sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA – competência do juiz de instrução criminal

Acórdão da Relação de Lisboa, de 20.12.2011

Processo: 36/11.6PJOER-A.L1-5

Relator: AGOSTINHO TORRES

Descritores: APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA

JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL

Sumário:

I. A inviolabilidade da correspondência é um direito fundamental que só pode ser coartado nos casos previstos na lei (art.34, da Constituição da República Portuguesa);

II. Não é de admitir qualquer distinção entre correspondência fechada e correspondência aberta, não existindo diminuição de exigências garantísticas desta em relação àquela;

III. Constituindo a leitura da correspondência um atentado ao direito da inviolabilidade da mesma, só o juiz de instrução criminal pode, verificando-se os requisitos legais, determinar e validar a apreensão de correspondência, ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida e decidir se a mesma é ou não relevante.

 

Transcrição parcial:

“2.2-Está em apreciação e, em síntese, a seguinte questão:

Na sequência de busca domiciliária ordenada judicialmente e autorizada nos termos e para os fins dos art.ºs 176, 177.º, 178.º n.º 4 e 179.º n.º 1 e 3 do CPP no âmbito de inquérito crime, foi apreendida vária documentação consistente em correspondência dirigida pelo arguido A... à arguida C..., a partir do Estabelecimento Prisional e de cujo teor se suspeitaria haver referências importantes quanto ao planeamento, execução e autoria do homicídio qualificado em investigação.

Efetuada a apreensão o M.ºP.º solicitou ao Mm.º JIC a validação de todas as apreensões de correspondência efetuada, que tomasse conhecimento do respetivo conteúdo dos 28 envelopes apreendidos nos termos e para os efeitos do art.º179.º n.º 3 do CPP.

O Mm.º JIC tinha ou não competência material para o efeito, nomeadamente a prevista nos termos do art.º 269.º, n.º1, al.ª d), e 268.º do CPP ou, ao invés, tal competência de validação era atributo do M.ºP.º como titular do inquérito, nos termos dos art.º 178, n.º 1,3 e 5 e 267.º do CPP?

2.3- A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

2.3.1- Da argumentação do despacho recorrido colhe-se que o Mm.º JIC entende que, quando a correspondência (cartas apreendida após busca domiciliária por si autorizada, se encontre já aberta, lida pela destinatária e guardada, com desselagem dos envelopes que lhe serviam de invólucro, não cumpre diferenciá-la de qualquer outra documentação guardada no domicilio, pelo que, sendo cartas trocadas entre arguidos, não estão protegidas por segredo profissional ou médico, obedecendo ao disposto no art.º 178.º n.º3 do CPP, a validar pela autoridade judiciária competente , in casu, o M.ºP.º enquanto dominus da fase de inquérito em que se encontram os presentes autos, no prazo de 72 horas (cf. artigo 178.º, n.º 1, 3 e 5, e 267.º do Código de Processo Penal), não se verificando assim, no caso em apreço, a competência material do juiz de instrução criminal estabelecida pelo artigo 269.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal.

Deste entendimento discorda o recorrente M.ºP.º nos termos constantes do seu recurso e plasmados nas já transcritas conclusões da motivação apresentada.

Do auto de busca, realizada dia 4.10.2011, ao domicilio da arguida C..., consta, além do mais, que foram encontrados na sala da habitação “28 envelopes abertos, todos contendo correspondência enviada via correio e entregue em mão pelo arguido A... à buscada”

Segundo referido pelo Mm.º JIC e por si sustentado, os detalhes acerca de os envelopes contendo os escritos apreendidos estarem ou não selados, terem sido entregues em mão ou remetidos por via postal, terem sido escritos ou não pelo arguido A... e enviados à arguida C... ou se ela leu ou não todos eles apenas seriam relevantes para a autoridade judiciária competente para decidir da validação da apreensão e para apreciar da sua pertinência probatória ou da sua falta, neste caso ordenando a sua devolução ao legitimo possuidor. Tais detalhes não são factos que influam na decisão de saber quem é a autoridade judiciária competente para a solicitada validação.

