ti­tucionalidade, pela sua manifesta desproporcionalidade. Além do mais, cair-se-ia em contradição com a consagração em simultâneo de um princípio de auto-liquidação e de auto-lançamento.
Concordamos que a fundamentação dos crimes de perigo abstracto ainda se pode reconduzir à protecção de um qualquer bem jurídico, não obstante a inexistência de um concreto e cristalizado bem jurídico. A perversão da matricial e originária relação de cuidado-de-perigo suscita não um dano, não um perigo, mas um cuidado-de-perigo relativamente a valores essencialíssimos do viver comunitário. A relação de cuidado-de-perigo, mesmo sem a recorrência imediata do bem jurídico, é ainda suporte material suficiente para legitimar a incriminação de condutas violadoras dessa relação originária.
Nos crimes de perigo abstracto terá de detectar-se sempre um «halo» no bem jurídico a proteger ou protegido, halo esse que é referenciável ao bem jurídico e ao qual a comunidade jurídica concede a dignidade da protecção penal.
Ora, para nós, não é detectável tal «halo» nesta sede.
Não reconhecemos à verdade fiscal a qualidade de bem essencialíssimo, capaz de fundamentar a construção de um tipo legal de crime de fraude fiscal.
O bem jurídico no crime de fraude fiscal não é, pois, uma realidade etérea e metafísica, descoberta pelo intérprete na confiança fiscal depositada pelo Estado nos contribuintes. Se o legislador quisesse tutelar esse valor teria de antecipar radicalmente o momento da intervenção penal e criar uma incriminação de desobediência – o que, de acordo com os elementos preparatórios, não fez – e transformar inúmeras irregularidades fiscais em crimes, já que qualquer acto de desobediência fiscal ou irregularidade da mesma natureza é idónea a fazer perigar a referida confiança do Estado nos contribuintes...» ( Parecer de Tereza Beleza junto ao Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, do Tribunal Judicial de Loulé ).
Por outro lado, sendo os crime de perigo abstracto uma forma típica ajustada à protecção de bens jurídicos supra-individuais, o certo é que tal supra-individualidade não exclui que se tenha de identificar, pelo menos, o halo dos bens essencialíssimos que se querem proteger, ou seja, a supra-individualidade não é critério material de fundamentação dos crimes de perigo abstracto e muito menos dos crimes de desobediência.
A questão da fundamentação dos crime de perigo abstracto não é uma questão de proporcionalidade/desproporcionalidade, mas sim de um fundamento à luz da ideia de bem jurídico, pois se o valor a proteger não for essencialíssimo para a vida em comunidade, não há neles um verdadeiro e materialmente fundado desvalor, violando-se o princípio da ofensividade, cujo fundamento legal reside, afinal, no princípio da intervenção mínima do direito penal e da proibição do excesso.
A controlabilidade do meio empregue representa também um particular critério de aferição no que toca à violação das condutas proibidas. A perigosidade dos crimes de perigo abstracto liga-se à incontrolabilidade do meio empregue.
No caso da fraude fiscal, o agente é punido não por perverter uma relação de cuidado, mas antes por perverter uma relação de concreto pôr-em-perigo.
Assim, afirmar a verdade fiscal como bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime de fraude fiscal, dando-lhe uma «essencialidade» tal que converta tal crime em crime de perigo abstracto, seria absolutamente ficcional.
Seria absolutamente ficcional sancionar criminalmente comportamentos cuja ligação matricial à protecção de um bem jurídico ultrapassa a relação de cuidado que pressupõe, pelo menos, uma motivação ligada a um nexo de perigo minimamente densificado. Assim, não se verificando estes pressupostos, a conduta só poderá ser punida, quando muito, pelo direito de mera ordenação social.
Mas ao falar-se em valores essencialíssimos não queremos com isto aderir a uma construção que vê no bem jurídico aspectos nucleares, periféricos e irrelevantes. Tal maneira de ver não corresponde em nada ao nosso modo de ver as coisas. Tal teoria dos três círculos não tem capacidade para servir de critério material de fundamentação em sede de crimes de perigo.
