quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Conflito de Competência

Acórdão da Relação de Coimbra de 21.11.2007
( processo 2.177/06.2TAAVR.C1; relator: Brízida Martins )

“Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


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I – Relatório.

1.1. A..., com os demais sinais nos autos, participou criminalmente contra B... e outros (3), também aqui mais identificados, como melhor consta de folhas 2 e segs.Tramitado o pertinente inquérito, cumprido com o estatuído pelo artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal [CPP], o denunciante, entretanto admitido a intervir na veste de assistente, deduziu acusação particular contra os 4 visados denunciados, imputando-lhes a autoria de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.ºs 1, alínea e) e 2, ambos do Código Penal [CP], advindo a responsabilização de dois dos arguidos, por força do estatuído no artigo 31.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro [vulgo Lei de Imprensa].O Ministério Público acompanhou tal acusação relativamente a três dos arguidos, e absteve-se de o fazer no que concerne a um deles. Observado agora o disposto no artigo 283.º, n. º 5 do CPP, foi a vez de os arguidos relativamente aos quais o Ministério Público acompanhou a acusação particular (3), requererem a abertura da fase de instrução (folhas 136 e segs.).Remetidos os autos á distribuição como tal (folhas 162), recebidos em Juízo, foi proferido despacho do teor seguinte:“Os arguidos, não se conformando com a acusação particular formulada pelo assistente A..., vieram requerer a abertura de instrução. Cumpre, desde já, aferir da competência territorial deste Tribunal para a presente instrução. Ora, conforme se constata pelos factos descritos na acusação particular, a consumação da prática do crime de difamação, de publicidade e calúnia foi efectuada através da publicação de notícia, em 1.09.2006, no Jornal “24 horas” e, nos termos dos arts. 30.º, 37.º e 38.º, n.º 1, da Lei de Imprensa (2/99, de 13/01): “Para conhecer dos crimes de imprensa é competente o tribunal da comarca da sede da pessoa colectiva proprietária da publicação.” Ora, a sede da pessoa colectiva proprietária elo Jornal em causa – Global Notícias, Publicações, S.A. – situa-se na Rua Gonçalo Cristóvão, n.º 195-219, 4049-011 – Porto, área geográfica da comarca do Porto. Deste modo temos pois que é o Tribunal de Instrução Criminal do Porto o territorialmente competente para a realização da requerida instrução. Nestes termos e segundo o disposto nos arts. 19.º, n.º 1, 32.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e 33.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal: - Declaro este Tribunal incompetente, em razão do território, para proceder à requerida instrução; - Mais ordeno a remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto. Notifique e, após trânsito, remeta os autos como determinado.”

1.2. Não se conformando com esta decisão, recorre o assistente, extraindo da motivação oferecida as conclusões seguintes:

1.2.1. Os factos vertidos na acusação particular indicam a prática pelos arguidos dos crimes de difamação e de publicidade e calúnia, previstos e punidos nos artigos 180.º e 183.º, n.º 2 do Código Penal.

1.2.2. Nos termos do n.º 5, do artigo 38.º da Lei n.º 2/99, “Para conhecer dos crimes de difamação ou calúnia é competente o tribunal da comarca do domicílio do ofendido.”

1.2.3. À data da prática dos factos crimes em apreço, o ora recorrente tinha corno domicílio o Estádio Mário Duarte, em Aveiro, pelo que,

1.2.4. Respeitando o predito normativo, é territorialmente competente o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro para proceder à instrução requerida pelos arguidos.

1.2.5. Decidindo como o fez, a decisão recorrida violou o predito normativo.Terminou pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que declare o Tribunal Judicial de Aveiro como territorialmente competente para apreciar a instrução em mérito.