Por sua vez, o M.ºP.º contrapõe que:

“(…) – No dia 04 de outubro de 2011, pelas 10h50m, foi realizada a busca ordenada e foram apreendidos 28 envelopes e respetivo conteúdo, sendo que dos quais:

a) 22 (vinte e dois) têm manuscrito na frente do envelope a indicação de que o remetente é o arguido A... e a destinatária é a arguida C..., desconhecendo-se qual o seu conteúdo. Desses 22 envelopes, 19 foram enviados por via postal (conforme resulta do carimbo dos CTT aposto nos mesmos), e, três foram necessariamente entregues por mão (conforme atesta a não indicação das moradas de destinatário e remetente, e, a ausência de selo e de carimbo postal). Destes três últimos envelopes referidos, dois deles nunca foram fechados/selados, já que cada um deles mantém a tira removível na zona com cola.

b) 03 (três) não têm qualquer palavra manuscrita na frente ou no verso do envelope, desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foram necessariamente entregues por mão, quer por ausência de menção do remetente e do destinatário quer por ausência de selo e de carimbo postal.

c) 01 (um) tem as palavras “MINHA MUSA” manuscritas na frente do envelope, desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foi necessariamente entregue por mão, conforme resulta da ausência de menção do remetente e de cabal identificação do destinatário, e, da ausência de selo e de carimbo postal.

d) 01 (um) tem a palavra “FOFINHA” manuscrita na frente do envelope (na zona do remetente), desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foi necessariamente entregue por mão, conforme resulta da ausência de cabal identificação do remetente e/ou do destinatário, e, da ausência de selo e de carimbo postal. Nunca foi fechado/selado, já que mantém a tira removível na zona com cola.

e) 01 (um) tem os nomes “JESPV…” (sensivelmente na zona destinada ao remetente) e “A...” (na zona destinada ao destinatário) manuscritos na frente do envelope, desconhecendo-se qual o seu conteúdo, designadamente se é correspondência escrita e entregue pelo arguido A... à arguida C... e se a mesma é ou não dirigida a esta. Foi necessariamente entregue por mão, conforme resulta da ausência de cabal identificação do remetente e/ou do destinatário, e, da ausência de selo e de carimbo postal. Nunca foi fechado/selado, já que mantém a tira removível na zona com cola.

6 – Conforme informação consignada no Auto de Apreensão de fls. 758, assinado pela arguida C..., todos os 28 envelopes estavam abertos e continham “correspondência enviada via correio e entregue em mão pelo arguido A... à buscada”, informação que, segundo se julga, terá resultado, por um lado, pela constatação de que em 22 (vinte e dois) envelopes há a expressa indicação de que o remetente é o arguido A... e a destinatária é a arguida C..., e, por outro lado, por informação prestada pela arguida aquando da busca e apreensão.

7 – Do referido Auto de Apreensão não consta nem resulta que:

a) os 06 (seis) envelopes sem expressa indicação de que o remetente é o arguido A... e a destinatária é a arguida C..., tenham sido escritos pelo arguido A... nem que se dirijam à arguida C.... Nada garante que os envelopes entregues em mão pelo arguido A... à arguida C... se destinem à mesma e não a um terceiro.

b) a arguida C... tenha lido o conteúdo de todos os envelopes. Não se pode concluir tal pelo facto de todos os envelopes se encontrarem abertos, pois conforme resulta supra, quatro dos envelopes nunca foram fechados/selados, já que mantêm a respetiva tira removível na zona com cola.

8 – Em 06/10/2011, o Ministério Público ordenou a remessa dos autos ao Mmo. J.IC., com a promoção de que validasse as apreensões de correspondência efetuadas e que tomasse “conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida à arguida C… – constituída por 28 envelopes e que se encontram num envelope A4 destes Serviços -, para os efeitos do art. 179.º n.º 3 do Cód. Proc. Penal” (cf. fls. 780).

(…) »

Quid juris?

Dispõe o Artigo 178..º do CPP acerca dos objetos suscetíveis de apreensão e dos pressupostos desta:

1 - São apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova (itálico nosso).

