sexta-feira, 6 de junho de 2008

Acção de impugnação de paternidade , estabelecida por via de perfilhação , de menor adoptado plenamente

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 1 de Março de 2005 (*)

I - RELATÓRIO

A, em 17 de Janeiro de 2002, intentou acção declarativa de impugnação de perfilhação , com processo ordinário, contra B, C e D, pedindo que seja declarado que o menor C não é filho do Réu B.
Para fundamentar tal pedido alegou, em síntese, que o menor foi registado na Conservatória do Registo Civil de U, tendo sido estabelecida a filiação por declaração da mãe (Ré, D) e do Réu, B, que declarou ser o pai da criança, reconhecendo-o como tal por perfilhação , sendo porém certo que o menor é realmente filho do autor e não deste último Réu.
Alicerçou a sua posição referindo que a Ré tinha tido consigo relacionamento sexual constante e regular, mormente nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que antecederam o nascimento da criança, tendo ainda aquela confessado que a criança era filho do autor.
Refere, finalmente, que após se ter verificado a separação entre os Réus C e D, tendo o menor e outro irmão ficado inicialmente a viver com aquele, foram os mesmos confiados a uma instituição de solidariedade social, sendo que o autor e a sua família (esposa e filhos desse casamento) visitavam a criança em tal instituição, tendo entretanto sido impedidos de visitá-la, com fundamento no facto do autor não ser o pai da mesma.
(...)
Citados os Réus estes não contestaram, tendo sido proferido despacho saneador e determinado o prosseguimento dos autos para produção de prova, atento o disposto no artigo 485º , alínea c ), do Código de Processo Civil.
(...)
O processo prosseguiu, tendo sido juntas diversas certidões a pedido do Senhor Juiz.
Por despacho de 15 de Março de 2003 declarou-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide .
Inconformado com tal decisão veio o autor recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações donde constam as seguintes conclusões :

1 - A presente acção de investigação de paternidade deu entrada em juízo a 16.01.2002, tendo os réus sido citados para a mesma, isto é, o curador do menor e os pais do menor;
2 - Já após tais citações, iniciaram-se os procedimentos preliminares do processo de adopção, decretados após a entrada em juízo da acção de investigação;
3 - A petição de adopção é igualmente posterior à presente acção sendo contudo decretada a adopção plena do menor antes de findos os presentes autos;
4 - A douta sentença recorrida ao julgar extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide , com fundamento no disposto pelo artigo 1987º do Código Civil e artigo 173º-F da Organização Tutelar de Menores, fê-lo a nosso ver e com o devido respeito, incorrectamente;
5 - De facto o artigo 1987º veda o estabelecimento da filiação natural do adoptado após ter sido decretada a adopção plena , contudo, no caso em apreço tal estabelecimento tinha sido requerido, antes de ter sido decretada a adopção plena ;
6 - No que tange ao disposto pelo artigo 173º da Organização Tutelar de Menores, este refere-se às situações de investigação de paternidade oficiosas que devem suspender-se com os procedimentos preliminares da adopção e processo de adopção, contudo, no caso em apreço tal averiguação não era oficiosa, mas sim promovida pelo pai biológico do menor adoptado, pelo que não se suspenderia à luz do teor do citado artigo;
7 - Pelo que, entendemos que a presente lide não é inútil mantendo o autor/recorrente o interesse legítimo em, vendo reconhecida a sua paternidade, poder, se preencher os respectivos pressupostos, requerer a revisão da sentença que decretou a adopção plena .

A apelada contra-alegou, sustentando a manutenção do despacho que determinou a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide .
(...)

III.2. Da inexistência de fundamento legal para a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide ( recurso de apelação ).