1.3. Admitido o recurso, notificados os demais sujeitos processuais ao efeito, apenas respondeu o Ministério Público, sufragando a manutenção do despacho sob censura.1.4. Remetidos os autos a esta instância de apelo, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer suscitando a questão prévia de irrecorribilidade da decisão impugnada, apenas susceptível de ser ultrapassada incidentalmente como “conflito de competência”.Cumpriu-se com o disciplinado no artigo 417.º, n.º 2 do CPP.No exame preliminar a que alude o n.º 3 deste normativo consignou-se estarmos perante hipótese de rejeição do recurso, atento o disposto, conjugadamente, nos artigos 419.º, n.º 4, alínea a); 420.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, alínea a), todos do mencionado CPP.Como assim, determinou-se a recolha de vistos dos M.mos Juízes Adjuntos e submissão dos autos á conferência.Cabe, então, ponderar e decidir.


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II – Fundamentação.

2.1. Como decorre do antecedentemente exposto, e previamente se impõe, questão colocada é a de verificarmos se não deve, desde já, julgar-se sobre qual o tribunal territorialmente competente para conhecer dos crimes denunciados.

2.2. Para tanto seguiremos o entendimento vertido nos dois arestos mencionados pelo Ex.mo PGA no parecer oferecido, que se mostram com considerações pertinentes ao efeito, publicados ambos na Colectânea de Jurisprudência, Anos XXIII, Tomo I, págs. 141/2 (o Acórdão da Relação de Lisboa, 14 de Janeiro de 1998) e XXIV, Tomo II, pág. 152 (o do mesmo Tribunal, prolatado em 28 de Abril de 1999). Escreveu-se no primeiro deles que “1 – Aspecto fundamental da questão, e que não pode ser nunca esquecido, é o de que a declaração de incompetência não envolve apenas um tribunal (o declarado incompetente) mas sim, e pelo menos, um outro (o declarado competente, nos termos estipulados pelo artigo 33.º do CPP). É pacífico, por comummente aceite pela doutrina e jurisprudência, o entendimento segundo o qual só há conflito quando tenham passado em julgado todas as decisões sobre a competência proferidas pelos tribunais intervenientes (que poderão ser mais de dois). 2 - Sem embargo, é mister ter bem presente que no n.º 2 do art.º 34.º do CPP se prevê a cessação do conflito “logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso.” Ou seja, o caso julgado cede perante a pronta (e oficiosa) resolução do conflito, sendo patente o pragmatismo da lei, que coloca em primeiro e mais importante lugar a celeridade processual, em detrimento da solução “ideal”, isto é, “mais correcta”, ou “mais conforme com a lei”.(…)”.Captando de seguida a especificidade que casos como o presente suscitam, mais se anota no aludido aresto:“V – O que em primeiro lugar deve impressionar-nos nestas questões sobre a competência – … – é a dificuldade de enquadrar os recursos, quanto ao respectivo regime de subida, desde logo porque a declaração de incompetência “põe termo à causa” mas apenas no tribunal declarado incompetente (cfr. art.º 33.º do CPP; e art.º 407.º, n.º 1.a) m.d.l.). Parece, deste modo, que nos “principias gerais” – Capitulo I do Titulo I do Livro IX do C.P.Penal – não se contemplou a hipótese do recurso da decisão que declara um tribunal incompetente, até porque o n.º 2 do art.º 407.º não tem, manifestamente, aplicação neste dito caso. Ora é nossa opinião a de que não só parece, como é. Vejamos: 2 - Cremos que a solução se acha nos art.ºs 33.º, 34.º e 36.º-1 C.P.Penal, que conduzem, quanto a nós, à conclusão de que as decisões sobre a competência, cujo transito em julgado não impede a sua modificabilidade… não devem ser objecto de recurso, não tanto por força de uma inadmissibilidade legal, mas sobretudo pela sua inutilidade, e pelas desvantagens a nível da desejada celeridade processual. Mais correctamente: o único meio de reacção contra uma decisão que declara a incompetência do tribunal é a resolução em sede de conflito, e mesmo este limitado às partes face ao disposto no art.º 34.º-2 C.P.P.Abra-se um parêntesis para salientar a especificidade que ocorre na declaração de incompetência, pois quando o Tribunal se declara competente, o recurso porventura interposto dessa decisão será julgado a final (art.º 407.º-3. C.P.P.) não se colocando qualquer das questões aqui suscitadas Voltando à supra-enunciada solução: a) Declarada a incompetência, opera o comando do art.º 33.