2 - Os objetos apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto.

3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária. (itálico nosso)

4 - Os órgãos de polícia criminal podem efetuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º

5 - As apreensões efetuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. (itálico nosso)

6 – (…)

7 – (…);”

Acerca deste prazo de 72 horas referido no art.º 178.º, n.º5 do CPP tem-se entendido que não é prazo para validação das apreensões mas para a apresentação delas à autoridade judiciária e que a omissão da validação pela autoridade judiciária das apreensões efetuadas pelo OPC constitui mera irregularidade que só determina invalidade se for arguida no prazo de 3 dias do art.º 123.º, n.º 1 do CPP. (cf. Ac. TRC de 8-10-2008, CJ, 2008, T4, pág.51) Em idêntico sentido é citado o Ac. STJ de 17-05-2007 e também em sentido concordante veja-se o Ac. TRP de 17-01-2007 e o Ac. Tribunal Constitucional n.º 278/07.

No caso dos autos, saliente-se que, embora autorizados por despacho judicial prévio a efetuar a busca, foram dois inspetores da PJ quem a realizou, sendo certo que no auto de busca consta ter sido a mesma autorizada expressamente pela própria arguida C... nos termos do art..º 174.º n.º 5, al.ª b) do CPP, o que até seria desnecessário pois essa autorização apenas afastaria a aplicação das exigências do n.º 3 do art.º 174.º do CPP, a saber, relativas à autorização ou a ordem de autoridade judiciária.

Considerando pois que a apreensão da correspondência estava expressamente autorizada pela autoridade judiciária e cumprida por mandado desta, ainda por cima nem sequer com oposição da visada, antes pelo contrário, tendo a mesma anuído expressa e documentadamente na efetivação da busca e da apreensão, podemos concluir não ser propriamente um dos casos de necessidade de qualquer posterior validação “strictu sensu”, da dita apreensão pela autoridade judiciária.

Entendemos ainda que, por isso, também a apresentação em prazo de 72 horas a que o Mm.º JIC aludiu seria sempre uma falsa questão, espúria e sem qualquer necessidade processual, atentas as aludidas circunstâncias do caso e dado que a busca foi previamente ordenada e autorizada por aquele, visando sobretudo a sobredita apreensão de correspondência.

Dispõe o art.º 268.º n.º 1 al.ª d) do CPP que compete, exclusivamente, ao juiz de instrução, durante o inquérito, “tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do art.º 179.º n.º 3 do CPP”.

Por sua vez, o n.º 3 do art.º 179.º citado dispõe que: “O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.

Para os restantes casos de apreensão de correspondência por órgãos de polícia criminal, para além dos casos previstos no n..º 5 do art.º 174 do CPP [3], rege o art.º 252.º do CPP, que ao caso não se aplica visto que já havia prévia autorização judicial.

Da leitura conjugada dos preceitos citados, nomeadamente do art.º 179.º n.º 1 e 3 e 178 n.º3 do CPP, não vemos incompatibilidade alguma mas sim complementaridade e não nos parece que haja sido intenção do legislador, atendendo aos princípios e escopo subjacentes, fazer qualquer distinção nos sobreditos preceitos entre “correspondência aberta ou fechada”, mas apenas a salvaguarda jurisdicional, com respeito de direitos fundamentais, v.g o da reserva da vida privada, de meios de prova através dos quais se acede ou há o perigo de aceder com alto grau de probabilidade a informações de natureza íntima ou com ela conexas.

Daí que se exija que o juiz seja o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência (esteja ou não aberta e/ou lida), a analise, a julgue relevante ou não para a prova, faça juntar ao processo a que é relevante para a prova e, da que entenda não o ser, ordene seja devolvida a quem de direito (in casu, a arguida C....)

