quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Proibição de Prova/Justa Causa/Imagens Recolhidas em Posto de Combustível

Acórdão da Relação do Porto, de 14-10-2009

Processo: 103/05.5GCETR.C1.P1

Nº Convencional: JTRP00043021

Relator: ÂNGELO MORAIS

Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA

JUSTA CAUSA

Nº do Documento: RP20091014103/05.5GCETR.C1.P1

Sumário:

I- Não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente.

II- O exame em audiência das imagens captadas naquelas circunstâncias e condições não corresponde a qualquer método proibido de prova.

TEXTO PARCIAL:

“…III- Da suscitada proibição da prova e nulidade dos fotogramas por carência de autorização:
Sem qualquer fundamentação de direito, motivam sinteticamente os recorrentes a nulidade dos fotogramas da seguinte forma:
«No que se refere à Prova fotográfica exaustivamente dissertada no douto acórdão, ressumimos a nossa posição no facto de que efectivamente a mesma tem que ser considerada nula, pelo simples facto de que a Estação de Serviço não estava autorizada à captação das mesmas, mais, agindo de má fé, se acreditar-mos que tinha colocado dísticos, pois que sabia não estar legalmente autorizada para o fazer».
Porque proficientemente dilucidada tal questão na motivação decisória, é inequívoca a sua improcedência, tal como, sem o mínimo reparo acolhemos e seguidamente se transcreve:
“... De acordo com o art. 32º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa “são nulas todas as provas obtidas mediante … abusiva intromissão na vida privada …”. E o art. 126º do Cód. Proc. Penal, que juntamente com o art. 125º do mesmo diploma estabelece o regime de proibições de prova do processo penal, indica como um dos métodos proibidos de prova “as provas obtidas mediante intromissão na vida privada”. Quanto às provas obtidas por reproduções mecânicas, nas quais se incluem os sistemas de videovigilância, preceitua o art. 167º, n.º 1, do mesmo código que só valem como prova se não forem ilícitas nos termos da lei penal, acrescentando o n.º 2 que “não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título III deste livro”, que tem a epígrafe “dos meios de obtenção da prova”.
Significa isto que o regime da legalidade da prova, ao estabelecer proibições de produção ou valoração da mesma, comprime o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Cód. Proc. Penal.
Acresce que, no caso de estarmos perante uma prova proibida, tal consubstancia uma nulidade que deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo, tratando-se, pois, de uma nulidade insanável localizada fora do catálogo do art. 119º daquele código.
No caso vertente e em face do exposto, as imagens recolhidas por particulares, mediante sistema de videovigilância instalado um local de acesso público, como é a zona de abastecimento de combustível de uma área de serviço, só não poderão ser valoradas como meio de prova se a sua obtenção constituir um ilícito criminal.
Note-se que os dados em questão, porque relativos à vida privada, são considerados dados sensíveis, implicando por isso o controlo prévio por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), através da competente notificação e autorização do seu tratamento (recolha) – cfr. art.s 7º, 8º, 27º e 28º da Lei n.º 67/98, de 26/10, que instituiu o regime jurídico de protecção das pessoas singulares no que respeita ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação dos mesmos, aplicável igualmente à videovigilância (art. 4º, n.º 4, desse diploma).
Sucede que, de acordo com as informações solicitadas em audiência (cfr. fls. 479 e ss.), a instalação do sistema de videovigilância através do qual foram recolhidos os fotogramas em questão, foi notificado à CNPD em 10/01/2003, apenas tendo sido objecto de autorização em 04/10/2005, ou seja, já depois da data dos factos, que ocorreram em 01/03/2005, sendo que aquando da prática destes a existência das câmaras de vigilância estava assinalada através da aposição de dísticos informativos no local.
Todavia, de acordo com o art. 43º da citada lei, só o não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados, designadamente a omissão das notificações ou os pedidos de autorização a que se referem os art.s 27º e 28º, é que constituem crime, já que uma conduta negligente traduzir-se-á apenas em contra-ordenação (prevista no art. 37º).