O apelante recorreu do despacho do Senhor Juiz do Tribunal a quo , considerando que tal despacho violava o disposto no artigo 1987º do Código Civil e no artigo 173º-F , da Organização Tutelar de Menores, por entender que “no caso em apreço tal estabelecimento (o da filiação natural do adoptado) tinha sido requerido, antes de ter sido decretada a adopção plena” e por o segundo de tais preceitos legais apenas determinar a suspensão das averiguações oficiosas de maternidade e paternidade e não já aquelas, como a presente, em que a investigação é “promovida pelo pai biológico do menor adoptado”.
Com efeito, a decisão recorrida que determina a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide , em parte da sua fundamentação refere o seguinte:

“O presente processo tem em vista não apenas o afastamento da perfilhação de B, pessoa que constava, no respectivo assento de nascimento, como pai do menor C, mas também o futuro estabelecimento da filiação biológica da paternidade por parte do A., que invoca tal qualidade.
Contudo, salvo melhor opinião, este segundo processo, de estabelecimento da filiação biológica, legalmente já não é possível.
Com efeito, como resulta dos supra citados normativos legais, com a consumação da adopção plena não é possível o estabelecimento da filiação natural nem a continuação dos processos de investigação da maternidade ou da paternidade que, com a decisão de confiança judicial, se suspendem e posteriormente, com o decretamento da adopção plena , se arquivam.
Então, se este segundo processo de investigação ou averiguação oficiosa da paternidade, com vista ao estabelecimento da filiação natural do menor, já não tem cabimento legal (já não revestem carácter de prejudicialidade face ao processo de adopção), por maioria de razão, a presente acção deixou igualmente de ter qualquer interesse, tornando-se inútil.
Destarte, não sendo possível investigar e estabelecer a filiação natural, deixou de existir qualquer interesse de ordem pública na prossecução da presente acção, pois, em virtude de ter sido decretada a adopção plena, não será mais possível proceder-se à perfilhação do menor ou intentar acção de investigação de paternidade. Ou seja, a presente acção é preliminar da acção de investigação de paternidade. Ora, a acção de investigação não sendo possível, perante o decretamento da adopção plena , também não faz qualquer sentido a continuação da presente acção de impugnação da perfilhação , pois o A. nunca poderia vir a proceder ao averbamento da sua, eventual, paternidade biológica.”

Afigura-se-nos que quer o Senhor Juiz, quer o recorrente analisaram inadequadamente a questão em apreço.
Peguemos na petição inicial desta acção, a qual o autor, ora apelante, designa por “acção declarativa de impugnação de perfilhação ”, à luz do disposto no artigo 1859º do Código Civil (que no dizer de Guilherme de Oliveira, quanto a nós bem, se deveria designar de acção de impugnação da paternidade , estabelecida por via de perfilhação ( 1 )) e atentemos que aí é pedido que se declare “...que o menor C não é filho do Réu B, devendo em consequência ser eliminado do assento de nascimento a referência a esta paternidade e avoenga paterna”.
Daqui se conclui que caso a presente acção viesse a proceder o ora apelante não lograria mais do que tal declaração afastando a paternidade do Réu B, face ao menor C, não ficando estabelecida qualquer outra paternidade, designadamente a sua (“A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” - Nº 1, do artigo 667º , do Código de Processo Civil).
A lei veda-lhe aliás a possibilidade de na mesma acção impugnar a paternidade quanto a determinada pessoa e simultaneamente pedir o estabelecimento de paternidade quanto a outra, como resulta do disposto no artigo 1848º do Código Civil.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 09/07/2002, “...estabelecida a paternidade por qualquer dos modos previstos na lei, essa paternidade permanece sobre qualquer tentativa de criação de um estado incompatível, enquanto o primeiro não for impugnado com êxito, em acção própria, e o respectivo registo não for rectificado, declarado nulo ou cancelado. Trata-se de um corolário do princípio mais vasto, segundo o qual os factos obrigatoriamente sujeitos a registo, uma vez registados, gozam de uma fé e certeza, formal e pública, que os defende e protege contra prova de facto incompatível, que não seja apresentada na competente acção de estado ( artigo 4º do Código do Registo Civil)” ( 2 ).
Pela leitura das conclusões de recurso e mesmo pelas alegações, verifica-se que o ora apelante terá confundido esta acção de impugnação de paternidade , estabelecida por via de perfilhação , com a acção de investigação de paternidade, que num desenrolar normal e lógico lhe sucederia caso esta viesse a ter o vencimento pretendido, isto é, caso viesse a ser declarado que aquele que consta no registo como sendo pai do menor, não o era.
Mas se é verdade que o apelante partiu dum pressuposto errado para a sua pretensão de ver revogado o despacho recorrido, ainda assim subsiste a questão de saber se tal despacho interpretou da melhor forma os ditames legais.
A resposta a esta pergunta parece-nos ter de ser negativa.
Com efeito, não só nenhum preceito legal, designadamente os apontados artigo 1987º do Código Civil e artigo 173º-F , da Organização Tutelar de Menores, impõem a suspensão ou a impossibilidade de instauração deste processo de impugnação de paternidade, como até a decisão desta acção poderá assumir relevância até em sede de adopção.
Na realidade, a procedência da presente acção, muito embora constitua condição indispensável para a instauração duma subsequente acção de investigação ou mesmo de mera perfilhação , não se esgota, quanto aos seus fins, nesse papel de pressuposto daquelas.
Há que ter presente que o pedido formulado nesta acção de impugnação de paternidade, estabelecida por via da perfilhação , é o de que se declare “...que o menor C não é filho do B, devendo em consequência ser eliminado do assento de nascimento a referência a esta paternidade e avoenga paterna”.