A jurisprudência e doutrina citadas pelo Mm.º JIC, com o devido respeito, pautam-se por uma visão desgarrada dos bens e valores em proteção (a reserva e intimidade da vida privada), plasmados a partir do art.º 34.º n.º1 da CRP descartando-se destes por via de argumentação centrada no facto de a correspondência estar ou não aberta, o que é completamente irrelevante, pois que o que se pretende é evitar sem controle judicial, em primeira mão, a devassa da vida privada ou de segredo profissional inerentes à correspondência apreendida através de acesso por terceiros ou mesmo por intervenientes processuais ao conteúdo daquela. Esse conteúdo deve ser sempre protegido e garantido, sempre que possível, por prévio controlo judicial,

Apoia-se o despacho recorrido, essencialmente, na jurisprudência do Ac. TRL de 2.3.2011 e na doutrina do Prof. Costa Andrade, segundo os quais e passamos a citar os segmentos mais expressivos: “

“(…) Como afirma COSTA ANDRADE (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 758, § 16) "é precisamente este facto - estar fechada - que define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos, em geral." E uma carta está fechada quando exista "um procedimento que estabeleça um obstáculo físico à tomada de conhecimento e que só seja ultrapassável à custa de uma atividade física que pode ou não (...) implicar uma rutura material (...) Não basta seguramente (...) a sua arrumação num dossier ou numa gaveta aberta." E para concluir: "uma carta que foi (ainda que indevidamente) aberta, deixa de ser uma carta fechada, mesmo que persista reservada."

Pela negativa: excluídas do conceito de correspondência estão as formas de comunicação que integrem as telecomunicações, ou seja, "os procedimentos técnicos de transmissão incorpórea à distância de qualquer espécie de informação (sinais, dados, sons, cores, imagens, etc.). E isto independentemente do sistema tecnológico de tratamento e transmissão da informação: com fios, por cabo, ondas hertzianas, via satélite (...). Assim, e a par das clássicas formas do telefone (...), cabem aqui telecomunicações como o telex, o telefax, a telefoto, etc. " (idem, pág. 758, § 18, sublinhado nosso).

Neste sentido se pronunciou também o supra referido acórdão de 18.5.06 deste Tribunal e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.3.06 (No proc.º 607/06, disponível em www.dgsi.pt), como se infere quando afirma “tal como acontece na correspondência efetuada pelo correio tradicional diferenciar-se-á a mensagem já recebida mas ainda não aberta da mensagem já recebida e aberta. Na apreensão daquela rege o art.º 179.º do Código de Processo Penal, mas a apreensão da já recebida e aberta não terá mais proteção do que as cartas recebidas, abertas e guardadas pelo seu destinatário”. Como se vê, a relevância dessa distinção entre correspondência fechada e aberta pode ser relevante mesmo para as comunicações eletrónicas (Para além do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra referido, Pedro Verdelho, A obtenção de prova no ambiente digital, RMP 99, pgs 117 e sgts; Apreensão de correio eletrónico em processo penal, RMP 100pg.s 153 e sgts, e também o supra referido estudo de Costa Andrade, embora o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.9.06, no proc.º 06P2321, disponível em www.dgsi.pt tenha posição diferente).

Ou seja, tem de se concluir que a correspondência já aberta pelo seu destinatário passa a ter a natureza de documento e goza apenas da proteção que todos os documentos merecem. A correspondência é por definição fechada – assim que é aberta deixa de o ser e passa a ter natureza documental. Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, consequentemente goza da proteção constitucional que o art. 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.

Por outro lado, as regras relativas à proibição de apreensão de correspondência, mesmo aberta, entre o advogado e aquele que lhe tenha cometido ou pretendido cometer mandato, constantes do art. 71.º do EOA deriva da tutela do segredo profissional e só ocorre quando a apreensão tenha lugar no escritório de advogado ou em qualquer outro lugar onde este faça arquivo (art.70.º n.º 3 do EOA), gozando assim da mesma proteção que a lei processual penal já confere a todos os “documentos abrangidos pelo segredo profissional” no art. 180.º do Código de Processo Penal.

Consequentemente, a nulidade da apreensão de correspondência cominada pelo art. 179.º n.º 2 do Código de Processo Penal apenas ocorre em relação a correspondência fechada. A correspondência é por definição fechada – assim que é aberta deixa de o ser e passa a ter natureza documental. Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, logicamente goza da proteção constitucional que o art. 34.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.

