terça-feira, 10 de abril de 2012

Arquivamento em caso de dispensa de pena – meio de impugnação em inquérito

 

Acórdão da Relação de Évora de 27-03-2012

Processo: 3/10.7GCRDD.E1

Relator: SÉNIO ALVES

Sumário:

Contra a decisão de arquivamento do processo ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.º 1 do CPP não pode o assistente reagir através do pedido de abertura de instrução.

 

Texto Parcial:

“…II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.
Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se ordenado o arquivamento do inquérito com a concordância do juiz de instrução, é permitido ao assistente requerer a abertura da instrução.
O despacho recorrido é do seguinte teor:
«O assistente veio requerer a abertura de instrução, assim reagindo contra o despacho de arquivamento do inquérito por dispensa de pena proferido pelo Ministério Público com a concordância do JIC e constante de folhas 183 a 186 dos autos.
No entanto, estamos perante situação em que a fase de instrução é legalmente inadmissível.
De facto, tal como dispõe o art. 280.º, do Cód. Proc. Penal, a decisão de arquivamento proferida com a observância do disposto nos ns. 1 e 2 da mesma norma não é susceptível de impugnação logo, de igual forma, não pode ser objecto de fase de instrução.
A fase de instrução visa discutir a decisão de arquivamento ou de acusação do Ministério Público mas apenas no que respeita ao juízo de suficiência indiciária (ou de verificação de pressupostos de suspensão), o que não é o caso.
Assim, por inadmissibilidade da abertura desta fase processual, nos termos do disposto nos arts. 280.º e 287.º, do Cód. Proc. Penal, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução».
III. Decidindo:
Dispõe-se no artº 280º, nº 1 do CPP que “se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa”. E, nos termos do nº 3 do mesmo artigo, “a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação” sendo certo que, como opina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 123, “o não ser susceptível de impugnação parece significar que a decisão de arquivamento não admite nem recurso nem comprovação pela instrução”.
Entende a Mª juíza a quo que não sendo a decisão de arquivamento susceptível de impugnação não pode, de igual forma, justificar a abertura de instrução.
Entendimento contrário manifesta o recorrente que sustenta que a Mª juíza deu a sua concordância ao arquivamento do processo quanto aos crimes tidos como indiciados pelo Ministério Público, que não quanto àqueles que ele próprio entende estarem suficientemente indiciados (homicídio na forma tentada e detenção de arma proibida); e quanto a estes, conclui, nada impedia a abertura de instrução.
Maugrado a letra do nº 3 do artº 280º do CPP, alguma doutrina e jurisprudência tem vindo a defender que, em caso de discordância quanto à verificação dos pressupostos e requisitos do arquivamento (que não quanto ao juízo de oportunidade do mesmo), o assistente tem legitimidade para impugnar aquela decisão [1]. O Prof. Germano Marques da Silva, op. e loc. cit., explica como:
“Se o Ministério Público decidir o arquivamento e faltar a concordância do juiz, o meio processual para o assistente impugnar o despacho é o requerimento de abertura da instrução; o arquivamento é ilegal e o assistente formulará acusação, consubstanciada no seu requerimento instrutório, submetendo a decisão do Ministério Público e a sua acusação a comprovação do juiz de instrução. Se, porém, tiver havido a concordância do juiz, o meio processual para a impugnação pelo assistente é o recurso, porquanto o juiz de instrução já se pronunciou ao concordar com a decisão do Ministério Público.
Agora é a decisão judicial que está em causa, a verificação judicial da ocorrência dos pressupostos que permitem aquele arquivamento”.
Parece, pois, suficientemente claro que, mesmo para quem defenda a impugnabilidade da decisão de arquivamento proferida ao abrigo do disposto no artº 280º, nº 1 do CPP, esta só pode ocorrer por via de recurso (posto que o arquivamento do processo ali previsto pressupõe sempre a concordância do juiz de instrução).
E outra coisa não faria, aliás, grande sentido.
Como claramente resulta do artº 286º, nº 1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito. A decisão (de acusar ou arquivar) aqui referida só pode ser a proferida pelo MºPº, titular do inquérito. Não parece sensato defender-se que pode haver comprovação judicial de uma decisão… judicial de arquivar o processo! Mais: o juiz de instrução já comprovou judicialmente a decisão de arquivamento tomada pelo MºPº: fê-lo ao dar a sua concordância, nos termos do artº 280º, nº 1 do CPP, examinando os autos e verificando a existência dos pressupostos e requisitos legais [2].