Ora, o nosso legislador, no que concerne às questões inerentes ao estabelecimento da filiação dá nalgumas situações relevo a valores “sociológicos” (como é o caso da inadmissibilidade do estabelecimento da filiação natural existindo já uma adopção decretada - artigo 1987º do Código Civil), mas continua a assumir uma postura “biologista”, na maior parte das situações (vd. Guilherme de Oliveira, in : Temas de Direito da Família do Centro de Direito da Família - Coimbra Editora, vol. I, págs. 67-69).
No caso destas acções de impugnação da paternidade o legislador entendeu que as razões sociológicas que estão na base da impossibilidade do estabelecimento da filiação, existindo já uma adopção, não se justificam e, por isso, não o previu. Na realidade, aqui o que se pretende é afastar uma paternidade que se encontrava indevidamente estabelecida, sendo que caso a acção venha a ter procedência, não se afectará o normal equilíbrio da criança, pois que tal não terá implicação nos vínculos legais entretanto estabelecidos por via da adopção - averba-se apenas ao registo esse facto, isto é, cancela-se o nome que constava como perfilhante.
Como dissemos supra, a decisão desta acção poderá assumir relevância autónoma até em sede de adopção, não se esgotando como mera preliminar de eventual perfilhação ou de uma acção de investigação de paternidade. Basta termos presentes, designadamente, os efeitos da adopção, no que concerne a impedimentos matrimoniais (vd. artigo 1986º , Nº 1, do Código Civil) e às situações passíveis de levarem à revisão da sentença de adopção ( artigo 1990º do Código Civil), uns e outras em que assume relevância o saber-se que alguém não tem a paternidade estabelecida quanto ao menor.
Por tudo o que deixamos dito, há pois, que concluir, pese embora por caminho distinto do percorrido pelo recorrente, que o Senhor Juiz do Tribunal a quo não tinha fundamento legal para determinar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide , sendo por isso de revogar o despacho que a determinou.

IV - DECISÃO

Nestes termos, acorda-se em dar provimento ao recurso e, nessa conformidade, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento da acção.

(...)

Coimbra, 1 de Março de 2005

Sousa Pinto (relator)
Cardoso Albuquerque
Garcia Calejo


(*) Apelação Nº 2737-04.

Sobre este acórdão existe um brilhante comentário na Revista do Ministério Público nº 105 - 1º trimestre de 2006, na página 155, do Sr. Procurador da República Rui do Carmo.

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