segunda-feira, 14 de abril de 2008

Um Acórdão Interessante - Recurso da Matéria de Facto/ Legítima Defesa


Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12-03-2008

Processo: 2965/07-1

Relator: Martinho Cardoso


Sumário:


"I. – Não satisfaz o disposto no art.º 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, após a revisão levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29-8, o recurso em que o recorrente se limite a indicar a que voltas e em que cassete se inicia e acaba a totalidade do depoimento das testemunhas.
II. – Não deve ser enquadrada no âmbito da legítima defesa a conduta do agente que atira a matar para quem do exterior de uma cozinha está a arremessar-lhe garrafas de vidro.
III. – É da experiência da vida que vive em estado de desespero, capaz de, nos termos do art.º 133.º, do Código Penal, diminuir sensivelmente a sua culpa, o marido que mata a sua esposa depois de, no decurso dos últimos 6 anos, ter sido por três vezes alvejado a tiro por ela, que lhe acertou quatro vezes, uma na perna direita – deixando-o com uma incapacidade permanente –, outra no braço direito, outra no tórax e outra no pulso direito; que numa outra ocasião lhe rachou a cabeça com uma paulada; disse à frente da Guarda Nacional Republicana que o havia de matar – e com tal seriedade o fez que os guardas até levaram o homem dali para fora, para casa de um familiar; ter propalado três dias antes da morte que as pessoas iam ficar sem a ver durante 20 anos; que no dia dos factos e antecedendo imediatamente o homicídio, atira com garrafas de vidro para a cozinha aonde ele estava, o insulta e o desafia para que saia para o pátio aonde ela o espera; e que vivia em parte separada da mesma casa com a mulher por não ter dinheiro para comprar ou arrendar outra casa, sendo que esta tinha sido ele a construí-la, na sua profissão de pedreiro.
É de fixar em 4 anos de prisão efectiva a pena a aplicar a este arguido, no âmbito da previsão do homicídio privilegiado p. e p. pelo art.º 133.º do Código Penal".


TRANSCRIÇÃO PARCIAL DO ACÓRDÃO:


"…Para contrariar estes e outros aspectos da matéria de facto assente como provada e não provada do acórdão recorrido, o recorrente indicou a quase totalidade da prova testemunhal produzida em julgamento, mas limitando-se a indicar em que cassete e a que voltas começa e acaba cada um desses depoimentos, no que se limitou a usar as indicações a esse respeito constantes da acta do julgamento.
E na verdade, no tocante ao presente caso, esta Relação conheceria de facto e de direito, nos termos do disposto nos art.º 428.º, do Código de Processo Penal, uma vez que a prova produzida em julgamento foi documentada.
Não olvidando o ensinamento de Germano Marques da Silva, in Fórum Justitiae, Ano 1, n.º 0, pág. 22, de que «o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância».
Mas para isso e segundo o disposto no art.º 431.º al.ª b), do Código de Processo Penal, é necessário que a mesma tivesse sido impugnada nos termos do art.º 412.º, n.º 3, do mesmo Código.
Ora este art.º 412.º, n.º 3 impõe que:
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Finalmente, no n.° 4 estabelece-se que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição, sendo que, actualmente, após a revisão levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29-8, essa referência se faz de acordo com o consignado em acta, mas devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Nesse caso, como estabelece o actual n.º 6 do art.º 412.º, o tribunal procede à audição das passagens indicadas, sem prejuízo de poder ouvir outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Ora quer a motivação, quer as conclusões do recurso são completamente omissas quanto ao estabelecido no n.° 4 do citado artigo 412.°, quer na versão anterior, quer na actual.
A respeito deste assunto, pode ler-se, no âmbito da versão anterior do Código de Processo Penal mas ainda com pleno interesse, no acórdão do S.T.J. de 11.01.01, proferido no Proc. n.° 2191/00 –5.ª Secção e publicado no Bol. Crime n.° 47 no "site" desse Tribunal: " III –Quando se impugne matéria de facto, é de exigir aos recorrentes, em cumprimento do preceituado nos n.º 3 e 4 do art. 412.° do CPP, que a "especificação das provas que impõem solução diversa" passe pela referência aos suportes técnicos de gravação, já que o tribunal de recurso ao apreciar o mérito das impugnações que lhe são apresentadas pode ter interesse em delas se servir – mais não seja, para situar o contexto das afirmações ou controlar a sua propriedade e exactidão – para além de facilitarem a actuação processual contraditória dos demais interessados."
Ou seja, para pretender impugnar um facto específico, o recorrente tem que individualizar concretamente quais são as particulares passagens aonde ficaram gravadas as concretas frases do universo das declarações prestadas que se referem ao ponto impugnado e não indicar por grosso o total das declarações prestadas por uma data de testemunhas, prejudicando ou inviabilizando até o exercício legítimo do contraditório por banda dos sujeitos processuais interessados no desfecho do recurso, que assim se irão afogar em dezenas ou até centenas de minutos ou horas de gravações até descobrirem, se o conseguirem e se elas efectivamente existirem, as concretas passagens das declarações em que o recorrente presumivelmente se terá baseado para impugnar um determinado facto e que podem ser apenas duas ou três palavras em cada depoimento ou até nem existirem, transferindo também desse modo abusivamente para o tribunal de recurso a incumbência de ser este tribunal a encontrar e seleccionar as específicas passagens das gravações que melhor se adeqúem aos interesses do recorrente, ficando assim o tribunal na situação de bem servir os objectivos de uma das partes, com violação do seu dever de independência e equidistância em relação a todas elas e ficando sempre sujeito a que o recorrente depois alegue que não era bem aquela mas antes uma outra a passagem da gravação em que o tribunal de recurso devia ter ponderado.
Por outro lado e como se afirmava no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10-3-2004, publicado no D. R., II Série, n.º 91, de 17-4-2004, a respeito da anterior versão do Código de Processo Penal mas ainda com inteiro cabimento no âmbito da actual, não é inconstitucional a norma do art.º 412.°, n.º 3 al.ª b) e 4, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida, tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Por isso, não pode este Tribunal conhecer das razões que o recorrente invoca para que seja alterada a matéria de facto assente como provada e não provada do acórdão recorrido, por manifesto desrespeito do art. 412.º, n.º 4, Código de Processo Penal…"

COMENTÁRIO:

A redacção do art. 412º do Cód. Proc. Penal foi alterada pela Lei n.º 48/07, de 29.08, e no art. 412º, n.º4, apenas se exige agora o seguinte:

"4- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação".

A indicação das concretas passagens é coisa distinta da transcrição, ainda que parcial. Por outro lado, importa conjugar tudo isto com o novo sistema de registo da prova, integrado no CITIUS, agora que foram abandonadas as velhinhas cassetes.