sexta-feira, 11 de abril de 2008

Lei Tutelar Educativa - Constituição de Assistente ?

Assento do STJ, de 21-2-62

Não é permitida a constituição de assistente, nos processos instaurados nos tribunais de menores, a delinquentes de 16 anos. DG 65/62 SÉRIE I, 23 de Março de 1962 PÁGINAS DO DR : 284 a 286 - AUJ
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Texto integral:
Acórdão doutrinário Processo n.º 30683.
- Autos de recurso extraordinário nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal, vindos da Relação do Porto. Recorrente, Ministério Público.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Baseando-se no artigo 669.º do Código de Processo Penal e dada a impossibilidade de recurso ordinário do Acórdão de 1 de Março de 1961, a fls. 25 e seguintes, o Exmo. Procurador da República junto da Relação do Porto interpôs o presente recurso extraordinário, a fim de se fixar a jurisprudência.
Funda-se em que ele estava em nítida oposição com o Acórdão do mesmo Tribunal de 11 de Maio de 1955, publicado na Jurisprudência das Relações, de Albano Cunha, ano I, p. 618, com trânsito em julgado, na parte em que o mais recente decidiu, aliás com o aplauso do recorrente, que nos tribunais de menores, em processos contra menores delinquentes, é inadmissível a constituição dos ofendidos como assistentes.
Admitido o recurso, apresentou o mesmo magistrado a sua alegação de fl. 38, para mostrar que, entre o acórdão recorrido e o acórdão anterior se verifica o condicionalismo previsto no citado artigo 669.º, no que é acompanhado, sem esforço, pelo Exmo. Ajudante do Procurador-Geral da República, conforme seu douto parecer de fl. 43 v.º
E o acórdão da secção criminal, de fls. 48 e seguintes, assim o entendendo também, mandou se seguissem os normais termos do recurso para o tribunal pleno.
Transposta, desta forma, a primeira fase do recurso, o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do tribunal ad quem apresentou o seu notável estudo de fl. 52, indicando a solução que deverá dar-se ao conflito jurisprudencial sub judice, sustentando a tese que fez vencimento no acórdão de 1961, que justifica proficientemente.
E, corridos os vistos legais de todos os juízes deste Supremo Tribunal, vêm agora os autos para se resolver a aludida divergência e fixar a jurisprudência.
O que tudo visto:
É de lei (§ único do artigo 767.º do Código de Processo Civil, referido ao § único do artigo 669.º do Código de Processo Penal e ao § único do artigo 668.º deste último diploma) que o acórdão de fl. 48, a reconhecer a existência da oposição, não impede que o tribunal pleno decida em sentido oposto.
Mas seria querer negar a própria evidência pretender-se pôr em dúvida a flagrante oposição entre os dois arestos, porquanto decidiram, opostamente, o de 1955, que, nos processos contra menores de 16 anos, nos tribunais de menores, é admissível que os ofendidos se constituam parte assistente, enquanto o de 1961 decidiu que isso é inadmissível, aliás no domínio da mesma legislação, ou seja na vigência dos Decretos de 27 de Maio de 1911, n.º 10767, de 15 de Maio de 1925, do Código de Processo Penal, e do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945. E, em face do preceituado no artigo 33.º do Decreto n.º 20431, de 24 de Outubro de 1931, e artigo único do Decreto-Lei n.º 31189, de 24 de Março de 1941, também não há dúvida de que do acórdão recorrido não havia lugar a recurso ordinário, sendo de presumir, pela mesma razão, que o primeiro transitou em julgado.
Agora quanto ao objecto do recurso:
Diferentemente do que se verifica, por exemplo, com a lei espanhola, de 11 de Junho de 1948 (artigo 29.º), e com a lei tutelar italiana, de 27 de Maio de 1935 (artigo 12.º), a nossa legislação sobre menores delinquentes nada dispôs até agora, expressamente, sobre a matéria em causa.