A verdade fiscal não é fundamento autónomo da tipici­dade nem razão da antecipação da tutela penal. A razão de tal antecipação da tutela penal reside, antes, na necessidade inelutável de o Estado cobrar impostos, isto é, numa ideia de prevenção.
Mas se o bem jurídico já se encontra protegido pela construção de um tipo legal de crime de resultado - burla- e se este se mostra mais facilmente interiorizável na consciência ético-jurídica da comunidade, o que é que fundamenta a passagem para esse plus de protecção por meio da criação de um crime de perigo, quando este, por seu turno, tem mais dificuldades em ser mediatizado por aquela mesma consciência ético-jurídica?
Em termos de pura prevenção a tipificação de condutas de pôr-em-perigo em nada se diferencia de uma qualquer outra tipificação.
A legitimidade do alargamento da punibilidade resultante da criminalização de condutas desencadeadoras de situações de pôr-em-perigo não pode vir da valoração político-criminal que quer cumprir a finalidade da diminuição da criminalidade .
A nosso ver, é por atenção ao valor do bem jurí­di­co tutelado e por uma razão de prevenção que se antecipa a tutela penal.
Atendendo ao valor que as receitas tributárias repre­sentam para o Estado, a antecipação da tutela protec­­­­­­­­­tora, prescindindo-se de elementos do tipo de resultado, de­signadamente do artifício fraudulento e do próprio benefi­cio/prejuízo, nada tem a ver com o efeito intimidativo da pena ao nível do desvalor do resultado. Tal antecipação está sim relacionada com o juízo político-criminal que se baseia no facto singelo de que é insustentável, logo ético-social­mente ilegítima, a fuga ao fisco, porque a mesma tem ine­rente um ataque aos valores da justiça, da igualdade, da solidariedade e do progresso social.
Não seria, na verdade, possível a realização do ideal constitucional sem a cobrança de impostos. O Estado não subsistiria. Muitos direitos constitucionais deixariam de fazer sentido, na prática.
No fundo e de outra maneira, a criação de um tipo legal de crime de fraude fiscal corresponde a uma forma de su­pri­mento da tutela " lacunosa" do tipo legal de crime de burla, onde se perfilam como condições necessárias o arti­fício frau­dulento e o benefício/prejuízo, as quais podem estar ausentes no primeiro.
A fraude fiscal foi configurada como um crime de perigo porque, no fundo, o Estado reconhece a sua incapacidade de controlo dos sujeitos passivos de impostos, a qual é tanto mais evidente quando em sede de IRC vigora o princípio da auto-liquidação e em sede de I.V.A. o princípio do auto-lan­çamento.
É certo que ao instituir um princípio de auto-liquidação em sede de IRC o Estado criou um risco calculado.
Porém, não existe no regime da fraude fiscal qualquer lógica de punição de excessos de risco calculado. O ónus de controlo das finanças do Estado não deve ser deferido ao cidadão, o qual só pode responder por uma culpa concreta ( e não abstracta) - há um limite até ao qual, em sede de fraude fiscal, o cidadão pode responder pelo engano em que fez in­correr o Estado.
Assim se perceberá também a impossibilidade de a acusação do Ministério Público se fundar tão-só nos métodos indiciários para imputar um crime de abuso de confiança fiscal ( art.º 24º do R.J.I.F.N.A ), pois que as presunções em direito penal têm um campo de actuação muito limitado, ou seja, só são de admitir as presunções naturais e a título meramente acessório, não podendo fundar uma incriminação por si só. A culpa não se presume, prova-se.
Com tudo isto estamos habilitados a compreender porque razão a descriminalização da fraude fiscal seria inconstitucional. É que a lei descriminalizadora, sujeita a reserva de lei, aliás, violaria o princípio da igualdade ( art.º 13º da C.R.P. ) e o próprio princípio do Estado de Direito democrático (art.º 2º da C.R.P.).
Neste sentido valem também considerações de segurança e paz social. O «contrato social» não subsistiria sem as receitas tributárias.