Ora, no caso vertente não se vislumbra de modo algum essa intencionalidade, tanto mais que a notificação do sistema de videovigilância foi efectuada pelo respectivo responsável à CNPD mais de dois anos antes da data dos factos, tendo havido um atraso por parte desta última na concessão da respectiva autorização, pelo que nunca estaríamos perante o referido crime.
Há então que averiguar se a recolha das imagens em questão preenche a previsão do art. 199º do Cód. Penal, relativo a gravações, fotografias e filmagens ilícitas, que tutela o direito à imagem, com consagração constitucional no art. 26º da Constituição e legal no art. 79º, n.º 1, do Cód. Civil. Segundo o primeiro desses preceitos, na parte que agora releva, “a todos são reconhecidos os direitos … à reserva da intimidade da vida privada …”.
Todavia, tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente.
Aliás, o próprio art. 79º, n.º 2, do Cód. Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, também deverá ser considerado extensível ao direito penal, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima. Aliás, consagrando o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o art. 31º, n.º 1, do Cód. Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Significa isto que as normas de um ramo do direito que estabelecem a licitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal, a ponto de, por exemplo, nunca poder haver responsabilidade penal por factos que sejam considerados lícitos do ponto de vista civil.
Aquela justa causa apenas será afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, como seja o direito ao respeito pela sua vida privada.
Ora, a citada norma do Cód. Civil não só afasta a ilicitude dos art.s 199º do Cód. Penal e 167º do Cód. Proc. Penal, como também não é inconstitucional, uma vez que, embora comprima o direito à reserva da vida privada, não o faz de uma forma de todo intolerável, como parece evidente à luz do mais elementar bom senso.
Em conformidade com isto, tem a jurisprudência, de um modo geral, entendido não ser proibida a prova obtida por sistemas de videovigilância colocados em locais públicos, nomeadamente em postos de abastecimento de combustíveis, com a finalidade de proteger a vida, a integridade física, o património dos proprietários dos veículos ou dos próprios postos de abastecimento perante furtos ou roubos, por as imagens não serem captadas em locais privados, total ou parcialmente restritos, nos quais, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, justificando-se, pois, essa excepção aos métodos proibidos de prova por razões de polícia ou de justiça.
Por outro lado, a obtenção de imagens nas circunstâncias em apreço também não constitui qualquer crime de devassa contra a vida privada (previsto no art. 192º) ou de devassa por meio de informática (do art. 193º, ambos do Cód. Penal), uma vez que com estes ilícitos pretende-se tutelar apenas o núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas, o que não é manifestamente o caso da situação que nos ocupa. Com efeito, as imagens dos arguidos não foram registadas no contexto das esferas privadas e íntimas destes, mas sim enquanto normais utentes de um posto de abastecimento de combustível, numa área de acesso público, onde qualquer pessoa, seja ou não cliente, pode aceder. Acresce ainda que as imagens não foram captadas às ocultas, tanto mais que a existência das câmaras de videovigilância estava devidamente assinalada através da aposição dos competentes dísticos.
Em suma, tal como se conclui no citado acórdão da RP de 26/03/2008, as imagens captadas em circunstâncias e condições semelhantes àquelas em que foram recolhidos os fotogramas juntos aos autos e examinados em audiência, não corresponde a qualquer método proibido de prova, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal que importa punir em nome da defesa dos mais elementares interesses da vida em comunidade, e não digam respeito ao chamado núcleo duro da vida privada da pessoa visionada, condições estas que se verificam na situação vertente.
A tal conclusão não pode, como nos parece óbvio, obstar a circunstância de não estar em causa o apuramento da responsabilidade criminal relativa a qualquer crime cometido contra o próprio responsável pela recolha das imagens e para cuja protecção directa foi instalado o sistema de vigilância, in casu, a concessionária das bombas de combustível, mas sim contra terceiros, como sejam os proprietário de um veículo subtraído e de um estabelecimento assaltado pelos mesmos agentes”.
É pois manifesta a improcedência da suscitada nulidade e proibição da prova através dos aludidos fotogramas, tal como fundadamente se decidiu…”.