quarta-feira, 30 de maio de 2007

Abuso de Confiança Fiscal e Apropriação

O crime de abuso de confiança fiscal tem, como elementos objectivos, a apropriação total ou parcial de prestação tributária, que essa prestação tenha sido deduzida pelo agente, nos termos da lei, e que o agente esteja obrigado a entregá-la ao credor tributário. “A obrigação de entregar o imposto ao Estado não é meramente contratual mas antes deriva da lei, que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em questão. Nestas situações o devedor tributário encontra-se instituído em posição que poderemos aproximar do fiel depositário. Na verdade, no IVA e no imposto sobre rendimentos singulares, os respectivos valores são deduzidos nos termos legais, devendo depois o respectivo montante ser entregue ao credor tributário que é o Estado” – vide Ac. do Tribunal Constitucional, de 29-11-00, in DR de 31.01.
Ora, se os contribuintes retiveram o IRS e liquidaram e receberam o IVA, não o entregando depois, isso só pode significar que se apropriaram indevidamente de algo que lhes não pertencia, pois era pertença do Estado-credor tributário e, desse modo, inverteram o título de posse ou de detenção. Os arguidos retiveram o IRS e liquidaram e receberam o IVA, mas o que não fizeram e lhes era imposto por lei, foi entregar tal dinheiro ao Estado, seu legal e legítimo destinatário. No fundo, tal dinheiro nunca lhes pertenceu.
Houve, pois, apropriação consciente, voluntária, ilícita e dolosa.
Nem vale, na verdade, insistir na ideia do destino dado ao dinheiro produto dos descontos. É que a lei apenas exige a apropriação, para que se verifique o crime em análise, independentemente da finalidade que lhe venha a ser dada.
“Para a verificação do crime não é necessário que o agente retire um proveito directo das quantias retidas”, cfr. CJS, 8-3-194.
“A circunstância de os arguidos terem utilizado as quantias devidas ao Estado para manter a laboração da empresa e pagar os salários dos trabalhadores não constitui causa de exclusão da ilicitude, art. 36º, n.º1, do Cód. Penal”, cfr. BMJ 361 – 374.
Isto é assim, uma vez que os impostos são indispensáveis ao Estado para que este possa prosseguir o bem estar social, os interesses da comunidade.
Os interesses constitucionalmente garantidos a um grupo – ex: trabalhadores – não podem sobrepor-se aos interesses de toda a comunidade também garantidos pela Constituição da República.
Neste sentido, consulte-se o douto Ac. STJ, de 18.06.2003, no processo 02P3723 ( n.º convencional JST J000; relator Conselheiro Franco de Sá ).
Se colocarmos os preceitos do art. 24º do RJIFNA e do art. 105º do RGIT lado a lado, veremos que as diferenças são mínimas, diremos mesmo insignificantes. As diferenças são meramente literais, que não de fundo, tudo não passando de uma mera diferença de redacção, sem qualquer significado especial, a não ser o de ser agora mais claro que os impostos têm de ser recebidos, não relevando criminalmente as situações em que existe liquidação de IVA, mas em que não se recebe do cliente o respectivo valor.
Com efeito, embora na lei actual se não faça referência expressa à apropriação, ela está contida no espírito do texto, pois se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei.
A ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado.
Na realidade, a não entrega total ou parcial da prestação tributária ou equiparada traduz-se num apropriar-se, num fazer sua coisa alheia. Inicialmente o agente recebe validamente a coisa, passando a possui-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção passando a dispor da coisa ut dominum. Deixa então de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer.
Note-se ainda na seguinte diferença: para que exista o abuso de confiança do Código Penal ( art. 205º ) é necessário que o agente ilegitimamente se aproprie de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade; no caso do empresário que não entrega ao Estado os montantes que reteve na fonte a título de IRS, este não se apropria de nada que lhe tenha sido entregue pelo Estado, pois os valores em causa ficaram na disponibilidade do mesmo, desde sempre, ab initio, numa relação muito próxima da do fiel depositário – não há entrega, há é uma imposição legal de entrega de tais montantes ao Estado. Portanto, a ideia da inversão do título de posse não é totalmente válida, pois não existe a entrega. O que interessa verdadeiramente é a não entrega de tais valores ao Estado, independentemente da finalidade que se venha a dar a tal dinheiro, pois que estamos em matéria de interesse público geral, não se podendo aqui verificar a sobreposição de interesses particulares.
A apropriação a que se refere o art. 24º do RJIFNA é uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, estando por isso integrada no seu texto, ao menos implicitamente, como decorrência lógica.
Nelson Hungria refere no Comentário ao Código Penal Brasileiro, 135, que existe apropriação indébita não só quando a negativa de restituição se funda no «arbitrário animus rem sibi habendi», mas também quando «não haja, de todo, qualquer fundamento legal ou motivo razoável para a recusa ou omissão», podendo integrar essa recusa ou omissão actos da mais diversa espécie: venda, doação, consumo, dissipação, cessão, penhor, caução, ocultação, etc, isto é, qualquer acto que fique à margem do destino a que essas quantias estavam legalmente afectas.

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