E assim sendo, há que concluir que contra a decisão de arquivamento do processo, tomada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 280º, nº 1 do CPP, não pode o assistente reagir através do pedido de abertura de instrução, de todo em todo inadmissível [3], antes e apenas através de recurso [4]. Como decidiu o Exmº Presidente da Relação do Porto em 22/7/2005 [5], «não se questiona a admissão do recurso do despacho arquivamento, com base na dispensa da pena, proferido por Juiz de Instrução, em concordância com o proposto pelo MP. Porém, sendo o despacho de que se recorre proferido por juiz, ainda que meramente concordatório, não se trata de despacho discricionário, de mero expediente. Por isso mesmo, MARQUES da SILVA, em “Curso de Processo Penal” – III – fls. 105 – diz: “A concordância do juiz não traduz um acto de fiscalização da legalidade do procedimento do MP, mas uma verdadeira decisão sobre a legalidade e adequação do arquivamento”.
Àqueles despachos – poder discricionário e de mero expediente - opõem-se, necessariamente, os despachos jurisdicionais decisórios. Passíveis então de recurso, conforme o disposto no art. 399.º e enquanto não incluídos no art. 400.º-n.º1, do CPP».
O recorrente, parecendo aceitar o entendimento acabado de expor, tenta justificar a opção que fez pelo pedido de abertura de instrução (que qualifica de “incoerência meramente aparente”) com o facto de, na sua óptica, a decisão de arquivamento apenas ter versado sobre os crimes de ofensas à integridade física reciprocamente perpetrados pelos arguidos, que não sobre aqueles que ele próprio enuncia no seu requerimento de abertura de instrução (homicídio na forma tentada e detenção de arma proibida). Sobre estes crimes nem o Ministério Público nem a Mª juíza de instrução se pronunciaram, razão pela qual (se bem entendemos o raciocínio do recorrente) não caberia recurso, antes pedido de abertura da instrução.
Convenhamos:
O argumento, sendo inteligente e bem argumentado – o que, por ser de inteira justiça, é de reconhecer – não pode vingar: quer a Magistrada do MºPº quer a Mª juíza de instrução consideraram que os factos indiciados eram apenas susceptíveis de integrarem a prática, por ambos os arguidos, de um crime de ofensas à integridade física. Uma e outra consideraram suficientemente indiciadas agressões recíprocas entre os arguidos e consideraram - ao qualificarem tais agressões como ofensas à integridade física - que ambos agiram com vontade de ofender o corpo ou a saúde do outro, que não com o intuito de lhe provocar a morte.
A discordância do recorrente quanto a esse entendimento (expresso pela Mª juíza no seu despacho de concordância) só poderia ser exposta, de forma relevante, através de recurso, como acima se referiu; carece de qualquer razoabilidade requerer a um juiz que comprove judicialmente a sua própria decisão de concordância com o arquivamento do processo.
E o mesmo se diga quanto ao pretenso crime de detenção de arma proibida que o recorrente entende estar indiciado mas que a Magistrada do Ministério Público e a Mª juíza de instrução entenderam que não (posto que consideraram apenas estar indiciada a prática do crime de ofensas à integridade física).
A entender estar verificada a prática desse crime (já agora, quais as características dessa invocada arma, que nunca chegou a ser identificada nem apreendida?) ao recorrente restava recorrer do despacho proferido pelo Mª juíza de instrução. Como nos parece evidente e dispensa grandes considerações, quando um Magistrado do MºPº, findo o inquérito, afirma que os factos indiciados integram a prática do crime X, tal significa que – em sua óptica – os factos indiciam a prática apenas daquele crime e não de qualquer outro de entre as dezenas de ilícitos penais como tal tipificados. E o mesmo se diga, naturalmente, quanto a um despacho proferido pelo juiz de instrução (seja de pronúncia, de não pronúncia ou de concordância com o arquivamento).
Há, pois, que concluir, dizendo que o assistente tem legitimidade para recorrer do despacho de concordância do juiz de instrução com a decisão de arquivamento anunciada pelo Magistrado do MºPº, mas não pode impugnar essa decisão através do pedido de abertura de instrução.
IV. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a douta decisão recorrida.
Custas pelo assistente – artº 515º, nº 1, al. b) do CPP. Taxa de justiça: 3 UC´s.
Évora, 27 de Março de 2012 (processado e revisto pelo relator)
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Sénio Manuel dos Reis Alves
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João Martinho de Sousa Cardoso
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[1] O Cons. Maia Gonçalves, CPP anotado, 7ª ed., 444, escreve: “Também a decisão de arquivamento é impugnável pelo assistente, com o fundamento de que se não verificam os pressupostos dos números anteriores”.
[2] Neste sentido, cfr. Ac. RP de 23/4/2008 (rel. Manuel Braz), www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, cfr. – para além do acórdão referido na nota anterior – o Ac. RP de 14/12/2005 (rel. António Gama), www.dgsi.pt.
[4] No sentido da admissibilidade do recurso cfr, entre outros, Acs. RP de 24/5/2006 (rel. Élia São Pedro) e de 31/3/2004 (rel. Francisco Domingos), da RL de 7/10/2009 (rel. Fernando Estrela), todos in www.dgsi.pt.
[5] Reclamação 051385, www.dgsi.pt.”

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