quarta-feira, 30 de maio de 2007

Liberdade de Expressão

Dispõe o art. 37º da Constituição da Republica Portuguesa ( CRP ), no seu número 1, que todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (...) sem impedimentos e discriminações. E no seu número 2 afirma-se que o exercício deste direito não pode ser impedido ou limitado por qualquer forma de censura.
Consagra-se em tal normativo constitucional o direito à liberdade de expressão, o qual, aliás, existe também noutras constituições, como é o caso do art. 20º da Constituição espanhola, do art. 21º da Constituição italiana e do art. 5º da Constituição de Bona.
Tal liberdade de expressão tem uma dupla dimensão: a) substantiva: compreende a actividade de pensar, formar a própria opinião e exteriorizá-la; b) instrumental: traduz a possibilidade de utilizar os mais diversos meios adequados à divulgação do pensamento.
Cada um deve poder dizer o que pensa, mesmo quando não fornece nem pode fornecer fundamentos controláveis para o seu juízo. Subjacente ao direito à liberdade de expressão está um princípio fundamental de subjectividade e autonomia da valoração, assente na observação histórica de que as pretensas valorações objectivas se reconduzem, em muitos casos, à subjectividade dos mais poderosos.
Numa sociedade aberta e pluralista, em que se pretende a criação de uma esfera de discurso público desinibida, robusta e amplamente aberta, não há dúvida de que a liberdade de expressão deve ser interpretada nesse sentido.
A liberdade de expressão manifesta uma concepção constitucional de autonomia que se estende até ao “direito de discordar em coisas que tocam no coração da ordem existente” ( cfr. West Virginia State Board of Education V. Barnette 319 US 624, 642 [1943] ).
O Supremo Tribunal Norte-Americano afirmou que “one man´s lyric teaches another´s doctrine”, o que, porém, não significa a proclamação de uma ideologia de relativismo ético por parte do Estado ou dos cidadãos.
Mesmo entendido em sentido amplo, o direito à liberdade de expressão conhece restrições, mesmo, em casos extremos, baseadas no conteúdo.
Estas restrições não são de todo incompatíveis com a constituição. Todavia, elas devem fundar-se, não numa valoração, subjectiva ou objectiva, de mérito intrínseco ou da qualidade ética dos conteúdos comunicados, mas sim na ponderação, mediada democraticamente, do impacto, intersubjectivamente comprovado, que os referidos conteúdos comunicados possam ter noutros direitos ou bens dignos de protecção constitucional.
Embora se deva aceitar que o conceito de verdade conserva ainda muito do seu interesse prático, é discutível que se deva considerar a existência de uma obrigação de verdade como pressuposto da liberdade de expressão, desligado da concreta realização de certos valores e do impacto que uma afirmação verdadeira ou falsa concretamente viesse a ter sobre os mesmos.
Por outro lado, mesmo prescindindo do caso específico da criação literária e artística, deve ter-se em conta que a espontaneidade da comunicação, que muitas vezes recorre a exageros patentes e a usos não literais de linguagem, seria gravemente cerceada se o direito exigisse que todos, de forma racional e ponderada, dissessem sempre “a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade”. A existência de afirmações falsas é um elemento inevitável de uma esfera de discurso público aberta e pluralista.
Tudo isto, note-se, sem prejuízo da existência de circunstâncias determinadas onde o equilíbrio de direitos e interesses em conflito exija a definição e a observância de deveres especiais de verdade.
Particularmente importante, fora de tais deveres especiais, é a existência de condições estruturais e discursivo-procedimentais que permitam a valoração crítica e empírica dos conteúdos expressos e a sua subsequente falsificação e denúncia pública.
Tem de haver um ponto de equilíbrio.
Um conteúdo expressivo não deixa de ser protegido pelo facto de ser considerado obsceno ou ofensivo, mas tão somente por se demonstrar, e na medida em que ficar demonstrado, que o mesmo atenta de forma desproporcional contra direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
Os juízes não se encontram absolutamente condicionados pela interpretação subjectiva dos factos dada pelo ofendido a despeito da sua inegável relevância indicativa, devendo procurar um ponto de vista impessoal de ponderação do conteúdo efectivamente expresso e do seu presumível impacto no universo dos possíveis destinatários.
É duvidoso que o crime de difamação, por exemplo, se deva considerar preenchido através de simples conversas informais entre indivíduos, em que são trocadas impressões sobre situações, coisas e pessoas. Este efeito externo ainda que mediato, do direito fundamental ao bom nome e à reputação nas relações entre privados, para além de qualquer interesse específico de natureza social ou económica, constituiria uma intromissão desproporcional na autonomia privada, minando a espontaneidade da interacção conversacional que os indivíduos estabelecem uns com os outros, sendo certo que a esse nível, dizer o que honestamente se pensa sobre os outros é uma dimensão emocional da maior importância para os indivíduos, mas que o direito penal deve considerar como de minimis ( cfr. neste sentido, Greenawalt, Speech, Crime and The Uses of Language, p. 136 e 142 e segs. ).
Deve dar-se uma margem de tolerância substancialmente maior para as opiniões e juízos de valor em questões de interesse público, ainda que os mesmos surjam como exagerados, preconceituosos, obstinados e infundados. Por maioria de razão assim deverá ser se os mesmos tiverem um fundamento minimamente sério, razoável ou provável, em termos objectivos ou intersubjectivos, sendo susceptíveis de acolhimento por pessoas razoáveis e intelectualmente honestas.
O direito constitucional de comunicação aponta para a necessidade de não criar excessivas inibições na esfera pública.
Mas se tal necessidade é uma realidade incontornável num Estado de Direito democrático e plural, isso não significa, todavia, que não haja limitações aos juízos de valor e às opiniões.