º-1 C.P.P., que (apenas) prevê a remessa do processo para o tribunal considerado competente. Logo, b) Será prematura qualquer reacção contra essa decisão, porquanto o “segundo” tribunal poderá aceitar a competência, evitando o conflito, o que é em si um fim a atingir (cf. supra, e art.º 34.º-2 C.P.P.). c) A decisão do recurso eventualmente interposto da “primeira” declaração de incompetência (caso dos autos) não vincula qualquer outro tribunal para além do recorrido. Na verdade, d) Apenas em sede de resolução de conflito há um tribunal cuja decisão se impõe a todos os tribunais intervenientes, por ter sobre eles jurisdição (cfr. art.º 36.º-1 C.P.P.). Logo, e) À partida é inútil o conhecimento do recurso, pois ele só resolveria a questão parcialmente, e na hipótese de ser provido (declarando a competência do tribunal a quo) mantendo ou criando o impasse processual na hipótese inversa (ao declarar a competência de um outro tribunal). VI – Chegados aqui, é evidente qual a conclusão a extrair de todo o exposto, que poderá formular-se em duas versões, ou formas, complementares: a) O princípio de que não há conflito sem duas (pelo menos) decisões transitadas deve ser entendido no sentido de que a questão da competência, para ser resolvida, deve aguardar a prolação de tantas decisões quantos os tribunais intervenientes, sem lugar a recurso. Se porventura a questão for dirimida nos termos aplicáveis do n.º 2 do art.º 34.º C.P. Penal, tanto melhor para a economia processual, pois aquela acabara aí. Não o sendo, cabe denúncia do conflito, cuja resolução vinculará os tribunais envolvidos. b) A questão da competência só devera ser dirimida em 2.ª instância por via de resolução de conflito, pois apenas esta é susceptível de vincular todos os tribunais intervenientes (cf. art.º 36.º-1. C.P.P.). Por outras palavras, a questão da competência está, portanto, e em larga medida, subtraída à litigância das partes, cabendo a estas tão só a legitimidade para a denúncia do conflito (art.º 35.º-2. C.P.P.) e devendo elas conformar-se com que a ele seja posto fim nos termos do citado art.º 34.º-2. Por outras palavras ainda, a irrecorribilidade das decisões proferidas ao abrigo do art.º 34.º-2. C.P.P. que, segundo parece, ninguém discutirá, é indício seguro de que também não deve caber recurso das decisões exaradas no âmbito do art.º 32.º-m.d.legal (o qual, e certamente não por acaso, alude exclusivamente à declaração de incompetência – cf. supra, V - 2.)”. Por seu turno, no segundo dos arestos mencionados, exarou-se com relevo para o caso vertente, também:“E a questão é pois a de saber se pode reagir-se de recurso da decisão que declara a incompetência do tribunal sem que se esteja perante uma situação de conflito de competências (que, …, não existe, ao menos, por ora).Perante a decisão de um único tribunal que se declara incompetente o art.º 33.º, n.º 1 do C. P. Penal prevê tão somente a remessa do processo para o tribunal considerado competente e este bem poderá aceitar essa competência e assim sendo não chega a haver conflito ficando os sujeitos processuais vinculados a tal decisão – art.º 34.º, n.º 2 do C. P. Penal. A existir decisão neste recurso ela apenas vincularia o tribunal recorrido uma vez que só em sede de conflito (…) é possível vincular todos os tribunais envolvidos.Tem-se assim por inútil o conhecimento deste recurso, por só poder resolver a questão, em parte, e apenas na hipótese em que viesse a conceder provimento ao recurso, declarando competente o tribunal …, único que ficaria vinculado pela decisão deste Tribunal; a hipótese inversa (a da competência do…) nunca seria possível conhecer quanto mais não fosse por este Tribunal carecer de competência para dirimir conflitos entre tribunais de distritos judiciais distintos. Assim, se a questão da competência vier a ser pelo Tribunal… tudo fica solucionado conforme dispõe o art.º 34.º, n.º 2 do C.P.Penal. Se não vier a aceitar a competência então, sim, estar-se-á perante um conflito que poderá ser suscitado pelo assistente mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para a resolução – art.º 35.º, n.º 2 C.P.Penal (…). A lei ao dizer no art.º 34.º, n.º 2 C.P.Penal que o conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar competente está a subtrair à vontade das partes a discussão sobre a competência. Estas têm apenas legitimidade para a denúncia do conflito. E citando ainda o Ac. desta Relação de 14/1/98 “o único meio de reacção contra uma decisão que declara a incompetência do Tribunal é a resolução em sede de conflito, e mesmo este limitado às partes face ao disposto no art.º 34.º, n.º 2 C.P.Penal”.(…).”