Chegados a este momento, convém recordar a afirmação que fizemos e pensamos ter deixado até demonstrada, designadamente a de que não existem especialidades ao nível do direito penal fiscal que imponham uma derrogação às regras gerais do concurso, assim como convém recordar que não acompanhamos a tese do concurso entre a burla, a falsificação e a fraude fiscal, sustentada no douto Acórdão do Tribunal Judicial de Loulé, formulado no Processo Comum Colectivo n.º 168/95, do 2º Juízo, com base na singela conclusão de que na fraude fiscal se protege algo mais que o erário público. É que tal tese viola o princípio da proibição da dupla valoração, do «ne bis in idem» e da culpa, assim como se detecta a mesma contradição ao sustentar-se que o desvalor de resultado da fraude fiscal não é na mesma valorado, mas tão só na burla, misturando-se os tipos, num exercício interpretativo para nós inovador a todos os títulos e em manifesta violação do princípio do «ne bis in idem», cujo alcance não admite a limitação inerente a tal construção, já que de um princípio se trata, o qual impõe, em casos extremos a própria consunção impura, pois sofre menos o direito deixando de aplicar-se o tipo a consumir do que truncando-o por forma a que dele reste o (aparentemente ) compatível ( a este título parece-nos de todo elucidativo o caso de consunção impura mais célebre do Código Penal de 1886, designadamente o que foi criado pelo Decreto n.º 20146, de 01 de Agosto de 1931, o qual criou, por mero lapso, uma penalidade superior para o furto – art.ºs 421º, n.º 5, e 428º - do que para o roubo – art.º 435º e seus parágrafos -, o que levou o ilustre mestre Prof. Eduardo Correia a deixar-nos o seguinte esclarecimento: «...conduzirá isto a que se apliquem os dois cumulativamente ? De maneira nenhuma. Na verdade, ainda que em certa medida diferentes, certo é que coincidem na sua maior parte os bens jurídicos que protegem e, para que não se viole o princípio «ne bis in idem», só um deles poderá ser aplicado...», concluindo depois pela aplicabilidade do mais extenso, do que conduz a uma punição mais completa e perfeita, ou seja, do art.º 428º, n.º 3, do Código Penal de 1886 ).
Mas, no que respeita à consunção impura, importa salientar que esta opera em concreto, isto é, com as penas a aplicar em concreto, e não no confronto das molduras abstractas. Não basta o simples confronto dos tipos legais de crime, havendo que, num primeiro momento, encontrar a pena dos tipos em confronto e só depois escolher o tipo que confere a tutela mais completa e perfeita.
Por outro lado, pode haver aqui casos de «consunção imperfeita», ou seja, em que a fraude fiscal só seja afastada pela aplicação, em cúmulo jurídico, de, pelo menos, dois tipos legais de crime.
No Ac. S.T.J., de 08.10.1998 ( C.J., Ano IV, T.III-1988, págs. 189 e segs. ) afirmou-se um concurso aparente entre o crime de falsificação e o de fraude fiscal, no sentido de se aplicar tão-só este último crime. Contestamos a justeza da fundamentação do Acórdão e cumpre notar que não se discutiu aí a possibilidade de existência de um crime de burla, que, a admitir-se, levaria também a conclusão diferente.
Esquecendo o crime de burla e fixando a nossa análise na relação existente entre o crime de falsificação do Código Penal ( art.º 257º ), o crime de fraude fiscal do art.º 23º, n.ºs 1-2-3, alªs e) e f), do R.J.I.F.N.A, na redacção do Dec. Lei n.º 394/93, de 24.11, e a contra-ordenação fiscal do art.º 33º deste último diploma legal, parece-nos existir aqui uma relação de alternatividade entre tais tipos.
Como refere Binding, o criador do conceito, tal relação existe “quando dois tipos de crimes se relacionam como dois círculos que se cortam um ao outro, ou, quando precisamente o mesmo tipo de crime é previsto em vários preceitos”.
As hipóteses que Binding tem ante os olhos «...são v.g. aquelas em que a lei, enunciando uma circunstância qualificativa, não toma na devida atenção a pena do crime descrito no preceito fundamental e fixa para o crime qualificado por aquela circunstância uma pena inferior à do não agravado – e ainda aquelas em que, por puro desconhecimento de outra lei, o legislador descreve um crime já naquela previsto» ( Eduardo Correia, Tese, citado, págs. 149 a 150 ).