Desde logo, o modo como os mesmos são expressos não é, de forma alguma, despiciendo, sendo os mesmos protegidos quando se reconduzam a um comentário justo e adequado ( “fair comment” ) designadamente apoiado na tentativa séria de articulação, análise e valoração de um conjunto de evidências circunstanciais plausíveis e desprotegidos quando se esteja perante uma crítica maldosa e desproporcionalmente insultuosa e ofensiva, em que os elementos informativo, formativo ou dialógico-confrontacional surgem claramente em segundo plano.
Sublinhe-se que a ordem jurídica não pretende reagir contra toda e qualquer descortesia, o discurso emocional e a hipérbole retórica ou a utilização de códigos linguísticos pouco elaborados, na medida em que uma protecção ampla das liberdades de comunicação terá necessariamente como consequência a presença de utilizações abusivas das mesmas, ao passo que uma pronta penalização destas utilizações teria necessariamente um efeito inibidor ( “chilling effect” ). Apenas se tem em vista prevenir o desrespeito gratuito por regras mínimas de civilidade e consideração, decorrentes de um mínimo ético-comunicativo incito nas relações simétricas de reconhecimento que devem existir entre cidadãos livres e iguais.
Seria ideal que na actividade política existisse o hábito ( que não o dever, sem prejuízo do que se acabou de dizer atrás ) do “dever de objectividade”, que obriga a observar, tanto quanto seja razoável, epistemológica e profissionalmente possível, uma separação entre “intervenções” e comentários pessoais, sem prejuízo da adopção assumida de uma perspectiva crítica e mesmo duramente crítica. Semelhante dever não existe, porém, da mesma forma entre, por exemplo, jornalistas e políticos, e imperioso se torna constatar que semelhante dever de separar informações e comentários pessoais, não pode estender-se à generalidade dos cidadãos, pelo que terá necessariamente de ser concedida uma maior margem para exageros e abusos. Como dizia James Madison, “Some degree of abuse is inseparable of the proper use of anything” ( apud New York Times V. Sullivan, 376, US, 254, 271 [1964] ).
Para além do dever de objectividade em causa que existe no caso do exercício da actividade dos jornalistas ( sublinhe-se, todavia, que mesmo no exercício autónomo da actividade jornalística deve haver um lugar razoável para o exagero e mesmo para a provocação, como foi reconhecido pelo TEDH, no caso Prager and Oberschlick V. Austria, de 26.04.1995, ECHR, A-313, 19, § 38 ), para além disso, existem determinadas situações que nalguns ordenamentos jurídicos são vistas como conferindo um privilégio absoluto ou qualificado à liberdade de expressão.
Os exemplo típico do primeiro caso – privilégio absoluto – são as afirmações feitas no âmbito da actividade parlamentar ( no Reino Unido já se estabelecia assim no art. 9º do Bill of Rights de 1689; Nicol Robertson, Escobar de La Serna e Badura salientam que a liberdade de expressão dos deputados depende menos do direito à liberdade de expressão do que da liberdade de mandato ) ou no contexto de um processo jurisdicional ( cfr. V sec. 14 do Defamation Act, de 1996, no Reino Unido; entre nós, o Tribunal Constitucional parece ter adoptado uma visão restritiva da liberdade de expressão no processo jurisdicional – cfr. Acórdãos do TC n.º 11/85, de 09.01, 185/85, de 23.10, e 75/88, de 18.11, respectivamente, Acórdãos do Tribunal Constitucional, V, VI, 1985, 337 e segs. E 411 e segs.; XI, 707 e segs., com posteriores reafirmações ), tendo em conta as intervenções ou os documentos apresentados nesse enquadramento institucional.
A consideração dos referidos “fora” como espaços privilegiados de discussão afigura-se-nos do maior relevo do ponto de vista da garantia constitucional das liberdades da comunicação. Além disso, os princípios que lhes estão subjacentes apontam para a construção de uma esfera de discurso público aberta e pluralista em termos desinibidos e robustos, favoráveis à generalização do debate em torno de questões de interesse geral.
Nos debates parlamentares e no processo judicial, deve ser reconhecida a função de válvula de escape da liberdade de expressão, a justificar uma maior deferência para com exageros formais e substanciais in facie curiae, de alcance difamatório e injurioso (entre nós, sublinhando a liberdade de utilização de “expressões enérgicas, veementes e vibrantes” no processo judicial, juntamente com “crítica empolada e discurso agressivo”, nos limites de “um mínimo de dignidade e de bom nome”, ver Acórdão da Relação de Lisboa, de 25.03.98, BMJ, 475, p. 760 ).
Uma sociedade democrática e aberta deve saber viver com os excessos discursivos, que frequentemente trazem em si mesmos a sua própria condenação.
Em todo o caso, estes privilégios não podem configurar-se como absolutos e definitivos, assumindo também eles uma estrutura principial e devendo o seu alcance ser fixado em termos institucionalmente adequados, tendo em vista assegurar, desde logo, a capacidade de prestação e a adequação funcional da instituição a que dizem respeito. Com efeito, nem um deputado, nem um magistrado, nem uma parte num processo, nem um vereador camarário pode aproveitar a sua posição institucional/procedimental para desferir ataques pessoais extemporâneos, à margem do objecto da discussão ou do processo.
No segundo caso – privilégio qualificado à liberdade de expressão – incluem-se, entre outras, afirmações feitas em resposta a um ataque pessoal, em que nalguns casos se vai ao ponto de se admitir uma resposta difamatória, embora neste domínio a jurisprudência apresente soluções díspares ( esta solução encontra-se, designadamente, no direito australiano, embora não seja acolhida, por exemplo, no direito francês ). Mas não é necessário ir tão longe...
Em termos sistemicamente coerentes, vigora nestes casos o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, à semelhança do que sucede no caso da legítima defesa propriamente dita.
Considerando que a discussão aberta em matéria de interesse político deve ser objecto de um privilégio qualificado, consulte-se, na jurisprudência australiana, o caso Theophanous V. Herall and Weekly Times, 1994, 182, CLR, 105, apud International Liability, Civil Liability in the Information..., p. 16.

