terça-feira, 3 de junho de 2008

Contra-ordenação; recusa de identificação; desobediência


ACRL de 29-05-2008

Sumário:

Quem recusa identificação, ainda que para efeitos de contra-ordenação, comete o crime de desobediência.

Processo 3710/08 9ª Secção

www.pddlisboa.pt/pgdl/jurel/

Texto Parcial:

Acordam na 9. secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – No Proc.(...) do 3.° Juízo de Competência Criminal de Almada, por sentença de 30 de Janeiro de 2008, foi o arguido (…) absolvido do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal, que lhe era imputado na acusação.

II – Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:

1. Os factos dados como provados constituem o arguido na autoria de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.

2. A situação em análise situa-se fora do quadro de aplicação do artigo 250.° do Código de Processo Penal, relativo à identificação de suspeitos da prática de crimes e pedido de informações, no âmbito das 'Medidas Cautelares e de Polícia', bem como fora do quadro da aplicação da Lei n.° 5/95, de 21/02, que veio estabelecer a obrigatoriedade do porte de documento de identificação e a possibilidade de exigência de identificação de suspeitos da prática de crimes, uma vez que nos situamos não no âmbito penal mas contra-ordenacional, razão por que não colhe no presente caso o argumento segundo o qual não obstante a ordem de identificação emanada pelos agentes de autoridade seja legítima e tenha o arguido praticado uma contra-ordenação, não podiam os agentes de autoridade cominar com a prática do crime de desobediência a recusa em fornecer a sua identificação.

3. O artigo 171.0, do Código da Estrada, referido pelo Tribunal 'ad quo' também não tem aplicação no caso em apreço, pois o seu âmbito de aplicação está pensado para os casos em que o agente de autoridade não pode, porque lhe é impossível, identificar o agente da infracção. E no presente caso, o agente apurou quem era o autor da infracção e estava em condições de o identificar, só não o fez porque o arguido se recusou a fornecer a sua identificação.

4. Não se verificando, no caso concreto, o circunstancialismo previsto no artigo 171.°, do Código da Estrada nem o previsto no artigo 250.°, do Código de Processo Penal, pois que os agentes policiais não podem conduzir os agentes de contra-ordenações ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à sua identificação, podem cominar a recusa de identificação com a prática do crime de desobediência.

5. Estando em causa a prática de contra-ordenação, rege o artigo 49.° do Decreto-Lei 433/82, de 27/10 'ex vi' artigo 132.°, do Código da Estrada, o qual autoriza as autoridades policiais a exigir a identificação do agente de qualquer contra-ordenação em geral, não se aplicando neste âmbito o disposto naquele artigo 250.°.

6. Assim, e como bem refere o Tribunal 'ad quo' a ordem emanada do Cabo da GNR é legítima, pois que observou escrupulosamente a norma do artigo 49.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10.

7. Tendo-se dado como provados todos os factos descritos na acusação, está demonstrada quer a legitimidade e regularidade da ordem de identificação emanada e da advertência que, face à recusa do arguido, se lhe seguiu, quer a consciência, por parte do arguido, da legitimidade da ordem que lhe havia sido dada, bem como a vontade do mesmo de desobedecer a tal ordem, sabendo embora que tal comportamento a faria incorrer na prática do crime por que vem acusado, devia o Tribunal ter condenado o arguido pela prática do crime de desobediência.

8. Não o entendendo assim, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 348.0, n.° 1, alínea b) do Código Penal, 132.0, do Código da Estrada, 49.° do Decreto-Lei n° 433/82, de 27/10 e 250.° do Código de Processo Penal e da Lei n.° 5/95, de 21/2, e ainda, por erro de aplicação, os artigos 171.°, do Código da Estrada.

9. Em face do exposto, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.0, n.° 1, alínea b), pelo qual vem acusado.

10. Considerando a moldura penal abstracta aplicável ao crime de desobediência, de 10 a 120 dias, e tendo em conta o grau de ilicitude do facto e o grau de violação dos deveres impostos ao agente, que é mediano, a intensidade do dolo, que é directo, as especiais necessidades de prevenção geral, que são elevadas, tendo em conta que a conduta do arguido atentou contra a autonomia intencional do Estado, e as necessidades de prevenção especial positiva que são baixas, pois o arguido não tem antecedentes criminais, entendemos justa, por adequada às finalidades da punição a aplicação de uma pena de multa de 60 dias.