Na construção dos tipos referidos cometeu-se um erro técnico-legislativo, fruto da errónea convicção de que era permitida ao legislador a derrogação das regras gerais do concurso, a criação de uma especialidade à revelia de tal conceito em direito penal.
O legislador acabou por se trair, ao transformar no R.J.I.F.N.A. a falsificação de qualificativa em atenuante, ao ponto de a desgraduar até ao nível de contra-ordenação.
Para tal terá contribuído o facto de no R.J.I.F.N.A. se ter consagrado a responsabilidade criminal das pessoas colectivas ( art.º 7º ), contrariamente ao que acontece no Código Penal ( art.º 11º ).
Curioso é notar que face ao novo Código Penal, na redacção do Dec. Lei n.º 48/95, de 15.03, o Supremo Tribunal de Justiça já entendeu que o crime de burla consome o crime de falsificação, quando aquele seja cometido através desta, conclusão que nos parece acertada, embora nos pareça insuficiente a fundamentação do Acórdão em apreço, designadamente o de 03.12.1998 ( C.J., Ano IV, TIII-1998, págs. 231 e segs. ). Para tal conclusão ter-se-ia de colocar em crise, ainda que parcialmente, a tese de Hönig em sede de concurso de crimes, designadamente a tese da «identidade dos bens jurídicos» protegidos como critério do concurso. Só que, nesse caso, colocar-se-ia em crise o acerto do Acórdão do STJ de 19/02/92, in DR, I-A, n.º 84, de 09.04.92, o qual fixou ju­risprudência ( embora não vinculante no âmbito do Código Penal actual ) no seguinte sentido:« No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228º, n.º 1 alínea a) e do artigo 313º, n.º1, respectivamente , do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de cri­mes".
Anote-se ainda que não defendemos a existência de burla apenas nos casos em que se comprove o recebimento de reembolsos, como se entendeu no Ac. do S.T.J., de 15.12.1993 ( anotado por Helena Isabel Gonçalves Moniz e publicado em «Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários», vol. II, págs. 363 e segs. ), e de algum modo no Ac. do Pleno do S..T.J., de 16.10.1997, onde se rejeitou o recurso de fixação de jurisprudência, mas onde «a latere» se afirma que até 01.01.1994, data da entrada em vigor da nova redacção do R.J.I.F.N.A, a burla ( só ) era possível existindo reembolsos de I.V.A, mas que, «...Desde 1 de Janeiro de 1994, mediante a inclusão expressa dos reembolsos na fraude fiscal, quando ocorram todos os elementos constitutivos do crime de burla, passou a existir, incontestavelmente, entre a fraude fiscal e o crime de burla, um concurso aparente, predominando a lei fiscal, como lei especial, sobre o Código Penal, Lei Geral ou comum», acrescentando-se aí o argumento de a fraude fiscal ter passado a ser punida com pena de prisão.
Pensamos ter deixado já demonstrado o erro deste entendimento. Todavia, importará dizer ainda que pode existir burla mesmo não existindo reembolso, pois que, para que a burla se configure basta que o artifício fraudulento seja causa adequada de limitação à liberdade de disposição e troca de bens patrimoniais – essencial é que exista benefício ilegítimo da parte do sujeito passivo e prejuízo patrimonial para o Estado.
O prejuízo patrimonial corresponderá então à soma do que não se entregou a título de imposto devido com o que se obteve a título de reembolso indevido, se este existiu.
Este aspecto tem uma importância fundamental no que respeita, por exemplo, à questão de saber em que casos a burla é agravada pelo valor consideravelmente elevado do prejuízo patrimonial.
O tipo legal de crime de burla não exige a deslocação patrimonial, em sentido restrito.
A exigência da prática de actos pela vítima substituiu a alusão à entrega de «dinheiro ou móveis, ou quaisquer fundos ou títulos», constante do art.º 415º do Código Penal de 1852-86.
A maior amplitude da fórmula de que se prevalece o legislador penal de 1982-95 supera as dúvidas com que se debatiam a doutrina e a jurisprudência, na vigência do antigo Código Penal, a respeito da entrega indirecta.