Entre nós, o Código Penal legitima afirmações dotadas de um efeito difamatório ou injurioso quando se trate de realizar interesses legítimos, contanto que haja fundamento sério para, em boa fé, as reputar verdadeiras. É ao arguido que cabe provar ambas as coisas. Assim é para todos os casos, independentemente de se saber se se está perante titulares de cargos públicos ou de outros protagonistas do sistema político. Contudo, quando seja este o caso, a questão, da realização de interesses legítimos é imediatamente respondida em sede jurídico-constitucional, por via de remissão para o superior interesse na formação autónoma da opinião pública e da vontade política e no controlo democrático do funcionamento das instituições governamentais em sentido amplo. Isto, sem prejuízo da verificação, no processo de ponderação, de forma devidamente contextualizada, da existência, ou não, de uma relação razoável de proporcionalidade em sentido amplo entre a conduta expressiva em causa e a prossecução do interesse legítimo em presença ( neste sentido, Faria Costa, comentário ao art. 180º, Comentário Conimbricense, p. 620 ).
“Em todo o caso, mesmo em nome da polémica robusta não devem ser protegidos ataques pessoais injustificados, dirigidos à dignidade, integridade e probidade moral e profissional, totalmente à margem de quaisquer propósitos publicísticos ou considerados manifestamente desnecessários e desproporcionais relativamente aos objectivos argumentativos e conversacionais que se pretende atingir” ( cfr. neste sentido, Jónatas E. M. Machado, Liberdade de Expressão, Studia Iuridica 65, Boletim da Faculdade de Direito, página 820, Coimbra Editora).

