domingo, 30 de novembro de 2008

Ameaça ou mera advertência?

Acórdão da Relação do Porto, de 19-11-2008
Processo: 0846214
Relatora: Airisa Caldinho

Sumário:
No crime de ameaça a inevitabilidade do mal ameaçado tem de aparecer como dependente da vontade do agente sendo esta que distingue a ameaça do simples aviso ou advertência.

Texto Parcial:

“...Sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos em questão, vejamos o que foi produzido na sentença sob recurso:
- “…
Dispõe o nº 1, do artigo 153º, do Código Penal: “quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido (...)”.
O citado preceito pretende proteger o bem jurídico da liberdade de decisão e de acção, isto é, a paz jurídica individual.
A ameaça não lesando directamente a liberdade fá-lo indirectamente na medida em que perturba a tranquilidade de ânimo, provocando um estado de agitação e incerteza e tolhendo os movimentos daquele que não se crê seguro na vida ou nos bens.
O elemento objectivo do tipo consiste em ameaçar outra pessoa, ou seja, anunciar, por qualquer meio, a intenção de causar um mal futuro, dependente da vontade do autor, que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
Temos assim, desde logo, que um dos elementos essenciais da ameaça é o mal a produzir, que neste caso deve constituir crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
A inevitabilidade do mal ameaçado tem de aparecer como dependente da vontade do agente sendo esta que distingue a ameaça do simples aviso ou advertência.
Com efeito, se alguém anuncia a outrem perigos que não dependem do seu querer tal não passa de um aviso ou advertência, não sendo esta em si mesma susceptível de perturbar a liberdade de decisão e de acção com ela propondo-se, apenas, consciencializar a pessoa visada de eventuais consequências do seu estado, comportamentos ou atitudes que não dependem daquele que adverte.
Com efeito, o crime de ameaça, a par de exigir a cominação de um mal futuro, ainda que mais ou menos próximo, não se compadece, porém, com a subordinação da concretização do mal ameaçado a uma condição dependente da vontade do próprio ameaçado.
Ora, a expressão “não te metas com a minha família que eu parto-te o focinho e mato-te! Isto é um aviso, olha que eu mato-te”, configura um aviso à ofendida de uma consequência caso a mesma se meta com a família do arguido.
Assim, nos termos expostos tal expressão não configura um crime de ameaça mas um aviso com a subordinação do mal ameaçado na dependência do comportamento da ofendida.
Ora, para preenchimento do tipo objectivo de ilícito previsto no artigo 153º do Código Penal não basta o anúncio de um qualquer mal futuro para o integrar.
Com efeito, nem todos os factos socialmente danosos constituem crimes, mas tão só os que o legislador tipificou como tais, por considerá-los de tal modo graves para a vida social que justificam a sanção penal para quem os praticar.
Do mesmo modo nem todos os comportamentos lesivos dos bens que são objecto de tutela penal constituem um ilícito penal, mas só aqueles que ocorram nos termos da previsão legal.
O Direito Penal tendo por fim a protecção de bens jurídicos fundamentais rege-se por princípios entre os quais merece destaque o princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade que significa que este só deve intervir quando for essencial e eficiente para protecção desses bens jurídicos, sendo, ainda, de notar que a vulgarização da intervenção penal para tutela de interesses que pese embora socialmente incorrectos não são essenciais para a vida em comunidade enfraquece a sua força preventiva de protecção de valores sociais absolutamente fundamentais.
Ora, não constituindo a expressão mais do que um aviso cuja concretização depende do comportamento da própria ofendida forçoso se torna concluir pelo não preenchimento do tipo legal do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal.
Decorre do exposto que o arguido deve ser absolvido da prática do crime que lhe é imputado.”
Não sofre dúvida que o “conflito” aqui existente é o de saber até que ponto a frase dirigida pelo arguido C………. à assistente, no contexto em que foi proferida, constitui ameaça nos termos e para os efeitos do art. 153.º do CP.
Está provado que o arguido C………., no dia 22 de Maio de 2006, se dirigiu à assistente dizendo-lhe que não se metesse com a sua família que lhe partia o focinho e a matava, que era um aviso, que a matava.
Este comportamento teve lugar depois de uma discussão havida, no dia 19 de Maio de 2006, entre a assistente e a mulher do arguido e surgiu como atitude de desforço por parte deste devido a tal discussão; o próprio arguido diz à assistente que aquilo é um aviso.
É entendimento da doutrina e da jurisprudência que o conceito de ameaça se preenche com um mal futuro cuja ocorrência dependa ou apareça como dependente da vontade do agente aos olhos do homem comum, tendo em conta as características individuais do ameaçado.
A dependência da concretização do mal futuro da vontade do agente estabelece a diferença entre o aviso ou advertência e a ameaça.
No caso que nos ocupa, como refere a sentença recorrida, as expressões proferidas pelo arguido C………. configura um aviso à assistente de uma consequência, caso ela se meta com a família dele, não configurando um crime de ameaça, mas um aviso, com subordinação do mal ameaçado a um comportamento dela.
Na perspectiva do homem comum, do adulto normal, é assim que as expressões proferidas pelo arguido são entendidas, isto é, como não dependentes da vontade dele, mas de um comportamento da assistente, pelo que esta não pode ter como limitada a sua liberdade pessoal.
Neste sentido, veja-se a anotação ao art. 153.º em “Comentário Conimbricense do Código Penal”, da Coimbra Editora, 1999, pág.s 340 e ss, que se seguiu de perto, bem como o ac. da Relação do Porto de 19.06.2002 , proc. n.º 0110909 (www.dgsi.pt).
Quanto ao pedido cível, tendo como causa de pedir o ilícito criminal, a absolvição do arguido deste impõe a absolvição também daquele.
Nesta conformidade, acolhendo a posição defendida na sentença sob recurso com os demais argumentos que se subscrevem, entende-se que o recurso não merece provimento.
III. Pelo exposto:
1.º Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
2.º Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Elaborado e revisto pela primeira signatária.

Porto, 19 de Novembro de 2008
Airisa Maurício Antunes Caldinho
António Luís T. Cravo Roxo”