Por outra parte, a lei não se reporta agora a actos de disposição, contrariamente, por exemplo, ao art.º 222º do Código Penal de 1995 ( a que corresponde o art.º 317º do Código Penal de 1982 ), onde se refere expressamente o «constranger (...)a uma disposição patrimonial...». E se o legislador não utilizou idêntica expressão - «disposição patrimonial» - não foi por acaso. É que tal limitaria o âmbito do tipo legal de crime de burla, retirando-lhe o seu carácter algo supletivo no seio dos crimes contra o património.
A este respeito, curioso é notar no seguinte exemplo de «burla triangular de créditos»: burla quem surpreende a boa fé do devedor, persuadindo-o falsamente de que é credor, e obtendo assim a extinção da obrigação daquele em prejuízo do credor ( por exemplo, obtém do devedor a satisfação de um crédito que anteriormente cedera a terceiro ), extinção essa que pode verificar-se por qualquer das formas previstas no Código Civil, como por exemplo, por compensação ( art.º 847º ).
Aliás, a defender-se que só existe burla consumada existindo reembolso cair-se-ia no paradoxo de alguém ser punido por crime de burla tentada quando deixou de pagar uma elevada quantia, e outrem ser punido por crime de burla consumada quando apenas recebeu de reembolso uma quantia muito inferior.
E tal paradoxo é tanto maior quando resulta da natureza dos pagamentos por conta que a obtenção indevida de reembolso de IRC mais não é do que um não pagar. É que não existe em Portugal o chamado imposto negativo - só se obtém de reembolso o que se entregou por conta - , o que nos parece resultar de modo explícito da natureza do I.R.C., que perspectivámos como imposto continuado.
E o mesmo se diga do reembolso de IVA, pois também aqui não existe a figura do imposto negativo e a obtenção de tal reembolso também configura um verdadeiro não pagar imposto devido.
Para além do mais, não se exige no tipo de burla mais do que a simples intenção de enriquecimento e não o efectivo enriquecimento, sinal manifesto de que pode existir burla sem deslocação patrimonial.
O interesse protegido pelo crime de burla não é o enriquecimento ilegítimo do agente, mas o empobrecimento do lesado.
E por enriquecimento ilegítimo deve entender-se aquele que não corresponde, objectiva ou subjectivamente, a qualquer direito. E a ninguém neste país assiste o direito de não pagar impostos, se para tanto tiver capacidade contributiva.
O enriquecimento dá-se na justa medida em que se verifica uma não diminuição do património, por não se ter pago o imposto devido.
Discordamos, por outro lado, dos que sustentam que, pelo facto de existir auto-liquidação e ter desaparecido a categoria da liquidação provisória, então fica desde logo arredada a possibilidade de burla, já que a liquidação do contribuinte pode ser corrigida, alterada, modificada, enquanto não decorrer o prazo de caducidade para tributar, mas não se destina a servir de base a qualquer outro acto da Administração cujo conteúdo possa eventualmente falsear.
Na verdade, uma coisa é afirmar-se que a eficácia da liquidação não depende de posterior verificação e conformação dos serviços da administração fiscal, com o que se concorda, e outra é dizer o supra-referido. É que aderir a tal afirmação implicaria o ficar sem explicação o porquê do pagamento de reembolsos. Se tal se passa e é imposto por lei no prazo máximo de três meses é porque afinal se praticam actos.
Para que se configure o tipo legal de burla basta a prática de actos pelo fisco com vista ao exame das declarações tributárias, exame esse de que resulta um juízo viciado à partida devido ao erro que resulta para a administração fiscal do artifício fraudulento utilizado ( cf. a este respeito, a anotação de Mário Ferreira Monte ao Ac. S.T.J., de 03.10.1996, publicada em Scientia Iuridica – T. XLV, 1996, n.ºs 262/264).
E repare-se que o que se deve punir, muitas vezes, é a ocultação fraudulenta da base tributária, assim se obtendo benefício ilegítimo ( no sentido por nós supra-indicado ), e não a simples passividade. O que deve relevar é o ocultar ou desfigurar as bases tributárias com o fim de iludir a obrigação de satisfazer determinados impostos e com a evidente intenção defraudatória, que decorre das falsificações e das anomalias substanciais na contabilidade . Não se trata, em tais casos, de um mero incumprimento dos deveres fiscais, com o consequente dano patrimonial, mas também, à semelhança do que se passa no crime de burla, de uma manobra falaz susceptível de induzir em erro.