Mas é de reconhecer que, ocupando-se da assistência aos próprios menores (artigo 96.º do citado decreto de 27 de Maio de 1911), se tivesse querido admitir aos ofendidos a possibilidade de prestar assistência ao curador de menores, tê-lo-ia estabelecido claramente. Está-se, pois, perante uma lacuna da lei tutelar, a qual tem de ser resolvida à face do direito processual comum, sob condição de que os ditames deste se harmonizem com a legislação especial da jurisdição tutelar de menores (artigo 34.º do Decreto n.º 20431).
Ora, sem necessidade de entrar em linha de conta com o tratamento dos menores delinquentes na vigência das nossas antigas ordenações, pode dizer-se que, com a publicação do Código Penal Francês de 1791, também entre nós começou a vingar o desvio da aplicação da lei penal comum aos menores, substituindo-a, por medidas de protecção e de educação, evolução que começou com os artigos 85.º e 99.º do Código de 1837, e 23.º, n.os 3.º e 5.º, do Código de 1852, e que culminou com o decreto de 27 de Maio de 1961 e com o artigo 109.º do Código Penal, segundo a reforma de 1954. Assim se condenou e repeliu a imposição das penas do Código Penal, quanto aos menores de 16 anos, despindo-se o processo de todo o formalismo dispensável e dando-se completa autonomia ao direito criminal relativo a esses menores, que passou a ser, acima de tudo, um, direito preventivo, tutelar e educativo e subjectivo, isto mercê do carinho e da particular atenção que aos assuntos dos menores dedicou o educador padre António de Oliveira, cujo nome não pode ficar esquecido quanto ao esforço despendido por ele na renovação e aperfeiçoamento do nosso direito sobre menores.
Assim, desde o notável Decreto de 27 de Maio de 1911, entre nós se considerou a Tutoria (hoje Tribunal Central de Menores) como um tribunal «essencialmente de equidade, julgando pela sua consciência», o qual tinha de furtar-se à inflexibilidade da legislação comum, «sob o risco de atraiçoar os fins para que foi instituído», conforme se lê no lúcido relatório preambular do mesmo diploma.
E foi-se, ali, ainda mais longe, procurando-se desvendar o caminho a percorrer em futuras alterações, na cura dos males sociais visados, escrevendo-se: «por isso, as modificações que vierem terão em vista, exclusivamente, alargar, desenvolver, tornar mais pronta e mais enérgica a terapêutica do mal a prevenir ou a remediar».
Para tanto, partia-se do princípio verdadeira e cientìficamente exacto, de que «as crianças, são a vida indecisa a despertar com a multiplicidade das suas incertezas, que não receberam ainda a modelagem persistente do meio», pelo que não podem estar sujeitas «ao rigor formulário de uma legislação taxativa, mas sim a leis especiais, em que a razão e o sentimento tenham ampla liberdade de acção» (sic).
E, mais posteriormente, o legislador continuou a procurar a solução para o problema da delinquência infantil na sujeição do menor a um regime misto, em que se conjugam os «esforços dos seguintes elementos reformadores: jurídico e médico-pedagógico», importando olhar o delinquente, não através do seu delito, mas das suas condições fisiopsicológicas e mesológicas.
Ora tudo isto não se coaduna com a ideia de uma acção penal pròpriamente dita, da competência dos tribunais comuns.
Por isso o legislador quis que a acção dos tribunais de menores seja exercida «sob a orientação e contrôle judiciário permanente dos respectivos magistrados, com provas, inquéritos e exames jurídico-médico-pedagógicos, tudo com vista à escolha dos meios e processos de correcção mais adaptáveis a cada menor, até à sua libertação definitiva como cidadão sui juris, ou à sua entrega à família, conforme se acentua no relatório que antecede o Decreto n.º 10767, já acima referido, e na Portaria n.º 4882, de 6 de Maio de 1927.