A este respeito escreveu Artur Rodrigues da Costa, na Revista n.º 37 – 1º Trimestre de 1989, ano 10º - do SMMP, págs. 21 a 23, sob o título “A Liberdade de imprensa e as limitações decorrentes da sua função”:

“... As pessoas públicas têm menos vida privada do que as outras, já que optaram por funções ou por carreiras profissionais que têm por essência a publicidade.

Nessa medida, expõem-se mais à crítica, à crónica das factos com eles relacionados, à opinião das outras pessoas e, nomeadamente, de quem exerce o direito de informar. Isto não quer dizer que, por serem essas pessoas públicas, se verifique uma assimilação da sua vida privada à sua vida pública.

As pessoas que ocupam determinados lugares de relevância política, nomeadamente os titulares de órgãos de soberania, as que desempenham funções de autoridade e as que servem em lugares importantes da Administração Pública, estão sujeitas «ipso facto», a uma maior intromissão nas suas vidas e não apenas dos seus actos, pela simples razão de que o conhecimento de certos aspectos da vida privada e familiar se pode prender com as funções que exercem e com o prestígio delas, podendo, além disso, contribuir para um juízo legítimo que os cidadãos devam formar a respeito dessas pessoas.

Da mesma forma pode ser lícita a imputação de factos que se traduzam numa diminuição da reputação dessas pessoas, exactamente por ocuparem cargos públicos e por, nos sistemas democráticos, ser inalienável o controlo da opinião pública sobre elas. Dessas pessoas exige-se, mais do que nas outras, a seriedade, a rectidão, quer na sua vida privada, quer na vida pública, uma e outra se implicando mutuamente e, por isso, sendo difícil, por vezes, estabelecer a fronteira onde termina a vida privada e começa a vida pública. Exige-se que se norteiem pelo bem comum, que tenham em vista o interesse social e o prestígio das próprias instituições democráticas. A denúncia, pela imprensa, de irregularidades por elas cometidas, ainda que deva sujeitar-se a um processo especial de incriminação, pode, deste modo, corresponder à função social implicada no exercício do direito de informação.

A crítica a essas pessoas e aos próprios órgãos de soberania e da Administração, «maxime» a crítica política, tem, assim de admitir-se com toda a latitude, desde que não haja, como se referiu atrás, um mero espírito de «révanche», de cegueira ideológica, de ataque imotivado. A nossa tradição literária oferece-nos dois bons exemplos, num período áureo da liberdade de imprensa: EÇA DE QUEIRÓS e RAMALHO ORTIGÃO. «Uma Campanha Alegre» e «As Farpas» contêm numerosos textos de crítica violenta, mordaz, contundente, quer a pessoas, quer às instituições da época. Todavia, era patente em qualquer desses autores, o norteamento pelo bem comum, o espírito de construir, embora demolindo o que, na perspectiva deles, devia ser demolido, o sentido de proporção das suas investidas. No primitivo prólogo das «Farpas», EÇA DE QUEIRÓS dá a medida desse rigor e dessa justeza: «Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença. E aqui começamos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia para dia o que poderíamos chamar - o progresso de decadência ( ... ) Contra este mundo é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas do tempo de Manuel Mendes Enxúndia. E mais uma vez se põe a galhofa ao serviço da justiça! (...)
Somos dois simples sapadores às ordens do senso comum ( ... ) E na epiderme de cada facto contemporâneo cravaremos uma farpa. Apenas a porção de ferro estritamente indispensável para deixar pendente um sinal!» ( ... ) ( Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre, Lello e Irmão Editores, 1979, vol. I, págs. 13 e 15 ).
É certo que muita gente que não é digna dessa ilustre tradição tem invocado em vão o nome desses brilhantes escritores - e isto para justificar a impunidade de escritos que não podem cair na alçada da crítica, por lhes faltar aquilo que vulgarmente se chama o «miolo», ou seja, a motivação, a subtileza, a falta de um ideário, de um projecto cultural, de um quadro de valores, e por deles sobressair apenas a intenção de atacar às cegas e num estilo caceteiro( sublinhado nosso ). Também no período da revolução liberal houve fundamentalmente muita imprensa má e isso levou, justamente, OLIVEIRA MARTINS, no «Portugal Contemporâneo», a desabafar amargamente que essa imprensa aparecia feita por «almocreves». É que, para criticar, exige-se uma fundamentação cultural, intelectual e moral, e isso tem de ser levado em conta na apreciação de qualquer caso que seja submetido a tribunal".

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