A este respeito podem distinguir-se duas vertentes: a omissão absoluta de declaração, enquanto conduta activa constituída pela ocultação da base tributária ( não é a simples passividade ) e a declaração «falsa».
Tanto engana ou defrauda quem oculta a declaração como quem a apresenta, se nela se falseiam os correspondentes dados, se há propósito defraudador.
Também o silêncio pode configurar fraude, inclusivamente pode ser uma forma de realização da fraude, mais importante quantitativamente ou qualitativamente na expressão e no resultado.
Há que ter em conta nesta sede o dever jurídico de declarar.
Nada dizer, ocultando fraudulentamente a base tributária ( não se trata, portanto, do simples não pagar impostos ) é, muitas vezes, mais grave do que declarar parte e ocultar outra.
Em face de tudo quanto fica dito é pois legítimo concluir que o crime de burla passa então a consumar-se em momento anterior ao pagamento do reembolso ( sempre posterior à li­quidação do imposto- art.º 82º, n.º 3, do Cód. do IRC), passando, pois, tal consumação a coincidir com o momento do pagamento ao fisco em conformidade com a declaração periódica apresentada ( se apresentada em data anterior à referida no art.º 96º do Cód. IRC) ou com a data limite até à qual tal pagamento deveria ter sido feito, isto é, 31 de Maio do ano posterior àquele a que respeita a declaração em apreço (cfr. Art.º 70, al. a), 96º e 80º, n.º 2 do Cód. IRC).
Só existindo fraude fiscal, em sede de IRC, consuma-se a mesma no momento da apresentação da declaração periódica, isto é, no momento da liquidação do imposto ( art.º 96 do Cód. IRC), ou seja, entre 1 de Janeiro e 31 de Maio do ano posterior aquela que respeita a declaração periódica ( a que pode ser apresentada em qualquer dia útil de tal período de tempo).
Por aqui se vê que, sendo a declaração per­­iódica apresentada a 31 de Maio ( do ano posterior àquele a que respeita), existindo burla, esta e a fraude fiscal con­sumam-se na mesma data, o que bem ilustra a identidade de bens jurídicos protegidos por uma e outra infracção.
Uma vez que a fraude fiscal se encontra configurada como um crime de resultado cortado, sendo punível a tenta­tiva no caso do art.º 23º, n.º 4, parte final, e n.º 5 do DL n.º 20-A/90, de 15.01, na redacção do DL n.º 394/93, de 24.11 ( o qual entrou em vigor a 01.01.1994), é admissível o ar­rependimento activo ( se a declaração periódica for apre­sentada em data anterior a 31/05 do ano posterior àquele a que respeita) até ao momento do pagamento do imposto ( 31 de Maio), ao abrigo do art.º 24º, n.º 1, parte final, do Código Pe­nal, desde que exista espontaneidade e voluntariedade.
Após a data referida no art.º 96 do Cód. IRC o agente perde o domínio do facto, muito embora possa ainda adoptar comportamentos adequados a fazer funcionar o disposto no art.º 206º do C. Penal de 1995, aplicável ex vi do art.º 218º (3) do mesmo di­ploma legal.
Mas a liquidação a que nos referimos é a liquidação definitiva (cfr. art.º 96º do Cód. IRC), que não deve ser con­fundida com os pagamentos por conta a que alude o art.º 82º (1) do CIRC, que são anteci­pações do pagamento de um imposto futuro que, no momento em que tais pagamentos são feitos, não existe, nem, muito me­nos, é exigível. É que, a não ser assim, a administração fiscal ou o Ministério Público poderiam controlar o momento da consumação do crime.
É que os pagamentos por conta só são adquiridos, só são " propriedade" do Estado, se o montante a pagar de IRC for superior ou igual ao total dos pagamentos por conta.
A obrigação de imposto só surge no fim do ano civil. Só no final do ano civil ( art.º 7º, nº1 do CIRC) se gera a obriga­ção de pagar o imposto e pode não surgir se não houver lucro tributável.