É certo que, após os textos que ficam citados, muita água passou sob as pontes, chegando a ser publicadas disposições, a prever, para os arguidos, em certos casos, o pagamento de imposto de justiça, pelo respectivo processo; e até expressamente foram responsabilizados pela indemnização de perdas e danos à parte ofendida. Assim, o artigo 19.º, § 1.º, do Decreto n.º 15162, de 5 de Março de 1928, estabeleceu que nos processos-crimes da competência dos referidos tribunais especiais, no caso de condenação, o réu pagará um imposto de justiça; e se os réus forem menores e não tiverem recursos serão condenados os pais ou tutores que tenham intencional ou culposamente contribuído para a prática dos factos ou para a situação que provocou o julgamento. E, conforme o artigo 21.º do mesmo diploma, nas causas crimes os tribunais da infância poderão arbitrar uma indemnização à pessoa ofendida, atendendo à gravidade da infracção, ao dano sofrido e à situação económica e social do ofendido e do agressor.
Mas, até aqui, nada que possa desvirtuar a índole própria dos mesmos tribunais e a característica especial das suas funções predominantemente tutelares.
Com efeito, as sanções para os menores delinquentes continuam a ser não consideradas penas, mas sim «medidas, de prevenção, de reforma ou de correcção», podendo ir desde a simples repreensão até ao internamento ou hospitalização em estabelecimentos apropriados, com medidas complementares de semi-internamento, liberdade condicional e alistamento no Exército ou na Armada (artigo 20.º e suas alíneas do citado Decreto n.º 10767).
E não deixa de ser significativo que o artigo 109.º do Código Penal reformado tenha estabelecido que «os menores de 16 anos estão sujeitos à jurisdição dos tribunais de menores» e que, em relação a eles, «só podem ser tomadas medidas de assistência, educação ou correcção previstas na legislação especial».
Por outro lado, logo de entrada se mandou que os julgamentos de menores delinquentes se efectuem, sem a solenidade dos julgamentos de maiores, numa sala reservada, só podendo a eles assistir determinadas pessoas mencionadas no artigo 92.º do Decreto de 27 de Maio de 1911, entre as quais se incluem os médicos, advogados, professores, alunos das escolas superiores e outras pessoas idóneas, mas só com autorização do presidente (§ 1.º do mesmo artigo).
E é óbvio que tais simplificações de termos, disfarce de julgamento e objectivos a atingir seriam sèriamente prejudicados se à parte ofendida se reconhecesse o direito de, divergindo do tribunal, propugnar pela aplicação de medidas curativas diferentes daquelas que aquele entenda particularmente indicadas, permitindo-se fazer valer os seus pretensos direitos, por intermédio de doutos advogados, por mais servidores do direito que estes se comportassem.
Seria absolutamente contra a finalidade a atingir deixar desenvolver litígios em que está em causa um tão nítido interesse público, pelo jogo de interesses privados neles envolvidos.
E foi por ser assim que o Decreto n.º 16489, ao aprovar o Código de Processo Penal, mandou que continuassem em vigor certas normas de processo penal, designadamente as relativas às infracções sujeitas à jurisdição «dos tribunais da infância» (artigo 3.º).
E verdade que, segundo o assento de 19 de Dezembro de 1951, se entendeu que nos tribunais em referência a instrução preparatória dos processos crimes pertence aos respectivos representantes do Ministério Público, tendo-se tirado aos respectivos juízes presidentes a competência para intervirem nessa fase, por mais que isso importe privar, por tempo indefinido, das vistas do tutor o seu tutelado (vide artigo 82.º do Decreto de 27 de Maio de 1911).
Mas a tanto levou a consideração de que as regras pelas quais pertencia aos juízes a instrução preparatória nos processos crimes não eram privativas dos tribunais de menores, antes eram comuns a todos os tribunais criminais; e ainda as disposições dos artigos 33.º e 34.º do Decreto n.º 20431, acima citado, em quanto mandam aplicar aos tribunais de menores, como direito subsidiário, os preceitos do processo civil e penal comuns «que se harmonizem com a legislação especial da jurisdição tutelar de menores».
Daqui se infere também que os mesmos tribunais especiais continuam a ser «essencialmente de equidade», julgando pela sua consciência no interesse e dos menores, conforme expressamente o acentuava o artigo 100.º do Estatuto Judiciário, segundo o Decreto n.º 15344, de 10 de Abril de 1928.