11. Quanto ao quantitativo diário da pena de multa, tendo em conta que o arguido é assistente administrativo, actividade da qual aufere, mensalmente, a quantia de € 700,00, que paga € 250,00 de mensalidade da faculdade e € 347,00 mensais relativos à amortização do crédito à habitação, reputa-se ajustada a fixação da taxa diária da multa em pelo menos € 6,00.

(…)

VI — Cumpre decidir.

(…)

3. Sobre o enquadramento jurídíco-criminal dos factos provados.

Desde já se adianta que se concorda com a posição do Ministério Público/recorrente e que se transcreve parcialmente por merecer o nosso acordo.

'A recusa de identificação à autoridade policial por parte do agente de uma contra-ordenação pode constituir crime de desobediência.

Ora, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, tendo-se dado como provados todos os factos constantes da acusação, e supra transcritos, os mesmos são susceptíveis de integrar a prática pelo arguido do crime de desobediência.

Vejamos porquê.

Faz a decisão recorrida alusão ao artigo 171.°, do Código da Estrada e ainda ao artigo 250.°, do Código de Processo Penal para, depois, concluir que os elementos da GNR não podiam cominar com a prática de um crime de desobediência a recusa em fornecer a sua identificação.

Quanto ao referido artigo 171.°, o mesmo não tem aplicação no caso em apreço.

O seu âmbito de aplicação está pensado, contrariamente ao que defende a Sra. Juíza a quo, para os casos em que o agente de autoridade não pode, porque lhe é impossível, identificar o agente da infracção. E no presente caso o Cabo (...) podia, pois era-lhe possível, ter identificado o arguido, agente da contra-ordenação.

Com efeito, o arguido estava na presença do agente de autoridade, cara-a-cara com ele, e este só não o identificou porque o arguido se recusou a fornecer a sua identificação, e não porque, de qualquer forma, não o conseguiu identificar.

O agente apurou quem era o autor da infracção e estava em condições de o identificar.

Por outro lado, ao contrário do referido pelo tribunal 'a quo', tal normativo não exclui a possibilidade de incriminar por desobediência o desrespeito de ordem ou mandado legítimo de autoridade porque no âmbito contra-ordenacional, como bem refere o Tribunal 'a quo', o artigo 250.°, do' Código de Processo Penal não tem aplicação ao caso em apreço.

A situação em análise situa-se fora do quadro de aplicação do artigo 250.° do Código de Processo Penal, relativo à identificação de suspeitos da prática de crimes e pedido de informações, no âmbito das 'Medidas Cautelares e de Polícia', bem como fora do quadro da aplicação da Lei n.° 5/95, de 21/02, que veio estabelecer a obrigatoriedade do porte de documento de identificação e a possibilidade de exigência de identificação de suspeitos da prática de crimes.

Com efeito, na factualidade que originou a acusação deduzida nos presentes autos, e que foi considerada provada, a ordem de identificação não se relacionou com a responsabilidade criminal mas sim contra-ordenacional do arguido.

O citado artigo 250.°, bem com a Lei n.° 5/95, partem de um pressuposto concreto para a sua aplicação, qual seja o de haver fundadas suspeitas da prática de crime, aplicando-se assim a casos em que está em causa apuramento de eventual responsabilidade criminal.

Não é, no entanto, apenas ao serviço do apuramento de uma possível responsabilidade criminal que a autoridade policial pode exigir a identificação de um cidadão.

Passamos a explicar.

No caso que originou o presente recurso somos confrontados com a actuação de elementos da GNR e de um cidadão, de que releva, quanto àqueles, a emanação de uma ordem de identificação, e quanto a este, a recusa de acatar tal ordem.

Trata-se ainda de comportamentos despoletados pelo facto de o arguido circular, no dia 14/11/2005, cerca das 9h55m com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (...)no corredor de transportes públicos da Ponte 25 de Abril sem lhe ser permitido, facto que constitui contra-ordenação, nos termos do disposto no n.°s 1 e 3, do artigo 77.° do Código da Estrada.

Parece então que deveremos começar por abordar a disciplina normativa do poder de exigir a identificação de um qualquer cidadão, por parte de um agente de autoridade, centrados sobretudo no âmbito das contra-ordenações.

Importa, assim, identificar as normas que especificamente autorizem o controlo de identidade, em homenagem ao apuramento de responsabilidade não penal, mas antes contra-ordenacional.