O IRC é um imposto continuado, em que a obrigação de im­posto só surge no fim do ano civil, se houver lucro tri­bu­tável.
Se a liquidação não é "definitiva", tal não se deve ao Estado, mas sim ao sujeito passivo que engana o Estado, aproveitando-se do facto de vigorar o princípio da auto-liquidação em sede de IRC. As declarações substitutivas não têm, pois, relevância, a não ser em sede do art.º 206º do C. Penal de 1995 - salvo se apresentadas até 31 de Maio do ano a que se refere o art.º 96º do Cód. do IRC.
É bom não esquecer, na verdade, que estamos a falar de empresas, muitas delas com grande capacidade económica, e não é pelo facto de apresentarem declarações rectificativas que podem ser ilibadas em sede de burla.
Curioso é notar que, para Jescheck, no caso de desis­tência da tentativa, quando a tentativa já constitui em si um facto consumado, aquilo que se designa por tentativa qualificada, este crime deve ser punido com independência, apesar de se verificar uma desistência voluntária.
Um crime consumado não pode ficar impune só pelo facto de o seu autor, através dele, ter tentado cometer outro crime. Porém, faz-nos uma ressalva quando o crime já consumado é um crime de perigo. E para resolver o problema, recorre à distinção doutrinal entre crime de perigo abstracto (ex. a falsificação) e concreto ( ex. a fraude fiscal).
No primeiro caso ( crime de perigo abstracto), dado o perigo geral que com aquele já foi criado, o agente deve ser punido; no segundo caso, os efeitos da desistência também se estendem ao crime de perigo concreto, sempre que este protege o mesmo bem jurídico que o crime tentado ( ex. burla) protegia, visto que a colocação em perigo daquele bem jurídico é apenas uma fase prévia da sua lesão ( cfr. Tratado de derecho penal, Vol. I, pág. 748).
Chegados a este ponto, não queremos terminar sem antes chamar a atenção para a diferença que existe entre o abuso de con­fiança fiscal e o abuso de confiança do Código Penal.
Para que exista o abuso de confiança do Código Penal é necessário que o agente ilegitimamente se aproprie de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por ti­tulo não translativo da propriedade.
Imagine-se o empresário (A) que não entrega ao Estado os montantes que reteve na fonte a título de IRS. Comete, por isso, um crime de abuso de confiança do Código Penal? Ao apropriar-se de tais montantes de IRS não se apropria de nada que lhe tenha sido entregue pelo Estado. E se não in­tervier na sua relação com o fisco qualquer artifício frau­dulento, também não comete o crime de burla.
Augusto Silva Dias analisa um caso de consunção do crime de abuso de confiança fiscal pelo crime de abuso de confiança do Código Penal, em «O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro», publicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. II, Coimbra editora, na página 256. Concordamos integralmente com essa análise ( cf. em sentido contrário, Figueiredo Dias – Costa Andrade, “O Crime de Fraude Fiscal no novo Direito Penal Tributário Português”, in «Direito Penal Económico e Europeu, cit., pág. 426 ).
Porém, já não acompanhamos o mesmo autor quando admite, na página 277 de tal trabalho, a aplicação do n.º 6 do art.º 24º do R.J.I.F.N.A., na redacção inicial do Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15.01, às prestações periódicas que derivam, não de uma divisão da prestação global, mas do nascimento, também periódico, de novas obrigações. É que o normativo em apreço, que dispunha que «Se a obrigação da entrega da prestação for de natureza periódica, haverá tantos crimes quantos os períodos a que respeita tal obrigação», configurava um caso de responsabilidade objectiva, sendo inconstitucional por violação do princípio do «ne bis in idem» e do princípio da culpa.
Tratava-se aí, uma vez mais, de uma tentativa, frustrada pela inconstitucionalidade de tal normativo, de desvio às regras gerais do concurso, o que já criticámos em diversos lugares deste trabalho.
Assim se afirma aqui a nossa discordância à tese sustentada no Ac. Rel. Porto, de 15.10.1997 ( C.J., T. 4, págs. 245 e segs. ), no qual se aplicou tal normativo e se deu uma relevância absoluta à periodicidade do imposto, descurando o elemento subjectivo do tipo legal de crime, o que constitui um caso de responsabilidade objectiva, uma violação do princípio da culpa.