Ora, é para nós evidente que a possibilidade de os ofendidos se constituírem assistentes, nos processos contra delinquentes com menos de 16 anos de idade, com os poderes de formular acusação independentemente da do Ministério Público, oferecer provas, requerer ao juiz novas diligências e até formular acusação por factos diversos dos que constituem objecto da acusação pública, devendo sempre fazer-se representar por advogado, não é compatível com a especialidade da prevenção e correcção da delinquência infantil, que o legislador, desde 1911, sempre quis ver julgada antes pela razão e pelo sentimento do que pelo rigor jurídico, deixando aos juízes ampla liberdade de acção como acima se disse; e frustraria, porventura, aquela prontidão e energia, na terapêutica dos males que se pretende remediar.
E aqui deve estar a razão por que, vindo a nossa legislação especial sobre menores desde há já meio século, nunca nela, nem expressa nem tàcitamente, se aludiu à figura de assistente aos curadores de menores, certamente por isso se considerar supérfluo, se não impertinente. Não assim, como vimos, pelo que respeita aos próprios acusados, que, também desde 1911, se mandou que fossem assistidos, durante a instrução do processo e no julgamento, por um curador e advogado ou por pessoa idónea.
É que de forma nenhuma se pode harmonizar semelhante assistência, nos processos em apreço, com os princípios que ficam assinalados, e antes seria qual grão de areia a interferir num maquinismo tão delicado ...
Pelo que não pode invocar-se o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 35007, para legitimar a possibilidade de semelhante intervenção, disposição que tem em vista outras categorias de acções penais, predominantemente repressivas.
E nem os menores de 16 anos podem pròpriamente considerar-se «criminosos», tanto que, segundo a citada Portaria n.º 4882, o que a seu respeito o Estado pretende obter é salvá-los dos males de que sofrem - tantas vezes por culpa alheia -, «pela reeducação moral, pela preparação profissional e até pelo tratamento das condições psicopatológicas endógenas e exógenas observadas no exame médico e quantas vezes averiguadas no inquérito à família e por aquele exame confirmadas».
E por isso mesmo foi suprimido, e bem, o registo criminal para os menores de 16 anos (artigo 94.º do Decreto de 27 de Maio de 1911). Está-se, pois, muito longe daquela espécie de acções penais previstas no citado artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 35007, em que os ofendidos podem livremente intervir no processo, com todos os direitos reconhecidos aos assistentes.
E nem faça dúvida a possibilidade de, nos processos crimes em análise, haver lugar à indemnização pelo dano e perda, a favor da pessoa ofendida, porquanto trata-se de mera faculdade do juiz («poderá arbitrar»), de cujo uso, aliás, não se tem notícia até agora, e não de obrigação legal «(arbitrará»), como sucede nos crimes impugnados a maiores (artigo 34.º do Código de Processo Penal).
E é evidente que o tribunal não deixará de ouvir a parte ofendida, já nos inquéritos a que a lei obriga, já na própria fase do julgamento, se o julgar conveniente; e àquela fica sempre salvaguardado o direito de recorrer aos meios ordinários, como bem observa o Dr. Pedro Cluny, na Sciencia Juridica, tomo V, p. 31.
Entendemos, pois, sem hesitar, que a aplicação subsidiária aos processos de menores daquele artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 35007 é repelida pela natureza essencialmente tutelar da função, nos termos do artigo 34.º, parte final, do Decreto n.º 20431.
É que, como bem observa o Ministério Público, falta inteiramente ao assistente qualquer interesse para coadjuvar o curador de menores, e nós acrescentaremos que lhe faltarão, por via de regra, as necessárias formação moral e preparação técnica.
Pelos fundamentos expostos, os signatários, em tribunal pleno, acordam em proferir o seguinte assento: Não é permitida a constituição de assistente, nos processos instaurados nos tribunais de menores, a delinquentes de menos de 16 anos.
Não é devido imposto de justiça.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 1962. - Amorim Girão (relator) - Amílcar Ribeiro - Bravo Serra - Alfredo José da Fonseca - José Osório - Gonçalves Pereira - Cura Mariano - Lopes Cardoso - Alberto Toscano - Eduardo Coimbra - Arlindo Martins - F. Toscano Pessoa - José Meneses - Ricardo Lopes.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Março de 1962. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.