sexta-feira, 18 de julho de 2008

ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL/UNIDADE DE RESOLUÇÃO/UNIDADE DE INFRACÇÕES

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo: 0714660

Nº Convencional: JTRP00041515
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: Nº do Documento: RP200807090714660
Data do Acordão: 09-07-2008

Sumário:
Comete um só crime de abuso de confiança fiscal o agente que, em obediência a uma única resolução tomada em 1999, deixa de entregar à administração fiscal, dando-lhes outro destino, as prestações tributárias deduzidas e liquidadas desde essa altura até 2004.


Texto Parcial:

«…Cumpre decidir.Começando por dizer que a primeira pretensão do arguido é contraditória nos seus próprios termos. Com efeito, reconhecendo-se que uma das obrigações de entrega ao Estado ultrapassa o montante estabelecido no n.° 5 do artigo 105° do RGIT, e tendo o arguido sido condenado apenas pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, não se vê como pode desqualificar-se essa mesma conduta, ainda que só essa omissão existisse. De resto, o arguido nem sequer faz um esforço, mínimo que seja, para o demonstrar. E não podia fazê-lo porque a tanto se opõe a lei. Na verdade, vem sendo entendido que a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir:
a) Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou a resolução inicial;
b) Um crime na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas;
e c) Um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores[1].
“Nos crimes tributários, a omissão das entregas pode ser fruto da execução de um plano prévio, gizado antes da primeira falta, cujo dolo todas abrange – caso em que se estará perante a hipótese acima aludida em a) -; se, pelo contrário, antes de cada falta, foi tomada a resolução de não entregar a próxima prestação, então o comportamento do agente cairá numa das hipóteses das als. b) ou c)”[2].
In casu, está provado.
“A despeito desse conhecimento (de pagamento das obrigações tributárias), mesmo sem ignorar que correspondiam consequências penais a tal proceder, em data concretamente não determinada, mas que se situará pelo menos no primeiro trimestre de 1999, o arguido optou por responder a dificuldades de tesouraria com a omissão do cumprimento dos deveres fiscais da sociedade pela qual era responsável, determinando a afectação a outros fins de quantitativos que esta recebera ou viesse a receber não por direito próprio enquanto pagamento dos bens e serviços prestados, mas por via dos impostos agora referidos.
Como manifestação concreta dessa resolução, a despeito de a sociedade arguida por acréscimo ao preço dos bens e serviços disponibilizados continuar a exigir aos respectivos clientes o quantitativo legalmente fixado para o imposto sobre o valor acrescentado, fazendo-o constar das facturas emitidas e cobrando-o, não entregou aos serviços do imposto sobre o valor acrescentado a diferença traduzida num crédito do Estado, entre o imposto liquidado e recebido e os valores, sistematicamente inferiores, pagos pela sociedade a título de imposto nas compras que suportou nesse período, permanecendo tais quantias à disposição dos arguidos ou da sociedade por eles gerida.
Ainda como resultado do plano do arguido, que assim o determinou e como até então ocorria, procedeu a sociedade arguida ao desconto no vencimento ilíquido e comissões dos trabalhadores dependentes e independentes que lhe prestavam trabalho, da percentagem legalmente definida como imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, o mesmo fazendo quanto aos demais rendimentos sujeitos a retenção na fonte. Todavia, em vez de determinar a remessa aos serviços fiscais dos montantes assim apurados mensalmente, com excepção de um ou outro mês durante os anos de 2001 e 2002, decidiu o arguido empregá-los no pagamento de outras despesas próprias ou da sociedade, dissipando-os.
Da actuação acima descrita, resultou a sonegação ao Estado, a título dos dois impostos referidos, da quantia global de € 286.035,22, correspondente ao valor que o arguido e a sociedade por si gerida, receberam, retiveram e fizeram sua, empregando-a à margem da sua especial afectação para outras despesas da sociedade, em conformidade com os interesses definidos pelo arguido.
Da matéria de facto transcrita resulta, sem qualquer margem para dúvida, que a omissão das entregas foi fruto da execução de um plano prévio, gizado antes da primeira falta.Ou seja, o arguido agiu em obediência a uma resolução única, que tomou.
Consequentemente, o dolo abrange todas as omissões.
Porque assim, estamos perante um único crime.
Tratando-se de um único crime, nele tem de se englobar a totalidade das quantias não entregues, que, por isso mesmo, têm de ser somadas.
Como a dita soma ultrapassa – e em muito – os referidos 50.000€, é óbvio que o Recorrente praticou o crime previsto pelo n.º 5 do art.º 105º do RGIT, punível com pena de prisão de um a cinco anos.
E nenhuma dúvida na decisão pode existir.
De resto, o princípio in dubio pro reo não tem aplicabilidade nas questões de direito.
Escreveu o Prof. Figueiredo Dias[3]:
O princípio vale só “em relação à prova da questão-de-facto e não já em relação a qualquer dúvida suscitada dentro da questão-de-direito: aqui a única solução correcta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas aquele que juridicamente se reputar mais exacto”…»