2.3. Na posse destes considerandos mostra-se de fácil intuição o desfecho da lide. O M.mo JIC de Aveiro declina a competência territorial para proceder á realização da instrução requerida, entendendo que deve ela ser efectivada pelo M.mo JIC do Porto.Sem mais, o assistente interpôs o recurso presente com o intuito de ver atribuída a competência a quem desde já a declinou.Ora, pelos fundamentos expostos, não se deve conhecer, por ora, da impugnação oferecida. Antes, devem os autos ser remetidos ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto e perante a posição que aí vier a ser assumida, seguirem os seus normais trâmites (caso de assunção de competência nesse Tribunal), ou (denegação da competência atribuída), então, ser incidentalmente suscitado o conflito negativo de competência originado.


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III – Decisão.

São termos em que se decide não conhecer do recurso interposto, devendo os autos ser remetidos ao Tribunal a quo, e, aí proceder-se em conformidade com o expendido.

Não é devida tributação”.

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Em sentido diferente, veja-se:


Acórdão da Relação de Guimarães, de 18.10.2007

( processo 1027/07-1 , relator: Augusto Carvalho )


Sumário:


1. Dispõe o artigo 108º, do C. P. C., que a infracção das regras de competência fundadas no valor da causa, na forma do processo aplicável, na divisão judicial do território ou decorrentes do estipulado nas convenções previstas nos artigos 99º e 100º determina a incompetência relativa do tribunal; Por sua vez, nos termos do nº 2, do artigo 111º, do mesmo diploma, “a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada”, devendo, no caso da excepção (de incompetência) ser julgada procedente, remeter-se o processo para o tribunal que for julgado competente – nº 3, do citado preceito.
2. Uma vez transitada em julgado, a decisão que conheça, mesmo oficiosamente, da excepção dilatória de incompetência relativa impõe-se dentro e fora do processo, ou seja, torna-se definitivamente vinculativa, não só para o tribunal que a profere, como também para aquele outro a quem o mesmo processo foi remetido; O julgamento da excepção da incompetência relativa põe definitivamente termo a essa questão, que não pode voltar a ser suscitada, ainda que com fundamentos diversos.
3. Verificando-se a situação de dois tribunais proferirem decisões sobre a mesma matéria, em que se declaram incompetentes, nomeadamente, em razão do valor ou do território, para apreciar e decidir certa acção, antes afirmando a competência do outro, nos termos do artigo 675º, nº 1, do C. P. C., a decisão primeiramente transitada em julgado resolve definitivamente a questão, impondo-se ao outro tribunal que, assim, a deverá acatar.

A respeito da tese defendida neste arresto, consulte-se o:

Despacho n.º 30/2007, de 22.11.2007, do Ex.mo Procurador-Geral Distrital de Coimbra, no qual se recomenda, ao abrigo do art. 58º, n.º 1, al. a), do E.M.P., face a tal tese, a interposição de recurso da decisão que declare a incompetência, no caso de se considerar que a mesma não é correcta, em processos em que o Ministério Público seja parte principal.