E, neste último âmbito, que é aquele quê nos interessa, rege, antes do mais, o disposto no artigo 49.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10, aplicável 'ex vi' artigo 132.°, do Código da Estrada, de acordo com o qual 'as autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais podem exigir ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação.'

Esta exigência de identificação está directamente ligada ao disposto no artigo 48.° do mesmo Decreto-Lei, que estipula que 'as autoridades policiais e fiscalizadoras deverão tomar conta de todos os eventos ou circunstâncias susceptíveis de implicar responsabilidade por contra-ordenação e tomar as medidas necessárias para impedir o desaparecimento de provas.'

Estes artigos autorizam, assim, as autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais a exigir a identificação do agente de qualquer contra-ordenação em geral.

Tendo-se provado, na sentença recorrida, que no dia 14 de Novembro de 2005, cerca das 09:55 horas, o arguido circulava com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (...) no corredor de transportes públicos da Ponte 25 de Abril, Pragal, área desta comarca, (ponto 1. dos factos provados), tal comportamento tê-lo-á feito incorrer, em princípio, na contra-ordenação prevista no artigo 77.°, n.°s 1 e 3, do Código da Estrada, estando assim em causa responsabilidade não penal mas contra-ordenacional, pelo que terá aqui aplicação o artigo 49.° do Decreto-Lei 433/82, de 27/10, sendo legítima a ordem emanada pelos agentes de autoridade no sentido de o arguido fornecer os seus elementos de identificação.

E tendo-se provado que os elementos da GNR se encontravam em serviço, devidamente uniformizados e identificados, tendo advertido o arguido de que a sua recusa em se identificar o faria incorrer num crime de desobediência, mais se provando a permanência na recusa, por parte do arguido, em fornecer a sua identificação, sempre estaria manifestamente em causa o cometimento, pelo arguido, de um crime de desobediência, desde que, obviamente, os respectivos elementos típicos se mostrem preenchidos.

E tais elementos típicos encontram-se indubitavelmente preenchidos, atentos todos os factos dados como provados, acima transcritos.

Senão vejamos:

Dispõe o artigo 348.°, no seu n.° 1, alínea b), que quem faltar à obediência devida a uma ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

Introduziu-se assim o requisito da cominação prévia feita pelo funcionário ou autoridade, como pressuposto da punição, no caso de nenhuma outra disposição legal prever comportamentos cuja punição é remetida para este artigo.

Ora, tendo-se dado como provados todos os factos constantes da acusação, constitutivos do crime de desobediência, não restarão quaisquer dúvidas da prática, pelo arguido, de um crime de desobediência, tal como ele se encontra previsto no artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.

Sustenta-se na decisão recorrida que não obstante a ordem de identificação seja legítima e tendo o arguido praticado uma contra-ordenação, não podia o Cabo (…) da GNR cominar com a prática de um crime de desobediência a recusa em fornecer a sua identificação, mas tão só proceder ao levantamento do auto de contra-ordenação em nome do proprietário do veículo.

Como acima já se deixou dito, não se verificando, no caso em concreto, o circunstancialismo previsto no artigo 171.0, do Código da Estrada nem o previsto no artigo 250.°, do Código de Processo Penal, pois que os agentes policiais não podem conduzir os agentes de contra-ordenações ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à sua identificação, podem cominar a recusa de identificação com a prática do crime de desobediência.

O entendimento aqui sustentado no sentido da incriminação por desobediência dos agentes de contra-ordenações que recusem identificar-se à autoridade policial está de acordo com a posição defendida no Parecer 5/97, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 22 de Maio de 1997, para as contra-ordenações estradais, aliás tornada doutrina obrigatória pelo Ministério Público pela Circular 5/97 da PGR.'

Pelo exposto, os factos dados como provados na decisão recorrida, integram a prática pelo arguido, em autoria material, de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), pelo qual vinha acusado.

(...)

VI- Termos em que concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público :

1. Decide-se que o arguido cometeu, em autoria material, um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.°n.° 1 alínea b) do C.Penal.

2. Condena-se o arguido na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros),o que perfaz € 360,00.

3. Custas pelo arguido sendo de 4UC s a taxa de justiça.

(Acórdão elaborado e revisto pelo relator- vd. art.° 94 ° n.° 2 do C.P.Penal)

Lisboa,