2.3.2 – Não nos revemos nesta perspetiva. Desde logo, como já aludimos, o código de processo penal não define o que é “correspondência” nem lhe atribui por definição ter natureza como sendo apenas a que é tradicionalmente fechada deixando de o ser depois de aberta e eventualmente lida. Depois, não distingue em lado algum procedimentos de dispensa de garantia de controle jurisdicional em função da sobredita alegada artificial distinção. Acima de tudo, não percebemos como é que uma carta (ou várias) de natureza indiciariamente sigilosa (por serem relativos a conteúdos muito provavelmente de reserva íntima entre duas pessoas, in casu amantes) deixa de o ser (sigilosa) para além da esfera jurídica do remetente e do (a) destinatário (a) apenas porque o envelope que a(s) encerraria teria sido aberto e o seu conteúdo lido pelo (a) último (a) ainda que guardado em espaço também ele de reserva (a habitação)

Cremos que se trata de uma distinção artificial, já que o que está em causa é evitar a devassa da dita correspondência por terceiros dada a natureza privada e íntima do seu conteúdo independentemente da forma como ela se apresente protegida (envelope, selagem, etc).

Tem pois toda a razão o M.ºP.º no entendimento sufragado no recurso.

Efetivamente, a inviolabilidade da correspondência é um direito fundamental que só pode ser coartado nos casos previstos na lei, cf. art.34.º n.º 1 da CRP, e, dentro dos limites legais, só o Juiz de Instrução Criminal pode praticar atos que contendam diretamente com direitos fundamentais, cf. art. 32.º, n.º 4, da CRP

Nem a norma constitucional do art. 34.º n.º 1 da CRP nem as normas processuais penais fazem qualquer distinção entre correspondência fechada e correspondência aberta. Tal distinção não tem qualquer suporte na letra da lei. Não há uma diminuição de exigências garantísticas entre correspondência fechada e correspondência aberta.

Independentemente de a correspondência ter sido ou não aberta ou de ter sido ou não lida, a pessoa a quem é dirigida tem sempre o direito de não ver essa correspondência devassada por terceiros.

Constituindo a leitura da correspondência um atentado ao direito da inviolabilidade da mesma, só o juiz de instrução criminal pode, verificando-se os requisitos legais, determinar a apreensão de correspondência, validar a apreensão de correspondência, ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, e, ser quem decide se a mesma é ou não relevante.

Cabe assim ao Mmo. J.I.C. a competência para a validação da apreensão dos 28 envelopes e do seu conteúdo encontrados na residência da arguida, e, impõe-se que o mesmo tome conhecimento do conteúdo da correspondência e aprecie e decida o que é ou não relevante para a prova.

Ao declarar-se incompetente materialmente - e, desse modo, não tomar conhecimento do conteúdo da apreensão dos 28 envelopes, nem apreciar e decidir o que dele é ou não relevante para a prova -, o Mmo. J.I.C. interpretou erradamente e violou as normas constantes dos arts. 34.º, n.º 1 e n..º 4, e 32.º, n.º 4, da CRP, 179.º, n.º 3, 268.º, n.º 1, al. d), e 178.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.

III- DECISÃO

3.1.- Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, revogando-se o despacho recorrido, julga-se o Mm.º JIC materialmente a autoridade judiciária competente para os fins solicitados pelo M.ºP.º nos termos do art.º 179.º, n.º 3, do CPP.

3.2- Sem Taxa de justiça por dela estar isento o M.ºP.º

Lisboa, 20 de dezembro de 2011

Relator: Agostinho Torres;

Adjunto: Luís Gominho;

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[1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95

[2] vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, pág.ª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, proc.º 416794, 3.ª sec., tb cit.º em anot. ao art..º 412.º do CPP de Maia Gonçalves 12.ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Proc.º Penal ,III, 2.ª ed., pág.ª 335; e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.

[3] O n.º 5 do art.º 174.º do CPP refere que: “ Ressalvam-se das exigências contidas no n..º 3 as revistas e as buscas efetuadas por órgão de polícia criminal nos casos:

a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;

b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou

c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.”

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