No entanto, também entendemos que o caso do Acórdão não configuraria nunca um caso de crime continuado, não só pelo facto de a periodicidade não ser determinante para aferir o número de crimes praticados como também porque não se configurava qualquer circunstância exterior que diminuísse consideravelmente a culpa – são os arguidos que criam a situação que se pretende diminuir consideravelmente a culpa.
No Ac. S.T.J. de 28.04.1999, já citado, aderiu-se à tese do Ministério Público segundo a qual nos crimes fiscais em julgamento se verificava um dolo único e reiterado da parte dos arguidos, situação esta distinta da do crime continuado.
Quanto ao crime continuado e às situações de dolo único e reiterado, ficariam as mesmas arredadas, à partida, a admitir-se a plena validade da norma do n.º 6 do art.º 24º do R.J.I.F.N.A, na redacção inicial, o que equivaleria a um recuo de dezenas de anos no que respeita à dogmática do direito penal.
Importa é referir que quando exista crime continuado a punição dele determina-se não pela soma dos actos praticados, dotados de valor económico, mas pelo valor mais elevado do prejuízo emergente de uma das parcelas do conjunto desses actos ( cf. Ac. S.T.J., de 28.04.1999, no Processo n.º 592/98-3ª Secção ).
Diga-se ainda que, atenta a natureza do IRC, é impossível configurar qualquer caso de abuso de con­fiança fiscal com base neste imposto.
" Afigura-se-nos que este crime fiscal não abrange os casos de auto-liquidação obrigatória para os rendimentos de pessoas colectivas nos termos dos art.ºs 70º , al. a), e 96º, n.º 1, do CIRC.
É que nestes casos a prestação tributária não foi re­ce­bida pelo sujeito passivo, pois que é ele próprio que a tem de liquidar e pagar...." ( Alfredo José de Sousa, In­fracções fiscais Não Aduaneiras, Almedina, 2ª edição, pág. 105).
Estranhamente, no Ac. S.T.J., de 02.07.1998, in C.J. 1998, T. II, págs. 230 e segs., implicitamente parece admitir-se o contrário.
Estranho nos parece é que Alfredo José de Sousa conclua nesse sentido e, por outro lado, sustente que o bem jurídico tutelado é a Fazenda Pública como sistema dinâmico de ob­tenção de receitas e realização de despesas ( cfr. ob. cit., pág. 98).
Na verdade, em casos de auto-liquidação não se vê como possa ser esse o bem jurídico, isto é, a Fazenda Pública ou o ente público credor ou a função tributária.
Terminamos citando Eliana Gersão e Rodriguez Morullo ( citado por aquela autora no mesmo lugar adiante indicado ), respectivamente:
* «...Importa (...) mais uma vez salientar que a criminalização das mais graves infracções fiscais só terá sentido se for acompanhada de um esforço sério de aperfeiçoamento do sistema jurídico, especialmente no que se refere à distribuição equitativa da carga tributária e à aplicação adequada dos dinheiros públicos. O esforço sério de aperfeiçoamento deve ser extensível (...) à aplicação prática do sistema fiscal» ( Eliana Gersão, in «Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários», Vol. II, pág. 91 ) ;
* « o grande risco e o paradoxo que acarreta a criminalização das infracções fiscais, que se propugna sempre com o desejo bem intencionado de favorecer os oprimidos pela carga fiscal e de conseguir que cumpram os seus deveres tributários aqueles que os infringem escandalosamente, é que pode voltar-se contra aqueles que se pretende defender. O resultado que se pretende não se pode conseguir «a partir» do direito penal, mas «a partir» do próprio sistema tributário, na medida em que este seja justo e se aplique equitativamente na prática. Se não suceder assim, a cominação da pena criminal e o risco da sua imposição seguem fatalmente o mesmo deslocamento que a pressão fiscal. E acabamos por colocar, mesmo sem querer, o peso da pena criminal sobre os que estão já oprimidos pela pressão fiscal e que pretendíamos precisamente defender» ( Rodriguez Morullo ).

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